16/02/2012

Nuvens


Nem adianta o céu azul lá fora, menos ainda o calor que se anuncia para perto do meio dia: há muito pra fazer e quase nada daquele ímpeto necessário ao cumprimento das coisas. Passeio pela casa como se não me dissesse respeito tudo o que precisa acontecer. Faço listas que posso imaginar cumprir, mas só até o momento de terminá-las. Rasgo-as. E começo outras.

Ao menos comprarei o que falta. Embora disso dependa sair, andar e escolher. Não quero nenhum dos três: quero o estado de parada atenção interna, e mais nada. Há um vulcão dentro de mim em processo de doma, e eu quero perceber o exato momento em que o que é não basta e o vulcão consegue galgar-me a superfície. Para que aprenda qual é o momento, e o momento não me surpreenda ao abrir a porta.

Alguns dos filhos aparecem a intervalos regulares. Não posso ajudá-los, cada um de nós numa solidão de compartilhamento difícil.

Há experiências de vida assim; descem lentas como orvalho a meio da madrugada, escorrem como luzidios fios de cristal quando a alvorada se anuncia, e se transformam em mil cores boiando num lago em que mergulho a minha sede, mas sem conseguir saciá-la. Porque o lago é um espelho, e deste lado só vejo o reflexo. Sem mergulho. 

Só nuvens num dia cor de azul celeste.

14/02/2012

Cratera de caixas


Consegui encontrar um espaço no meio desta casa-em-mudança-e-obra para escrever. Parece uma cratera brotada no meio das caixas – olho em volta e só há caixas e caixas, uma certa penumbra e um silêncio que (descubro) só o papelão provê. Um silêncio de base sepulcral, naquilo que de sagrado e eterno tem um sepulcro. Sinto-me em casa, rodeada das coisas que a constituem.

As montanhas de caixas não obedecem ordem alguma, é mais um caos criado por todos os que descarregamos o caminhão e precisávamos andar rápido sem saber qual a direção – servem-me de apoio para todos os papeis, diagramas, listas, desenhos, folhetos que me acompanham nos últimos meses. Mantêm-me ancorada à história que escrevo, que se desenrola diante de mim de formas surpreendentes e que aguardava pacientemente por um pouco de espaço qualquer que lhe permitisse permanecer em estado de desdobramento. Um lugar em que pudesse deitar-se ao meu lado e continuar o seu andar. Estou feliz por termos nos reencontrado.

De vez em quando alguém vem me visitar – espreita por cima das caixas e ri. Ainda não acredita que, de fato, seja possível que eu esteja trabalhando. Estou. E quando saio preciso esgueirar-me por entre duas caixas, apertadas e sinalizando que a vida é provisória o tempo inteiro. É de tal forma apertada esta cratera de escrita que ninguém me acompanha, porque não cabe. Como diz minha amiga Suzana, porque não tem cabimento mesmo. Estão estreitos os meus lugares.

Gosto de ficar aqui, e perco-me olhando as caixas, todas da mesma cor, todas paradas esperando o tempo voltar e olhar para elas. Gosto da ideia de criar uma margem de tempo que me faça esquecer o que contêm, para que a cada uma aberta eu sorria e me divirta com a infinita e proverbial capacidade da minha família de guardar todos os inúteis e ricos detalhes da vida. Mas para isso é preciso que o tempo faça seu caminho de forma ampla, e enquanto isso eu vivo dentro do mundo que se criou dentro de mim, esta história paralela, onde me dou ao luxo de ser vários, que absorvem de mim partículas esparsas, personagens a quem as contradições nem criam problemas nem afligem. Aparecem-me como fantasmas amigáveis, têm nomes e biografias, e apresentam-me as suas dores e os seus sonhos para que, de formas que desconheço, os converta em meus próprios.

As caixas à minha volta permitem que pense o passado uma e outra vez, que reveja na sua opacidade baça as cores dos milagres cotidianos. Encosto-me a elas um pouco como se fossem a salvação dos pedaços que em mim vou desencaixotando aos poucos, ainda surpreendida pelos rumos que a vida toma sem nos perguntar quase nada. É um alívio ter onde me apoiar sem sentir perigo.

10/02/2012

Dia de casamento



À Mainara e ao Thadeo

Dois amigos queridos casam-se neste sábado à tarde em Botucatu. Espero que o sol sorria de manhã, menos inclemente talvez do que nos últimos dias, e que quem sabe à tarde a brisa da serra nos alcance, e possamos refrescar os pensamentos para melhor acompanhá-los.

