28/11/2013

A meio da Marginal

a propósito da apresentação de "Os três fios de ouro do cabelo do diabo" pelo 8º B da Escola Rudolf Steiner

Paro a meio da Marginal porque preciso escrever. 

Desci a Rebouças torcendo para que os sinais fechassem e se mantivessem fechados, para poder agarrar-me a estes remos que são a caneta e o papel num dia como hoje, de naufrágio. Quero que as palavras se condensem à minha volta, e que ainda nem pensamento fluam no instante em que são sopradas e eu as ouço. Este meu naufrágio não é de chuva, mas de lágrimas. Do tipo que rega e frutifica, não do que resseca e esteriliza. Nem sempre as lágrimas lavam a alma. Às vezes tornam-na mais porosa, em outras são muros impermeáveis. Estas, de hoje, são do tipo que abre os espaços da alma para que ela seja mais.

Retomo a marcha e perco o caminho. Preciso do retorno. Encontro-o, e perco-me de novo. Vim parar, sem saber bem como, na Raposo. O que afinal é uma sorte, porque o trânsito está de tal forma lento que posso escrever à vontade. Tudo vale a pena. 

E tudo de qualquer forma valeria, porque as almas que se esboçam aqui à minha volta não são pequenas. Estão ainda presentes, esses seres flutuantes, ao meu lado. Vestiram-se de outras, há poucas horas, em cima de um palco. Vestiram-se com as palavras que eu mesma lhes escolhi, e que subitamente ganharam o espaço e o tempo, e se construíram dentro de mim mais sonoridades do que antes. Um alumbramento.

Carro parado outra vez. Agora sob a chuva miúda que se infiltra pelos poros da cidade. Fecho os olhos e repasso a névoa das cortinas que se abriram e fecharam às vezes árvores, às vezes colunas, às vezes fundo, às vezes frente. Sinto o toque das luzes e seus portais. Atravessam-me os ouvidos as cores, as texturas, o toque na pele das minhas mãos, por dentro dela, como se a minha própria forma fosse tornada possível na ação dos outros à minha frente. Um remo lento que passa ao fundo. A consistência do tempo dosada com sabedoria. Um rio que corre para ambos os lados. A mente inquieta esmagando o solo. Quantos anos têm, estes seres, que avançam pelos caminhos do tempo sem se atropelarem nem tropeçarem? Quantos anos têm, estes seres, que num olhar dizem o que está por trás das palavras que escrevi? Quantos anos têm, estes seres, que conheci outro dia e agora fazem parte de mim?

A tudo isso que me ofertam, nestas horas em que estivemos uns diante dos outros, uns virados para os outros, uns por dentro dos outros, eu dou o nome de felicidade. Nenhuma das sombras do mundo tem o poder de escurecer a luz por eles criada. O que mais, além de ser grata?

15/11/2013

Preciso de uma palavra II


(À guisa de explicação: as palavras em itálico, no texto abaixo, são palavras que me foram doadas, ontem, numa postagem de facebook. 
O exercício de recolher palavras e transformá-las em tecido é um exercício fantástico. Recomendo-o como estopim de qualquer escrita. Qualquer meio serve para pedir palavras como oferta.
Peça a quem está perto de você duas palavras. Ou três. Tenha pelo menos oito à sua disposição. Saia pedindo, que ninguém se importa de dar a primeira palavra que vier à mente. 
Depois, sem se preocupar com nada, muito menos com o que pensará esse ser que vive em você e que gosta tanto TANTO de lhe dizer o quanto você é lastimável, escreva escreva escreva. 
Não releia, não pare, não se preocupe se escreve com z ou com s. Seja feliz escrevendo, que é pra isso que escrever existe. E, se quiser compartilhar, compartilhe - eu vou explodir de felicidade se isso acontecer! E obrigada a todos os que doaram as suas palavras generosas.)


Para escavar entranhas - para isso precisava de uma palavra ontem cedo. Pedi-a ao mundo facebookiano, e  o mundo respondeu-me, pródigo. Pus a alma pra fora e fui à vida.

Assim que volto, olho no olho deste mundo virtual; descubro tantas e tantas palavras - mais de 25, o que, na minha conta, é mais que muito. Vinte e cinco presentes aos quais sorrio com admiração, respeito e ternura. Sorrio-lhes com tempo. Demoradamente. Como se lhes dissesse "tou aqui".

