29/07/2021
Ser equânime
11/07/2021
Zé do Laço em noite de Lua Cheia
É noite de São João, também. E Zé do Laço, que nem católico se declara, aprecia os folguedos, gosta da fogueira, entra na roda com assobios e gritos de alegria. Podem parecer de outra feição, mas é de pura alegria. Chega perto dos músicos, gosta do galope que escuta. Seus olhos claros gostam do que é puro, do que é verdadeiro, do que se levanta da mesma forma que se deita. Subterfúgios não fazem parte da sua cartilha.
E se afasta. Dois, três, vinte passos. Corridos e desgalopados, em marcha a ré, vendo sem olhos os tocos de que desvia. Vê o todo, percebe o desalinho de um lado, o encantamento do outro, o despreparo logo ali, a entrega, a presença, a alegria, o pouco ou muito entendimento - com o coração, não com os olhos. "E não é visão", segreda-me ele baixinho. "Isso que tu vês não é visão, é sensação de outro mundo encostando neste daqui. Aprende a ver desse jeito para escapares das mentiras deste mundo. São muitas, e andam te caçando. Reverte teus passos, filha minha, endireita essas costas e dá rédea pra tua cavalgadura. Tem léguas de caminho pela frente, e a escolha tá feita: não é agora que ninguém vai arrepiar caminho. Se botas o olho no atrás, o que vais ver é o atraso em que te ficaste, e ressentir de novo com isso, e perder o alinhamento dos passos."
E repentino se cala, e grita"Ê boi", e corre pra roda, pra apertar o menino que quer se desalinhar na moça. "Fique quieto, seu moço, que ainda não está na sua hora. Cuide de sua montaria, olhe bem o tamanho dos passos: tu tá é querendo dar uns galopes com pernas fracas de criança imberbe. Sossegue, menino, sossegue."
Olha de longe um outro (eu posso vê-lo daqui, seus olhos parecem faíscas), e ao mesmo me pergunto se ainda me dirá alguma coisa, se tem uma coisa que busco sempre é instrução. Foi só pensar. Ele me olha, de um lugar fundo que está dentro de mim mesma, e numa volta rápida de olhos que me desconcerta - o tempo todo, ele me vigia?
"Ora veja. Instrução é todo dia, cada madrugada que tu olha pro céu e vê esse tanto de estrela, que alumia sem se aborrecer com quem aproveita sua luz. Vê tu, filha minha, se as estrelas se ocupassem de quem as aproveita, estavam todas era tristonhas. O importante é brilhar no seu lugar, quieta e fazendo sua parte. De longe, o que nós vemos é a constelação. De dentro dela, é quase nada que se vê. Quando se cavalgam estrelas, é preciso confiar que tem uma porção delas cavalgando junto. Senão, é sentir solidão, ficar acabrunhado, entristecido. E pra quê? Pra descobrir (e isso é só muito mais tarde, na hora do pó chegar) que havia muito mais luz na estrela pequena do que no lampião que ardia em cima da mesa. Sossega tu também, e faz teu trabalho."
Seu Zé do Laço só gosta de trabalhar debaixo de céu. Não entra debaixo de teto nem pra comer, nem pra dormir, nem pra dançar, que é graça que adora. Se lhe dão coberto, desaparece. Aliás, nem aparece. Sua existência é livre e aberta, e é para que saibamos do que se trata que ele vem assim, gritando pra sua boiada, que desce os morros, atravessa os rios, galopa as veredas verdes e abertas. Chega de todo lado, a boiada, e é tanta, mas tanta, que cansa os olhos querer contar as cabeças. De longe, quem vê, é só poeira suspensa no ar. Só um alevante de chão fino que colore o horizonte de laranja. Cor de terra é cor de boiadeiro, e o berrante que ainda não se escuta já se anuncia no longe.
Zé do Laço afirma o cabo e faz relampejar outra vez o couro no chão. Só escuta quem ele permite, e é faísca e relâmpago ao mesmo tempo, o estampido de quem gosta de cortar o mal no primeiro golpe, assim, na raiz, fundo e preciso. Assim se vai, dando passos atrás pra que ninguém lhe ameace as costas. Bate os pés no chão poeirento e manda a tropa subir: pras alturas, minha gente, que os bois já deram dianteira!".
