28/08/2012

Por causa do plâncton


Nos encontros de escrita criativa há exercícios que surgem, assim de repente, e que constituem surpresas linguísticas. Muitas vezes as palavras que os outros me aportam ficam na minha memória mais profunda – transformo-me em porto para dar-lhes guarida, esperando que se sintam em segurança e não me abandonem. Eclodem depois, também de repente, como se aguardassem numa paciência de gestação que eu as alinhavasse às impressões do cotidiano mais prosaico. Nessa troca de roupagem, o dia a dia esgueira-se para dentro da magia que as palavras contêm em si mesmas. Ilumina-se e ilumina-nos. Quase que à maneira de uma Orides Fontela: “A luz está/em nós: iluminamos”. Porque o que vem do outro ilumina-nos. E porque num passe de mágica, a realidade plástica das palavras torna-se movimento livre diante dos olhos. Foi assim, dia desses, com a palavra plâncton.

Graças a M., que estudava afincadamente para a sua prova de biologia, descubro (os demais já sabiam, a única biologicamente inculta era eu mesma) que plânctons não nadam contra a corrente. Permanecem em suspensão, algas e organismos minúsculos, deixando que o movimento das águas que habitam os conduzam, plenos de fertilidade. São seres errantes (plágchian, contam os gregos), e ainda por cima sintetizadores de luz. Iluminam-se. Aos nectons, peixes que acompanham o fluir aquático, acontece o mesmo: acompanham a corrente das águas, tão à vontade nessa entrega que lhes é destino.

Já os benctons (M. com certeza terá uma nota fantástica na prova!) são diferentes: associam-se ao que não se mexe para (talvez) não se deixarem levar pela correnteza. Agarram-se às rochas que encontram, e lá ficam, observando imóveis e previdentes o fluir da água. É bom que haja faróis atentos ao movimento em volta, como guardiões. Talvez os benctons o sejam, e assim plânctons e nectons fluam com mais tranquilidade por entre a espuma e as ondas. 

Todos vivem na água, seu elemento de base. E é pela água que eles me interessam: vejo-a por todas as partes, até nas mais sólidas do corpo dos outros. Enquanto escrevem, estes meus alunos tão aplicados e plenos de entusiasmo, nem percebem que os observo, procurando por entre seus gestos, por entre as pausas que fazem enquanto procuram no ar a palavra que lhes falta, a presença da água que trouxeram para dentro da sala, com seus plânctons, seus nectons, seus benctons, todos esses seres dóceis e sensíveis ao toque do elemento líquido na sua constituição. As mãos fluem pelo papel, vejo-as tornarem-se menos densas, brincando com as palavras que escorregam dos dedos para dentro da folha em branco. Uma ri, sozinha, naquele alheamento de quando as palavras nos fazem cócegas; outra, escreve e apaga, num meneio de cabeça que indica que não, ainda não é assim que quero dizer o que quero dizer; um outro está absorto, e é ele quem mais parece procurar as palavras que ainda lhe faltam. Porque os tempos são diferentes e este, que precisa do seu próprio tempo para desentocar as palavras das cavernas em que brincam de esconder-se, sorri finalmente e começa a escrever com um brilho aquático por entre os olhos. Eu mesma estou mais líquida, da cor das lágrimas que escorrem por dentro, como sempre fazem as minhas águas internas quando as palavras assumem seu lugar ao leme desta sala em que se escreve.

27/08/2012

Benvinda


Num certo momento da sua vida, meu pai tomou a decisão de, em vez de comprar uma casa, abrir uma loja de material esportivo. Revendedor exclusivo da Tretorn, marca que patrocinava a sua carreira de tenista, em poucos meses confirmou-se o vaticínio do meu avô: encordoamentos de graça para o amigo querido que nunca lhe negara o ombro, bolas distribuídas pela rapaziada que amava tênis mas não tinha dinheiro para comprá-las, demonstrações de produtos que pouco rendiam – o tino comercial do meu pai abria um rombo incompreensível nas finanças familiares. 

Meu pai viajava, e eu muitas vezes com ele, para torneios e campeonatos. Não conseguia decidir-se: o que era ele afinal? Um jogador em competição ou um vendedor em busca de negócios? O jogador invariavelmente ganhava. E o vendedor esquecia-se de vender, e preferia distribuir faixas de cabeça para divulgar a marca e deixar os outros felizes com o presente. Não sei quanto tempo a loja durou, mas tivemos bolas e raquetes e bolsas Tretorn espalhadas pela casa durante décadas.

Numa dessas viagens a campeonatos, creio que ao Algarve, lembro-me de uma senhora, rosto emoldurado por uma espécie de capacete de cabelo louro, olhos azul cobalto e imenso entusiasmo com o tênis. Chamava-se Benvinda. Eu era pequena, e fiquei encantada com esse nome. Aprendi, com ela, a diferença entre substantivos próprios e comuns: próprio era o nome dela, Benvinda, invulgar e cheio de esperança, ela mesma uma pessoa invulgar, de hábitos diferentes da maioria das mulheres que me rodeavam. Andava sozinha, fumava uma longa piteira de prata e tratava todos os homens por “tu”, numa desenvoltura e alegria que insuflava vida a qualquer ambiente a que chegasse. Sentava-se nas arquibancadas com um chapéu branco imenso, e chamava-me para sentar-me ao seu lado. Ria, apertava-me a mão e comentava cada lance a um lado e ao outro da rede. Não tinha favoritos: eram todos seus favoritos.

Comum, especialmente para ela, era sentir-se bem-vinda. Contagiava-me, o espírito de Benvinda, e era também bem-vinda que eu me sentia por entre raquetes e redes, divertindo-me mais com a observação do público do que com o jogo em si, em liberdade quase absoluta enquanto meu pai jogava e torcia pelos amigos que também jogavam. 

A sensação de ser bem-vindo é poderosa. Uma espécie de sentimento de adequação, de certo no certo, um aquecimento interno que desenha um sorriso leve nos lábios. São horas preciosas, quando nos sentimos assim. Podem ser as cores de três vasos de flores simples que pousam anonimamente em cima da mesa da sala. Ou o pão de mandioca deixado à porta, embrulhado num paninho bordado, com dois galhinhos de flores lilases e o bilhete sem assinatura: “Bem vindas”. Ou o bem-vinda que se ouve, num sussurro quase em silêncio, a meio da noite, como a morada de um reconhecimento, um aquecer que adormece de sorriso interno. Desconfio que andei sonhando com o chapéu esvoaçante de Benvinda pairando por cima dos campos de saibro. Sorria-me, ainda de longe, e acenava-me com a mão, num movimento aéreo de “vem sentar-te comigo, sê bem-vinda!”.

23/08/2012

Hiatos e ditongos



Hiatos, diz-me Aurélio (Buarque de Holanda) são encontros – de duas vogais, uma no fim de uma sílaba, outra no começo da próxima. Criam-se, penso, a partir de um vazio, de um vácuo, uma falha no tempo comum – uma questão de tonicidade, dir-me-ão alguns, mas é muito mais do que isso. É um pulo no desconhecido, breve e rápido, quase imperceptível. As sílabas sentem-no, mas o nosso falar apressado quase que consegue suprimir a falta. E pensa-se que há som sempre, e o silêncio tênue dos hiatos não se escuta.

Usa-se falar de hiato também na anatomia dos corpos: aqui, o hiato é uma fenda ou abertura no corpo humano, um espaço entre duas realidades da carnadura concreta. E é ainda aplicável a qualquer campo semântico: uma lacuna, um intervalo. De onde vejo, um espaço de tempo dentro do tempo, onde quem sabe se respira melhor, onde quem sabe se vê melhor, onde quem sabe se sente com um sentir mais sentido. Isso, se há espaço para o silêncio, porque seja de som ou forma, um hiato é sempre sempre intervalo, fenda, abertura, vácuo. Quanto mais penso neles, mais eu gosto dos hiatos, espaços vazios imperfeitamente perfeitos. Como se uma perfeição feita de mil pequenas imperfeições – as nossas lacunas e falhas e intervalos e silêncios reunidos e em encontro uns com os outros.

Às vogais que se juntam numa mesma sílaba, unidas visceralmente, dá-se o nome de ditongos. Por vezes crescem, por vezes diminuem. Uma questão de entonação, de sonoridade, de ordem das coisas dentro do mundo próprio da palavra. Cresce-se ao dizer o ditongo que contém a palavra “quando”; e diminui-se (paradoxalmente) ao vocalizar o ditongo presente em “mais”. 

