04/06/2012

Aos meus amigos

Um amigo querido aconselhou-me há alguns dias a fazer terapia. Ele não é o primeiro, nem o único, e provavelmente não será o último a dizer-me o mesmo. Rio-me e digo-lhe que não. Mas ele não sabe os motivos da minha negativa. Escrevo para que saiba. Até porque foi enfático na sua recomendação.

Tenho a pretensão (veja bem, meu amigo, que é apenas pretensão) de poder encontrar alicerces em outros lugares. Lugares chamados amigos. Talvez porque a única experiência de terapia na vida ter-me deixado uma impressão estranha, embora eu tivesse 5 ou 6 anos de idade: guardei o nome da psicóloga, que me perseguiu anos através de qualquer sonho que eu tivesse, às vezes metamorfoseada num gorila imenso que me furava impiedosamente com um polegar desproporcional. Há poucos anos, numa reunião de antigos comunistas numa minúscula aldeia portuguesa, a meio do Alentejo que acolheu tantos clandestinos, ouvi-lhe o nome. Encolhi-me aflita, rejuvenescendo até aqueles incômodos 5 ou 6 anos. Gelaram-se-me os pés, e logo, com a inevitabilidade dos encontros marcados, vi-me à sua frente. Elisete deu-me um abraço com toda a força de seus braços, forte, duradouro, como se sentisse intensa felicidade de ter participado da "salvação" daquela que era criança desajustada e agora lhe reaparecia mãe de família, realizada - com o ar de felicidade que os nativos de sagitário sabem tão bem exibir mesmo quando estão emparedados dentro do vazio mais escuro. E eu achei-lhe graça, retribui-lhe o abraço na mesma medida embora os pés continuassem frios. Mas isso não fez com que pensasse seriamente em fazer terapia.

Vejo, pelas experiências que outros compartilham comigo, que é bom. Que faz bem. Que alivia, permite que se vejam de si mesmo lados que sozinho não se enxerga. Que faz crescer. Amadurecer. Mas eu gosto de pensar que conto com meus amigos para isso, aquele tipo de amigo que diz o que sente, aquilo que talvez até não devesse, mas precisa.  Por amor à amizade que nos temos. Diz o que sabe irá magoar, mas que eu preciso ouvir. Alerta. Acolhe. Avisa. Pontua. Assinala. Investiga. Perspectiva. Às vezes impiedosamente tudo isso ao mesmo tempo. E depois alcança-me a manga da própria camisa para que seque e embale as lágrimas, num tempo que é só nosso e não tem medidas.

Imersa numa espécie de solidão nova, tenho amigos que me falam do além, que se personificam em palavras e folhas de papel; amigos que conheço, e reconheço, através da escolha de palavras que fazem, da sua observação do que poderia ser eu própria, assumindo as dores e os nomes de outras pessoas. Esses amigos, camuflados em livros, criam em mim uma relação onde espaço e tempo não existem, por decisão unânime de todos nós. Rodeiam-me de sabedoria tecida em formas simples e complexas, parágrafos que preciso ler e reler, a cada nova vez mais atenta, como se estivesse dentro da aula em que me ensinaram o "close reading". O ler de perto. O ler dentro. O ler cada palavra, cada letra. 

É dessa forma que penso e olho hoje meus amigos: essa forma de amizade que chamo de "close friending". Tenho sorte, muita, de ter amigos assim ao redor. Na relação com cada um deles, construo-me a mim mesma nessa escuta próxima, atenta, miúda; vejo-me de outros lados, através de seus olhos que refletem parcelas que as superfícies que uso para me ver não conseguem. São amigos inteligentes: riem-se quando assumo os papeis que conhecem tão bem, quando lanço mão do arsenal de máscaras que eles, argutos,  percebem. Encolhem os ombros e fazem-me saber, sem palavras, que deixe disso.

E é claro que sei que é um jogo de espelhos, mas amigos assim também sabem que é um jogo de espelhos, e que a amizade é uma via em que se vai e se vem. Sabem o valor imenso da advertência amorosa, e não temem lançá-la na minha direção. Ainda que depois tenham de consolar-me e dizer-me que apesar de todas as minhas fraquezas, chatices, resmungos e erros, eu valho a pena. Porque há dias em que é preciso ouvir que se vale a pena, e quando você, meu amigo, me diz que preciso fazer terapia, leio nas suas palavras o pensamento posto amorosamente em mim. E a sua presença assim ao meu lado me faz dormir melhor.