Foto: Beatriz Castilho
24/05/2021
Uru'ku
Uru'ku, em tupi-guarani, significa vermelho, e essa é a cor deste Caboclo altivo, Caboclo de Xangô. Não costuma demorar-se em explicações, este amigo, mas está atento aos sinais do que deve fazer e raramente hesita ou suspende um passo iniciado. Com ele, a cada dia, aprende-se algo a mais sobre a própria e verdadeira estatura, o que nos diminui e o que nos faz crescer. Paciente no meio da mata, parece esperar há décadas. Não sorri nem entristece, o seu olhar sereno não se altera, nem no perto, nem no longe. O urucum, sempre a seu lado, confere a força e também o poder de limpeza, de aquecimento e de queima abrupta e ardente.
Vermelho é a cor do dia de ontem, dia do Divino, dia de festa nas terras açorianas dos meus avós e da minha mãe. Fartura e fraternidade nas mesas postas ao longo das ruas, cada Império coroado, todas as barrigas saciadas. Uma das coisas que mais aquece a minha alma umbandista é poder viver quem fui e quem sou num mesmo tempo, sem precisar deixar pedaços meus para trás. O fogo de Xangô brilha nas fogueiras dos meus avós que jamais ouviram esse seu nome e, quando o acendo, como ontem cedo antes que o Sol do dia de Pentecostes nascesse, saúdo todos os dons que Deus faz brilhar na Terra, em cada um de nós, em cada criatura, cada canto, cada planta, cada forma de vida.
Há gestos dos Guias Espirituais que foram feitos para reverberar ao longo de anos. Eu demoro-me em muitos deles, e me surpreendo, ano a ano, com a forma multifacetada com que permitem que olhemos para o mundo e para nós mesmos. Não sei se ando devagar nessas observações, se me demoro tempo demais, se me perco entre tantas coisas. Talvez pudesse tudo ser mais rápido. Mas Vó Chica, que é quem me coloca o urucum diante dos olhos para que o escreva, balança a cabeça achando graça. Ela já me disse, e eu já entendi, mas esqueço: o Divino, esse Ser de Elevado Espírito que desce em nossa direção, dá-nos uma certeza: a de que existem dons que não pertencem ao mundo terreno, mas ao mundo espiritual. Dons do Espírito que nos auxiliam, nessa caminhada aqui na Terra, a não termos a pretensão de que tudo podemos, somos e fazemos - basicamente porque (assim entendo eu) não conseguimos ter completa percepção do que seja de fato a nossa essência. Teríamos menos liberdade para ir e vir, errar e acertar, se assim fosse.
Por isso, ao nascer deste lado, esquecemos o lado de lá. E às vezes, quando em terra, o Caboclo Pena Vermelha tinge-nos o centro da testa de vermelho, esse vermelho do urucum que na árvore diante da janela, num determinado horário do outono, brilha como se tivesse brilho dentro. O brilho é esse mesmo da foto ali acima - não tem retoque nem filtro, é desse jeito mesmo que se mostra, por pequenos minutos a cada dia - um milagre que custo a acreditar, a cada dia que vejo.
Urucum é uma erva de limpeza e regeneração. Não é apenas Xangô que a impregna: Oxumaré e Egunitá também, seus mil frutos em cada casulo, sua cor vermelho fogo. Não deve ser coincidência que logo hoje, dia 24 de maio, seja dia de Santa Sara Kali, que vem a ser a forma sincretizada de Egunitá, Orixá de Umbanda, que é fogo também - fogo abrasador que arde, faz tremer, sacode, purifica. Como em tudo, é preciso haver fundamento, para que existam bases sobre as quais possamos avançar em segurança. Nos banhos, é bom saber o que invocamos em nosso benefício ou benefício de outros. Urucum, além de fazer arder e sacudir, também fortalece, endurece e mantém, e aqui vemos Xangô assomar por trás da matéria vegetal. E ainda liga, dissolve e derrete, sob o olhar e cuidados de Oxumaré. As ervas são um mundo sem fim de aprendizado e possibilidades. Nelas, o Divino torna-se cor, cheiro, umidade, secura, calor, frio, e se abrirmos bem os olhos da alma, veremos mais do que as aparências nos mostram, e nem sempre enganam.
