06/03/2012

A cidade nova III - A porta


Minha vizinha, dona S., vem visitar-me. Fez pão de torresmo e aparece quando estou sozinha: “só sobrou um pedacinho, e aqui na sua casa é gente demais. Da próxima vez faço uma receita inteira só pra vocês!”. Curiosa como ela só, transpira vontade de conhecer o lado de dentro desta obra que não acaba, destes vizinhos que lhe caíram na sorte. Cheia de opinião, não entende porque troquei as janelas da frente, menos ainda por que a entrada é por trás. “Mas filha, por trás?!”. E abana a cabeça sem compreender. Nitidamente, a maior desaprovação.

Chegamos à porta e ela estaca. “Linda, sua porta.” E é, de fato, lixada por mãos que a tornam, aos meus olhos, além de linda, preciosa. “Pena essas janelinhas, não?” E eu olho-a incrédula, com uma súbita vontade de que volte rápido rápido pros seus domínios, sua casa, do outro lado do muro. Mas ela já deu a volta ao morro número 2 de entulho e terra e entra pela outra porta, a que um dia será a da lavanderia quando esta última existir e pudermos abrir a outra porta, aquela mesma bonita das janelas, por enquanto interditada pelo morro número 1 de terra e entulho. E entra toda feliz, reparando em tudo. Não me incomoda o seu interesse. Mostro-lhe a casa toda, tarefa que se cumpre de forma bem rápida, e ela tem tantas opiniões fáceis que me deixa zonza. Se a deixo dois milímetros mais à vontade, é capaz de abrir e inspecionar as gavetas!

Assim como chegou, foi-se. E deixa-me olhando para a porta, intrigada com a sua desavença com as janelas. Tão bom, uma porta com janelas. Posso abri-las quando chove. Posso abri-las pra ver o pé de canela lá de fora (aliás, do quintal da dona S., caindo pra dentro do meu com toda a sua opulência). Pra ver a chuva. O vento. O granizo, como o que caiu no sábado, furioso. Olho de longe por entre as aberturas e fico em paz. Provavelmente porque me dê a sensação de que uma porta fechada com janelas permite que espere com mais sossego pela abertura dos portões quando as portas se fecham. Aquelas da vida, pra cumprir a metáfora.

É uma porta sem convicções, talvez: está fechada, mas abre-se. Está aberta, mas fecha-se. Dá-se a todos da maneira como a queiram receber. Só é preciso estar aberto a que as coisas não precisem ser apenas o que parecem, mas possam transcender-se e não se limitar – pra que ser apenas porta, se é possível ser janelas também? E que possam ser aquilo que são, tudo o que são, sem os rótulos que as fechem e prendam, aferrolhem quase. Como acontece com as portas sem janelas, por onde não se pode espreitar as promessas lá de fora, a não ser que se escancarem e assumam a sua única identidade. E, a essas, não é dado o prazer do olhar através – atravessa-se, sai-se ou entra-se. O máximo, máximo, é poder sentar-se na soleira, apreciando o fim de tarde e pensando em como será bom quando se puderem abrir umas janelas e dar a essa porta olhos de ver.

05/03/2012

A cidade nova II


Por pura falta de inspiração, vontade e capacidade de me concentrar no que quer que seja, decido hoje de manhã lavar a calçada – a entrada inteira de casa, na verdade, por onde caminharam carrinhos e carrinhos desta terra roxa que Araraquara celebra e que jamais desaparece das meias que a pisam. Claro que acho um desperdício de água, mas logo vi que a vizinhança respirou aliviada. Ao menos alguém se alivia.

A maioria dos meus novos vizinhos mora nesta rua há mais de 50 anos, o que já dá uma ideia da faixa etária dos mesmos. São quietos e observadores, e aos poucos vou percebendo por onde observam o movimento desta casa que parece não parar sossegada. Cumprimentam-me educados na rua, quando lhes desejo bom dia, e olham com uma forma curiosa de interesse para o monte de entulho que não some, as pilhas de tijolos que não diminuem, a areia, a terra, a pedra... balançam a cabeça (antes era imperceptível, hoje percebe-se claramente) mas não dizem nada. A mim, ao menos.