30/05/2012

Moléculas estrelas


Fragmento encontrado numa gaveta de Júlia, a personagem suicida

"Não há diferença entre a respiração daqueles que dormem ao meu lado. Cada qual busca em mim pessoas diferentes, mas a respiração do sono mergulha-os a todos numa mesma imensidão distante. Acordo e olho em volta, e estou sozinha diante desse mar que não se altera. O horizonte está à mesma distância sempre.

Quem dorme ao meu lado crê ter visto aquilo que sou e desejo - mas não há nada entre nós a não ser essa respiração pausada, lenta e inconsciente. Todas as palavras que brotam ao lado dos que dormem precisam ser esfregadas desse sal transparente e áspero que se lhes agarra, o suor das almas imersas no sono, arrepiadas e aturdidas das presenças alheias. É preciso ocupar-se, no dia seguinte, da sua limpeza, da água que livre o corpo dos destroços do espírito, dos reféns feitos poeira por entre as janelas da noite, e poder revisitar-se outra vez sem medo, sem culpa, sem temor. Só água.

Como moléculas impregnadas daquilo que passa e jamais fica. Moléculas de densidade móvel, que se esvaem quando se espera o contrário. É um erro, esperar qualquer coisa. É preciso ficar-lhes a salvo, sobreviver à causticidade agreste com que se impregna seu núcleo. Querem-se doces apenas enquanto abertas. Depois, quando se fecham, quando decidem dedicar-se aos seus afazeres mundanos, distanciam-se, embrulhadas firmemente num esquecimento de agruras calmas. Calmas, mas ainda assim agruras.

Fazem crer, sem que se dediquem a isso, que suas membranas são permeáveis - mas acontece apenas quando e se querem. Não há entrega incondicional entre moléculas; selecionam dentre o que se lhes oferece aquilo que querem, e descartam sem o instinto da piedade o que não lhes parece útil. Ainda que seja, e não o saibam: porque moléculas não possuem órgãos de audição definidos, nem estão empenhadas em saber das suas vizinhas por outros meios. Tateiam suas presas com as fímbrias dos seus tentáculos e engolem-nas como peixes sedentos, matéria que se amalgama à sua pele transparente e a torna mais brilhante, mais potente, mais tentadora.

As almas que se permitem a entrada de moléculas assim precisam precaver-se, ainda que a precaução seja sua própria antítese. Precisam, a todo custo. Para que não se incendeiem a ponto de não reconhecerem as próprias cinzas. É preciso, urgente, que marquem a si mesmas com a cor que a só elas pertence, a única que sobrevive à queima em alta temperatura. Depois, no esfriamento dos dias que se seguem, abrir os olhos para os sinais da fênix que vive em cada qual, dispostos de maneira peculiar dependendo do estado do céu. Abrir as asas à ave, caso não solte as últimas cinzas, limpar-lhe o bico para que se alimente dos restos de si mesma, uma arqueologia de morte. Um desafio e a benção da memória. Para quando a próxima queima se aproximar. Porque as almas que se permitem a entrada de moléculas assim são desta forma: de queima em queima, de renascer em renascer.

Aqueles que dormem ao meu lado são moléculas soltas num universo sem forma, pedaços de mim mesma espelhados no outro, criaturas como crateras, poros em expansão por dentro das minhas vísceras, estrelas a tantos anos-luz de distância que não se sabe se vivem se morrem. Moléculas estrelas, que se apoderam de meus melhores bocados, que os engolem sôfregas, que transitam pelas galáxias da linha do céu, que não se alteram e me devolvem de outras cores. E eu permaneço quase a mesma, forma plástica no horizonte inalterado, os pés sendo engolidos pelo avesso das moedas de troca, a alma cheia dos pontos de luz da estrela que explode."


Imagem: Betelgeuse, supergigante vermelha da constelação de Orion, a 1270 anos-luz de nós.

28/05/2012

A cidade nova XII - o abacateiro de seu Ambrósio

Até agora, só conhecia seu Ambrósio por dentro. Por dentro do seu corpo debilitado por uma sequência de pneumonias mal curadas. Os muitos raios-x que encontrei no armário de um dos quartos aqui de casa mostram-me as suas costelas estreitas, os finíssimos véus brancos em alguns pontos dos seus pulmões. Passei um bom tempo olhando-o, assim que cheguei, tentando relacionar-me com essa pessoa ida.