A poesia lida de forma livre com os ditongos: cria hiatos para conseguir o tempo e o ritmo certos. Camões assim fez - expandiu ditongos em hiatos, num processo a que tecnicamente se dá o nome de diérese. O poeta clássico, num de seus muitos sonetos, expande a palavra saudade para nos tornar mais palpável a distância que existe entre os olhos de quem ama e o seu objeto de amor. No terceiro verso (veja logo aí embaixo), expande o ditongo da palavra saudade para nos preencher  justamente de mais saudade, para que ela seja mais e maior do que parece à primeira e ditongal vista: primeiro, sau-da-de, depois, sa-u-da-de. Uma percepção sutil e fina do tamanho da falta que sente aquele que ama e está apartado do seu amor, em sílabas que só são 10, como deve ser um soneto, porque a saudade recebeu ar dentro dela.
                   
                     Têm feito os olhos neste apartamento
                     um mar de saudosa tempestade,
                     que pode dar saudade à saudade,
                     sentimentos ao próprio sentimento.


A vida embrenha-se numa sucessão de hiatos e ditongos. Às vezes, espaços que se abrem no vazio, e nos separam em sílabas que se juntam apenas pelo silêncio que se faz entre elas, a supressão do que é comum abrindo espaço ao divino. Outras, espaços que caminham juntos, alicerçados, amalgamados como vogais que não queiram largar-se jamais, mas onde a mão de poeta em cada um de nós escolhe inserir um tempo, um breve segundo de respiração suspensa, um hiato que se esgueira para dentro da cômoda vida dos ditongos, abrindo-a e fazendo-a respirar em liberdade. Porque o mais provável é que a perfeição resida mesmo no que é (ou parece) imperfeito.



O soneto de Camões, na íntegra:

Têm feito os olhos neste apartamento
um mar de saudosa tempestade,
que pode dar saudade à saudade,
sentimentos ao próprio sentimento.

Em dor vai convertido o sofrimento,
em pena convertida a piedade;
a razão tão vencida da vontade
que escravo faz do mal o entendimento.

A língua não alcança o que a alma sente.
E assi, se alguém quiser em algüa hora
saber que cousa é dor não compreendida,

parta-se do seu bem por que experimente
que, antes de se partir, melhor me fora
partir-se do viver para ter vida.

13/08/2012

Ainda a cidade nova...

As férias de julho de dona S. começaram bem. Uma sequência de bingos na paróquia perto da casa da sua amiga D., lá longe, outro bairro, distante do dia a dia. Abre um sorriso assim que me vê, espantada com as ausências maiores que as presenças. Viajo muito, reclama, como é que vou virar sua amiga... Vai bonita, arrumada, atrasada porque precisou fazer a unha. Se vai aproveitar pra namorar? Ora, minha filha, pra que isso? Tou melhor sozinha do que com outro igual meu marido. Gritava, irritava-se com qualquer coisa, queria tudo a seu tempo - seu tempo, e não o tempo do tempo. Muito menos o tempo alheio. Vejo-a andar apressada pela calçada sombreada, enérgica sob a ilusão dos cabelos todos brancos, até virar e desaparecer na esquina.

Queria que eu fosse com ela. Mas eu prefiro ir até o cemitério. Além de não morrer de amor por bingos, prefiro olhar para o tempo que escorre devagar por entre os túmulos, como se água calma que não espere nenhum meandro mais, sequer o desaguar no oceano.

Qualquer dia é dia de visitar cemitério, mas aos domingos há mais gente que se lembra de quem se foi. Aparecem todos armados de mangueiras e baldes, despejando carradas de água, como diria  seriamente minha avó, nas lajes enegrecidas pelas queimadas fora da lei que persistem apesar das multas. Esfregam, trocam a areia dos pratinhos dos vasos, benzem-se entre uma e outra coisa. Causam-me ternura duas velhinhas de preto, parecem um luto gêmeo, assim ao longe. Visitam seus maridos idos, conversam saudosas com as pedras como se elas tivessem os ouvidos deles, e ainda lhes sorrissem de volta, confirmando a saudade imensa que sentem nas planícies do Senhor. Arqueiam as costas de vez em quando, difícil viver assim agachadas, uma fé de coluna esmagada que dói só de olhar.

Vou armada de máquina, para registrar esse Cristo que se levanta acima do horizonte e contempla o infinito, onde o tempo nem passa, nem entra, nem escorre. Onde as coisas são. Plenas, limpas e simples. Imutáveis. Demoro-me, porque me faz bem. Quero o mesmo.

Dona S. volta do bingo agitada - conto-lhe da minha ida ao cemitério e os olhos enchem-se-lhe de lágrimas. Afinal, diz-me, foi como ir ao cemitério. Com todos os defeitos, era melhor ir com meu marido e voltar para casa rindo das bobagens que dizia... do que assim, a casa vazia e ninguém pra conversar. E seu olhar é o mesmo das velhinhas de preto, apesar das unhas vermelhas. Talvez porque seja dentro de nós que as coisas sejam, em permanente sobrevivência. É mais fácil atravessar a noite dessa forma.



Mãos abertas


Tenho dois amigos queridos que decidiram abrir cada um as suas mãos para permitir que a vida se cumpra no espaço que formam. A meio de uma crise, encaram-na como oportunidade, como se fossem chineses acabados de desembarcar, e apesar das dores e das lágrimas, das dúvidas e dos tropeços, erguem-se em uníssono e caminham pela praia com leveza. Quase não deixam marcas na areia macia. Devem combinar percursos, só pode ser, porque parecem alinhavar os caminhos que percorrem lado a lado, e é bonito de ver o movimento de ambos, titubeante mas permeado de amor, escapando das ondas pequenas que querem refrescar-lhes os pés, como se voltassem a ser crianças dentro do espaço do seu sentimento. Estamos na praia, já se vê, esse lugar em que a atmosfera é mais clara e fresca, e onde os sentimentos e os sonhos são embalados pelo som das ondas ao longe. Eu me vejo melhor e vejo melhor os outros na praia, talvez por ter nascido quase dentro de uma, talvez porque o som das ondas ressoe na mata e não pare nunca.

Amor, há que explicá-lo. Este que se descobre diante de mim não é o amor que tolera e entende, mas o que se desdobra e respira o ar em volta a plenos pulmões. Amor que se constrói a quatro mãos, amor que se perpetua em outros que lhes servem de âncora e abrigo, amor que se espalha e ecoa nas árvores em volta, e é bom, e simples, e simplesmente é. Não há que dizer muito, e há mais de um tanto a calar, porque momentos assim são delicados e frágeis, qualquer palavra mal colocada assume um tamanho que não lhe corresponde, e desfazer os nós atados é uma tarefa cansativa e inglória. Melhor não os dar, os nós, já basta os que temos à nascença. Não há que inventar-se tristezas que não estavam no cardápio.

De tudo, neles, gosto especialmente da impressão de mãos abertas. Eles nem percebem, mas eu os observo, de dentro da minha própria solitária crise, e ao movimento das suas mãos, em vários momentos. Quando se esbarram num repente, quando se encontram sem terem combinado – e se abrem, em vontade de continência do que quer fazer-se seu. Fazem-me pensar no quanto é preciso abrir as mãos para receber o que a vida dá, o quanto fazem falta mãos que se estendam assim como as deles aqui sobre a mesa, abertas, para que as nossas individuais dádivas possam alcançar o seu porto. Triste, quando as ofertas são feitas e como chuva de verão escorregam para dentro dos bueiros das circunstâncias, mãos fechadas agarradas às próprias certezas e necessidades, todos os fantasmas encolhidos dentro delas, suplicando que não nos soltem, não nos soltem, deixem-nos no escuro onde nosso domínio é maior. Nada se guarda de mãos fechadas, e não tem a perder quem não as abre para ter.

Lavo as minhas mãos com cuidado, antes do jantar, limpando-as dos restos do que supus serem presentes – porque há presentes também que se recebem e não são nossos, e esses precisam deslizar pelo ralo da pia, lenta e decididamente. No fim de tudo há uma superfície de louça branca e limpa, recém lavada e ainda molhada. Por um instante, as minhas mãos estão tão limpas quanto a louça, dispostas a se abrirem virgens outra vez ao virar da esquina. Assim que as enxugo, porém, perdem um tanto da sua limpidez. Desço as escadas com elas à minha frente, para que meus amigos, e os amigos dos meus amigos, e deles seus amigos também, possam encontrar espaço para suas ofertas e conforto nas suas mazelas. E digo a meus amigos, mas sem usar as palavras de que tanto gosto e preciso, que nos demos as mãos, e que contem com as minhas, abertas, incondicionalmente. Para dar e para receber.