Convidam-me para madrinha, e ao Ricardo, meu companheiro de vida, para padrinho. E automaticamente penso em nosso próprio casamento. Não no dia em si, mas no seu processo, no seu deambular pelos anos, nas idas e vindas, voltas e contravoltas. Se me perguntam se é difícil manter um encontro de tantos anos, encolho-me para ver mais de perto o que são esses anos - sou pequena perto deles. Não sou mais a mesma, nem ele é mais o mesmo. Parece-me que ele se transformou mais do que eu, à medida do que foi preciso, à medida do que as urgências pediram, do que as dores exigiram. Mas dizem-me que não, aqueles que nos conhecem, balançando a cabeça como se eu dissesse alguma bobagem – mudamos os dois, em consonância conosco mesmos.

Casamento é processo de mudança a tempo inteiro. De conquista de controle dos próprios fantasmas, para que a existência do outro possa ser a que deve, a que precisa; um interregno em que espaço e tempo abrem-se para a compreensão de que o caminho mútuo é composto de dois caminhos em separado. E que os caminhos em separado estão abertos, mas precisam de proteção, para que os tropeços não provoquem dores desnecessárias.

Porque casamento dói. Claro que dói. O tempo às vezes não é um uníssono, nem sempre a sinfonia é harmônica. Mas é música, o tempo inteiro, é Palavra e som entrelaçados em dois corpos que dançam sempre, de frente ou de costas, e seus ouvidos precisam acolher as músicas de cada um sem julgamento. Tem um quê grande de entrega, e pouco espaço para tudo o que é raso. Aqueles que se aproximam devem saber disso, porque ao chegarem à anteporta estacam e pensam de novo se vale a pena fazer-se presente. Quando o fazem, sabem o que arriscam, porque o reino da intensidade vive do lado de dentro, compromisso de vida que se quer acima de aparências e convenções.

Penso no que poderei ofertar a esses dois amigos, qual das minhas mãos devo aproximar para que o peso do tempo ao passar se torne mais leve, para que o coração sossegue quando o descompasso for a regra, quando o que parece falta alheia seja a grandeza daquele que se reconstrói todos os dias. Porque tudo isso será, e é bom que o seja, porque depois de cada tempestade a bonança é cada vez mais gloriosa. A mão que aproximo é a que previne o sentimento de posse desmedida, a que alerta a vontade diferente inevitável – uma mão que acolhe e diz que tudo faz parte. E que às vezes é preciso deixar o tempo passar, respirando até o âmago de si próprio para que o outro possa ter oxigênio. E, nunca, jamais, aquietar o próprio coração na dor do coração do outro.

Enquanto preparo a roupa que vestirei no dia de seu casamento, penso em meus dois amigos, no seu encontro, nas voltas que a vida deu, bem à minha frente, para que o avistar-se mútuo fosse possível. Testemunha ocular da história, posso dizer-lhes que a predestinação que sei sentirem está exposta em muitos momentos partilhados – o universo conspirou enquanto respiravam as próprias vidas. Que a vida que escolhem neste sábado seja amparada pelos universos da luz e que, enquanto dure, pese o quase lugar comum da poesia, seja eterno e chama o amor que sentem.

09/02/2012

3 tempos


Anteontem

Lição de casa de filosofia: mãe, preciso saber o que você pensa: como você prova que existe? Descartes aflora rápido mas os lábios se controlam. Descartes não sabia de tudo, e filho quer saber o que eu penso. Portanto, ele sabe que penso, não adianta apelar para máximas abstratas. E não é só essa pergunta, mas uma série delas: como você prova que o que você vive agora não é só uma lembrança? Como você prova que isso que você vive é real?

Olho para dentro de mim mesma, e não consigo provar-me que existo. Procuro-me por todos os lados, perdida que fiquei dentro de um outro, e aí respondo-lhe: é o outro que prova a minha existência, que sou eu sem o olhar do outro? Quase lhe falo de alteridade, mas não vem ao caso mais um conceito jogado no espaço.

Ontem

Os sons do mundo ficaram mais fracos – apesar dos dois ouvidos congestionados pelo excesso de água dos últimos dias, piscina, chuveiro, piscina, tentando driblar o calor que assola por poros e veias, descubro que são todos os sons do mundo que ficaram mais fracos, e não apenas aqueles que dependem dos ouvidos para se fazerem ouvir. Os sons do mundo ficam mais fracos e eu mais fraca diante deles.