Seu Ambrósio morava na casa onde eu moro. Dona S, aqui na casa do lado, já me contou que era homem de gostar de árvores, uma espécie que ela parece não entender muito bem. Duas casas mais abaixo, dona F diz-me que seu Ambrósio vivia plantando mudas na calçada, que alguém arrancava durante a noite. E ela faz aquela cara muito óbvia de que desconfia, justamente, de dona S, tamanha a aversão que tem a folhas sujando a calçada. "Como se folhas fossem sujeira, nunca vi tanta vontade de limpeza", completa a desconsolada senhora, que me parou na calçada para saber, preocupada, se eu cortaria ou não o abacateiro do quintal. E abre um sorriso quando lhe digo que o quintal foi justamente o que me conquistou, com seu abacateiro de mais de 50 anos.

Seu Ambrósio era enfermeiro; trabalhou muitos anos no posto do INSS de Araraquara. Fazendo curativos e coisas assim, pelo que me contou dona S. No dia em que fecharam o ambulatório, não teve dúvidas: abriu a sua casa para quem precisasse dos curativos, sem cobrar nada. Ocupado só com a necessidade do outro. É aí, creio, que reside a diferença entre preocupar-se e ocupar-se: na ação. Naquilo que migra do pensamento e se transforma em visibilidade. Acho que eu andava à procura do coração de seu Ambrósio por entre as costelas radiografadas.

Sua esposa, dona Djanira, pertencia à Assembleia de Deus. Levantava-se todos os dias uma hora antes do necessário (aos olhos do mundo) porque havia muita gente no mundo que precisava da oração dela, e ela usava pelo menos uma hora para essa tarefa, enumerando essas pessoas e lançando seus nomes na direção de Deus, para que ele as amparasse na sua inextinguível glória.

É Jane quem me conta tudo isso de olhos cheios de lágrimas. Dona Djanira era tia dela. Toca a campainha de casa porque precisa cobrar a laje que me vendeu, e eu esqueci de pagar. A laje que agora cobre o quartinho onde dona Djanira rezava, percebo. Todos os dias, sem um sequer de descanso. Uma vizinha de fundos adoeceu, certa vez, e dona Djanira, aflita por ajudar, fazia faxina na casa toda semana. Queriam pagar-lhe, mas ela sorria e dizia que era um serviço que ela fazia melhor só pelo prazer de ser útil ao outro., mesmo que a artrose de seus dedos lhe doesse à noite. "Ah", dizia, "Ambrósio cuida disso pra mim." E sorria, consigo até imaginar que um sorriso alquebrado de dentes. Jane nem quer entrar, diz que vai emocionar-se muito, e precisa trabalhar o dia todo. Fica feliz só em saber que eu gosto de saber. E eu prometo-lhe uma crônica - promessa que ela não entende, mas assim mesmo é o que posso fazer.

Entrego-lhe os cheques de pagamento e de repente dá-me um abraço, enxugando antes as lágrimas com as costas da mão. Diz-me que com certeza serei feliz nessa casa, porque durante décadas e décadas abrigou duas pessoas que faziam o bem sem olhar a quem, e sem querer ter retribuição. Não era nem questão de  esperar retribuição, mas de querer mesmo.

Aos poucos vou reconstruindo a imagem desse casal que deixou tantas marcas pela casa, e que se entranham na minha vida de pouco em pouco sem motivo aparente. Olho o abacateiro de seu Ambrósio, e as dúzias de abacates que caem prodigamente ao chão todos os dias. Certamente seriam outros, estes dois velhos, e não aquilo que ouço deles  agora, e é bom pensar que as marcas que deixaram no mundo fazem jus àquilo que havia de bondade neles. Que os tropeços, os desajustes, as torpezas ficaram no passado que se esquece, e que sobraram os dias bons, os gestos bonitos, as formas gentis de se ser humano. Coisas que inspiram a semana que começa.

20/05/2012

Dos advérbios

Dizem-me que esqueça os advérbios que uso. Aquelas palavras invariáveis que modificam as ações nas suas circunstâncias. Sejam elas quais forem. Palavras que nunca modificam as coisas, mas aquilo que fazemos com elas, os verbos da vida. Normalmente reajo com docilidade a esse tipo de conselho. Reajo atendendo. Até porque percebo, neste, um tom de advertência, mais nos olhos de quem diz do que nas palavras em si.