São como gigantes; erguem-se lentos, ainda disformes diante de mim. Desentranham-se dos fundos do alfabeto, como essas vigas que se desencavam da terra. Tantas pessoas (penso) querem dar-me o que digo aqui precisar. Por que resistir-lhes? Vou a elas, com a força que lhes sinto. E o respeito a quem as escreveu. Porque, meu amigo, as palavras que chegam são pássaros que esperam resposta.

Olho para as palavras como olho para esses blocos antigos de concreto diante de mim. Arrancados à força, mas sem colapso. Palavra saborosa, essa tal de colapso, esse p seguido de s, um constrangimento dentro da boca, duas consoantes brigando para chegarem uma antes da outra ao desfiladeiro dos dentes. E depois ganharem o espaço aéreo, onde as palavras vivem em orgasmos. Mas colapso é colapso. E quando é da, essa outra forma-palavra que me oferecem, é um sério colapso. Danifica cada parafuso da alma. Perder a fé é perder a vida. Tanto faz a fé em que.

Como a fé na palavra sempre. Como a sua conterrânea nunca, não se sabe bem o que quer dizer. E daí o colapso - daí ou de uma questão básica de teoria da linguagem: o pressuposto de que "emissor e receptor devem ter o mesmo repertório para que a mensagem fazendo-se uso do meio conveniente seja expressa por um e entendida da mesma forma pelo outro". Não gosto de teorias, a não ser quando as vejo florescer na prática. Porque a prática, a prática, a prática - é a prática, é ação, é atitude. E de nada adianta emissor e receptor, não tendo o mesmo repertório, encolherem os ombros porque a incomunicabilidade é a fonte dos seus desentendimentos. Até porque, sinceramente: não é. A fonte dos desentendimentos entre emissor e receptor é, na maior parte das vezes, a desistência na possibilidade da comunicação. Desistir - que bom que ninguém me deu essa palavra de presente. Não gosto de coisas que desistem. Sobretudo seres que desistem.

Sobretudo no amor. Desistir é como uma falha no circuito elétrico: a luz apaga-se, e de nada adianta ficarmos olhando para o espaço escuro, como se a culpa pela falta de iluminação fosse dele, e não do interruptor que ainda guarda o calor do nosso dedo. Tanto faz que o tempo passe, que o outro nos diga "você é tao querida". Aquele bordado de meses, aquela renda delicada e fina que uns cuidaram e outros observaram dizendo-se prudentes, não substitui a firmeza, não torna possível a serenidade, não oferece perspectiva de que a vida seja plena e ampla e livre. E as coisas desandam, mesmo que banhadas em chocolate: frutas ácida recoberta de açúcar. Nem autonomia, nem coragem, nem dinheiro (ainda que tudo isso em abundância): de nada adiantarão os caminhos de sempre quando são mundos novos que se abrem. Bom mesmo é deixar de ser ambíguo, essa coisa que se enrosca em nossas pernas e nos fala em rimas estranhas que unem totoro oroboro como se houvesse sentido. Ambiguidade é uma forma de perder a trilha. Ambiguidade é ficar parado no centro da encruzilhada.

E a verdade, como um apêndice, é o alicerce do silêncio.

Como um chinês que nos olha de dentro de hieróglifos que não compreendemos, como um tutu sem passo de dançarina, como um amor sem ser que ama, como um astronauta no instante em que a gravidade se ausenta do centro de leveza de seu corpo - não há o que possa criar movimento onde reina o imobilismo. A vida, então, são farpas espetadas no âmago da carne do outro.

14/11/2013

Preciso de uma palavra

E ninguém sabe ao certo qual seja. Eu sei, mas espero que chegue através dos outros. Pode ser que seja alma esvaziada. Pode ser a busca de silêncio interno. Pode ser uma porção de coisas. Mas é, apenas e tão somente, desejo de ouvir a palavra de que os outros pensam que eu precise. E fazer alguma coisa com ela.

E respondem-me. Com um "oi!", antes de qualquer outra coisa. E é bom que seja essa a primeira, a palavra sem parentescos, sem ligações, sem história. Nascida do encontro de dois sons que caem no gosto de quem os ouve, e decide repeti-los e assim se instaura (também) uma palavra. Pelo prazer de ouvi-la por entre os lábios e pelo prazer de senti-la deslizando pelo canal do ouvido. Oi, portanto, eis a primeira palavra que me ofertam.