Assim que saí para a calçada armada de mangueira, perto das 8h da manhã, uma vizinha logo abriu o portão do lado esquerdo, outra atravessou a rua toda alegre e ainda uma outra espreitou por cima do muro e logo veio também juntar-se à animada conversa. Parecia que estavam à espera, cada qual atrás da sua vida. A animação tinha motivo: todas estavam preocupadas de eu não ainda não ter lavado a calçada. Nem um dia sequer! Dona S. era a mais exultante: “Mas que bom, Ana, assim eu posso lavar só a minha, não preciso mais lavar a sua!”. E eu com os meus botões pensando na minha pouca intenção de repetir o feito. Ela sorri piscando os olhos, querendo garantir que eu sei exatamente do que ela está falando. Dona M., vizinha da frente, não diz nada – e me dá a impressão de que no fundo critica o jeito todo franco de dona S., mas jamais diria nada, porque afinal a calçada ficou lavadinha. Passados uns minutos arrisca bem baixinho um “é, os paralelepípedos também podiam ganhar uma aguinha, né mesmo?” mas eu juro que escolho e prefiro não a ouvir, e seja lá por qual motivo ela não repete. Lavar a rua já é um pouco demais. Ainda assim, volto meia hora depois de vassoura e pá e recolho o que caiu da caçamba que levaram embora atulhada de entulho até a alma. Acordei com vontade de agradar a vizinhança. E mesmo rindo da situação, volto com a pá cheia pra dentro de casa.

No fundo no fundo essa meia hora de prosa devolveu-me uma espécie de pertencimento perdido – pertencimento a mim mesma, que dificilmente me percebo sozinha, preciso do outro pra me cutucar e dizer que eu sou de carne e osso, não só sangue escorrendo por dentro das veias. Pertencimento ainda que seja no reconhecer da minha capacidade enquanto lavadora de calçadas. Volto para dentro com mais forças para sentar-me ao computador e dar conta da tarefa diária, laudas que não avançam porque eu não permito, petrificada diante das folhas que preciso ler para reescrever e reescrever e reescrever. Sem parecer que avanço. Igualzinho à vida. Agora, alma e calçada lavadas, ponho-me a caminho novamente, menos ocupada com as curvas, as ribanceiras, os túneis, as tempestades todas que estão a caminho também.

03/03/2012

Entre sentir e pensar


Mestre Caeiro ensina que pensar é estar doente dos olhos. Concordo com ele em gênero, número e caso na maioria das horas. Mas hoje, como em outros dias, acordo pensando, pensando, pensando, e não há o que fazer. Tento livrar-me dessa angústia, dividi-la com os outros, mas nem telefonar para amigas queridas e distantes me ajuda: no final, estou pensando em dobro, com mais sementes brotando e incomodando o passar das horas.

Pensar tem uma estreita relação com pagar – etimológica ao menos. Embora a raiz mais aceite de pagar seja a palavra pax (ou seja, pagando nossas dívidas ficamos em paz, nada mais verdadeiro), existe um outro “pagar”, aquele que se refere a punir por alguma coisa, que tem com o pensar uma proximidade – a mesma raiz pensare. Portanto, se pensar é (também) punir(-se), só pode mesmo angustiar. E mais: pensare ainda adverte que pensar pesa. Pesa. E muito.

Para tornar tudo isso mais leve, escreve-se. Eu, ao menos, escrevo. Assim que me sento aqui e me desperto para o mundo da palavra, algo em mim se distende. Apreendo-me com outra consistência, permito-me até mesmo o que, fora do mundo da palavra, não é espaço. Volto às palavras que nas madrugadas, sem sequer acender a luz ou abrir os olhos, escrevo aqui e ali, no primeiro papel que encontro. Um manancial de olhos para dentro do que sinto, no momento em que sinto – antes de me pôr a pensar e atrapalhar a vida.

E por isso os dias em que acordo muda e pensante me pesam tanto, tanto e me fazem pensar tanto, tanto. Dias em que caminho rasteira. Quando, por mais que respire, não consigo encher-me de ar. Como se um tormento me acossasse por todos os lados, quebrando-me uma a uma todas as costelas. Como se o papel me devolvesse o mesmo olhar vazio com que olho para ele.