Mas de repente, quase como se num movimento que não domino, ao contrário do que busco, fervilha ao meu redor a inevitabilidade do que é invariável como o advérbio. E me apavora, porque é fixo. Imutável. Poluem-me todos os quase, todos os aos poucos, todos os além, todos os em volta, embaixo, ao redor, aquém, atrás, dentro, em algum nenhum lugar. Todos os quem sabe. E em especial todos os -mente, que são tantos e não transformam nem variam o íntimo do ser das coisas. Apenas o que fazemos com elas.

A meio da madrugada, uma junção de letras que se compõem a céu aberto para me oferecer, de bandeja e em excesso, uma palavra que desconheço: vicariamente. Martela-me por horas, tento mantê-la afastada para dedicar-lhe tempo mais tarde, quando o tempo haja, quando o sufoco ceda, quando possa encontrar-lhe solução, dicionário quem sabe.

Vicariamente diz daquela capacidade que se tem de obter prazer a partir da experiência de prazer do outro. Ou sublimação. Ou conhecimento. Algo que faz as vezes de outro, um lugar em que nos colocamos usufruindo em plenitude aquilo que o outro perfaz. Sorrio, inevitavelmente. A sina de sempre aproxima-se da minha pele, aquilo que pertence ao outro e me com-penetra, aquele estado de alteridade que frequentemente me pergunto não será o que acelera a construção da humanidade em nós, mais do que a autoridade do conhecimento que se obtém (ou se julga obter) por si mesmo. Quando fazemos as vezes de nós mesmos.

Como se à entrada de uma caverna inexplorada, preciso de fato deixar os advérbios tão abstratos guardados, ajustar o foco nos substantivos da vida, porque os verbos que me cercam não dizem, mais ludibriam e sufocam. E deixar os advérbios, ali, de lado e em silêncio - como fazem aqueles se entregam e assumem o lugar alheio como seu próprio. E se satisfazem e são felizes desse modo, vicariamente.


Imagem: advertência à entrada de uma caverna na Austrália. Como se um portal.

17/05/2012

Exercício - a flor

"Júlia chega tarde, tão tarde que nem consegue desculpar-se. Em cima da sua mesa há um vaso de flores azuis e brancas, que a sua avó chamava de forget-me-not. Ela sabe que há um nome em português, mas não consegue lembrar-se.

Desconfia que quem as enviou quer que seja essa a mensagem. Que ela não o esqueça. E Júlia sabe também que o nome da flor em português fala de ouvir, e sua mente embaralha-se querendo lembrar-se, os primeiros sons da palavra brincando de esconder-se debaixo da sua língua. E Júlia sabe que não deve esquecer as palavras que ouviu, e que esse forget-me-not cantando azul em cima da sua mesa significa que aquilo tudo que ouviu, tudo aquilo que se gravou em sua mente e que não a deixa sossegar e que ele disse junto a seu rosto quando achou que ela dormia, são palavras para não esquecer, para serem guardadas dentro do seu ouvido, em algum recôncavo que as amplifique de vez em quando. Quando ela arriscar esquecer-se, por exemplo, e arriscar perder-se entre casa e trabalho, e arriscar pensar que talvez nada valha a pena e que talvez apenas o nada valha alguma coisa, pouca pouca coisa.

Júlia desvia seu olhar dos papeis à sua frente para as pequenas flores azuis. Tenta lembrar-se do nome outro, que lhe traz a Grécia mas não sabe a razão. Apenas a Grécia, o branco das colunas projetado no céu tão azul quanto o mar atrás de tudo. Mas nenhuma palavra, só imagem e azul. Por que de repente a sua memória fica tao arredia? Por que se esquece de coisas banais, tão banais como o nome de uma flor? E de repente vem-lhe uma necessidade imensa de correr até onde ele está e pedir-lhe colo. Talvez tenha sido o azul. Ou a pequenez de cada flor. Ou o sentir-se desprotegida, a pele nua diante do aço da manhã. Colo, ela pede entredentes. Baixinho, apenas o suficiente para se ouvir dizendo a si mesma a palavra, duas, três vezes. Colo, naquele sentido de ainda verbo latino, e de novo a sua avó segredando-lhe a vida por trás das palavras. Colo no sentido de cultivar, de constituir morada. No sentido de ser cultivada, preparada, o amanho da terra que são os seus ossos, o passar do arado por entre os espaços das suas costelas, o lanço da semente em suas covas, a chuva que faça brotar o plantio. E a colheita, o corte, o arrancar: colo em que ele a cultive e colo em que se abaixe para recolher os frutos quando for hora. E, tendo-a plantado e colhido, que forme sua cabana junto às dunas de areia quente, e que aí estabeleça a sua morada. Sem que os ventos a demovam nem o removam. Dentro de si, que nada precise ser aparência, apenas essa sensação de ser e pertencer, de morar em algum qualquer canto.