E mal acabo de escrever o que escrevi, ganho a segunda palavra: aberto. Como as águas do rio à inundação da chuva, logo penso. Ou meu coração aberto sujeito às tempestades que nada têm a ver com ele. Ou têm. Tanto faz, porque ele insiste nesse estado de aberto, teimosamente aberto. Aberto que rima com aperto, uma rima torta de som aberto com som fechado. O aperto fechado em torno do aberto do peito. A prensa das flores do meu peito. A prensa das flores do meu coração aberto.

Demora-se no caminho de chegada, a terceira palavra. Dá-me tempo de fazer o chá que me falta. E entre a mesa e o fogão preencho o espaço do silêncio, percebo à minha volta o vazio que ficou com a ausência. Olho-a calmamente, à ausência, à espera de que o mundo me chame de volta com outra palavra.

Eis que chega: saudade. Rio. Lago. Oceano. É preciso lavar as saudades, de vez em quando. Entrar com a mangueira nos quartos onde ela se esconde, tirar tudo pra fora, caixas, gavetas, pequenos pacotes sem abrir, fitas e laços e cartas e peças de roupa e xícaras e copos e temperos e receitas completas e sabonetes perfumados e sobretudo (ah sobretudo) as intrincadas filigranas feitas de lembranças de prata. É preciso tudo arrastar para fora, tirar da sombra melancólica dessa música sem letra e lavar as paredes e o chão da casa da memória. Até deixá-la brilhando, com cheiro de limpa. Tirar o pó não é o bastante, assim como fazemos todos os dias. Há um dia em que é preciso extremar os cuidados, e lavá-la inteira, à saudade, para deixá-la como nova e mais simples. Sem arabescos. Só com as coisas essenciais que se devem guardar. Não há morada para indelicadezas na casa da memória, o lugar do não esquecer-se.

E bastou entrar nessa dobra trilhada para encherem-me de palavras. Aqueles que sabem do que se trata, dizem "precisas de uma palavra? dou-te a única que te nutre: palavra". Os que lá de longe sabem que o que preciso é rir, piscam o olho e sussurram "cachimbinho da serra". O passado retorna nesse que diz "epíteto". E a minha boca repete, como criança que aprende a falar epítetoepítetepíteto. O passado não nos larga nunca.

E o branco. O todo branco. Fecho os olhos e o que tenho é o branco. Enquanto não penso. E enquanto deixo para depois o resto das palavras, porque é hora de olhar pra fora e ir buscar o que nos cabe. Até porque alguém me convida para um café com prosa. Bom dia! E obrigada! :)


11/11/2013

Curto e grosso

Botucatu, 11.11.13. Guarda Civil Municipal atende um chamado de emergência no centro da cidade. Questão de "desinteligência entre um casal", diz a crônica policial. Ele, 26 anos, partiu para a agressão. Desconhece-se o motivo; talvez se aproxime daquele "não sei porque bato, mas ela sabe por que apanha"... Pelas fotos, percebe-se não a falta de inteligência, mas o excesso olímpico de estupidez. Ela, 27 anos, não tem dúvidas: devolve na mesma moeda, só que à facada. As fotos mostram o resultado nas costas do sujeito. Dizer que "houve uma desinteligência entre o casal" chega a dar vontade de rir.

Adoro eufemismos. Essas formas sinuosas de se escapar do que deve ser dito. Para não ferir suscetibilidades alheias. Não ferir corações. Machucar sem necessidade. Ah, quanta bondade. Dizem-se as coisas pela metade e fica a consciência com a aparência de limpa. E melhor, sem quase peso. Aham. 

A atitude eufemística costuma responder por dizer de forma suave algo que de outra forma poderia magoar, incomodar ou agredir o outro. Ou seja: buscam-se palavras mais amenas para dizer algo que se quer dizer, mas não se sabe muito bem como, e ainda correndo o risco de ser chamado de bruto ou estúpido ou tosco.

As palavras prestam-se a isso. A serem manipuladas. Por isso é que há que prestar-lhes o devido respeito, e tratá-las com cuidado. Melhor nada dizer do que dizer pela metade, ou lançar mão do pó-de-arroz das avós pra cobrir o brilho que não se quer mostrar.