04/08/2012

Exercício: as aranhas de Isaura


De todos os suspiros que a vida tem-me arrancado, pensa Isaura, este foi o último. O derradeiro. Sentada no banco do ponto de ônibus, deixa o dia arrefecer as cores, indiferente aos demais que esperam, irmanados nessa intermitência entre estar em um lugar e dentro de pouco em outro. Não repara que de repente se senta ao seu lado um homem alto, de olhos grandes e negros, que a olha como se a reconhecesse. Isaura está perdida dentro do próprio pensar, equilibrando-se entre o coração intranquilo e a razão que lhe alfineta a alma. Diante de si não há rua, ao seu lado não há homem de desmesurados olhos negros, no seu passado não há mais ninguém. Tudo ao seu redor tem o sentido da voz de Armindo. E dentro dela, aflito e vazio como um barco que perdeu os remos em alto mar, um braço que luta por estrangular-lhe a voz que cria corpo na garganta. É aí que Isaura pousa a mão, da mesma forma que Armindo a envolveu com seus dedos longos e suas veias de cobre. Querendo mostrar-lhe o domínio que é preciso ter sobre o próprio fluxo de ar. Jamais perca o ar, dissera-lhe. E Isaura olhara-o atônita, o ar todo tomado pelo coração em chamas. Isaura só sabe viver de pequenas parcelas de ar; senão, vagas de fogo invadirão o seu ventre e a consumirão sem piedade.

É seu ônibus que pára diante de si e lhe abre a porta, num sibilar suave de engrenagem bem azeitada. E o motorista chama-a, e mesmo sem vontade Isaura embarca. Senta-se no último banco. Costume. Porque gosta de ver ao longe o caminho que as rodas percorrerão, a alternância de cores dos semáforos; sobretudo quando, como hoje, o dia morre nas ladeiras da cidade plana. Em casa, espera-a o silêncio. As coisas todas onde as deixou ao sair, as lentas aranhas do tempo desfiando um tempo enxuto de memória esquecida. Corre a espaná-las, esse será seu último suspiro, e nem a memória das coisas tecidas ela quer. Que os outros que venham sejam de outro tipo diferente deste, que me corrói o cotidiano até o último fio de osso, diz em voz baixa como se rezasse, enquanto se embrulha na pele quente das aranhas.

Não a espera nenhuma carta, nenhuma flor entreabrindo a maçaneta da porta, forçando um mundo que é só dela. Há muito que Armindo não faz nascer gestos onde se gestam universos – nunca os fez nascer, concorda Isaura consigo mesma em solidão. Os gestos são o meu universo particular.

Mas há uma janela aberta, e seu coração se encolhe, e depois se abre, e depois acena, e depois acende a faísca. E logo depois esmaga-se a si próprio na lembrança da própria mão abrindo a pequena tranca de metal, numa decisão de que o ar entrasse em casa na sua ausência. O ar que lhe falta e que a sufoca dentro da vida construída aos poucos. Não há ninguém nessa casa aberta, nessa morada atenta, nesse reino de sombras. O dia termina, flutua e despede-se. E Isaura deita-se ao comprido na cama, boca entreaberta de quem se quer de volta. Não suspira. O último suspiro já foi suspirado. Só as mãos, que se estendem abertas, teimosas, fazem crescer dentro de si esse peso, essa especiaria, essa forma desconhecida e lenta, a saudade suspirada.


03/08/2012

Dias curvos

Um dia curvo. Tal qual o define o dicionário: que não é reto, nem formado por linhas retas; que não é plano; inclinado para diante.

Curvam-se as horas, os tempos - nada de espaços retos e horizontes infinitos. Curva-se tudo o que vive, indisposto com as coisas que se estendem paralelas. Como se inadequadas.

Como as paredes que sobem retas, as grades dos portões que impedem passagens, as esteiras de um aeroporto infinito, avançando solitárias no meio de luzes sem cor da madrugada.

Um dia curvo. De sinuosidades da alma. De entregas sem respostas retas. Do futuro impregnado nos olhos,  às curvas pela montanha acima, desnorteado, em meio à neblina que transforma cada curva em espaço inóspito. Linhas curvas dos antebraços do passado, dobrados diante do que é inevitável no tempo. Linhas curvas das camisas que se dobram para guardá-las nas gavetas.

Por isso inclinar-se para diante: para que o abismo venha ao encontro e as curvas se transformem em retas, ainda que sejam daquelas que caem. Tudo, menos as linhas estagnadas e circunscritas: é disso que se fazem os dias em forma de curva.


29/07/2012

A quatro mãos

"Instável, mas com coragem", diz-me o amigo ao longe. Quase posso ver-lhe a alma inteira à escuta, na beira do caminho, recolhida atrás das pedras das escarpas, sempre à espreita, esperando ver se a ponte soçobra debaixo do peso das rodas de cada dia. 

Talvez seja mais fácil ter coragem ancorado em algum lugar, penso. E escrevo-lhe. Ele responde, lá no longe onde está: "o bom da âncora é que o barco pode deslizar um tanto...". Sem perder o foco, digo-lhe eu, o foco de onde está a rede que contém o peixe que alimenta o povo - mas eu queria mesmo dizer era da rede que contém o peixe que alimenta a sua alma. Mas fiquei tímida (inibida, se usasse as palavras que ele gosta de usar), mudei o fim, talvez fosse intimidade demais. Como é que se pode ter certeza de coisas assim? Ando receosa das palavras que escrevo aos outros.

Agora, aqui, ele fica sabendo. Que com ancoragem a coragem da alma se fortalece, nas âncoras em que cada um pode se segurar, cordas grossas e seguras onde se apoiar e descansar o peso quando a própria coragem faltar, manca como são todas as coragens quando o dia se põe. Âncoras em que confiar quando a maré levar o peixe pra longe, certo de lá estar quando ela de volta o trouxer. Âncoras que se agarram ao chão que não se vê, tão turvas são as águas que parece não haver mais lugar onde pisar sem cair. Âncoras que parecem nem ter peso quando descem ao fundo do mar, levando consigo a própria carga, trazendo consigo a vida alheia.

"Mas chega o dia em que se deve tirar a âncora, e retornar com as ondas à praia", diz ele, quase parece que me ouviu escrever nesta tela que não vê. A coragem que emerge, é ela quem fala através dos seus dedos que escrevem. Digo-lhe que não se esqueça de guardar a âncora dentro do barco. Porque sei o quanto a coragem se camufla e decide dormir quando menos se espera - quando menos se precisa. Assim:

Atravessa-se uma ponte, com a disposição certeira e a mente lúcida, a vida toda em forma de brilho, nítida e óbvia. Mas há uma curva, uma curva dentro do peito, tão igual à curva do braço de rio que revive na praia, tão do mesmo tom de verde dos lagos que não se mexem há muito. E a curva move-se, e num movimento de quem recolhe o lanço do trigo que afinal não se semeia, a curva recolhe a coragem daquilo que era tão certo, tão claro, tão firme. E aí a âncora. Aí retorna a âncora. Como um porto seguro. 

Há uma gaivota que veio entretanto sentar-se-lhe em cima - meu avô diria que para que me lembre de que há sempre quem nos cobice a fortuna (ele não gostava desses pássaros que roubam peixe aos pescadores). E o amigo diz "gaivota"; e a palavra primeiro não lhe desce, diz, agarrou-se ao cordame do barco, aos seus mastros, aos remos que usa para se manter à tona. E talvez porque lhe pressinta o tom enganador, a palavra não lhe desce, e a gaivota quase levanta voo. Mas não: meu amigo é um poeta em estado latente, e a gaivota dele vai na frente e a traineira atrás, pescadores de binóculo atrás da ave que sabe em que ondas se escondem os peixes. E assim a gaivota fica onde está, ornamento a preto e branco de uma âncora que permanece firme, ancorada no coração desse amigo que já foi, já dorme o sono dos justos e dos corajosos. Amanhã, que é sempre outro dia, lerá.


Da saudade, em estado bruto

Desloquei a minha vida de continente, várias vezes, e deixei perdidas, por entre idas e vindas, pessoas que não encontro mais. Um desterro perpétuo, uma inadequação absoluta por entre os passos dados.

