(side writing)
No
dia em que Ofélia, órfã aos 12 anos de idade, conheceu
Robélia, moradora da última rua do Morro do Tatu, o mundo quase
desaba. A chuva engrossou o rio do Zinco desde manhã cedo, escorreu
pela encosta do morro, até chegar à cidade baixa. Os carros foram
entupindo ruas e avenidas, desgovernados diante de tanta água, os
vidros embaçados, os limpadores inúteis. Ofélia e Robélia
lembram-se vagamente desse caos, mais pelas notícias dos jornais do
dia seguinte do que propriamente pela vida em si.
No
mesmo dia, a quilômetros dali, Délia abria as portas cotidianas da
loja. O dia cinza, o carregamento das obrigações. Sem nuvens nem
sol escaldante. A vida como um soltar de cadeado, portas pesadas sob
trancas, chumbo erguido dentro das mãos de Délia, mantendo abertas entradas e saídas alheias. Sentada atrás do balcão, rodeada das
autopeças que lhe sobraram de herança do marido que saíra e nunca
mais voltara, vidrava os olhos nas lajotas desencontradas da calçada.
Ofélia
era esguia, alta e otimista. Robélia apreciara especialmente essa
última qualidade, sem desconfiar de que não era construção, mas
condição. Sintoma de quem nascera para enfrentar o lado duro das
coisas sem dar por isso. Parecia a Ofélia, filha única de pais
idosos, que a vida de qualquer um fosse mais difícil e
sofrida que a sua, o que facilitava relevar e diminuir os obstáculos
do caminho. Enganava, por isso. Tudo apenas parecia lhe ser fácil.
Até mesmo as conquistas, num efeito dominó, pareciam menores, como
que envergonhadas da própria existência diante da miséria que
enxergavam pelos becos.
Robélia
gostara desse otimismo, porque a sua vida fora privada dele. A
dificuldade e a dureza de cada centímetro conquistado à morte eram
seu dia a dia, seu conhecimento, o pano com que a sua vida se
costurara. Robélia era a quinta filha de oito; perdida em meio a
toda a descendência de seus pais, não tinha lembrança que fosse só
sua, que não precisasse dividir com nenhum irmão ou irmã. As
memórias eram sempre de outro, calejadas pelas vozes que as repetiam
sem a incluir. A vida esfumava-se diante das conquistas alheias, e
seus olhos sôfregos demoraram a encontrar outros que se fixassem em
seu centro sem se desviar. Robélia contaria a Ofélia, meses ou anos
depois, dessa infância que só descobrira infeliz depois de
conhecê-la. Ao que Ofélia responderia espantada “quem foi que te
disse que a infância pode ser feliz?”.
E Robélia pensou que
talvez Ofélia fosse outras além da que via. Mas não deu
importância e continuou a vida como se estivesse resolvida e
encaminhada. Por coisas assim, dizia-se de Robélia que era prática
e simples; àqueles que traziam problemas, Robélia aconselhava
com justiça, ponderação, equilíbrio e lucidez. Resolvia contendas, equilibrava opostos e resolvia discussões como se
tivesse nascido para conciliar os contrários do mundo. Sua escola
foram anos separando brigas de irmãos e resolvendo picuinhas de
irmãs, mas ninguém se lembra dessa sua atividade de árbitro e juiz
da infância. Ela mesma só se lembrou disso quando Ofélia lhe
perguntou, com aquele olhar de quem vê tudo pela primeira vez.
Délia
não tinha a quem contar da sua infância. Isolara-se dentro da loja,
como se tudo na vida se compusesse de bronzinas, tuchos, bielas e válvulas. Seu mundo seguro. Sem eventos que lhe alterassem a ordem
das prateleiras. Interessava-lhe pouco perscrutar o próprio passado,
porque se ocupara com afinco em apagar as partes de que não gostava.
Apagara tudo. Délia
fechava-se como uma ostra que não tem a menor intenção de dividir
a construção da sua pérola com ninguém. Orgulhava-se de
seu sofrimento contido, das suas lágrimas engolidas, dessa maneira
distante e estéril que construíra para ganhar da vida. Não sabia
como andava o placar, mas cada vez percebia menos as vitórias do
time oposto. Não tinha amigos que se pudessem chamar de íntimos, mas todos que a conheciam pensavam que certamente era
convidada para festas e jantares. Porque era basicamente simpática e
sabia ser afável sem se doar. Délia saía de casa sozinha e
sozinha regressava. Mesmo quando acompanhada.