Hoje

Conceitos desfeitos como pó. Um estado de desconceituação. A mente não gosta, sai em passeio de buscar respostas. Porque eu não as tenho, e aviso-a: deixei-as dentro do outro. Desfiz-me de mim mesma, e meus olhos não dizem tristeza, só dizem que não estou. Não estou nada.

Porque durmo e acordo com a certeza de estar, mas um vento áspero vem e me derruba a alma, um hálito acre atravessa-me a pele e me desconcerta, me desalinha. E me diz que é perfeito. Mesmo sem ser. Porque a perfeição só existe a caminho. E as palavras tornam-se estátuas de pedra entre os meus dentes, salitre queimando o céu escuro da minha boca, vazio das estrelas-palavras que o povoam. As palavras secaram-se. Calaram-se. E eu com elas. Eu com elas num limbo, o silêncio pesado, angústia por trás das hélices de um ventilador ligado.O lugar de onde nascem fechou-se, inerte, à espera não sei de que: morte, torpor, agonia? Há um voo de pássaros sem sentido defronte da minha janela, um sem razão repentino, tempo e espaço escoados de repente para fora da minha pele. Desrevisto-me com uma sensação de peso que não conforta. Estou sozinha dentro de mim.

06/02/2012

Vulnerável


Diziam-me hoje (falava-se sobre procedimentos cirúrgicos, talvez) que há cortes que parecem pedir não só precisão, mas também leveza, uma espécie de ternura na sua forma mais lenta, que deixe o sangue escorrer sem violência e sem trauma. Uma forma de dor que mais fortaleça do que determine o princípio do fim. Não sei – cortes são cortes. 

Questão de vulnerabilidade, parece – no caso da conversa, até mais a percepção da vulnerabilidade do outro, ali à flor da pele tão pronta ao corte, do que a consciência da própria. Talvez seja um cheiro diferente, um certo tom que se torna visível assim que os focos da mesa de operação se acendem. Um repentino abrir-se de portais que a mente não explica, e na maioria das vezes nem a medicina. E quem consegue percebe e, além de preciso, é leve e terno e lento. Talvez demore mais tempo, talvez acaricie ao de leve a pele antes de a cortar, para alertá-la, prepará-la, fazê-la saber que a mão que corta é a mão que afaga. Para que o corpo que não é carne deixe de estar vulnerável e se torne pronto. Cortes são cortes, mas há mãos que sabem cortar e mãos que ainda não aprenderam.

Tudo aqui em casa está, esta noite, vulnerável – tudo atento ao amanhã mais que ao hoje, a começar por mim. Quantas perguntas, daquelas que encobrem mal a ansiedade que se instala, pequenos corpos para grandes almas de repente em suspenso sobre a própria vida. Ou nem tão de repente, se pensarmos que estamos todos em suspenso, levitando sobre as razões de cada coisa, às vezes apoiando um pé, uma mão, e percebendo o infinito. Todos vulneráveis, perceptíveis, atentos, como nos quer essa lua quase cheia aqui fora. O mesmo céu que a todos cobre, noite fechada, ruídos ao longe, a esperança equilibrada na aurora que vem chegando. Afago-os nessa escuridão que se formou, minha mão querendo ter aprendido o corte, mas eu mesma sem saber exatamente onde e como estou, sem saber até onde e quando e onde e como ir, para que a vulnerabilidade não se torne insuportável e me faça tropeçar no que não existe.

04/02/2012

Mudanças

Em trânsito. Entre um lugar e outro, o coração entre o batimento e o descompasso, sem lugar certo ainda, oscilando como um pêndulo sem haste. Mudanças são bons momentos para se vislumbrar o que acontece quando se vai e ainda não se chegou. Nada que seja desagradável - muito pelo contrário. A vida no fundo fica mais simples, mais clara, como se se carregassem menos coisas dentro da mala - ainda que a mudança pese toneladas e precise de um caminhão do tamanho do mundo pra carregar o que se parece com uma vida, mas não é a vida. Porque a vida é o que fica do lado de fora, lá e aqui. A vida não cabe. A vida não sobe no caminhão. A vida fica ao nosso lado, este de dentro, respirando em surdina.