Há ainda um outro ancestral da palavra pensar: pendere. Que também se usava para pagar – assim como para pendurar, pender, jogar o peso para fora. O que, claro, rapidamente faz pensar que pensar nos livra do peso que o próprio pensar provoca. O que é uma charada que dificilmente conseguirei resolver neste dia, quando pensar me coloca diante do que sinto sem que o sentimento possa acolher-me, e me põe à prova, me coloca em cheque, me pergunta uma e outra vez de que lado estou e de que lado quero estar. Como se eu acreditasse que a vida tem lados em vez de espaços.

(E, quando já tinha terminado e quase me dado por satisfeita, Simone de Beauvoir vem em meu auxílio: “Que nada nos defina. Que nada nos sujeite. Que a liberdade seja a nossa própria substância.” Amem.)

28/02/2012

Descobertas


Uma das sortes de ter vários filhos é que dificilmente se fica sem tema para escrever.

Cada dia de filho que eu tenho descubro dois pais que não tinha: essa frase está há semanas no meu ouvido. Provavelmente sem pensar nisso (ou talvez pensando, que esse filho também é dado a pensar um bom tanto), descobre sem querer o grande segredo: o fato de, a cada dia, descobrirmos que as pessoas são outas coisas além daquilo que pensamos que elas sejam. E, assim, mostram-nos que no fundo sabemos muito pouco uns dos outros, e por condição - não é falta de disposição ou entrega ou interesse ou atenção. É assim e ponto.

É bom que meu filho saiba disso, para que não se surpreenda, nem com os pais que tem, nem com os outros que o rodeiam. Estar prestes sempre a se surpreender e a ver lados antes desconhecidos é uma bênção da vida. Às vezes incômoda, mas também nunca ninguém disse que as bênçãos fossem confortáveis. Saber que tudo pode ser coisa de um momento. Que tudo pode mudar de repente. Aprende-se a não desperdiçar o tempo. A não deixá-lo passar inutilmente. Ou tenta-se tudo isso, porque o tempo tem seus próprios desígnios, e permite em nós o que sequer imaginávamos podermos ser.

É uma espécie de viver em precariedade ilimitada voluntária. Tento convencer-me disso hoje, e de que é bom, assim que olho para o rei de ouros que me aconselha coisas difíceis: disciplina, objetividade, cabeça fria, estabilidade emocional. São bons conselhos, e hei de tentá-los a todos. Mas era ainda madrugada e eu já estava de olhos abertos, numa insônia que o Antônio, lá de Floripa às 5 da manhã, me diz que não, que não é insônia - antes um momento especial, uma porta aberta para as respostas dos mundos espirituais. Acredito no que me diz, mas as respostas que ouço bem baixinho assustam. E volto conscientemente à objetividade e à cabeça fria que também os mundos espirituais me aconselham, e decido lembrar-me disso o dia inteiro, como estratégia de sobrevivência. Espero que os outros hoje se façam leves à minha volta, para que todas as que me habitam, e que meu filho descobrirá ao longo da vida, me permitam a dose de sossego que a madrugada levou embora.

Aquarela de Ivani Rainieri

27/02/2012

Exercício


(500 palavras de um personagem que insiste em fazer-se nascer)

“Sabe o dia que se esgueira, como uma enguia viva, para dentro das nossas almas? O dia que se infiltra, que se ateia fogo a si mesmo, que se boicota a felicidade desde a hora em que sol assoma até a que a lua já está alta no céu? O dia embolorado, rançoso, entristecido ao olhar-se de frente? Pois esse é o dia de hoje. Um dia enguia, sinuoso dentro do corpo da minha alma, arrastando-se na lama em que me atolo sem ajuda, escorregando lento e destilado por entre a cor da manhã. Ninguém aparece para salvar-me, lembro de ter pensado. Ninguém levanta um braço para socorrer-me, e eu sequer consigo gritar por socorro. Lembro de ter pensado horas e horas, diante do nada, só vendo essa enguia esguia engolindo-me mais a cada hora, engordando satisfeita com o alimento que lhe forneço assim, de graça, sem galanteios e sem mesuras. Estende-se ao comprido por cima do que sobra de mim, ossos fracos e amarelados, secos quase como farinha que queimasse ao sol, e que sequer precisasse ser moída. Sinto-lhes a firmeza perdida, a solidez desperdiçada, oferecida a essa enguia que reluz sob o sol, mil tons de cinza brilhando como escamas, embora sua pele seja lisa e densa.