Naquele dia de chuva torrencial, Ofélia perdera-se. Antes de perceber a
presença concreta e palpável de Robélia, encontrou seus olhos e
estes os dela. Esqueceu-se de que estava perdida e parara para pedir
informação. Saiu do carro, trancou-o e convenceu-se de que tinha
fome. O pequeno restaurante em frente pareceu obra da providência, e
providencial foi encontrar as mãos de Robélia e poder observar-lhes
os nós dos dedos enquanto serviam seu prato. O sorriso de Ofélia
desarmou as reservas da cozinheira. Se houvesse um cheiro para esse
momento, seria o da hortelã recém-colhida. Ofélia perdeu a
entrevista desse dia, e quase perdeu o emprego também. Demorou uma
semana para reaparecer, com uma história vaga e mal contada de um
carro quebrado e a reincidência de uma gripe mal curada.
Ainda
hoje o barulho da chuva tamborilando no batente da janela traz aquele
dia para dentro da vida de ambas. Ainda trocam olhares ou mensagens
sentindo a falta mútua que a chuva desenha. O limpador do
para-brisas do carro de Ofélia parece-lhe um adeus entristecido,
assim como as gotas que escorrem pela janela da frente do restaurante
lembram a Robélia as lágrimas de um enterro.
A
vida quis que passassem mais tempo do que gostariam afastadas uma da
outra. Em junho daquele mesmo ano, Ofélia estourou o escapamento do
carro a meio de uma viagem. Parou numa loja de autopeças e foi
catapultada para dentro da imensa e mansa loucura de Délia. A seu
lado, a vida de todos os dias repentinamente desbotava.
Mesmo parecendo disforme, não levantou a mão em recusa. Ofélia
desfez-se da própria vida para abraçar a de Délia, e apenas a
lembrança de Robélia existir em algum lugar enchia seu coração de
esperança. O olhar otimista diante do adverso tornou-se escasso,
porque o próprio adverso assumiu esporádicos contornos, como se
tudo estivesse sendo o que estava previsto que devia ser. A
inevitabilidade que Délia transpirava colou nos poros de Ofélia
como piche.
Quando
Robélia a encontrou, anos depois, Ofélia era um pálido
esgarçamento do que fora. Os olhos da quinta de oito irmãos
encheram-se de lágrimas que porém não transbordaram, porque também
a sua cota de dor fora entregue conforme o tempo passara. Agarrou-a
por uma mão e arrancou-a do mundo de graxa em que se enfiara até o
topo do pescoço. Ofélia, que nunca antes permitira que a agarrasse
pelas mãos, tinha os pulsos marcados e os ombros cheios de pesos que
não eram seus. Robélia usou de toda a paciência que aprendera para
retirá-los, um a um, enquanto alisava os pulsos de Ofélia e os
ungia com o óleo que os santos usam e as igrejas vendem dizendo ser
benzido.
Délia
retomou o mesmo olhar sobre as lajotas das calçadas, ruminando a
vida conforme ela se apresentava. Não se moveu nem mesmo pensou
fazê-lo, nenhum quilômetro galgado para conferir se esse afinal não
era mesmo seu destino. Porque o destino, e disso ela estava certa, era aquilo que
lhe batia à porta e não se fazia força para encontrar ou abraçar
ou possuir. Délia era uma mulher sem esperança e sem anseios.
Viver ao seu redor era respirar o som do veneno. Sugara o otimismo de
Ofélia como quem retira a substância vital de uma planta até
fazê-la desabar no solo. Sem esforço, porque Ofélia o oferecera,
enorme e belo como era, sem medidas e sem limites.
Engana-se
quem achar que os anos de Ofélia junto a Délia foram difíceis,
tristes, sombrios. Havia uma bem-aventurança legítima, um senso de
compleição necessária, e a sua entrega nunca fora e nunca voltaria
a ser a mesma. Não porque tivesse sido esgotada, mas porque era
assim que devia ser. Ofélia e Délia arrastavam-se uma para dentro
da outra, pela força do destino que era a força maior do universo. Ofélia, que nunca na vida pensara não ser responsável pelo próprio
andar, parara de pensar por si própria para absorver por inteiro
esse pensamento novo, e enquanto se desocupava para entender a
memória da outra, esqueceu o quanto é importante ser previdente e
adiantar-se às desgraças. Esqueceu os acidentes, os anos
de orfandade e abandono, as cicatrizes da sua alma. Porque a alma de Délia pedia-lhe tanto, pensava ela, que seria triste não lhe
oferecer tudo.
Não
sei quem, das três, sofreu mais. Ofélia desiludiu-se de si mesma,
Robélia deixou de acreditar no poder absoluto do amor, Délia não
tinha mais com o que se desiludir. Quando as olho, nas
fotografias que guardo dentro desta gaveta que já quase não abro,
estremeço como se uma aragem gelada me chegasse pelas costas e me
encontrasse desprevenida. Quero tocar-lhes os rostos, abraçar-lhes
os braços e dizer-lhes que a vida sempre vale o preço que se paga.