Estou acometida do mais português dos sentimentos: saudade. Saudade específica, do que foi e já não é, de quem foi e já não está, dos que se foram sem despedida, dos que se despediram sem anteciparem o caminho do reencontro. Flutuam ao meu redor todas as Lailais, as Vanis, as Xinhas, as Anas, os Pedros, os Antónios, os Paulos, os Carlos, os Laranjos, os Césares - seres que a cada dia se tornam mais ficção na memória que lhes guardo. Não lhes encontro o rastro - ou é ténue como uma sombra.  E talvez seja melhor assim, porque serão outros, se porventura os encontro. Enquanto isso, enquanto adio a vontade quase incontida de revê-los, reedito-lhes as presenças, sinto-as lado a lado, com as tantas milhas náuticas exaustas de distância de por meio que me impedem um passo, um movimento, um ir ao encontro.

Entenderá o que digo quem se ausentou do próprio passado, quem se absteve de ficar onde estava e se decapitou para novas e longínquas paragens. É preciso inventar-se a si próprio, nessas mudanças, e a reedição nem sempre equivale ao que se perde, nem ao que se pensou que se era. E por isso a saudade, esse sentir atávico da alma que se desprendeu do seu substrato e que ao mesmo tempo sobrevive naquilo que reedita, como um arqueólogo numa expedição das coisas mortas. Em dias como os de hoje, de céu luminoso que não encontra similar dentro do peito, sobrevivem as células que se lembram. E todas elas doem, engolem-se a si mesmas procurando incessantes o que jamais conseguirão encontrar, diluindo ao mesmo tempo as saudades imediatas do que ainda é,  mesmo incompleto. E o amanhã, que não nos pertence e obedece à lei do tempo, de que cor tingirá o oceano quando amanhecer?

Foto do Carlos Marzagão da casa da rua Monte Olivete, em Lisboa

28/07/2012

"Do que em si não se conhece"


“Cada dia de filho que eu tenho descubro dois pais que não tinha.” 

Nem lhe pergunto o que quer dizer com isso, mas um dos filhos além-oceano escreve-me assim, um dia desses. E reconheço o quanto é verdade, porque eu mesma, ao espelho, descubro-me várias que não sabia. Às vezes, reedições. De vazios que imaginava puro preenchimento, espaços que pensei haver deixado atrás de mim, quem sabe resolvidos. Mas não: eles voltam, fantasmas feito plumas que insistem em acordar-me a meio da madrugada. Às vezes assumem nomes, transformam-se em pessoas de ficção, falam e falam e irritam-se porque não lhes entendo as intenções. E aos poucos, conforme me vejo descoberta nessa que pensava não ter mais em mim (essa que de repente meu filho intui existir), eles acalmam-se e deixam que durma. Quando já é dia claro, e os vivos e de carne e osso arrancam-me da cama porque é da sua natureza a fome e a vontade de me ver de pé. O sono, esse alívio, atrela-se com força aos dias em que o universo conspira que assim seja. 

É assim que uma destas noite, em meio à chuva que cai no rio logo ali embaixo, quando me decido a atravessar a ponte estreita que conduz à praia, procurando o sono que me foge, reencontro-me no pavor noturno de ser engolida pela profundeza marítima, no abandono insuportável de quem se esqueceu de me estender a mão. Coisa antiga, de menina ainda sem memória. Eu sequer conhecia, penso, e quase não sei para onde correr o pensamento, sou uma só inspiração aflita, buscando escapar dessa mim mesma desconhecida, em voltas desgovernadas em torno de um qualquer centro.

Aplaco o pânico como sei: dou-lhe palavra. Nome. Escrevo-lhe a história, em meio à chuva e à escuridão densa, à solidão absoluta de um mundo despovoado. E me desdobro em outra, que carrega as várias outras de mim, todas já acordadas e inquietas, para dentro de casa, e lhes dá banho quente para que parem de tremer diante da própria sombra. É assim que nasce, nestas noites de julho, a nova pessoa que andava escondida, que não se mostrava, só difusos sinais noturnos, sopros de partes desagregadas desintegrando-se em ar na noite. Metade do tempo que o sono não atravessa, ocupo-o com palavras, porque de repente ela quer dizer-me tanto, e diz-me, e eu preciso registrar para entender e voltar a dormir.

Quando acordo, dia seguinte, nada disso foi: só um sonho a meio de uma noite mal dormida. As anotações, ainda assim, estão a um lado da cama; ao outro, um espaço imenso vazio, ainda quente e moldado na forma do corpo longe e ausente.

Foto: Tai Ribeiro

25/07/2012

Exercício: uma explicação

Minha cara Júlia

Os móveis do meu consultório parecem ressentir-se da sua falta; quase me perguntam para onde você foi, que não volta.

Tenho recebido notícias de quem agora a acompanha, e gosto do que ouço. Talvez seja isso o que me faz sentir mais a sua falta: o sentimento de incapacidade de não tê-la ajudado quando pude. E perceber o quanto outros o podem fazer, e fazem. Agora, parece, nossos caminhos se bifurcaram e avançam cada qual em retângulos de traçados divergentes.

Sim, leio todas as cartas que me envia. Se não as respondo, é por um impulso imediato de não interferir no seu processo, de não saber de que forma guardaria as minhas palavras dentro de si, e do que elas poderiam fazer-lhe, se se aninhassem em algum lugar sem serem convidadas. Por isso, o silêncio. Como vê, nada mais distante do que a falta de interesse.

Pus a fotografia que me enviou diante de mim, à minha mesa. Gosto de olhar a serenidade de seu perfil e o mar ao longe. Quase ouço seu sussurrar e sinto a brisa marítima agitar meus cabelos como imagino aconteça com o seus, conforme os vejo agora, capturados por essa imagem estática a duas cores. Ao lado de seu retrato, nada além de uma cornucópia, de onde escorrem os meus dias, um a um, atravessando calabouços de brilho de pérola. Como se a sua imagem pertencesse também a esse mundo que escorre, serena e absorta dentro de si mesma. Tão diferente dos dias em que batia à minha porta com o desespero da insatisfação angustiada estampado em seus olhos difíceis.

Assim são os meus dias, quando penso em você: uma espécie de alegria tênue pelo encontro que vejo realizado nesse seu olhar tão distante a preto e branco; uma espécie de alegria entristecida, pela distância que se interpôs entre nós. Distância benfazeja, bem vejo. Necessária. Mas distância, assim mesmo.

Com amor e saudade,

P.

07/07/2012

A cidade nova XIV - Do telhado

Dizem-me que tome cuidado. Rio por dentro. Gosto dessa palavra, cuidado, parente tão próxima do verbo cuidar. É daquelas que não se sabe muito bem de onde vêm. Pode ser que seja de cogitare - quando pensamos, refletimos, consideramos. E pode ser que venha de agitare - quando conduzimos, dirigimos, instamos. Prefiro achar que seja uma mistura das duas, como se todo pensar levasse a uma direção precisa.  Cuidar  e tomar cuidado como formas de pensamento em estado de ação.

Em dias como os de hoje, que escorrem leves por cima das pedras que forram a vida, é fácil cuidar de quem está em volta. Pensa-se um pouco, a ação vem fácil. As horas passam como brisas de fim de tarde à beira do mar, diluem-se no que está em volta, as tarefas cumpridas sem sacrifício e, súbito, o dia acaba.

A meio da manhã, um estranhamento por dentro. Faço o que manda um dos mestres, Rubem Braga: subi aos céus. Quando tudo parece parado e os homens não se entendem, diz ele naquela crônica deliciosa que intitulou de "Torre Eiffel", o melhor é subir aos céus. Lá fui. Não porque os homens não se entendam, mas justamente porque parece que tudo pára. E eu subo aos céus antes que os homens se desentendam.

Meu céu é o telhado. Acesso fácil, graças à população de andaimes e escadas que nos rodeia por aqui. Logo me acompanham -  em pouco tempo somos 5 em cima da laje recém nascida. Dou mais uns passos, e passo ao telhado desta casa antiga, as telhas quebradas atestando os maus tratos dos seus últimos anos, os líquens desenhando os contornos do passar do tempo.

Nada como mudar de perspectiva. Não fosse a crônica do Rubem, e as aulas que o terão no centro na semana que vem, talvez não tivesse aliviado o coração desse dia tão leve que quase pesa. Talvez esquecesse que, de cima, afinal, tudo se parece bem mais com aquilo que o coração deseja. E de repente me acenam, para que tome cuidado. O sol nas minhas costas diz-me que é exatamente isso que faço: cuido para que a vida possa continuar leve assim, pelo menos de vez em quando. Por isso penso, e  me movimento. Com todo o cuidado que sei e posso.