Alguém que me acenasse do outro lado faria que meus ossos se levantassem, mas há uma solidão nesta terra que habito, uma solidão feita de caminhos vazios de formigas, só seus traçados e algumas folhas perdidas pelo caminho. Os buracos dos formigueiros estão ocos, com seus amontoados de terra digerida formando circunferências de montanhas em torno do orifício. Releio os sinais da terra através desses caminhos, solitários e sozinhos como eu próprio.

Pergunto-me se alguém lembrará da minha presença, ou se todo este silêncio que me rodeia será uma estratégia para que abandone a mim mesmo por fim. Se todo este silêncio onde leio a palavra abandono existirá para evidenciar que devo ir, deixar-me cair em algum lugar e parar de lutar.

Meus braços cansados estão pendurados ao lado dos meus ossos, como se fossem suas sombras. A enguia já deixou seu posto de triunfo, deslizando como água para dentro da terra. Não tenho mais o conforto úmido e gelado de seu corpo sobre a minha parte mais dura, mas recuperei a minha sombra, e assim posso recuperar a minha forma de andarilho da vida, mesmo sendo feito só de sombra e ossos. Mesmo que os ossos fiquem parados, à espera da sombra lhes dê notícia da vida do lado de fora.

Mas há um fosso que se abre a toda a volta, um fosso que nem a sombra consegue atravessar, porque assim que o tenta há uma força que a empurra para baixo, em direção às ondas vorazes onde vive o reino das enguias. A sombra será engolida, e logo a seguir os ossos. Ainda que me agarre às bordas duras desse fosso à minha volta, sou todo engolido, e transformo-me naquilo que eu já era antes de ter nascido.”

A cidade nova


Nesta nova vida urbana, nem pensar em usar carro – bicicleta o dia inteiro, de manhã até de tardezinha. Um dos filhos vem junto, animado, curioso com a cidade que se descobre de pouco em pouco. Prudente, passa os dias indo e voltando, testando caminhos, reconhecendo esquinas, dominando esse ser estranho chamado cidade, apoderando-se dos seus detalhes. Como nenhum outro, reflete como gente grande; gosto das conclusões a que chega, e que me conta devagar, mostrando o quanto o seu coração pensa. Perguntam-lhe se está gostando da mudança e seus olhos traem a saudade do que ficou pra trás; mas logo me diz que é assim mesmo, as coisas novas às vezes demoram pra ser gostadas. Ou algo parecido. O seu olhar atento é um consolo nos meus dias não tão ensolarados.

Saímos para comprar novas cordas para o violão. E esticamos um pouco a pedalada, vamos avançando por ruas que são só números – e ele me diz que também assim acontece em sua nova escola: há professores que só lhe conhecem o número. Porém, confiante e otimista como seu professor Silvio lhe ensinou, logo se lembra da professora de inglês – “ah! Ela me chama pelo meu nome!”. Mudanças que, torço até o fundo da alma, possam fazê-lo crescer em solidariedade, em percepção, em compaixão pelo outro, que se revela tão distinto mas tão amável por isso mesmo. E digo amável no sentido de poder e querer ser amado.