31/01/2021
As sete tias de Manuela e o boldo do quintal
- Minhas tias tricotavam no outono as mantas do inverno. Eram sete, essas minhas tias, sentadas lado a lado, formando uma concha debaixo das parreiras de uva do quintal da minha avó. Minha mãe sentava-me ao lado dela. Eu era bem pequena, mas se fecho os olhos lembro-me como se estivesse lá. Entregava-me o cesto com a pilha de novelos, um de cada cor, bolas trançadas num emaranhado agradável que me encantava e aquecia as mãos. Eu tinha pra menos de 6 anos. Elas tricotavam sem parar, longas línguas de tecido escorregando de seus regaços em cascatas mornas. Tia Alice era quem melhor e mais rápido tricotava, os olhos miúdos sorrindo o tempo todo. Tricotava sem nem olhar o que as mãos faziam. A minha tarefa era desfazer os nós dos novelos. Passava o tempo fazendo e desfazendo novelos. Ao primeiro nó, procurava a ponta com os dedos, enquanto mantinha os ouvidos atentos às palavras dessas tias. Não eram muitas. De vez em quando era um "Deus nos acompanhe", de outra um "Orai por nós", daqui a pouco um suspirado "Que em vida nos tenha". Ficou essa coisa de tecer-se a vida do espírito nos meus ouvidos.
Mas agora o que Manuela quer é autonomia - e de presente recebe mais duas palavras: independência e liberdade. É um rosário, eu quase lhe digo, um rosário feito de três contas, agrupadas sempre nessa mesma ordem: a autonomia, logo depois a independência, e por fim a liberdade. Uma reza. Um terço só de três. Cosidas umas às outras, como os três pontos que tia Marina cantava ao tricotar: "Foi um, foi dois, foi três. Foi um, foi dois, foi três".
Havia plantas nesse quintal - Manuela nem precisa contar, adivinha-se. De um lado mamão, do outro mamona. Parecidos, mas de intensidade diferente. Quando o problema é grande, mamona. Quando é mais ou menos, mamão. De outra vez, conto da diferença. Agora, os meus olhos já se detiveram no boldo.
Tão comum, o boldo. Tanto, que se encontra em qualquer lugar, e qualquer pessoa sabe que é bom para os males do fígado.
Ewé Bàbá chama-se o boldo em yoruba: a erva do Pai. Tão fundamental nessa cultura que se espalhou por todo o mundo pela presença africana. O mundo é mais africano que qualquer outra coisa, nós é que não sabemos reconhecê-lo, e perceber o quanto é comum e está em nós todos, nos deixando mais Humanos só por ser.
Há muitos boldos, na verdade. Todos têm basicamente as mesmas propriedades e servem aos mesmos fins. E todos guardam em si histórias de luta e resistência, conhecimentos seculares da época em que o óbvio era saber que espírito e matéria são indivisíveis porque antes de sermos matéria (e depois também) somos espírito. Boldo também é herança Mapuche - esse povo antigo e sábio das regiões medianas da Argentina e do Chile. Mais de 5 séculos antes de Cristo já lá estavam, muitas centenas de milhares quando a Coroa Espanhola sangrou essas terras. Boldo deriva de "folo" - a maneira com que os mapuches chamam o boldo que cresce espontâneo e livre nos Andes. A língua Mapuche chama-se Mapudungun - um primor linguístico que significa "o som da terra". Quando um Mapuche fala a sua língua, fala o som da terra.
O boldo, ou malva santa, como é chamado em rincões do Brasil, tem aliás uma infinitude de nomes. Um deles é tapete-de-Oxalá (Ewé Bàbá, lembra?). Como esse Orixá do panteão yorubano, o boldo traz clareza ao raciocínio (o fígado é um cérebro potente, enevoado turva nossos pensamentos), expande a consciência (justamente porque promove desobstruções dos canais densos e dos sutis também), equilibra o ego (o gosto amargo não agrada a esse nosso companheiro eterno) e, por fim, alimenta o nosso chacra coronário, a morada do nosso contato com as realidades não palpáveis.
Escutar o som da terra, como fazem os Mapuches quando falam, equivale e em muito à meia lua das sete tias de Manuela. Equivale a essa busca premente por autonomia - porque sem ela dificilmente se consegue independência, e sem esta a liberdade é ilusória. É preciso raciocínio claro, equilíbrio das vontades, expandir a consciência para saber mais do que se sabe. Para ser autônomo é preciso estar fortalecido, é preciso eliminar obstruções, é preciso animar a alma, é preciso aquecer o coração. O pé de boldo de Tia Marina sussurrava tudo isso à roda das sete tias.