As coisas que valem não cabem no caminhão, nem sequer dentro da palma da mão. São instantes fugazes, imperceptíveis, minúsculos, quases nadas que se perderiam não fosse um estado de comoção repentino. A mão não os colhe, são avessos a caixas, têm horror a cadeados, fogem se os tentamos fazer durar além da sua própria natureza. Mas de repente o estado de comoção se anuncia, e aí sim um instante entra dentro de nós, torna-se nossas entranhas, nossas vísceras mais escondidas, essas que poucos veem, poucos ouvem, quase ninguém colhe por entre os dedos sem deixar que caiam e se diluam no cotidiano apagado.

E nesse de repente a casa esvaziada de mim enche-se do mundo do outro, das coisas do outro, das lembranças do outro. Não sei se pedem licença para entrar, mas eu concedo-a, se me compete. E peço, a quem possa competir a licença, a permissão necessária. Em silêncio, de olhos fechados, sem que ninguém ouça ou sequer responda - é o pedir que importa, nem é preciso se ocupar da resposta. Pedir para que a despedida não o seja, mas presença. Para que a ida seja mais chegada que partida. Seja mais encontro que distância medida em quilômetros - desses que se estendem pelas estradas afora, cada uma numa direção, cada uma numa intenção, e o pensamento em uníssono acima do que separa e parte.

31/01/2012

Despedidas VII


 porque pessoa
é coisa que entrelaça



Aprendi que, às pessoas, é preciso deixar-lhes a mesa posta, a casa aberta, para encontrarem o espaço como precisam, quando chegam e nos tomam inteiros, num instante que não se retém nem repete. A minha mesa aprendeu a estar posta para a aflição alheia, seu destempero, o olhar em busca, a partilha, a precisão de fala, o silêncio cúmplice. Com o passar dos anos, aprendi a estar à espera e a levantar-me quando a vida chama, sem medir o quanto, sem perguntar o como, sem me atormentar de porquês, sem levitar acima do que me é estendido, sem perder tempo em querer agora saber o depois. E não me arrependo: levo comigo, como num baú de herança, uma coleção de olhares entrelaçados, o outro impresso em mim de tal maneira que só por ele sou mais eu mesma do que seria sem ele. Escolho deixar os desencontros para trás, todas as pequenas traições, os desgostos, as mazelas tão pequenas vistas assim de longe - prefiro o outro assim, entrelaçado em mim, e para ele a mesa posta e a porta aberta. Porque o outro é coisa séria.

Com os anos, a minha mesa aprendeu a pôr-se com chá amigo, sopa terna, pessoas inteiras em vez de pedaços, migalhas. Enfeito-a com flores e acendo-lhe velas, quando escurece. Cuido do fogo da lenha, às vezes fogueira ao seu lado, para que aqueça em volta quando o sol deixou de fazer morada. E mantenho-a posta e atenta, a toalha limpa, a cadeira pronta, para que ninguém me procure e desista porque a fome dure. Aqui estão todas as mesas postas nesta casa; a alma em calma, encho-me de lágrimas por todos os olhos que me ensinaram a ver, todos os olhos da minha memória que agradecem por existir. As pessoas entrelaçadas dentro de cada um deles.

As dores transformam os músculos em força e o sangue em espírito. Transformam-se em capacidade renovada de manter o passo, de erguer-se e ser maior para o outro. Em vez de olhar para trás depois de puxar a porta, fecho os olhos e olho para dentro; em mim, entrelaçados e coesos, estão todos os que pertencem a este pedaço de passado, na luz de seus melhores dias, seus lugares mais nítidos e precisos, ao longo destes anos e anos de amor. Dentro de mim, os que já se foram e os que ainda estão, os que se tornaram antigos nas minhas fibras e os que de repente se fizeram frequentes. O quanto avance, estarão a meu lado, porque de todas as proezas com que os deuses nos contemplaram, a memória é a mais fiel e perdurável, e me fará reeditar cada um, entrelaçado às mesas que porei e às portas que se abrirão nesse futuro que nesta manhã já se anuncia presente.

28/01/2012

Despedidas VI


porque  a vida
é um parto


E de repente, no meio deste vendaval que se alevantou, descubro que a Lua está em trânsito pela sexta casa do meu mapa astral, formando um ângulo harmonioso com o meu Sol. Ou seja: uma boa fase para organizar as coisas da minha vida, avaliar as questões pendentes e tentar solucioná-las. Daqueles dias em que olhamos para o espelho e dizemos: putz, ainda bem!