O chefe observa-a do outro lado da mesa. Júlia endireita-se na sua cadeira, ajeita-se diante da mesa e coloca seus fones de ouvido. Recomeça o trabalho abandonado a meio, atrasado como ela. Farejando as possibilidades de fuga, como sempre. As flores olham-na com seu olho amarelo. E a palavra surge-lhe leve e sonora dentro da boca seca, fazendo com que seus olhos se fechem como se lhe sentisse o gosto entre os dentes e as gengivas: miosótis."


15/05/2012

A cidade nova XI - os ovos

Dona S. abordou-me há alguns dias na porta de casa, quase eu entrava, quase ela saía. Costume seu, não me incomoda. Gosto de observar os costumes alheios, pensar quem seria eu fossem meus esses hábitos que preenchem os outros. Com um psiu acompanhado de um movimento sutil da mão magra e rugosa, aproximou-se de meu ouvido para cochichar um conselho. Sobre comprar ovos. É um nunca parar de espantar, esta minha vizinha.

Diz-me, mais do que pergunta, que (logicamente) comemos ovos. Respondo-lhe que sim, achando graça que presuma em vez de perguntar, fazendo de conta que perguntou. Contente, aperta os lábios e meneia a cabeça, confirmando-me que de fato já sabia.

- "Pois então, não sei onde que você anda comprando... mas os ovos que valem a pena são os do Wanderley". E sorri um daqueles sorrisos satisfeitos sobre os quais algum poeta já escreveu: não é possível saber se a satisfação lhe vem de si mesma, do que diz ou do fato de ter podido contar a alguém. Eu rio-me, mas só por dentro que não a quero ofender. E pergunto, como que confirmando, como que querendo que diga mais: "Do Wanderley, dona S...?". E ela: "É, filha: são um pouco mais caros, mas são grandes. Ovos? Pra mim, só os do Wanderley".

E aponta o barzinho do fim da rua com o dedo esticado, e o Wanderley varrendo com vagar e método a calçada da sua esquina. Wanderley é um ser cheio de fleuma. Abre o bar quando quer, se quer e se lhe der na telha. Há uns horários escritos na parede, mas não representam a realidade, são só um norte, conforme me explica. E há alguns horários sagrados, em que nem ele nem o bar são de ninguém: entre as 13h e as 15h, não me chamem, não me peçam, não me incomodem. No resto do dia, vê tudo do seu posto avançado de observação da rua, o banquinho alto atrás do balcão antigo, de azulejos velhos trincados na beirada, a pedra de mármore rugosa de tão velha cobrindo a superfície, abrindo espaço para a estufa onde se encaixam uns nos outros os melhores torresmos da cidade. Wanderley vive atento, cumprimenta todas as vezes em que eu passo na sua porta, como se fosse a primeira do dia. E quando paro, um dia ou outro, sorri e diz: "Hoje seu dia foi cheio, hein?". Assim, como se soubesse muito da minha vida.

Dona S. não me larga. Quer garantias de que também eu, a partir de agora, farei jus aos ovos do Wanderley. E a sua maneira é peculiar, como em tudo é peculiar esta minha vizinha:

- "Mas, viu? Você é quem sabe... quer pagar mais barato, pra ter ovos menores? Problema seu. Agora, se me pedir ovo emprestado, faz favor de me devolver dos bons, é só pedir pro seu menino correr na esquina e comprar do Wanderley."