As coisas mais importantes costumam ser as mais simples. Uma folha de boldo espremida num copo de água, e deixando ali marinar durante um tempo, dá ao fígado a limpeza que ele precisa depois de excessos - não só de álcool ou de comidas fartas em gorduras, mas também de discussões azedas, de desgastes dos afetos, de cansaço psíquico, de muito tempo pensando ou em frente às telas dos computadores, nesta vida online que nos acometeu. Auxilia a digestão justamente porque dá um alívio ao fígado e à vesícula biliar, estimulando as suas funções. Um escalda-pés de boldo (bastam umas 3 ou 5 folhas em 1l de água fervente, com cuidado para não se queimar e para não tomar friagem depois) auxilia as insônias. Um banho, feito de pescoço para baixo ou de coroa (ou seja, banhando também o chacra coronário, a nossa Coroa Espiritual), tranquiliza, fortalece a fé, a coragem, a determinação, tudo aquilo que o fígado, com seus processos purificadores, alicerça em nossas vísceras.
Esqueci-me de dizer a Manuela de que chá e banho e escalda-pés de boldo farão bem nestes momentos de mudança, de transformação, de transplante de raízes. Porque quando mudamos, no momento exato da mudança, de erguer um pé quando mal acabamos de colocar o outro no chão - é preciso mente clara e coração em paz. É o que o boldo, e as bênçãos de Pai Oxalá, nos oferece, e pode nos servir a todos, enquanto aguardamos pelo lugar para onde vamos.
19/01/2021
Divino amargo
Sigo Vó Chica até o lugar onde quer sua pequena casa. Posso andar de olhos fechados, de tão devagar que avança. Não sei se olha tudo para que nada se perca, ou se anda devagar para que eu não corra e veja o que na velocidade não poderia (não costumo) perceber. Como aquele pé de guiné, que sobrevive a duras penas, ainda à espera de lhe ser permitido o costume da sombra. Ou ali ao lado, quase imperceptível, a alfazema fazendo milagre, rodeada de coquinhos pelos quatro lados. Fico contente de sentar-me aqui, perto da sua futura casa. Vó Chica ganhou mais do que um banquinho - assim posso sentar-me em um e com os olhos fechados chamar essa amiga querida de tantos e tantos anos, e ela quem sabe, se eu tiver sorte e motivos, se sentar também.
Vó Chica tem o cheiro e o gesto daqueles que dissolvem, transmutam e reestruturam o que precisa ser transformado. Está de um lado e do outro da vida, encantada guardiã das passagens, e por isso nos leva de um lado para o outro, e desse outro para mais um. Ensina, acalma, compreende, protege e sorri, sempre doce, mas também, nestes últimos dias, urgente, incisiva e prática.
"Filha, o tempo já está correndo, você percebe? Se ainda não foi, é preciso aprender a soltar tudo, aprender a encontrar a força da vida em qualquer pedaço de chão, em qualquer lugar de coração, em qualquer forma, espaço, tempo. Se há perdão a pedir, é preciso ser pedido agora, se há agradecimento a fazer, é preciso que seja feito agora, neste instante. E não é na sua cabeça, filha - é usando o sopro divino que nasce na palavra pronunciada, que chega até o ouvido do outro e de lá é carregada até o coração. Não há outro caminho, não se engane. Não diminua, filha, o que tem tamanho. Aceite o que é, e ande, em passos retos evitando as curvas e os rodeios. Não perca tempo, e ajude a quem puder a que também não o perca". Vó Chica quer muito ser escutada, estes últimos tempos.
A carqueja em minhas mãos já nasce retorcida, abrindo-se em dimensões de busca de luz, barbatanas nadando no ar líquido. Pouco se importa de não ser folha, nem flor, nem caule, nem nada. Busca imperiosa a força da luz solar, alarga-se no espaço, sobe através dos troncos, entrelaça-se entre eles, diferente de suas irmãs que nascem nos pastos e à beira dos caminhos. Estas hastes, que Vó Chica coloca em minhas mãos, e semeia nos alegres jardins de flores, precisa de esforço.
