13/01/2010

Responsabilidade e autonomia dentro da geladeira

Estou a fazer um curso online com professores portugueses - e por isso mesmo o meu acento lusitano deve afirmar-se um pouco mais, a começar pela eliminação compulsória da maioria dos gerúndios! Hoje, a sugestão foi de mergulharmos as cabeças na relação entre autonomia e responsabilidade. Vem mesmo a calhar, diriam meus conterrâneos. Como tenho a favor (hoje, às vezes é contra) a diferença de fuso horário, ponho-me a pensar no assunto logo de manhã, que é quando os meus neurônios funcionam melhor – antigamente, reparo, era de noite; não sei se será da idade ou da mudança do eixo da terra, já me disseram que pode ser isso...

Parto do princípio, provavelmente óbvio, de que autonomia existe quando alguém se responsabiliza por algo – nem que seja por si próprio, garantia do “eu prometo” que antes de qualquer coisa responsabilizar-se sugere, como já dizia de forma parecida Nietzsche. Parece simples e fácil, mas na prática não é bem assim. Sou responsável pelo suprimento da minha geladeira, esta semana em que me toca ir às compras, e por isso tenho autonomia (que sempre é relativa, claro está) para enchê-la com o que eu quiser. Relativa porque estou limitada no onde comprar e no quanto comprar, a partir do que tenho dentro da carteira, do tamanho da geladeira e da quantidade de pessoas que pretendo alimentar com as escolhas que farei e as decisões que tomar. Mas tenho autonomia, e posso usá-la e usufruí-la (que são coisas distintas) porque sou responsável por essas compras, assim foi combinado, e em algum momento, se alguém tiver fome, será a mim que virá perguntar por que afinal a geladeira está vazia. E eu deverei responder, da melhor e mais honesta maneira possível, porque a responsabilidade era minha, e a autonomia para desenvolvê-la estava a meu lado.

No processo de definição da lista de compras, além de olhar para o que já existe, de maneira a não comprar o que não é preciso, devo manter em mente que, quanto mais eu pensar nos outros a quem a minha responsabilidade afetar (quem sabe não lhes pergunto o que querem comer?!), mais chances terei de exercer a minha autonomia com satisfação dupla: a minha própria e a geral da nação que habita a minha casa. Preciso responder por mim, e pelos meus atos, justificar por isso as minhas escolhas da melhor forma que possa, mas como me aconselhavam em pequena (e eu acho que vem de um trecho do Talmud) posso também me perguntar “se só respondo por mim, serei ainda eu?”.

Feitas essas considerações antes de por os pés na loja, lá fui e cá estou de volta: enchi a minha geladeira, a meio porque, confesso, entusiasmei-me por um lado e calculei mal as quantidades por outro. Estou satisfeita com as compras, assim como a minha família que agradece ter sido ouvida e não submersa nos meus apetites sazonais, que por estes dias se entusiasmam com os sucos de vegetais, que são práticos, indolores, não sujam panelas e são ricos em nutrientes, conforme atesta o livro que li nas férias.

Esta minha família, partícipe das minhas compras, tornou-se por esses caminhos minha cúmplice – combinamos juntos o que comprar, e agora abrimos a geladeira e sentimo-nos unidos e confiantes no que uns disseram e outros fizeram, num respeito mútuo que anima as almas. Pode ser que me façam responsável com confiança das próximas vezes, se não tiverem memória fraca e se eu tiver a suficiente coragem de lembrá-los de vez em quando de que “aquelas compras foram boas, não foram?”. E eu sentir-me-ei responsável, porque de alguma forma desenvolvi um sentimento de pertencimento com relação às compras que alimentarão a todos os meus e as visitas que sempre agradeço e festejo. Como as de hoje, que me agraciaram com um chá a meio da manhã, espontâneo e bem vindo, e se aproveitou do pão que comprei por sugestão de um membro da família.

Espero que a cumplicidade que criamos não lhes altere o olhar crítico, para que possam olhar para as suas escolhas, que hoje eu respeitei, e chegar à conclusão de que melhor seria que eu não as tivesse atendido. Para não parecer ingratidão, eu terei de olhar para o seu olhar e agradecer por ele, porque não há nada pior que cúmplices sem cérebro: não podemos confiar neles, porque estão cegos e surdos e não sabem por onde vão, obedecem ao vento que lhes passa mais perto. Espero que a cumplicidade que nos é tão grata não os impeça a todos eles de chegarem perto e me dizerem que é melhor que nesta semana outra pessoa se encarregue das compras; por isso, assim que me levante daqui, tratarei de reuni-los a todos para que combinemos que as regras precisam incorporar esse detalhe. E mais um: que sejamos amorosos uns com os outros e saibamos agradecer o que um fez mesmo que não o vá fazer mais, porque é melhor que outro o faça, porque o fará melhor.

Espero por fim que não se dividam entre si, e que as nossas compras possam ser assim serenas e tranquilas, com espaço na carteira e na geladeira para agradar a todos; fico feliz porque vejo um deles interessado no pedido do outro, inaugurando um diálogo que lhe possibilitará aprender mais um gosto, mais uma receita, mais um lanchinho a meio da manhã, furtado à minha vigilância que os quer a todos com fome na hora do almoço. O diálogo inaugurado produzirá novos frutos e cores, e assim ganhamos todos, sem clivagens que detonariam os laços solidários que todos os dias queremos, nesta minha família, alicerçar com solidez.

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