É um processo cognitivo da nossa evolução, diz um psicólogo e linguista canadense que vale a pena ler, Steven Pinker. Historicamente, trocam-se os nomes das coisas para que (espera-se) elas mudem. Ou mude a relação que temos com elas. Mas elas de fato só mudam quando de fato mudam as nossas atitudes (coisa mais óbvia...). Aquilo que fazemos. A nossa ação. Acho que ele tem razão, ao menos em parte. A mudança de palavras pode auxiliar a mudança de atitudes, pode ser até um sinal de alerta para a necessidade de mudança - mas só quando a mudança de atitude (portanto, de nós mesmos) está de fato no nosso horizonte. E não é assim apenas uma imagem tão linda, aquele ideal que não temos grandes pretensões de alcançar. Sobretudo quando pode custar-nos muito.

Por exemplo - roubo-o de Schwartzman, que o usou dia desses num de seus artigos. No começo do século XX, a palavra "alcoólatra" substituiu a usual, "bêbado". Para retirar a carga negativa e preconceituosa, etc e tal. Depois, mudou-se para "alcoólico". E agora a nossa opção é "dependente químico". As pessoas continuam bebendo, e mais. Outro exemplo é a expressão "de cor", que virou "crioulo", que virou "negro", que virou "afro-descendente". 

Claro que eu sei, e o Pinker deve saber também, que é tudo parte de uma mesma coisa. E que não é preciso escolher sempre uma coisa em detrimento de outra. Podemos transformar nosso "crioulo" em "afro-descendente" e transformar a nossa atitude na mesma medida. O problema é que é muito, mas muito mais fácil mudarmos o vocabulário e mantermos os vieses, do que mudarmos tudo ao mesmo tempo. Com o agravante de que algo dentro de nós parte do princípio de que, por usarmos outra palavra, temos outra maneira de ver as coisas. Não temos, a não ser que de fato tenhamos tratado a palavra como deve ser, e tenhamos aberto espaços novos dentro de nós, onde caiba o que é novo. Palavras novas inclusive, com seu novo brilho e a sua capacidade de transformarem o mundo em que nos transformamos.

Sabe aquelas situações em que usamos palavras doces para entregarmos verdades amargas? Sobre nós mesmos? Sobre as nossas escolhas? Sobre os movimentos que fazemos em nossas vidas? As palavras doces não adoçam o que as coisas são. As palavras doces traem a confiança de quem não espera o sabor amargo à entrada da garganta. Porque "palavras doces" não são palavras doces - são palavras falsas. Melhor as palavras agrestes, verdadeiras e inteiras. Sem desinteligências.



09/11/2013

O chão que renasce

Faça como eu fiz: olhe rapidamente para essa foto, e feche os olhos. Não se preocupe em entender do que se trata, apenas abra-se para olhar. Não é preciso ver. Deixe essa ocupação para mais tarde, quando puder construir o tempo e o espaço do olhar atento, dedicado e amoroso. Quando quiser construir esse espaço de encontro. E se quiser, claro.

Eu quis. Vi a foto pela primeira vez ontem à noite. Por entre conversas, música, mil e um estímulos querendo arrancar-me a alma de dentro. Ela até parece que vai, mas não vai: a minha alma anda avessa à exposição das suas dobras. Deve ser para que não se transformem em vincos, essas espécies sutis de mortalhas.

Assim, à primeira vista, foi só luz o que vi na imagem. Sem saber por que, pedi-a a meu amigo, mais intuindo do que vendo de fato alguma coisa. A foto veio, rápida e ligeira nesse pé de vento que é a tecnologia. Ali mesmo, na mesa do bar, a imagem pula de um celular ao outro. Deixo-a em paz, quieta.

Horas depois, sem conseguir dormir, tenho vagar para dedicar-me a ela. Olho-a com tempo, senhor de todos os processos, e surpreende-me que essa luz que vi esteja dentro dos espaços das folhas mortas. Parecem luminosas, as folhas, mas estão mortas. O vivo do verde à sua volta é quase ofuscado por essa luz que não é da matéria, mas do espaço ao seu redor, e atinge a superfície para fazê-la rebrilhar. É só superfície. Assim que o sol mudar seu ângulo, a luz desaparecerá. Não há existência dentro da folha, a não ser aquela de que se nutrirão outros, aqueles que se alimentam da putrefação do que morre. O que está vivo é o tapete verde que as folhas querem esconder. A vida das folhas mortas é uma vida em reflexo.