Oxóssi, Iansã e Ogum irradiam com suas forças a carqueja, e com ela as nossas forças vitais, dissolvendo o desgaste psíquico. Aprendo isso nos livros, enquanto sinto Vó Chica me estimulando a curiosidade, folheando através do meus dedos, guiando meu tato, meus olhos, meu amor pelas coisas. Nos confins de tudo, quando me sento perdida à mesa que me traz respostas, Vó Chica está diante de mim. Lê meus pensamentos, sabe meus desejos, conduz-me pelos férteis campos da nossa relação, com uma rapidez inusitada que contrasta com o peso da maioria dos seus passos. Bom humor e alegria - estímulos que a carqueja inspira dentro de nós, com as suas flores de outono, o seu amargor de acordo com a vida. Acorda, parece dizer, e vai viver - essa vida não programada, não desejada, não colorida pelas cores que imaginaste, mas ainda assim a vida, e vida será enquanto for preciso.
Tomo um banho de carqueja (preciso experimentar sua força), e porque não quero sucumbir a medo algum, misturo fedegoso e folhas de laranjeira, faço gargarejos e bebo o chá. Limpa a garganta e acomoda os sentimentos num lugar correto e renovado. Vó Chica desaparece por entre as volutas de vapor. Como que a desejar-me boa noite - "dorme bem e acorda com os olhos limpos e a alma corajosa".
18/11/2020
Para Tarot, leveza
Às voltas com a preparação dos módulos do curso de Tarot que em breve será lançado, abro a minha coleção de perguntas sobre ele, uma longa lista alimentada pelas que me fazem e pelas que eu própria tenho, a respeito desse instrumento tão especial. É dessas perguntas que o curso vem nascendo vigoroso, logo após uma parte dedicada aos Arcanos, aos naipes, aos elementos e à combinatória narrativa, que é a grande chave nas mãos de qualquer tarólogo.
Para ler cartas é preciso, antes de qualquer coisa, leveza. Leveza na alma, para que nada se pegue; leveza nos pensamentos, para poder esvaziá-los facilmente; leveza no coração, para poder acolher quem chegue, com a pergunta que traga.
Às vezes, a pergunta esconde-se. A Pergunta. Chega fantasiada de coisa nenhuma, de balaio sem graça recheado de nadas. Anuncia-se com uma qualquer trivialidade, uma qualquer bobagem que parece não merecer nenhuma importância. Quer saber se o futuro vai sorrir. Se o amor vai chegar. Nem é ainda o Amor. É um amor qualquer que ajude a passar os dias, a torná-los mais divertidos, a não precisar suportar o silêncio terrível que se abate num fim de domingo numa rua quieta de uma cidade semiadormecida.
Você viu? Você viu como a pergunta começou a ficar mais séria? Como revela mais cores? Como se desnuda, diante das cartas, sem sequer perceber que aos poucos a muralha vai se desfazendo como pó e os muros de guarda vão perdendo firmeza?
É preciso, numa leitura de Tarot, deixar o outro leve. À vontade. Confortável. É preciso que o outro sinta que pode perguntar qualquer coisa, dizer qualquer coisa, que será acolhido, que será confortado – e que até sairá da consulta com uma resposta (eu prefiro achar que são estímulos, mas as pessoas gostam de falar em respostas) para uma pergunta que sequer sabia que tinha.
Esse é o grande trunfo destas cartas que aprendemos a amar. Espelhos precisos das almas que temos, mostram detalhes em perspectivas que sequer imaginávamos seriam possíveis. “Mas essa sou eu?”, pergunta-se, de olhos muitos abertos, a jovem diante da cientista persistente e precisa que a olha no espelho diante de si. “Poderá essa pessoa ser…?”, surpreende-se a dona de casa que pensava ter suspeitas sobre o marido, e descobre ter mundos a descobrir dentro de si, muito mais relevantes que a eventual aventura do cônjuge.
Mas é preciso leveza. Para não julgar. Para não se intrometer. Para permitir que cada um tenha a pergunta que quiser e busque o que entende dever buscar. A função do Tarot é abrir mundos, mundos internos dentro das perguntas mais inocentes.