03/07/2012

Do Carmo


Encontro a Maria do Carmo agorinha de tarde, ao virar uma esquina. Reconheço-a pelo andar oscilante, o mesmo que usava ao perambular por casa sem saber exatamente por onde começar o que. Seus métodos de limpeza primavam pelo radical; tudo a água limpava, ainda que fossem coisas nascidas para viver longe dela, como livros, essas entidades que ela insistia em guardar nas prateleiras com as lombadas viradas pra dentro, “para que se vejam as folhas todas”, dizia a sua lógica. Não foi um entendimento fácil o nosso, mas durou muitos anos. E deixou marcas em ambas.

Maria do Carmo sempre me pareceu bonita. Seus olhos, um deles abalroado pelo punho do marido num dia de desatino, eram bonitos justamente por causa dessa imperfeição. Conheci-a num ponto de ônibus, já se vão mais de vinte anos, sentada com os dois filhos e uma mala perdida entre eles. Jurava que aquele tinha sido o último soco. O olho esquerdo sobressaía-lhe da pele negra, um roxo azulado que tremia cada vez que falava. Senti-a tão próxima da minha humanidade que a levei para casa, a ela e aos filhos. Trabalhou comigo anos a fio, viu filhos meus nascerem, sempre com aquele olho desconjuntado arregalado diante da inconformidade de eu não querer visitar hospital. Falava pouco, quase nada; qualquer conversa que eu tentasse puxar, recebia uma gargalhada histérica em resposta, as paredes tremiam. Até que eu desisti e decidi comunicar-me só com os olhos e o sorriso. Deu certo.

Maria do Carmo parece igual, como se todos os anos se evaporassem no espaço pequeno que ocupamos na rua. Abraça-me com a força de sempre, seus braços longos em torno da minha alma à flor da pele. Estamos tão felizes de nos vermos que nossos olhos todos enchem-se de lágrimas, uma água rasa que não rola nem cai, tantas lembranças de tudo o que nos juntou em duas realidades tão diferentes. Quero contar-lhe, mas contar-lhe o que?

Esta cidade nova tão velha faz-me encontrar fantasmas todos os dias, tempos extintos, pessoas passado. Postam-se de repente à minha frente, lembram-se do meu nome, como se tivesse sido ontem e não outra vida. A umas, não consigo localizar-lhes nem tempo nem espaço. Mas a outras, como a Do Carmo, localizo-as dentro da alma, retrocedo anos, provo-lhes o travo de simpatia e calor que as fizeram criar raízes em mim.

Nunca mais fugi na vida, diz-me ela. Aprendi a fincar os pés no chão, mesmo que tenha de baixar a cabeça pra isso. O brilho de seu olho bom é o mesmo, e o outro é triste como sempre. Leva a mão ao rosto, sorri um sorriso desdentado e diz que é bom que continue assim, senão arriscava esquecer. O mesmo desamparo a acompanha, a mesma tenacidade desajustada que a faz atravessar a rua descuidada. Não sei como ainda não morreu atropelada. As crianças estão bem, cresceram, cada qual a sua vida. Eu estou a mesma, garante. Mas não é bem a verdade. Agora que a vejo de costas, descendo a calçada do outro lado da rua, há curvas a mais em seus passos, cicatrizes que marcam as suas costas encobertas, novos fardos densos que carrega sem que os outros precisem perceber. Quero correr ao seu encontro outra vez, mas é o passado que me acena lá de baixo, quando ela se vira tão lenta para me dizer adeus. E, de repente, acho que não a verei outra vez.


Imagem: "Canavial", Sérgio Torretta

29/06/2012

Dicotomia e incongruência

Gosto quando me perguntam sobre palavras. Às vezes, a resposta vem, lépida e faceira, simples, convincente. Outras, as palavras perguntadas ficam perambulando dentro de mim, abrindo espaços, forçando-me em direções que preciso, ainda que não queira. Reviro-as e reviro-me de todos os lados. Essas palavras perguntadas são coisas sérias, coisas que chegam sem motivo para nos darem motivo.

Ontem perguntaram-me o que é dicotomia. Tentei a explicação etimológica: tomia significa cortar, portanto dicotomia é cortar em dois, algo que era um subdivide-se etc. Mas não: o que a pessoa quer saber é o que é uma falsa dicotomia. Como saber quando algo se insinua dividido, mas não há divisão? As coisas, quando se dividem em duas diante da janela mais danosa, a da incongruência. E essa é a segunda palavra que me perguntam - incongruência - e assim são duas a que preciso dedicar-me. Não consigo respostas, eu própria a dicotomia em estado bruto.

A prateleira dos livros logo ali. Lanço mão dos poetas. Lembro-me de dois, assim já, de repente, como chegam as coisas que precisamos ler. Luiza Neto Jorge e Eucanaã Ferraz, que uma amiga ressuscitou da minha memória há poucos dias. A cair e a estar de pé: tudo isso o poema ensina. O que é preciso é aprender a ler - as letras e os livros, tal qual as pessoas, as coisas, o ar rarefeito em volta. Por isso, como resposta tardia a quem perguntava, aí estão os poetas, seus poemas, suas verdades, o diálogo instaurado entre dois seres. Talvez seja aí, no diálogo, que as dicotomias se resolvam, as falsas e as outras, as talvez incongruentes.


O poema ensina a cair
sobre os vários solos
desde perder o chão repentino sob os pés
como se perde os sentidos numa
queda de amor, ao encontro
do cabo onde a terra abate e
a fecunda ausência excede
até à queda vinda
da lenta volúpia de cair,
quando a face atinge o solo
numa curva delgada sutil
uma vênia a ninguém de especial
ou especialmente a nós uma homenagem
póstuma.
Luiza Neto Jorge



O poema ensina a estar de pé. Fincado
no chão, na rua, o verso não voa,
não paira, não levita.

Mão que escreve não sonha. Em verdade,
mal pode dormir à luz das coisas
de que se ocupa.
Eucanaã Ferraz


Imagem: escultura de Raquel Zocco

28/06/2012

Exercício: As razões de Armindo

Armindo desce do ônibus com as pálpebras coladas de sono. Isaura espera-o na plataforma, batendo os pés no chão como se quisesse espantar a ansiedade junto com o frio. Seus olhos sorriem quando o vê; adianta-se para envolvê-lo. Armindo retribui, tenso e a contragosto, num esticar de longas costas como abraço que não se quer entregar.

‒ Não tinha certeza de que você viria. ‒ Isaura encolhe os ombros e não lhe diz nada. O que faço deste homem que duvida tanto?

A cidade está cheia; gente que sobe, desce, avança, caminha com os olhos voltados para dentro sem realizar para onde a levam os passos. As duas figuras andam vários quarteirões até chegar à sala de concertos. A caixa do instrumento pesa, Isaura insiste em levar-lhe a mochila. Está leve, não tem quase nada dentro. Percebe que Armindo ficará pouco. Guardam os volumes no saguão e saem para sentar-se em algum qualquer lugar.

A carta de Isaura no bolso do sobretudo de Armindo é uma brasa que arde. Saiu de casa decidido a explicar-lhe. A dizer-lhe. Aceitou essa aula aberta só para poder terminar o que sequer começou. Uma desculpa conveniente para viajar. Quer arrancar-lhe toda sombra de esperança. Mas cada minuto caminhando ao seu lado esvai-lhe a vontade. A proximidade tépida. O som dos seus passos na calçada. O braço que esbarra. As palavras que ensaiou ficaram dentro do ônibus, grudadas e impassíveis nas paredes azuis. Palavras sem recheio, mera formalidade de quem tem medo. Para onde foram todas as razões que viviam tão claras dentro de mim?

Isaura já almoçou, Armindo não tem fome. Pedem dois cafés e qualquer coisa que mastigar. Para ocuparem as bocas quando faltem as palavras. Jamais falam sobre amenidades. Armindo não sabe o que é isso, Isaura prefere os silêncios expressivos às palavras vazias.

‒ Não consegui responder sua carta ‒ diz Armindo finalmente, abrindo uma fresta na neblina que os mantém invisíveis.

‒ Armindo ‒ seu nome em sua voz é uma nota grave e frutada evaporando-se no ar em volta ‒ Armindo, eu não esperava resposta sua. Eu precisava dizer-lhe, precisava que você soubesse. Quem sabe entendesse. Mas não esperava que me respondesse.