O dono da foto ofereceu-me, além da foto, a sua legenda: "o chão que renasce". E eu aqui, horas depois de ter visto a luz não só na foto, mas também nas retinas alheias, confirmo uma sequência inteira de impressões noturnas. Poderia ter dado o título de "gratidão" a este texto.

Esse chão que renasce, e que ganho de presente em imagem e palavra, nutre-se de momentos muito particulares. Momentos que surgem por detrás das paredes do tempo, espaços no avesso do espaço. É preciso inventá-los, a esses momentos. E é preciso inventá-los a várias mãos. Duas não conseguem. Podem acontecer em qualquer lugar, mas ontem foi aqui, nesta cidade que me acolhe assim que a vejo e me diz "afaste-se" no momento em que tento aproximar-me.

Chamou-se dançar, este chão renascido de ontem. Foi simples, até. Inventou-se um tempo e um espaço para o encontro. Não foi preciso inventar a vontade, mas inventou-se o movimento de ir na direção da música. E o resto inventou-se sozinho. Inventou-se o que era preciso para que a alma alcançasse os lugares que a fazem sentir-se viva, e dançasse em toda a sua extensão, e recebesse sem pedir o amparo que precisava. Uma brecha na insanidade. Um mergulho dentro da delicadeza da entrega pura. Tudo o que a minha alma, o meu coração e o meu corpo necessitam. Ainda que seja leve e breve como a passagem da brisa. Ainda que seja inventado. Ainda que seja de noite. Ainda que as folhas estejam mortas.

06/11/2013

P.A.

Dia 1 de fisioterapia. Sala de espera. Um garoto de (imagino) seus 17 anos está sentado na poltrona à minha esquerda, absorto na revista que lê. Men's Health. As outras revistas à disposição resumem-se à Boa Forma. Como meus olhos hoje nada fazem a não ser chorar, decido fechá-los e dar-me uma trégua. De vez em quando, espreito o garoto a meu lado. Continua num interesse desmedido pela matéria que lê. Até eu estou ficando interessada.

O garoto, que vou chamar de Kléber porque gosto das coisas que têm nomes, entra para sua sessão. Não resisto a querer saber o que afinal tanto o entretinha. Pego a revista ainda quente. Sua matéria intitula-se P.A. Uma lista de três coisas que todo homem deve saber fazer na sua relação de P.A. Porque é possível, nesta nossa sociedade liberal e liberada, ter relações de P.A. com os outros, e parece haver um código e uns preceitos para que a relação caminhe na direção do êxito. Ou seja: como se dar bem como P.A. Uma espécie de manual de bricolage das relações entre homens e mulheres. Vamos a ele.

Um P.A. é um Pinto Amigo. Não é bem uma pessoa, mas uma parte dela. Essa parte estabelece uma relação (imagino eu que com uma B.A.) em que, ensina a revista, não há compromisso, e onde o desejo, a vontade e a satisfação sexual ocasional são o norte, e o sul e quantos mais pontos cardeais existirem. Das três regras de ouro, guardei duas: 1) não pareça interessar-se apenas pelo sexo, que não pega bem; pergunte sobre o trabalho, sobre seus planos, vá com sede ao pote mas que não pareça ser apenas isso; e 2) caso sua amiga não esteja interessada em sexo numa das suas saídas, mas queira sair pra jantar, bater um papo, não fique chateado: afinal, ela pode estar apaixonada por outro e não ser correspondida, pode estar precisando desabafar... Além de ser um bom P.A., a sua amiga é uma pessoa bacana e você pode ser também um ombro amigo, certo? Certíssimo. Seja bacana e seu amigo lá embaixo receberá o que tanto quer.

Fico me perguntando o que levará o garoto de aprendizado da sua leitura. De que maneiras decidirá relacionar-se com as mulheres (ou os homens) por quem se interessar, o que fará com as "regrinhas de ouro" que acabou de aprender, quais fantasias e expectativas de encontros amorosos irá seu cérebro e seu coração (e seu pinto, claro) delineando. O que fará com essa banalidade toda que a sociedade insiste e consegue impôr, travestindo de libertação e autonomia situações que amarram, encolhem e são fontes potenciais de danos mais longos e largos do que podemos supor.