Ao longo da minha vida, a literatura foi um manancial de inspiração, oxigênio e aprendizado. Para ser um bom tarólogo, assim como para ser um bom escritor, é preciso ler. Ler sobretudo aqueles que se dedicam a mergulhar na psique humana, e a revelá-la em Arte, essa matéria que nos humaniza até nos tempos mais difíceis e turbulentos. Lendo, aprendi a apreciar a variedade das perguntas humanas – porque sei que é das perguntas que nascem os diálogos. Cada vez que alguém se senta diante de mim para uma consulta de Tarot, meu coração se alegra porque sei que virão perguntas. E com as perguntas virão diálogos, e com os diálogos crescemos todos, porque nutrem em nós o interesse profundo e genuíno pelo que existe de Humano em cada um de nós.
E por isso não existem perguntas vãs, aprendi há muitos anos com Jodorowsky. Porque todas as perguntas carregam em si mistérios e nos levam ao encontro de nós mesmos, dos outros, e do futuro que todos podemos criar, juntos.
30/09/2020
Lua Cheia no Terreiro
A luz branca da Lua Cheia diz-nos, mês a mês, que é tempo de prestar atenção às revelações. E as revelações desta Luz Cheia estão, em muito, ligadas à maneira como vivemos o nosso eu dentro do outro e que lugar ocupa o outro dentro de nós. Num jogo de luz e sombra, é preciso encontrar equilíbrio. E nestes tempos de passeio longo de Marte também por terras de Áries, é preciso também forjar a coragem de ver o que precisa ser visto.
Como um Terreiro é uma comunidade de almas, é preciso pensar nisso, observar a si mesmo na sua relação com o outro. O espaço do outro, o tempo do outro, o lugar do outro, a responsabilidade do outro - e como tudo isso vive, age e reverbera dentro de mim.
Talvez seja difícil a esta Luz Cheia em Áries comunicar-se, talvez tenhamos dificuldade em sair de nossos próprios casulos para contar daquilo que necessitamos. O arquétipo ariano não tem essa facilidade. E talvez realmente não devamos. Talvez o melhor seja olhar para o espelho com coragem, em silêncio e no à vontade que só a solidão propicia. Fácil? Talvez não. Mas certamente produtivo.
Temos recursos, construídos ao longo de meses, aos quais nos entregamos em pura confiança nas orientações e instruções que recebemos do mundo espiritual. Aprendemos a cantar. Aprendemos a rezar. Aprendemos a fazer silêncio. Aprendemos a esperar. Aprendemos a respeitar a obediência e a disciplina. Aprendemos o poder do ritmo. Esses aprendizados, hoje, são ouro ouro em nossas mãos.
Nesta Lua, as nossas fibras poderão ser estiradas ao máximo. Poderemos ter a sensação de não suportar. De não querer mais. Poderemos querer desistir. Poderemos estar pressentindo as distensões que ainda nos aguardam.
Mas algo, de dentro do aprendizado feito, gritará dentro de nós e dirá resiste. Suporta. Firma teus pés no chão que tu mesmo plantaste. Não recues.
Nestes tempos de impossibilidade de planos, de perspectivas turvas, temos as nossas mãos para trabalhar por nós - e pelos outros, não nos esqueçamos dos outros! Temos os nossos corações para cultivarmos a elevação dos pensamentos e dos sentimentos em direção à essência do que somos. Temos as nossas almas para desvendarmos mundos que ainda sequer imaginamos.
Não nos deixemos vencer pela aparência dura e seca do mundo, não nos deixemos quebrar pela dureza e pela secura das palavras que ouvimos. Como tudo, também isso passará. E, quando o fizer, precisaremos de nós mesmos inteiros. Respiremos fundo e mantenhamos o passo. Nem retroceder, nem parar. Os dois pés avançam, dizem-nos os alegres e inocentes Erês - um de cada vez. O primeiro chama-se "reza". O segundo, "fica quieto". Aquietemos nossos corações e pratiquemos o olhar interno, para entendermos qual é o nosso lugar no fora e para que possamos lidar com nossos desconfortos e nossos despertencimentos.
11/09/2020
As coisas morredouras
Vó Chica pede-me silêncio ao chegar. Leva-me pela mão ao seu próprio silêncio, enquanto segue o caminho. Um bálsamo.