Chegamos à rua 36; descemos e voltamos rodeando a igreja São Geraldo, cheia de lembranças difíceis. A mim, tudo me é familiar, embora de uma forma um tanto vaga; parece que deixei algumas coisas do lado de fora da alma, estacionadas ao relento sem saber como as amadurecer. Ao mesmo tempo, tudo parece diferente. Ocupo-me em resignificar cada pedaço de cidade, sem saber às vezes o que fazer com as recordações. Veem de repente, sem que eu as ouça abrir a porta, e nocauteiam-me a meio dos quarteirões. São muitas, muito mais do que eu tinha consciência. Encontro pessoas que sei conhecer, mas não sei quem são. Como se pertencessem a outra encarnação e me visitassem nessa, mas só com um aceno de cabeça: “sim, estamos aqui – para onde você pensou que tínhamos ido?”. (Até a rua em que moro me faz lembrar, pela placa da esquina onde está escrito o seu nome, que há lugares de onde se vem, o tempo inteiro - mesmo que muitas vezes não lhes usemos os nomes e os reconheçamos de outra forma. Talvez por isso todos a conheçam como rua 10 e raros saibam do seu nome.) Pergunto-me se devo reconstruir outros novos laços, ou se devo deixá-las onde estão. Até porque, ao mesmo tempo, outras se aproximam, chamam a minha atenção, chocam-se comigo nas esquinas e dizem-me um "bom dia" interessado.

Outra filha chama – nova saída, para ver outras coisas, organizar uma vida nova dentro da vida antiga, cuidando que ambas tenham espaço para habitarem estes seres queridos que avançam pelos seus próprios caminhos, tão diferentes entre si, exigindo-me uma ginástica que me deixa cansada mas inspirada. E lá vamos, a pé e de bicicleta, para que a diferença com o antes se note mais, para que não se fuja dela, para que o destino chegue de outra forma, talvez mais ativa, talvez mais dependendo da própria perna. Para que sejamos mais fortes, provavelmente.

26/02/2012

Reciprocidade


Uma amiga querida, daquelas que levamos anos para encontrar e depois não esquecemos jamais, pede-me, à distância de uma dor que só adivinho, que lhe escreva algo sobre reciprocidade. O caminho etimológico dessa palavra é tão complexo que merece um gráfico, coisa que não sei fazer, motivo que me leva a tentar uma explicação linear:

  1. "Recíproco alcança-nos diretamente de reciprocus: uma palavra latina que significava ir para trás e para diante, ida e volta. Usa o sufixo re-: de novo, outra vez. E deriva de procus – pretendente (isto é: alguém que pretende, ou quer, alguma coisa; um angariador; usava-se também para referir-se a gigolô). Procus, por sua vez, derivou do prefixo grego pro, que responde por “antes”. Que, a seu tempo, derivou de prex – oração, pedido."

Maravilhas da etimologia! Ora vejamos: essa palavra que atormenta minha amiga remete-a sem ela saber à falta de oração (ato de pedir ou implorar); à falta do que vem antes; à falta de alguém que pretenda, que queira, alguma coisa (que ela pode dar?); à falta de poder ir e vir e aposentar as certezas, as verdades, as singelas capacidades que construímos para nos adaptarmos tolamente àquilo que os outros esperam de nós. Imaginando que assim seremos felizes e que deixaremos de avançar e recuar na vida, e que esta então será um lago de tranquilidade, sem nuvens, sem tempestades, uma linha direta que nos conduza diretamente ao paraíso.

E de repente acordamos uma manhã e pensamos: “Mas que raio de solidão! Onde está quem devia estar aqui ao lado? E que disse que estaria?”. E lá vamos nós em busca da reciprocidade, do manter-se em movimento, do ir adiante e atrasar-se logo depois (o que equivale a ter um próprio ritmo). Difícil é quando falta algo de antes, falta esse alguém que pretenda também, porque a reciprocidade a dois demanda passadas equilibradas e sincrônicas, nem sempre fáceis, nem sempre reais, nem sempre juntas.

O caminho da reciprocidade atravessa de vez em quando o da retribuição. Como se um se nutrisse do outro. No entanto, há uma diferença básica: retribuir ainda nos liga à ideia (e ao fato) de tribo, que nos acompanha há milênios, e que faz com que entendamos que há laços que nos ligam, visíveis, e que têm a ver com a nossa relação de sangue, de etnia, de grupo – de tribo. A re-tribu-ição indica que algo deve ser dividido, compartilhado entre vários, aqueles que, numa perspectiva ou em outra, são nossos iguais. A reciprocidade é apenas movimento, um pêndulo no espaço que faz com que, de madrugada até agora, eu queira ser recíproca, eu queira avançar e recuar junto ao pensamento da minha amiga, preso na redoma de si mesmo lá longe, onde meus olhos não alcançam mas a minha alma sente. E, ao mesmo tempo, que não queira que nada seja retribuído, porque não é preciso que sejamos do mesmo lado, da mesma rua, da mesma família, da mesma ideologia, da mesma presença. Até porque a graça desse pêndulo que, recíproco, se estica e oscila entre nós é, justamente, poder refazer-se dia a dia, indo e voltando como um gesto imenso, sereno e solene, nessa dimensão que é a das relações entre dois seres humanos, e que não se norteia pela sua origem, mas pela sua capacidade de entrega.