Por outro lado, penso: haverá diferença entre este tal de P.A. e as amizades coloridas desse tempo que já parece pré-histórico? Acho que sim. Enormes e gritantes. As amizades coloridas aconteciam (e acontecem) entre indivíduos e não entre partes sexuais. Eram um todo de pessoas que se olhavam e reconheciam. E não tinham o prévio estabelecimento de querer ou não querer compromissos. Havia, pelo menos assim me lembro, o compromisso de ser para o outro e de estar para o outro. Os frutos nasciam (ou não) da relação, e não eram dados, nem previstos, nem combinados, antes dela. E duravam o que tinham de durar. Sem receitas. Sem institucionalizações. Sem matérias de revista "how-to-do-it".

E vejo mais um outro lado, que isto de ter o rosto paralisado faz as coisas assumirem muitos lados: quanta razão tinha Hannah Arendt quando há décadas (aliás, aquelas em que as amizades tinham mais cores que hoje) alertava para a banalidade do mal. Para esse momento histórico em que um ser humano decide abdicar da sua condição de ser humano e passa a outra categoria, porque deixa de pensar, porque se acovarda, porque deixa de se colocar diante das situações da vida e do mundo nessa forma que os seres que se erguem assumem no mundo: de pé, conscientes das rédeas que o destino descansa em nossas mãos. E o pinto, onde for seu lugar.

05/11/2013

A vida segundo as palavras

Estou grávida de palavras. Não sei o que faço com todas elas, parece que se paralisam dentro de mim. Não sei o que, mas sei o porquê: assim que lhes dou passagem, mortalizam-se. Absorvem a presença do ar que lhes dou ao oferecer os campos da luz terrestre, respiram a consistência do papel em que as escrevo, iniciam o seu processo de morte. O que farão em vida, as estradas por onde viajarão, as paisagens que visitarão, depende dos outros mais do que de mim. Abro-lhes as mãos para que lhes brotem asas e voem. Mas algumas sei que ficarão retidas. Tornadas silêncios em suas formas dispostas ao mundo do som.

A essas, sinto-lhes a dor. Como se fosse minha. Talvez por isso, talvez por querer poupá-las, eu me demore a resgatá-las de seu estado de dicionário, e deixá-las que se encostem a mim durante a noite. O estado de dicionário é um estado sereno e preservado, o cosmos onde as palavras vivem desencarnadas. Mas elas escapam porque sabem o caminho até mim, e observam-me silenciosa enquanto durmo e as sonho. Mesmo percebendo-lhes a espera, deixo-as quietas. Como se isso pudesse evitar-lhes o sofrimento. Sei que estão aqui quando acordo, e por isso demoro a abrir os olhos, porque não quero que desapareçam e ao mesmo tempo sei que o devem fazer. Precisam, porque assim que vêm que as vemos, as palavras tomam corpo. E estas, que desconfio não encontrarão morada segura, tomam um corpo transparente. Tornam-se difíceis de reencontrar. Não quero que nasçam prematuras, deixo-as à vontade. A meio do frio da madrugada, escondem-se debaixo do meu cobertor, enlaçam-se ao meu corpo que dorme e quase quase se tornam meus músculos, meu sangue, meu coração, nesse bater compassado de relógio de sala. Peço-lhes silêncio quando acordo. E elas retornam de onde vieram, deixando-me cheia de palavras não ditas. Ficam aqui, deste lado direito do meu rosto, em solidária paralisia.

Mas toda gestação chega a termo. E parece que me chamam, do lado de fora, para que nasça junto com as palavras que gesto. Porque embora gestante, estou também gestanda. Faço nascer e nasço ao mesmo tempo. Não tenho outro remédio a não ser deixar que as palavras se estendam como tapetes, que tomem as estradas e se vão, que se alinhavem aos caminhos para que os homens possam passar com mais certeza das coisas suaves. Espero que, ao pisá-las, saibam o que fazem. Que lhes percebam a presença frágil. Que não lhes provoquem espinhos. Que cuidem da sua cicatrização se forem feridas. Palavras são como pessoas, séculos de incapacidades sobre a pele, camadas e camadas de pequenos danos eternizados. Quando tratadas, quando cuidadas, tornam-se mais resistentes. Desenvolvem resiliência. Recuperam-se com quase nenhuma sequela. Mas é preciso cuidado, e cuidado é coisa que nossos dias carecem.