Seus olhos estão úmidos, Armindo não sabe se neblina ou lágrima. Isaura sente a falta da frequência, das aulas, dos momentos em que dividiram harmonias, dos dedos que se encostaram e não conseguem desprender-se da sua pele. Pensou que uma cidade desconhecida e longínqua a manteria à tona, mas a vida desmorona à sua volta, traçando o fio da fuga. 

‒ Você leu. A minha carta diz-lhe tudo o que queria dizer-lhe.

Armindo procura dentro de si todas as razões que o mantiveram firme na recusa do que Isaura oferece. Precisa fechar os olhos, apagar a imagem dessa mulher plena, pronta a dedicar-lhe todo o amor. Se ele a deixasse. Mas eu não posso, Isaura. Não posso. Não quero magoá-la, mas não posso dizer-lhe esse sim que você me pede de olhos enevoados. Ele sabe: esse é o lugar comum fácil e batido. Para escapar de si mesmo.

Mas Isaura está disposta a ir até o fim. E confronta-o. Estende a sua mão e encosta-a aos dedos longos, as unhas cortadas rente à ponta dos dedos, a pele curtida e suave, a temperatura quase a mesma. Armindo perde as últimas palavras que tentavam organizar-se em sua mente, e só sente. Só sente. E sabe que o sim é a única palavra que ela aceitará e a única que ele, bem no seu fundo, tem para lhe dar. Ainda que ponha a perder tudo o que construiu em sua vida, essa estabilidade serena que lhe acorda as manhãs sempre no mesmo tom cinza. Fecha os olhos e escolhe a entrega.



24/06/2012

Bom Retiro 01122-040

À Karla

Neste domingo, começa tudo dentro do Museu da Língua Portuguesa. Disposta a ver a exposição de Jorge Amado, e já preparada para as mirabolantes instalações do Museu, lá fui. Fomos. Que com companhia tudo é melhor porque divisível. Bahia pura por todas as paredes, um deslumbre de capacidade imaginativa de quem projeta essas exposições temporárias do Museu. As palavras dos  quase 5000 personagens criados por Amado por todo lado, datiloscritos animados mostrando a forma e a ordem das correções a cada revisão, um luxo só. Não se esgota nada: são caminhos, pistas, material que instiga e cria vontade de voltar a Pedro Arcanjo, a Santa Bárbara, a Antonio Balbuíno. Até 22 de julho, quem puder que venha.



Mas na verdade verdade, só há um motivo que de fato me faça ir até lá. E é o terceiro andar. Ainda por cima quando posso compartilhar com outra pessoa esses momentos cheios de palavras, quem dera pudesse mais e muito. É começar a projeção e os olhos comicharem. E é a voz do Nachtergale instaurar o convite "penetra surdamente no reino das palavras" e lá me desaguo inteira até o fim da projeção. Toda vez. E olha que esta, salvo erro, é a quinta. Fico com a sensação de que é ali onde mais me pertenço, no meio de um mundo feito palavra, imenso, semântico, sintático, mastigável, onde a vida faz sentido e é maior que si própria e as minhas entranhas todas vibram. Vale a pena o Jorge Amado, é claro que vale - mas o museu inteiro vale, tanto faz o resto, pelo terceiro andar. Salve Nestrovski e Wisnik pela idealização deste presente.

Atravessamos o Parque da Luz, o mais antigo de São Paulo, em direção ao Bom Retiro. Gosto desse bairro multicultural, cheio de cheiros e pessoas tão obviamente distintas umas das outras - judeus, italianos, gregos, coreanos. O Parque está cheio de esculturas, o dia está cheio de sol e as pessoas estão cheias de luz. Atravessamos a rua e chegamos à esquina da Samuel Brenner, bem em frente ao bar onde sentamos pra tomar uma cerveja - torresmo na vitrine, sarapatel com feijão de corda no cardápio do dia pro almoço. Mesas pequenas, todas ocupadas por homens sozinhos.

Samuel está em uma delas. Nacib (sem Gabriela, que ficou no Museu) em outra. Ninguém fala com ninguém, é um prato cheio pra observar a vida alheia ensimesmada. Samuel é baixo, magro, tem dedos longos e finos; usa óculos de armação estreita arredondada e, mesmo à distância, desconfio que seja de ouro. Já passa dos 60. O casaco azul grosso e as costas curvadas denunciam-lhe a ocupação de sentar-se horas a fio, provavelmente atrás de um monóculo de ver diamantes; perdeu tudo para o sócio há uns anos, foi-se para outras bandas e deixou-o só com as contas a pagar. Hoje almoça sozinho, entristecido, pensando que gostaria de estar acompanhado. Suspira na direção da porta entre uma garfada e outra.

Nacib, na mesa ao seu lado, enfarta-se com o sarapatel e a segunda garrafa de cerveja. Olha em volta e sustenta-se sozinho. Rosto vincado, olhos azuis afundados, tem os dedos grossos, as mãos grandes, agarram o garfo como se o fossem engolir. Está sozinho, mas é porque quer. Mandou a mulher embora porque não permitia que fizesse com ela o que quisesse, e Nacib quer da vida tudo. Não quer lhe dar? Vá passear. Estou melhor sozinho do que acompanhado com quem não quer me servir como quero.

Marquinhos chega depois, afobado porque tem compromisso logo a seguir. Engole o prato feito, toma o suco pronto servido no copo, palita o dente a caminho do caixa e desaparece atrás dos braços compridos que usa para equilibrar o corpo. Nem dá tempo de que se lhe observem as mãos.


Suse, a dona do estabelecimento, é mineira da capital, mas já tem 32 anos de São Paulo. De Bom Retiro, pontua com orgulho encostada ao fogão aberto. Seis filhos. Um deles vive em Londres, e ela conta em altos brados que achava que esporte de macho era futebol, e precisou ir lá fora pra descobrir que macho mesmo é outra coisa. Foi ver uma partida de rugby, na fronteira com a Escócia. Entusiasmou-se tanto, mas tanto, que ainda hoje aumenta a voz quando grita "Brandford Bulls!!! ". Aquilo que é jogo de macho, o resto é conversa. Deve ter sido a mais animada da torcida, num jogo a menos de 5 graus negativos. Grita com o marido, o Fernando que fica no caixa, o tempo todo, e quer saber quem que vai levá-la ao jogo do Corinthians. Estamos no bairro da Fiel, é bom lembrar. 

São tantas palavras em volta, que saltam dos lábios e dos gestos, que me perco, não quero ir embora, ficaria ali horas observando o entre e sai de clientes. Como essa moça que entra agora, de rosto recém acordado, sozinha, e se senta atrás de mim, pernas de fora de uma saia curta e azul e justa, e pede um prato que eu não conseguiria comer o fim de semana inteiro.

Mas é preciso ir, e deixar para uma outra vez. Volto com a humanidade toda à tona, humanidade feita palavra, feita desenho de sons num papel etéreo que não se deixa prender entre os meus dedos. As pequenas misérias da vida insinuam-se, mas perdem força. Os outros são sempre mais do que nós.





21/06/2012

A cidade outra - o sonho

Quem me fez voltar a sonhar foi o manguezal. O seu silêncio expectante, a frieza úmida, a superfície mutante. o fundo desconhecido. Mais do que ser engolida, a sensação de ser deglutida pela lama fria. Voltei algumas vezes, sozinha para que o silêncio fosse mais potente. Um santuário rodeado de árvores cheias de surpresas. Os troncos vermelhos por dentro, as raízes suspirando à tona da lama. A vida a todo o custo. E tudo cheio de vida, tudo prestes a dar à luz. Na noite desse primeiro dia, perco um anel num sonho; o anel afunda-se na lama e quando acordo estou no chão, à procura dele por entre os mangues do meu sonho, traves da cama onde durmo. Devo tê-lo encontrado - os dias que se seguem preenchem-se todos de sonhos.










Esta noite, a meio do frio deste sul que me acolhe todos os meses, também sonho. Sou acordada de tempos em tempos por um dos meus colegas de quarto, que ronca tanto, mas tanto e tão profundamente, que faz estremecer o beliche que dividimos. Dormir na cama de cima seria o suficiente para me fazer acordar algumas vezes. Com a ajuda da sua (só pode ser) grave apneia, tenho tudo para ter o sono interrompido sem que esteja satisfeito. Talvez por isso me lembre dos sonhos. E talvez por causa deles me levante tão leve, e cedo. 