Essa amiga, ao longo dos nossos anos de amizade, cheios de mesas postas para incontáveis chás e cafés, mostrou-me o ser discreta sem deixar de ser contundente. Longe de ter aprendido, sobretudo a parte da discrição, observo-a aqui de longe, tal qual se materializa diante de mim como exercício de memória, e admiro-lhe a seriedade e a forma categórica como se move para diante e para trás, ela recíproca em tudo, à espera de que o mundo também o seja. Sou-lhe recíproca daqui de longe, mas nada posso retribuir-lhe: como ela, oscilo entre polos que muitas vezes não entendo, feliz e aflita de que eles existam. E prefiro mil vezes ser-lhe fiel na reciprocidade que prometo, indo e vindo num abandonar de certezas que me abram as portas do que está por vir, sabendo que também ela estará recíproca ao meu lado quando alguma delas se fechar e me deixar inconsolável.

24/02/2012

Coisas de obra


Há algumas pessoas na vida com quem é difícil perder a paciência. Na minha, Valdete é uma delas. Conheço o Valdete há uns 20 anos. Nem eu nem ele nos lembramos de como começou, mas já tem isso: duas décadas.

Valdete é pedreiro, construtor de casas, materializador de sonhos. Depois de ter construído a nossa casa, tornou-se nosso afilhado de casamento. Vivemos dividindo a mesma obra durante meses; compartilhamos feijoadas, moquecas, bolos e xícaras e xícaras de café. E viramos amigos. Ao contrário de outras histórias, fazer reforma em casa era uma alegria: Valdete vinha e era uma conversa só, um bom humor só. Seus auxiliares, sempre gente que precisava de ajuda. O Luizinho enganou a todos meses a fio, com a sua garrafinha térmica com um café que não dividia com ninguém e que um dia descobrimos que vinha era cheia de pinga. E Valdete, aquela paciência, dizia: “Luizinho, cê não vê que essa maldita tá acabando com você, meu filho?”. E Luizinho sorria com seu sorriso desdentado e dizia: “Saber eu sei, Valdé, mas fazer o que?”. Já se foi, o Luizinho; no meio de um porre caiu na represa e só apareceu três dias depois, já comido pelos peixes. Os olhos do Valdete enchem-se de água quando me conta a história: “era como um filho, sabe?”. Valdete coleciona filhos dessa forma.

Nasceu na Paraíba, o Valdete. Tem uma natureza mansa. Tranquila. Justa. Trabalho mal feito ele resolve de um jeito só: faz de novo. Sem perder o bom humor. A paciência às vezes escapa, mas só se percebe nos olhos. Nessas horas, acho que o Valdete sabe que é melhor manter a boca fechada. Eu já aprendi um tanto de coisas com ele, e ele nem desconfia.

Quando nossa filha Gaia nasceu, Valdete estava trabalhando em casa, fazendo um muro lá na frente. Vim avisar que logo ia ter bebê por ali, e ele aflito, sem saber se subia se descia do andaime, se me levava pra maternidade, se me carregava no colo... Quando ela nasceu, e ele entrou em casa pra vê-la, Luizinho e os demais atrás dele, era a reverência em pessoa, o visitante de um presépio acabado de descer do céu. Se usasse chapéu, certamente o traria entre as mãos, amarrotado pela emoção e pelo nervoso. Quando Gaia partiu, Valdete passou longas horas no velório, desconcertado, os olhos vermelhos e inchados, e me deu um abraço que disse mais do que as palavras diriam.