03/11/2013

Assimetrias


À esquerda, o Sever, o Sorraia e o Almansor. À direita, o Erges, o Pônsul, o Ocreza, o Zêzere, o Alviela e o Maior. A lista é do 4º ano primário, creio, e era preciso decorá-la. Os afluentes do Tejo, em cada uma das suas margens. Lembro-me dos da direita, os mais torrenciais, os que descem das partes altas das montanhas a meio de Portugal. O Tejo, que é o maior rio ibérico, deságua aos pés de Lisboa. O forte de São Julião da Barra é o marco do encontro das águas: o Tejo derrama-se larga e tranquilamente, o Atlântico recebe-o abrindo-lhe as ondas suaves. Se fecho os olhos, sou capaz de ver a praia de Oeiras em frente ao forte, as gaivotas aos gritos acima de mim, as ondas a baterem nas rochas ao lado esquerdo. 

Os rios desta minha península são como os sulcos desta folha de eritrina que tenho entre as mãos. As eritrinas explodem em cor quando florescem suas lanças, vermelhas como o Mar Vermelho a que os gregos chamavam eruthros. Ainda que já tenham se passado semanas do fim da sua floração, e agora só haja folhas, a presença das flores continua ao redor do espaço que ocuparam. Mas o meu olhar pousa na quase mas não simetria dos rios que navegam na folha, esses tranquilos Tejos verdes, o caos organizado dentro de limites construídos no cotidiano. Na passagem dos dias. Observo-a longamente, a essa folha; percebo-lhe o contorno justo, a ligação fraterna entre as moléculas e a profunda presença a olhos nus. A folha existe para existir. Como os rios.

Esta atenção à falta de simetria das coisas nasce no espelho que tenho diante de mim. No meu rosto paralisado do lado direito, um olho abre-se desmesurado, e decide não piscar. Ou quase. Fico me perguntando que quer ele tanto ver, que não me permite a pausa da escuridão das pálpebras fechadas.

Estou assimétrica, como a disposição dos afluentes do Tejo, como as nervuras das costas das folhas das eritrinas. Se havia algum equilíbrio entre os dois lados do meu rosto, desfez-se, como uma catedral gótica que decidisse abrir espaços dentro do seu equilíbrio. Como o oferecimento de um mundo a desbravar. É preciso, penso, encontrar formas de equilíbrio dinâmico, que disponham as forças do movimento e da paralisação onde cada uma cabe.

E por isso lembro dos afluentes do Tejo. Da dificuldade de ordená-los na lógica que se pedia, da vontade de repetir-lhes os nomes pelo prazer de o fazer, do dia em que mergulhei nas águas do Zêzere e as soube frias como nunca imaginei ao saborear-lhes o nome. Rios de água sinuando pelas planícies, mansos e férteis, deslizando suaves pelo meu pensamento. São sentimentos, penso, estas águas em busca de oceano onde desaguar, intercalando seu passeio pelas represas e pelas barragens que os homens insistem em fabricar.

Agora que a noite se aproxima, tenho uma paleta cada vez mais variada de novos símbolos. Imagens e palavras e fatos amalgamados ao longo de um dia. Aquilo que meu olho acostumado a si mesmo vê, difere daquilo que o outro, esse que se paralisa e insiste em permanecer-se aberto, me descobre. Como um paradoxo a céu aberto, a sua paralisia desaperta-me, afrouxa-me, alarga-me, desamarra-me, derrete-me, dissolve-me. Descubro que a simetria é uma espécie de invariância sobre transformações, movimentos ou trocas: esta assimetria que vejo ao observar-me ao espelho é uma porta para outro lado de mim mesma. Não posso exercer a força, assim como não podem os dois lados da folha de eritrina, variantes de uma mesma essência que não pode forçar-se a nada que não seja ela mesma. O que posso é observar o novo quadrante, esse poço escavado dentro do espelho.

Enquanto uma onda de solidão luminosa preenche o espaço ao meu redor, pergunto-me onde está o oceano em que tanto desejam desaguar as águas que se represam ao lado direito do meu rosto. São como rios, projetados para fluir, em pleno embate com o espaço fechado e mudo. Os nervos do meu rosto estão à espera. 


23/10/2013

As fontes do afeto


Começo do verbete, a seco:

Afeto é tudo aquilo que se inclina ao que é bom,  ao que é pleno de sentimento; indica uma característica disposição, condição e estado para o movimento, para a impressão de si próprio no outro. Afficere é, sem mudanças de significado desde os primórdios latinos, sempre, afeto.