Embora haja quem pense o contrário, eu vivo tentando encontrar certezas. As dúvidas atormentam-me (se é que isso é uma forma de tormento), são elas que me procuram e não eu a elas. Assim que me aparece um trânsito astral que me sugere mais tranquilidade do que a que tenho normalmente, dou pulos de alegria. Quando abro as cartas e me aparecem a Sacerdotisa, o Julgamento, idem: serenidade, visão clara, separação de joio e trigo sem demora. Mas nem sempre é assim – a Torre aparece aqui e ali, soçobrando a minha vida, arrancando pedaços do que achei fosse um alicerce seguro. O naipe de espadas coloca-me em movimento em direção ao próximo estágio, o de copas alimenta-me o mundo do sentir, que é o que movimenta todo o resto. As cartas converteram-se, com o tempo, em refúgio e caminho de busca, um espelho fiel que retrata o que eu própria sei sem ver. Quando tenho a sorte de me tornarem útil aos outros, apaziguam-me.

As cartas do tarot estão presentes na minha vida há muitos anos. A primeira carta que tirei na vida foi a Imperatriz, a carta da maternidade por excelência. Não devia ter mais de 6 ou 7 anos de idade, mas lembro de ter ficado emocionada com a imagem, e por isso mesmo não a esqueci. As cartas andaram à minha volta aqui e ali, e finalmente ganhei o primeiro baralho e me diverti de brincar. As cartas ligadas à gestação, à gravidez, aos nascimentos continuaram pulando de dentro do baralho sem que eu as chamasse. E eu entendi que haveria filhos no meu futuro. Acertei, parece.

Porém, ligando os pontos, como o fez Steve Jobs naquele discurso que circulou à exaustão pela internet, percebo que não foram apenas os meus filhos, as minhas gestações, os meus nascimentos que as cartas mostraram. Essas cartas continuam presentes e ativas, mas multiplicadas nas crianças que tenho a honra e o privilégio de assistir entrando na nossa vida terrestre.

Esta semana, marquei uma consulta com a doutora/amiga Irene. Em parte porque era preciso mesmo, em parte porque está no rol das pessoas de quem quero despedir-me. Gosto da serenidade de Irene, e da maneira como chama todas as mulheres de “filhota”; gosto do carinho compreensivo que emana por todos e como é ao mesmo tempo irreverente e pragmática e decidida, às vezes impaciente, até. Irene formou-se há 43 anos. Aos poucos, pensa deixar o consultório, e eu ouço a Márcia, sua secretária de anos, recusar novos clientes, porque “a doutora está diminuindo o ritmo”. Olho-a enquanto ela preenche a minha ficha, e me pergunto se conseguirá diminuir a toada, e ir fazer outras coisas que talvez lhe deem menos prazer do que atender as necessidades das mulheres que batem à sua porta. E penso nas mulheres que não a conhecerão e que não terão à beira a sua força e a sua compreensão do que acontece, de fato, de fato, de fato, na hora de parir. Coisas que vão muito além das técnicas, quaisquer que sejam.

Irene apareceu na minha vida ia já a gravidez do Cândido adiantada. Achei estranho seu consultório, aqueles roxos por todo canto, das poltronas ao carpete, passando pelas paredes; pensei em levantar-me e ir embora, mas alguma coisa me fez esperar. O livro que levava na mão, introdução básica que inventei para qualquer médico com quem pensasse ter um filho, foi parar dentro da bolsa. Mas Irene viu uma pontinha assomando e perguntou o que era. E eu dei-lho, e ela sorriu ao pensar em fazer um parto em casa, novidade numa vida de tantos anos de obstetrícia. E sorriu mais uma vez, desta vez para o Ricardo, e disse: “Ricardo, havia uma música... uma música que era assim:”, e de repente começa a cantar a mesma música que a mãe de Ricardo lhe cantava quando era pequeno. Assim se iniciou uma parceria de carinho e respeito; uma parceria que não precisa ver-se para acontecer. Não é apenas uma parceria firmada nos partos em casa do Cândido, da Ilundi, do Tiago, da Lina, do Silas, queridas crianças nascidas todas de dentro de mim, de uma forma ou de outra, eternas estrelas do caminho, mas uma parceria que se estenderá quer nos vejamos, quer não, quer nos encontremos, quer não.

Pessoas assim, como a Irene, invadem-me nestes últimos dias de Botucatu. Deixo-as que me percorram. A minha memória resgata-as dos lugares onde as deixei esperando, uma memória comovida pelo assombro de que sejam tantas, e tão fortes, e tão poderosas, e tão marcantes no meu nascer cotidiano.