Sonho com dedos e água. Deslizam entre si. Dedos longos e vagos, uma textura imprecisa que não impede que saiba que são meus. Submergem e flutuam ao mesmo tempo. Tudo o mais está parado, quieto, e é um silêncio de catedral abandonada. O barco em que estou sulca as águas rasas e esverdeadas do lago. A vegetação parece muita, mas não é. São só grandes plátanos, e a sua sombra - desenha luzes entre os meus dedos e a água, matéria luminosa embrenhando-se no estado líquido do tempo. Pequenos peixes atravessam as águas por baixo do barco e meus dedos querem alcançá-los. Lentos e terrenos, esguios e alaranjados, escondem-se nas margens verdes.

Um remo invade o leito do lago com suavidade, enterra-se na água sem lhe quebrar o estado de espelho. Inclina-se para não destruir a superfície, reafirma a sua postura e adquire a força que me faz avançar. O movimento do remo no espaço desenha o silêncio da minha alma. Minha tia sorri à minha frente. Seus dentes brilham como pétalas sob as águas.

Tomo banho assim que acordo, e penso que é a água do lago que me lava. Estou pronta para começar o dia. Aguardam-me personagens sem voz que precisam explicar as suas razões.

19/06/2012

A cidade nova XIII - o cemitério

Cemitérios são lugares calmos e sossegados, silenciosos; ninguém incomoda ninguém, ninguém pergunta nada, não tem lágrima que se estranhe. Tenho um cemitério a duas quadras de casa - centro da cidade, cemitério que nem é bonito de se dar nota. Mas tem aqueles ingredientes: sossego, calma, silêncio e solidão. Que é coisa de que se precisa, e por isso passeio por lá com frequência.

Chego hoje e seu Isidro me cumprimenta. Acho que se acostumou  com a minha presença. Descubro que trabalha há anos por lá, tantos que perdeu a conta, limpando e lavando o que precisa ser lavado, pondo e tirando terra de covas. É de poucas, quase nenhuma, palavras, mas veio me perguntar hoje o que é que eu tinha perdido por lá, que tanto aparecia. Disse-lhe que não tinha perdido, mas achado: o sossego, a calma, a solidão e a sombra fresca. Olhou-me nos olhos, abanou a cabeça, retomou a enxada que deixara a um canto e desejou-me um bom dia. Seu Isidro tem um par de olhos cor de mel claro, com um vidrado que os faz brilhar. Olhos estranhos, que se fecham assim que encontram outros. Decidi não ir atrás dele. Fui atrás da estátua que há semanas quero fotografar.


As alamedas são cheias de murtas antigas. Troncos retorcidos, folhas miúdas, a um lado e ao outro. As mais antigas estão na alameda central, fazendo companhia às famílias mais tradicionais da cidade, quando ainda existia espaço para jazigos. Espremem-se os mortos uns ao lado dos outros, sem queixas, sem lamúrias, quietos e parados debaixo da terra. Tudo ladrilhado à flor da terra, num puzzle que se esqueceu de olhar o todo e parece uma colcha de retalhos mal projetada. Ninguém olha o morto alheio quando enterra o próprio. 


Num desses jazigos, todo dia me chama a atenção uma escultura, de longe a mais bonita de todo o cemitério. Já tinha decidido pesquisar-lhe a origem. Valeu a pena o tempo investido hoje.

A escultura foi capa do catálogo da exposição individual do artista que a idealizou, em 1936. Ottone Zorlini. O sexto de sete filhos nascidos em Treviso. Ottone nasceu no fim do século XIX e mudou-se pra Gênova na década de vinte. Menos de 10 anos depois, já estava em São Paulo, com seus instrumentos de escultor a tiracolo. Tornou-se amigo de Volpi, de Mário Zanini. E de uma porção de outros nomes que a mim, leiga por completo, não me dizem nada.

É a sua obra, a escultura que tem me seduzido. Fico sentada à sua frente durante horas, ora de um lado, ora de outro. Como cemitério não é museu (acho), posso encostar a mão em qualquer lugar que me apeteça. Assim os detalhes entram em mim pelos poros sem olhos. As mãos, os pés, as superfícies envelhecidas e duras. Riem-se, aqui em casa, quando tento sair de fininho, não consigo, e acabo confessando que vou ao cemitério. Vou em busca dessa frieza dolorida fustigada pelo tempo.


Mas no fundo são os sonhos enterrados que me chamam para esse lugar, a sensação da vida que chega ao fim, as fotos sépia envelhecidas nas pequenas molduras pregadas às lápides, o parto ao contrário, a viagem de volta. Como as flores de plástico, que não morrem, também permanecem as saudades, coladas às pedras e aos azulejos.


É triste ver os cortejos saindo do velório ao lado, avançando em medidos passos lentíssimos pelas alamedas sombreadas, um ritual tão antigo que esquecemos porque não passa ao nosso lado. Mas o tempo, aqui, tem outro ritmo. O de seu Isidro, que passa e acena com a cabeça, ocupadas ambas as mãos  com o carrinho cheio de terra de cova. O cemitério se enche de pessoas que atravessam a alameda central para chegar à rua de cima - entram dum lado, saem do outro, pura conveniência ditada pela pressa. Nem reparam no que está. Cemitério é lugar de onde se foge, ou por onde se passa de sentidos fechados.


















































18/06/2012

Segunda feira

Há dias como os de hoje, plena segunda feira, em que se fica zanzando à procura de sentido. As horas não passam, encalacradas umas nas outras. Não é falta de trabalho: estou rodeada de textos, uns que precisam ser escritos, outros reescritos, revisões que precisam chegar ao fim, traduções que esperam pacientemente que volte a elas. Não é falta de trabalho: é falta de sentido.

"Como se houvessem fantasmas de nós mesmos em lugares que não mais habitamos", diz-me uma amiga de longe, agora mesmo, respondendo a um email que conscientemente buscava sentido no alheio, e que com estas palavras sei que me entende. Ou como se tivesse "saudades do futuro", responde-me outra, no bate-papo, fazendo parecer que está aqui ao meu lado. É tudo isso, e mais um pouco, ao mesmo tempo.

Dona S., ontem, contava-me o quanto detesta os domingos - dias em que a cidade pára (e pára mesmo, esta), em que nada acontece, em que as filhas vêm para almoçar e parece que esquecem de ir embora, e ela querendo logo que sumam para poder ir tomar sorvete sossegada lá em baixo, na sorveteria do São Geraldo. E seus olhos estão tristes, quando me diz isso, de repente seu rosto sem brilho num domingo atormentado. Tenho vontade de lhe dar um abraço, mas não me mexo.

Fui visitá-la, agora cedo. E o brilho voltou-lhe, as segundas feiras não a incomodam em nada, tem um ritual todo próprio para dar conta da semana.

- O duro, Ana, são os domingos. Quase que podia viver sem eles - E eu arrisco-me a dizer-lhe que institua um ritual também para os domingos. E ela responde-me sem saber o quanto me responde: - Mas como é que eu podia viver a vida inteira achando que vale a pena, se não tiver um dia que parece que não vale?


Volto a sentar-me diante do papel para reencontrar um qualquer sentido, daqueles que só alcanço quando as palavras me desabitam. Dona S. nem desconfia o quanto me ajuda, do lado de lá do muro que divide as nossas vidas em duas metades, a árvore de canela que nasce no quintal de lá abrindo-se prodigiosamente em galhos e folhas para o lado de cá. Até meus fantasmas desabitados têm saudades do futuro.

17/06/2012

Exercício: personagem em diálogo a uma voz

Júlia olha o teto com os olhos abertos, as pálpebras finas cobertas por uma sombra cor de terra, os cílios pesados de tinta. Júlia tem muito cabelo, preso todo ele num rabo de cavalo alto. Suas mãos descansam pesadas em cima do abdome, e de vez em quando o polegar e o indicador da mão direita apertam o dedo do meio da mão esquerda. Júlia tem mãos de dedos longos como enguias. A seu lado, numa pequena mesa, uma jarra e um copo. Os raios de sol brincam com as superfícies transparentes, e o ar brilha ao redor do vidro cheio de água. Não há ruídos em volta, a não ser os passos que de vez em quando ecoam do andar de cima. A parede ao seu lado está inteiramente coberta por prateleiras de madeira escura, e estas de livros. À sua frente ergue-se a reprodução de uma imagem, um anjo que adverte, espada numa mão, balança em desequilíbrio na outra. É firme, o olhar do anjo, e encontra-se de vez em quando com o de Júlia, enquanto esta passeia pelos dourados que o rodeiam. Tudo o que Júlia diz desaparece no ar em volta. Apenas as palavras de P. permanecem em seus ouvidos.



