27/08/2012

Benvinda


Num certo momento da sua vida, meu pai tomou a decisão de, em vez de comprar uma casa, abrir uma loja de material esportivo. Revendedor exclusivo da Tretorn, marca que patrocinava a sua carreira de tenista, em poucos meses confirmou-se o vaticínio do meu avô: encordoamentos de graça para o amigo querido que nunca lhe negara o ombro, bolas distribuídas pela rapaziada que amava tênis mas não tinha dinheiro para comprá-las, demonstrações de produtos que pouco rendiam – o tino comercial do meu pai abria um rombo incompreensível nas finanças familiares. 

Meu pai viajava, e eu muitas vezes com ele, para torneios e campeonatos. Não conseguia decidir-se: o que era ele afinal? Um jogador em competição ou um vendedor em busca de negócios? O jogador invariavelmente ganhava. E o vendedor esquecia-se de vender, e preferia distribuir faixas de cabeça para divulgar a marca e deixar os outros felizes com o presente. Não sei quanto tempo a loja durou, mas tivemos bolas e raquetes e bolsas Tretorn espalhadas pela casa durante décadas.

Numa dessas viagens a campeonatos, creio que ao Algarve, lembro-me de uma senhora, rosto emoldurado por uma espécie de capacete de cabelo louro, olhos azul cobalto e imenso entusiasmo com o tênis. Chamava-se Benvinda. Eu era pequena, e fiquei encantada com esse nome. Aprendi, com ela, a diferença entre substantivos próprios e comuns: próprio era o nome dela, Benvinda, invulgar e cheio de esperança, ela mesma uma pessoa invulgar, de hábitos diferentes da maioria das mulheres que me rodeavam. Andava sozinha, fumava uma longa piteira de prata e tratava todos os homens por “tu”, numa desenvoltura e alegria que insuflava vida a qualquer ambiente a que chegasse. Sentava-se nas arquibancadas com um chapéu branco imenso, e chamava-me para sentar-me ao seu lado. Ria, apertava-me a mão e comentava cada lance a um lado e ao outro da rede. Não tinha favoritos: eram todos seus favoritos.

Comum, especialmente para ela, era sentir-se bem-vinda. Contagiava-me, o espírito de Benvinda, e era também bem-vinda que eu me sentia por entre raquetes e redes, divertindo-me mais com a observação do público do que com o jogo em si, em liberdade quase absoluta enquanto meu pai jogava e torcia pelos amigos que também jogavam. 

A sensação de ser bem-vindo é poderosa. Uma espécie de sentimento de adequação, de certo no certo, um aquecimento interno que desenha um sorriso leve nos lábios. São horas preciosas, quando nos sentimos assim. Podem ser as cores de três vasos de flores simples que pousam anonimamente em cima da mesa da sala. Ou o pão de mandioca deixado à porta, embrulhado num paninho bordado, com dois galhinhos de flores lilases e o bilhete sem assinatura: “Bem vindas”. Ou o bem-vinda que se ouve, num sussurro quase em silêncio, a meio da noite, como a morada de um reconhecimento, um aquecer que adormece de sorriso interno. Desconfio que andei sonhando com o chapéu esvoaçante de Benvinda pairando por cima dos campos de saibro. Sorria-me, ainda de longe, e acenava-me com a mão, num movimento aéreo de “vem sentar-te comigo, sê bem-vinda!”.

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