Há muitas energias ao redor neste momento, penso em voz baixa, nem todas compatíveis umas com as outras. Discriminar, e perceber o que são umas e o que são outras, e quais convêm a cada um, parece-me nunca ter sido tão importante. Vó Chica olha-me com os olhos apertados, querendo perceber se falo sério ou se brinco. Digo-lhe que é sério. E ela desfaz-se em risos.
"Mas quando
é que, filha, quando é que uma coisa dessas não foi importante? Quando foi que resistir
aos acontecimentos e aceitar tudo aquilo que se mostra já não foi um portal que
aumentasse a visão vossa?
Lembra, filha, que tudo o que se tem é esta vida, este dia,
esta hora, este tempinho aqui mesmo que eu estou aqui e você também. E mesmo neste
minuto agora tudo é novidade e permanência. E da mesma forma há dois lados em
tudo: no corpo, na moeda, na noite, no dia. Quando está escuro você sabe que não
está claro, e quando está claro você sabe que não está escuro. E você precisa saber escolher. É só assim a vida, não é?"
Rio, e agora é ela quem me olha séria. Espreme delicada uma
folha de bálsamo entre seus dedos, e eu me concentro, para tentar entender o que as suas palavras simples querem me ensinar. "É preciso,
filha", continua ela, "que você entenda que quando o rio é descido você não está
subindo, e que se quiser subir vai precisar virar a direção. De outra forma, em
vez de chegar à nascente, você vai é alcançar a foz. É da decisão interna de
cada um, o rio que vai percorrer. E é dessa decisão que vai nascer a paisagem e
o ensinamento que está à espera.
E tem mais uma coisa, filha. Não se perca no lamento do
perdido, porque lamuriar o passado só cria confusão em seu pensamento, ele não
vai mais saber o que é de ontem e o que é de hoje. E você é hoje, filha, você
não é ontem. É isso que tem de discriminar. Depois da confusão, logo chegam a tristeza, o desânimo e a depressão,
que é como vocês chamam a tudo isso junto. Tudo companhia da confusão do pensamento,
que é quem semeia a escuridão, nascida da esperança e da compaixão quando são cegas. Só
lamenta o passado e o mal feito quem se arrepende; e quem lamenta a falta que
lhe faz o bem feito e tem saudade é porque não consegue se desinteressar por
aquilo que fez.
E filha, tem mais uma coisa. Não é pra se dar tanta importância a si mesmo.
Se você não fez, foi porque não pôde, porque foi incapaz, talvez fraca, talvez
teimosa, talvez incompetente mesmo. Mas veja como o dia de hoje já está grávido
de amanhã, veja como já tem as águas prontas pra despejar o novo dia nas mãos
de quem faz nascer. O que você vai fazer, filha? Correr atrás das águas que já
estão debaixo das pedras ou correr pra colher essas que estão prestes quase
quase a escorrer?
Eu vou voltar, filha, uma e outra vez pra dizer a mesma coisa
para vocês todos. De uma vez é de um jeito, de outra é de outra maneira, para
que os ouvidos de vocês escutem e contem pro resto do ser de vocês. Veja você a
importância que tem seu ouvido, que é o que faz tudo isso que eu digo caminhar
para dentro do seu coração. Se você não escutar, não vai ouvir, e se não ouvir,
não vai escutar. Porque é de dois movimentos que o entendimento do ouvido se
faz, entende? Por isso que é difícil entender de primeira. E é melhor fechar os
olhos, mesmo que dificulte a sua escritura, filha, porque com os olhos fechados
você pode abrir melhor os olhos dos ouvidos, que são os que vão lhe mostrar os
universos escondidos para dentro das estrelas."
Eu sorrio, pensando nas vezes sem conta que ela me pediu, nesses últimos tempos, para olhar as estrelas, assim que anoitece, antes de amanhecer, a meio da noite. Como se me ouvisse, logo me responde. "Você sabe porque falo pra você olhar as estrelas, filha? Para ver o tamanho do infinito e ter certeza que nunca, mas nunca mesmo, vai poder entender tudo isso, porque o que a filha tem de fazer, e todos os filhos têm de fazer igual, é perceber a sua desimportância, e esquecer-se de si mesmos, e entregar as suas almas para seu próprio espírito, que é uma coisa sem nome e sem explicação que não se interessa por nada, porque é todas as coisas ao mesmo tempo.