          - Não, Júlia. Se você estivesse morta, obviamente não poderíamos ter esta conversa. Você não teria acordado de manhã e vindo até mim, subido as escadas da entrada, aberto a porta do elevador, premido o botão que a trouxe até este sexto andar.
                 ...

               - Mas há uma parte do que não se entende que é o que nos faz entender o resto. E acredito que você esteja aqui porque essa parte que não se entende bate à sua porta com insistência, e a maneira que você encontra de despachá-la é acreditar que esteja morta.
                    ...

                - Isso não importa, Júlia. Você precisa olhar de frente essa parte que você acredita morta e perdoá-la. Ou perdoar-se, vem a ser o mesmo.
                 ...

                 - Sim, a sua vinda é um passo.
                 ...

             - Tome quanta água quiser. Não precisa pedir licença pra isso. Mas não fuja para dentro do copo, nem acredite que a tímida fuga lhe traga um tempo de trégua.
                ...

                - Trégua, sim. Das circunstâncias da sua vida.

A mão hesita entre tomar o copo entre os dedos e não tomá-lo. Entre sorver um gole de forma rápida e automática e prestar-lhe intensa e absoluta atenção. Fica estacionada no ar, como uma lua cheia por cima do pânico da noite. E volta ao regaço.

                - Você percebeu, Júlia? A sua hesitação?
                ...

                - A que a fez largar o copo antes de mesmo de agarrá-lo?
                ...

               - Não se desculpe, é bom que chore. As lágrimas mostram-lhe que não há secura dentro de você. Lembra-se de ter-me dito isso?
                 ...

                 -  E porque não foi ao encontro desse amigo, então, em vez de ter vindo ao meu?
                 ...

                 - Eu teria tempo para você, a qualquer momento. Você sabe disso. Não sabe? Se quer inventar uma desculpa, é melhor que seja outra.
                  ....

                - Mas você não está morta, e a prova está no momento em que eu lhe digo que você está aqui. Eu a ouço. Eu a vejo.
                  ...

                 - Vejo-a sim, por detrás dessa máscara que você colocou ao acordar, como disse ao chegar. As suas máscaras não são tão densas e opacas a ponto de que não se veja o que escondem.
                 ...

                  - Faça o exercício. Olhe-se a partir da parte que sente não ter morrido.


Imagem: anjo protetor contra  demônio, de Simone Martini.

13/06/2012

Fado: a terra ou o mar?

Antonio Sampaio da Nóvoa é reitor da Universidade de Lisboa. Homem culto, falante de várias línguas, lúcido, inteligente e afetuoso. O seu discurso no dia 10 de junho, em Lisboa, convidado oficial para falar no dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, não se furtou à crítica necessária, e dura, ao estado atual desse país ibérico. Contundente e forte, a sua fala reflete o seu compromisso com a reinvenção do país que é o seu, e que assume como sua tarefa. 15 minutos densos e leves ao mesmo tempo. Recheado de referências poéticas, seu discurso assume a a coragem de erguer o nome de José Afonso, 25 anos passados da sua morte, quando cantava "enquanto há força (...) cantemos todos".

Gosto imensamente de saber que somos amigos, gosto de encontrá-lo nas suas presenças por aqui, porque por poucas que sejam as palavras que tenhamos tempo de trocar, percebo-lhe sempre essa segura, clara e afetuosa maneira de tratar a vida, aproveitando os momentos que outros tomariam como circunstância para vivê-los de fato e ser-se intenso. Ouvi-lo neste 10 de junho foi um presente.

É desta forma que gosto que Portugal apareça à minha porta. E logo hoje, quando mais tarde se cantará o fado, levanto-me animada pelas palavras de poetas que não frequento com assiduidade. Vozes que demoram a deslizar das prateleiras, ficam ali paradas à espera, até que o dia (hoje) chegue. Leio-os e sinto o mar no seu encontro com o Tejo, um cheiro que não se repete em nenhum outro lugar do mundo. Hoje, dia de Santo Antonio, padroeiro de Lisboa, revejo as calçadas de Alfama, os becos da Mouraria, a encosta do Castelo, formigueiros humanos que se juntam para cantar e dançar, comer umas sardinhas, beber um vinho da casa. Sento-me à mesa da tasca da Estrela e peço uns caracois, ainda que não seja tempo deles. E olho em volta para as paredes azuis, para as mesas de mármore lustrado e côncavo de tanto uso, para o chão de tábuas corridas por onde tantos de tantos séculos caminharam, e respiro aliviada, porque se o passado existe em mim, o presente tem luz e o futuro é mais que uma promessa.

A terra ou o mar?, pergunta Nóvoa, repetindo séculos de história. Crescer dentro de si ou partir para longe? Centenas de aventureiros marítimos lançaram-se mar afora, ampliando a alma de um país que se faz pequeno no espaço. A escolha insistente pelo mar, abandonando a terra à própria sorte, cobra seu preço hoje. E o que Nóvoa faz é denunciar as nossas ingenuidades, sem pôr de lado as ilusões. E a sua divisa acende-se nas palavras de Sophia - a busca de um país liberto, de uma vida limpa e de um tempo justo.

O discurso a que me refiro:



11/06/2012

A mais curta história de Armindo


Armindo está parado na fila do caixa há muito tempo. Tenta, a duras penas, o que deixara de ser normal, controlar a sua impaciência. Não deixaria que seu sangue quente lhe complicasse a vida – ou seu temperamento colérico, como preferia seu médico amigo, ou amigo médico.  Era difícil saber o que definia e o que qualificava a relação que mantinham, entre a amizade e a terapêutica. Um pouco como aquela diferença que existe entre uma grande árvore e uma árvore grande.

Seu temperamento colérico. Na época em que ouviu a expressão pela primeira vez, pôs-se a pesquisar Hipócrates e os quatro temperamentos-base. Reconheceu-se, logo à primeira vista, nesse tipo que explode e depois considera, que fala e depois vê que devia ter-se calado. Decidiu (colericamente) superar-se a si mesmo e, com a persistência necessária, tinha conseguido. Exageradamente, até – quem o vê agora, dirá que é taciturno, um melancólico típico. Nada disso: apenas um colérico escondido. Esse supermercado devia tomar cuidado. Nunca se sabe que animal se aloja dentro das pessoas.

Essa decisão, de se superar a si mesmo e a seus instintos mais primários, resultou de um incidente numa parada de ônibus. Armindo já tinha descido irritado por mais uma interrupção na viagem. Aguardava-o uma conversa decisiva (nem o sabia naquele momento, mas algo intuía dentro dele que assim seria), e pra que parar tantas vezes? Por não ter mais nada a fazer, pediu uma coca-cola ao balcão da lanchonete, confirmando duas ou três vezes se estava bem gelada. Nem estava, nem ele achou que a atenção do balconista tivesse sido a que merecia. Irritou-se. Além do normal, reconheceu depois. Uma coca cola quente não poderia ter resultado numa vitrine espatifada pela força do seu punho. Foi tão grande o susto que a lanchonete inteira parou, o tempo parou, os estilhaços de vidro passaram diante de seus olhos refletindo um arco-íris com a própria câmera lenta. 

Anos depois, deitado no divã do terapeuta, recoletara da memória esse momento, reconhecendo-o como um divisor de águas. Não pelo dinheiro que tivera de desembolsar, não pelo vexame tão grande em meio a tantos desconhecidos, não pela dor de cabeça que o acompanhara daí até Brasília, nem tampouco pelo desastre que fora a conversa que lá tivera, afinal. Mas pelos estilhaços de vidro que permaneceram dentro de si, sem ele saber; pelas cicatrizes na alma que o momento lhe rendera, talvez o primeiro daqueles em que se olhara sem véus nem espelhos nem desvios subjetivos - e não gostara do que vira. Uma vergonha pesada e opaca apossara-se dele e, logo depois, a urgência, a premência de se transformar em outro, alguém que pudesse apresentar a si mesmo, diante do balcão de qualquer lanchonete de cocas quentes, e se orgulhar. Sim, responde ao terapeuta, a conversa com Isaura também tivera seu peso, também ela o atingira como um estilhaço, uma bala perdida em busca de um coração desgovernado. Mas fora o balcão de vidro, e o frio contato com seu punho, que o transformara numa pessoa diferente. Seus dedos passeiam pelos cabelos grisalhos e Armindo para de falar. O silêncio não consegue ser tão denso quanto tudo o que sente e não sabe dizer.