Pensei em afeto ao acordar. E lembrei-me da foto ao lado, tirada há algumas semanas na sala de aula de uma professora paulistana. Esqueci-me do nome da planta, o que é uma pena, mas a fotografia aí está, prova de que o mundo é um lugar recheado de sentidos e símbolos, para os quais ou nos abrimos ou nos abrimos. O tempo vai ficando curto.

Sem água, nem terra, essa plantinha floresceu na sala de aula. As carinhas dos quase 30 alunos que frequentam o lugar todos os dias floresceram junto com ela, encantados com o milagre da vida em processo de desabrochamento. A professora também. Mostrou-me a flor como se mostrasse seu mais precioso bem. Não sei se será da natureza dessa planta prescindir de elementos tão básicos ao mundo vegetal, pode ser que sim. Mas creio que ela se nutriu com muita tranquilidade e gratidão da quantidade descomunal de afeto que mora dentro dessa sala. Respira-se, o afeto. Percebe-se nos abraços, na troca de olhares, nos sorrisos de entusiasmo ao falar do percurso que se caminha.

Parece simples, mas não é tanto. O afeto pressupõe uma série de atributos, desses que é preciso desenvolver ao longo da vida, com o alto grau de consciência que nos cabe ter, humanos deste século, em relação a tudo. É preciso, já disse ali em cima o verbete, estar disposto ao afeto, e estar disposto significa que é preciso estimar, valorizar, encontrar e colocar em um lugar. A pequena planta é objeto de uma enorme estima pelas pessoas que estão ao seu redor; essas pessoas valorizam a sua presença ali (quase se curvam, em reverência doce); encontraram-lhe um lugar (a linda tigela de argila feita à mão, a mesa da professora, de onde pode ver a todos) e ali a puseram. Passam por ela todos os dias, e todos os dias ela recebe essa emanação do afeto que é diário, presente e frequente. 

É preciso também, para o afeto se realizar, condição, raiz primeira de todas as palavras que nos conduzem à noção de acordo ou compromisso. As pessoas que cuidam dessa planta, que se dispuseram a tê-la em suas vidas, comprometeram-se a cuidar dela: é por isso que ela ali está. Bem provável que, não houvesse essa condição (que é também capacidade), a planta já não estivesse mais onde a encontrarei amanhã, quando chegar mais uma vez a essa sala. É a capacidade de compromisso o que faz com que a planta permaneça junto a quem lhe quer bem. Não seria o bastante querer-lhe bem, e não se lembrar de olhar para ela com atenção todos os dias. Ela murcharia, sem o manto com que o afeto a protege.

Nessa linha trimembrada de necessidades para a expressão e o recebimento do afeto, é preciso ainda um estado. O estado do afeto. Stare, para os latinos, não era apenas e simplesmente "estar": "estou aqui... você não me vê?". Stare é uma particular forma de estar em presença de outro. É estar de pé. É estar erguido. É estar na posição vertical, que é a posição que nos coloca na condição de ser humano. Para o afeto existir, para ser sentido, para ser doado, para ser vivido, é preciso estar de pé. Afetos que se encostam, porque se cansam; afetos que não se levantam, porque pensam não precisar; afetos que se deitam, porque querem adormecer; afetos que olham para baixo, porque não sabem o que fazer com o que veem à sua frente; afetos que se demoram ao espelho, porque não sabem bem como lidar com suas rugas e seus cabelos brancos - não são afetos. Serão simulacros, serão tentativas. Mas falta-lhes disposição, falta-lhes condição e falta-lhes, sobretudo, o estado de presença que plantas, animais e seres humanos precisam para não murchar. 

O afeto presente e ativo, manifestado no movimento que imprimimos aos nossos corpos, desabrocha no coração alheio. É preciso coragem, é preciso entrega e é preciso remar contra a maré de um mundo que nos oferece, de bandeja, o desafeto embalado em papel celofane. É difícil e árduo, mas se pensarmos bem, é o que vale a pena. Nessa condição em que chegamos a este mundo, de mãos vazias, e de onde partiremos, de mãos vazias também, o que resta de nós é o que semeamos enquanto aqui estamos. Os campos são os outros. A minha semente é o afeto.