Hoje cedo, ainda alvorada, decidi passar os olhos pela internet. Deparei-me com um anúncio de um revival neo-pretensamente-hippie de kombi que a Volkswagen andaria tramando em seus escritórios, como uma nova ideia para atender a seus consumidores.
Entre muitas heranças, os gregos deixaram-nos essa pequena palavra Idea. Literalmente, idea é forma, aparência, o "protótipo (proto: primeiro + typo: marca impressa) ideal".
É justamente um filósofo, na França do século XIX, que decide ocupar-se do mundo da ideia. Diz ele (ele é Destutt de Tracy) que a origem das ideias humanas são as percepções sensoriais do mundo externo. Napoleão chamou-o, e a seus seguidores, de "ideólogos". Desde então, temos entre nós essa beleza de palavra: ideologia. Marx, Engels, Eagleton, Lukács, Manheim, Thompson - são várias mãos cheias de filósofos e pensadores que se ocuparam dela desde então.
Neutra ou crítica, a ideologia está ligada à percepção que temos do mundo à nossa volta, e à forma como nos relacionamos com ambos, mundo e percepção. Sendo forma e aparência, o como e o que vemos do mundo depende dos nossos olhos e daquilo que lhes damos de alimento para saber distinguir uma coisa de outra. A partir do que ensinamos a nossos olhos (de como os educamos), eles dirão de que matéria, segundo a sua observação, se faz o mundo ao redor. Pode ser que consigam ver por detrás da mera aparência, pode ser que não. E quem diz olhos diz o resto, diz ouvidos, diz pele, diz nariz e diz língua.
Isso mesmo, língua. Essa onde se anida a linguagem. Essa que estabelece uma ponte entre os sentidos mais básicos e os mais elaborados. As palavras que fazemos nascer da nossa língua, que ouvimos com os ouvidos e escrevemos com os dedos, entra mesmo é pelos poros, esse imenso véu sensível que nos recobre por todos os lados, sendo ao mesmo tempo nosso continente e nosso conteúdo. (Em tempo: os romanos tinham uma taxa, chamada linguarium, que se aplicava a quem falava demais.)
O regime alimentar de nossos olhos e ouvidos é muito conturbado. Porque aparência é tudo. Seja para persuadir, dissuadir ou sorrir placidamente entoando mantras - a aparência é tudo o que percebemos do mundo se não nos dispomos a ir além dela. Quanto menos nos dedicamos ao escrutínio do que pensamos ver, sentir, cheirar, ouvir - mais permitimos que a alienação entre em nosso íntimo. E veja: alienar-se é afastar-se de si mesmo, perder a estima, transferir algo para outro. Porque alius é o outro.
E esse alius, lamento informar, quer você. E, para conseguir, usará de todas as formas concebíveis, e não só, para tanto. Há de mascarar a realidade, que é uma forma delicada de se falar da mentira. Seduzirá, que é uma forma aliviada de falar de manipulação. Esconderá defeitos e iluminará qualidades, como se essas fossem melhores e mais importantes que aqueles, tentando convencê-lo de que as coisas são segundo as mostra. Aos poucos, tomará conta da sua consciência, alienando-a, e transferindo-a para si. E, um dia mais que o anterior, você acreditará de pés juntos em tudo o que isso -que-tomou-sua-consciência quiser que você acredite.
É isso que alius, o outro, faz. E é isso que você (e eu, e todos) faz também, porque você é o alius de seu vizinho.
Entra em campo a consciência, ou a sua falta. A consciência de saber que é assim que agimos - porque somos seres humanos que a todo momento formamos ideias a partir daquilo que nossos sentidos percebem. E raramente percebemos as coisas tais quais elas são. E somos seres humanos muito dados à busca da dominação do outro - ser humano, espaço, recurso. Veja os livros de História - é exemplo atrás de exemplo, e não se ache tão diferente porque a sua raça é a mesma. Humana.
A consciência de ser/estar dominado ou dominar é enormemente importante em nossos dias (se é que não em todos). Porque embora possamos pensar em ideologia e estabelecer uma linha reta entre ela e formas de ilusão ou de consciência falsa, pelo meio do caminho vamos tropeçar nas relações de dominação que estabelecemos e que estabelecem conosco. E a linguagem tem um lugar de honra nesse caminho todo.
Quando a aparência tem maior peso que seu oposto complementar (a essência), ou quando, pior, entendemos que são iguaizinhos, trilhamos caminhos inseguros, perigosos e traiçoeiros, cada vez mais suscetíveis a quaisquer formas de manipulação que nos façam fazer coisas que talvez em sã consciência não fizéssemos. Por exemplo, consumir.
E era aqui que eu queria chegar, e se você chegou comigo eu já fico é satisfeita.
Consumir deriva do latim consumere, que é comer, gastar, desperdiçar. Forma-se a partir do sufixo com, que intensifica tudo o que vem depois; e de sumere, que é tomar. Tomar exageradamente. Ou seja: somos sempre exagerados quando consumimos. Sempre. O consumismo é sempre sempre sempre um desgaste, um desperdício.
Por isso, quando o mercado tenta vorazmente apoderar-se de tudo quanto é valor, que costumamos alojar em determinados lugares simbólicos, é preciso exercitar o constante movimento de transferir esses valores para outros lugares. Eu escolho transferi-los para lugares cada vez mais íntimos, e silenciosos, para ter menos trabalho logo mais, quando as longas garras do mercado quiserem se apoderar de mais um símbolo externo. Porque o mercado não para, e nem se satisfaz. Ele sempre vai querer mais e mais os seus sonhos, os seus valores, tudo aquilo em que você acredita e faz a vida ser, para você, a vida. Só que tudo isso é aparência, tão bem trabalhada e glamourizada que em pouco tempo você assumirá para si que sim: toda essa aparência deve estar relacionada à essência. Só que não. Basta ir ao supermercado e conferir que o catchup que você compra tem tudo, menos tomate. Basta checar qualquer móvel moderno e conferir que aquilo é feito de qualquer coisa, menos de madeira. Tudo "parece com", "assemelha-se a" e tem "as mesmas qualidades que". Realidades externas que supram as nossas carências internas: é claro que só pode dar errado!
Dá trabalho, e sobretudo uma quase-tristeza, esse exercício constante, não de desapego (até porque até ele já virou produto de mercado), mas de desilusão. Escolher o desiludir-se e criar em seu entorno cada vez mais luz de consciência. Nem é fácil nem indolor: conscire é ser mutuamente alerta, é saber (scire) intensa e completamente (com). Com consciência, você passa a ter de escolher com mais seriedade o que você faz, diz, ouve, compra, vende, acaricia, empresta, pega, recolhe, entrega e despacha. E dá uma preguiça danada, uma preguiça sempre alimentada pelo mercado, doidinho pra entrar na sua vida e lhe oferecer tudo o que, sendo aparência, vai lhe dar a sensação de ser perfeito. Mas não estará. Porque não há van que crie na sua vida um movimento de contra cultura, que se opunha por definição a tudo isso que, numa enorme ignomínia, os executivos da Volks andam pensando. O que vem a ser ignomínia?! A partir de in+nomen, vem a ser a perda e o fim de um bom nome: ou seja, nossa própria desgraça e vergonha.