26/01/2012

Despedidas V

porque
a palavra é

foto: Samuel Athias


“A palavra me excita”. Quem diz não sou eu, mas Manoel de Barros, poeta em seus 90 anos, o que torna a afirmação altamente respeitável. No saboroso documentário “só 10% é mentira”, que deverei ao Daniel  dos Santos por toda a eternidade, o poeta fala e esparrama poesia por todos os poros. Há trechos de grande poder sonoro, de imensa força evocativa, mas para chegar até eles precisei assistir várias vezes, até conseguir passar além dessa frase tão simples, tão forte, tão verdade: a palavra me excita. Tomo-a emprestada, porque também a mim a palavra excita. Como ele, sou procurada pelas palavras, excitada por elas até o fundo da alma. A diferença reside no que faço com elas, no que elas desabrocham: o que nele é maestria, em mim mera tentativa.

Palavras como “precariedade” (que deriva de prex, a mesma raiz de prece, o que nos leva diretamente à necessidade de prece para deixarmos de ser precários), ou “acaso” (do latim casus, por sua vez derivação de cadere, que significa cair; quase que literalmente “aquilo que cai na nossa frente”), levam-me às alturas. Levam-me aos dicionários, às perguntas, aos outros que sabem tanto, e me surpreendem com a sua capacidade de procriação absoluta. São revelações em forma de letra, que é a única forma que as coisas têm de me revelarem o mundo, acho. Reviro-as por todos os lados e, como acontece ao poeta, percebo que se procuram pelo cheiro, umas às outras, como se pressentissem quem está à porta antes de abri-la.

Há palavras que chegam em grupos. Estão dentro dos textos, e pulam diante de mim como se ganhassem vida própria, tivessem outro colorido, brilho particular. No poema (ou oração?) que os alunos waldorf mais velhos declamam todos os dias de manhã, há duas palavras com um poder de catapultar excitação. “Na amplidão do espaço”.

Pare de ler. Feche os olhos e repita em voz alta: “na amplidão do espaço”.

Eu não sei se as vogais, se as consoantes, se o encontro do todo, mas “amplidão” e “espaço” chamam-se irresistíveis uma à outra e fundem-se num aspecto único do tamanho do céu sem fim. Se precisasse eleger um momento do qual sinto saudade, daquela saudade de doer dentro do peito, de tão funda e potente, aquela saudade em que os dias passam e o coração não cessa de evocar - seria aquele momento em que essas duas palavras, “amplidão” e “espaço”, abandonam o interior dos jovens para se fazerem companhia no espaço aéreo de uma sala de aula. Nessas horas, se não estivesse atenta, perder-me-ia no mar de verdes espalhados do alto da janela, e confundiria o verso seguinte, e me atrapalharia tanto que qualquer um perceberia. E eles ririam, os jovens, que rir é coisa que quem é jovem sabe fazer sem ter vergonha, nem própria, nem alheia. Um alívio.

Pode ser que a ouvidos desatentos algumas palavras pareçam quase nada. Porque são do dia a dia, talvez, palavras simples. Como “praça”. Ou “dentro”. Parecem tão pouco, e no entanto induzem-me o estado de excitação. Quando as encontro, e me apodero delas (ou elas de mim, que vem sendo o mais comum), perseguem-me dia e noite; povoam meus sonhos e só sossegam quando lhes dou atenção e procuro as suas raízes, os seus prolongamentos, seus espaços únicos onde podem possuir-me através do papel onde as registro, agrestes e ácidas e doces e ternas.

As palavras que me excitam podem chegar escritas ou faladas, engasgadas, sussurradas, esboçadas. No exercício de seu poder, escavam-me profundezas repentinas e abruptas. Atingem-me no que me veste mais indefesa e frágil, uma surpresa a meio da multidão desatenta. Demandam, como eu mesma, antes cuidado que contenção. O meu ouvido insiste em reverberar frases teimosas, uma espécie de passado em conluio com o futuro, uma  perseguição mascada nas entrelinhas. É ele quem ouve dentro de mim os espaços de alma em aberto, e porque me avisa corro a protegê-los com um véu de palavras, daquelas com propriedades anti-sépticas e cicatrizantes.

“Não me subestime: às vezes me faço de cego para ver mais longe”. Quem diz não sou eu, nem Manoel de Barros, mas Cazuza. E hoje eu também não me faço de cega. Durmo com os olhos abertos, guardiã das  presenças estacionadas a meu lado.