Valdete morava numa chácara, naquela época. Perto do Natal, decidiu engordar uns porquinhos. Veio um amigo e pediu-lhe um pernil: “pago depois, pode confiar”. Nunca mais. E Valdete, avesso à cobrança que sugeríamos, filosofava: “Sabe o que acontece, Ana? Desse aí eu já sei o preço, que é só de um pernil. Se não me paga, tem a vantagem de nunca mais me procurar mesmo, e amigos desses eu quero todos é bem longe”. 

Às vezes o santo do Valdete não bate com o de quem o contratou – e sofre, porque deu sua palavra e não pode deixar a obra, e o mal estar envenena-lha os dias. Com tudo isso e por causa de outra obra, abandonou-me várias semanas. A obra parada, o entulho fora da caçamba, o monte de areia se esparramando por baixo das patas dos cachorros, entrando em casa por todas as frestas, pilhas de tijolos na expectativa, o reboco que ainda existe caindo paredes abaixo... Faço o que posso, que é pouco, e me deixa deveras descontente. E Valdete sumido. Ligo pra ele e ele responde: “Ô Ana, saudade docê! E aí? Te abandonei não, viu? É que tá complicado pro meu lado.” E promete aparecer no finzinho da semana.

Apareceu ainda agora. Promete que vem semana que vem. E me oferece aquele sorriso de sempre, de gente de verdade, que vive de verdade e gosta dos outros de verdade. Minha irritação desaparece como num passe de mágica: impossível brigar com pessoas assim, que nem o Valdete, sequer discutir. Sorte é tê-las por perto, da maneira como puder ser. Sorrio de volta e respondo: “Ô Valdete, some não. Segunda feira tem café prontinho a hora que você chegar.”.

23/02/2012

Personagens

Em toda narrativa, sobretudo nas mais longas, há um momento em que se tem a certeza da falta. Falta alguma coisa, e não se sabe o que. Há várias saídas: pode ser uma questão de foco (tenta-se outro), pode ser uma questão de excesso de descrição (diminui-se), pode ser uma questão de diálogos mal construídos (típico, e fatal). E por aí vai.

Mas às vezes é o tempo. A sua passagem. E a consequente espera. Muito parecido àquilo que amadurece dentro de um fruto, ou dentro de um útero, ou dentro de um coração que estava assim, à espera.

Aprendi que essa espera é traduzida pelo ato de engavetar um texto. Literalmente. Tiro uma cópia papel, coloco-a dentro de um envelope, e guardo-o dentro de uma gaveta. Onde, aliás, há já outros envelopes guardados. Por um lado, é um desespero, sobretudo quando se está em pleno processo, quase que dependente dessa história que se materializou. Por outro, é um alívio, porque no fundo não é difícil se desfazer da própria imaginação. E, desta vez, ao desengavetar o envelope, descubro a falta: um personagem. Estava ali, presente e claro. Tinha nome (embora não fosse o correto), tinha os gestos, tinha a fisionomia, até uma história anterior à ação do romance, aspirações, gostos, uma forma peculiar de olhar. Mas ao mesmo tempo não estava, porque faltava uma espécie de concretude que só se revela de repente, quando é hora. E percebo que, ao que já estava ali, tão nítido, juntam-se detalhes que fazem com que a ação dos outros personagens mude, porque a entrada do que é novo inevitavelmente provoca mudanças. E ainda bem.

Pois a esse romance (porque é de um romance que se trata) já se dedicaram alguns leitores - e agora, quando lhes conto o que acontece, quando lhes prometo que agora sai, que agora termino - digo-lhes também que foi assim, de repente, com a surpresa de um personagem que, além de assumir seu verdadeiro nome, mudou também de configuração, de importância, de relevo, e deixa uma marca clara e firme onde era só areia molhada.

E, como do interior de um útero em sombras, nascem páginas e páginas, num fluxo contínuo que preciso segmentar e organizar para que esse personagem, que agora é novo, vivo, forte, irresistível, possa se entremear aos demais, fazer-lhes parte, pertencer-lhes. Demora, cansa os olhos, as costas, às vezes até falta o ar - mas vale muito, muito a pena, porque maleável ele se acomoda, gentil ele se aproxima, generoso ele se oferece.


Foto: Gaya Rachel Neves