E assim é preciso que se respeitem os ciclos. Que se deitem e durmam para morrer um pouco todo dia e saber aos poucos o que é morrer quando for a hora. Igual o dia, igual a noite. Todos os universos estão escutando. Melhor parar de achar que as coisas estão nas mãos de vocês. Melhor que entreguem os frutos e o seu conduzir a quem guia e norteia os seus espíritos. O resto, filha, é coisa morredoura.
09/09/2020
Desinteresse
Vó Chica tem nos falado do desinteresse. Pensamos
que é bom o interesse pelas coisas, pelos outros, mas ela diz que não. Diz que
o interesse é quem desenvolve em nós a posse, o ciúme, o desejo, a ânsia, a querência
das coisas que não são precisas. Interesse é “estar entre”. Podemos nos sentir
importantes, ou que estamos “fazendo a diferença”, quando nos interessamos por alguma coisa ou por alguém, mas não estamos em nós, “estamos
entre”. Já quando nos movemos nas trilhas da ação desinteressada, aprendemos as
lições da neutralidade, da imparcialidade e do afeto genuíno, que deixa cada
coisa e cada pessoa ser aquilo que deve, quando deve, como deve.
Desinteresse, na voz de Vó Chica, é trilhar o nosso caminho
fazendo aquilo que podemos fazer, sendo úteis, que é a bênção maior que podemos
ter, abertos a qualquer tarefa.
Eu sei porque Vó Chica quer que olhe o céu. Porque os tempos
de Urano estão sendo chegados, como ela diz, e nesses tempos o futuro, a
coletividade, o conhecimento intuitivo, a sensação de pertencimento à
Humanidade vão ser as mais preciosas qualidades.
E como esse é um tempo acelerado, Vó Chica pede calma e tranquilidade.
Pede que estejamos atentos aos nossos movimentos, e que não nos angustiemos nem
nos deixemos levar de imediato e sem controle por nada que possa nos suceder. Pede
que estejamos conscientes de com quem dividimos o espaço que ocupamos. Que nos
coliguemos com a Natureza à nossa volta, a reconheçamos e nos tornemos seus
observadores. Não são necessárias técnicas ou teorias. Para a ligação que
devemos cultivar não há regras nem caminhos prontos. É a ligação que nos
ensinará e para ela precisamos apenas silenciar a nós mesmos e entrar em
contato. Ouvir o vento, os pássaros, os barulhos das folhas e dos galhos; observarmos
uma árvore, uma flor, um pequeno inseto. Um cão. Um gato. Um pássaro no afã de
seu ninho. Perceber e deixar ir, sem cultivar interesse.
Vó Chica pede que desenvolvamos por tudo amor sem julgamento,
sem dedução, sem a lógica do nosso pensamento usual. Não importa, ao Sol, o que
pensemos dele, mas sim como nos comunicamos com ele, que luz ele desperta em
nós. Não importa o que possamos dizer - diminuiríamos aquilo que recebemos, e
que não cabe em nossas palavras. Até se perde. Transmutemos o que recebemos e
ofereçamos onde quer que estejamos.
Vó Chica pede que nos nutramos de silêncio para podermos
escutar melhor. Que controlemos a palavra, que não a desperdicemos e tenhamos
cuidado com o que colocamos dentro do ouvido do outro. Ouvidos são seres
desprotegidos, não têm portas que se fechem nem pálpebras que os cubram.
Vó Chica pede que cessemos as discussões conosco mesmos, e que cultivemos o silêncio interno. Será mais fácil diminuirmos o que dizemos ao outro, e assim não contribuiremos para a sua angústia e a sua ansiedade. Na maior parte das vezes, diz baixinho Vó Chica antes de se ir embora, o que cada um quer é escutar a própria voz, e ter certeza de que existe algo que possa dizer. Não é necessário. Não importa o que você já viveu, as experiências que teve – a sua valia é terem se transformado em aprendizado. A própria experiência, de um tempo gasto e passado, não serve aos desafios do outro neste tempo presente. O silêncio é a melhor oferta. Em silêncio expandimos o nosso interior e ouvimos melhor o nosso guia interno. As vozes dentro de nós nos distraem de nós mesmos.
Vó Chica fecha os seus e os meus olhos e me converte em sono.
Quando os abro, ela já se foi, e todas as velas se apagaram. Ainda assim, está
claro.