14/05/2012

Exercício: as cartas

"Armindo,

Tudo isto que abres em mim, nada mais é do que pura entrega. Porque não cabe em mim tudo o que sinto, preciso entregar-te. Porque não há espaços vazios. Porque as superfícies todas que trago em mim são o teu corpo, o ar em volta é o teu hálito e eu mesma não respiro senão o líquido dos teus olhos. E porque a distância invade-me como as ondas do mar, como a areia da infância a arranhar-me as costas às margens da lagoa, a corrente na direção do mar a querer arrastar-me, e a areia a querer-me manter à margem, na margem, num destino fixo. Como se tivesse combinado algo comigo, mas eu não me lembrasse.

E eu mergulho, e eu deixo-me levar, como folha desfeita, molécula de entregas secretas expostas à água salgada. Todos os dedos que me vibram recobrem-se da tua pele, e nem grito, nem me debato, porque sou em mim o que és. E não sei como conter esta avalanche, e nem quero, e a vida que vivo acena-me de outra cada vez mais longe margem, um eco do que deixo de ser desde que as tuas mãos me erguem cavernas desde então meu refúgio. Diz-me: quem é esta que afloras e não conheço, esta pedra escavada e atravessada de sangue, granito líquido?

Tua,
Isaura"


(Tempestade de neve no mar, William Turner)

Amigos no feriado


À Vera e ao André

Visito um casal de amigos, no último feriado. Amigos antigos, com aquela qualidade rara de nos olharem nos olhos e nos verem as pontas da alma. De perceber nuances que outros, mais recentes, podem nem ver passar. De sentir as intranquilidades que assolam os barcos antes do embate nas rochas. Por isso, não é preciso dizer nada, e em um instante, como em volta de uma fogueira, um céu de estrelas iluminando as ideias, é dito o que precisa ser ouvido, e é só.

Olho meus amigos e penso no quanto a maneira como a vida se escolhe se modifica ao longo dos anos; o quanto depuramos e transgredimos as certezas de um dia para vivermos o seguinte; o quanto nos afirmamos a partir de negações internas; e o quanto gostamos, ou não, do caminho que seguimos. As escolhas modificam-se, assim como a maneira como olhamos em volta para o outro, para nós mesmos; a maneira como consideramos a entrada do outro na nossa vida, o como nos abrimos em espaços que sequer sonhamos antes para que ele se faça em nós. Esse outro que nos reconstrói, que nos oferece com um sorriso de ternura a sua visão de mundo, completando e melhorando a nossa; esse outro que é nossa possibilidade de reconstrução da própria humanidade, nossa salvação, renovação da capacidade de amar, enriquecimento mútuo.

Com todos os rombos, todas as tempestades, todas as marés que sobem e descem, é um alento passear no passado e encontrar antigos futuros transformados em presente real. Mesmo com as rugas, as marcas, as dores todas do corpo que não se reconhece, somos mais que um simulacro do que éramos antes. Olhar para amigos antigos, perceber dentro dos braços o mesmo abraço, dentro dos olhos o mesmo sorriso, rir das aventuras passadas e perceber o quanto vive de ingenuidade dentro das nossas certezas: em tudo, formas de reviver e olhar a própria presença, acendendo a essência que dormia.

(Foto: Estância Ecológica Canto da Garça, em Juquitiba, onde moram a Vera e o André.)


Exercício - no analista


Júlia precisa inventar-se, nos últimos tempos, várias vezes por dia. É o que diz a seu analista, nessa sessão que começa a meio de um dia de névoa que parece não se desfazer nem na água do rio que corre ao lado do prédio do consultório. Júlia levou consigo, para dentro do elevador, uma alma enevoada, com ela subiu os 6 andares nessa máquina lenta de ferro, e com ela entrou na sala estreita. Inventar-me olhos, pele, percepções do mundo que de repente não se referencia a si mesmo, diz ela. Porque abandono seguranças antigas e nesse de repente do mundo mudado, pergunto em volta onde o apoio do pé? Não sei se um começo de queda ou se um braço estendido agarrado à outra margem do abismo. Que momento é este? Não sei se corro no vazio, alimentando meus passos da esperança (a doce ilusão) de correr em terra firme, e estou prestes a cair e não sei, e de repente de novo cada vez mais longe dos galhos sobreviventes das árvores, aqueles estendidos desde a margem aos náufragos de passagem. Que momento é este?

E seus braços fazem os gestos dos galhos quando perguntam ao rio e seu rosto molhado de lágrimas é o próprio rio na passagem desse destino desconhecido. Júlia afasta o cachecol mas o frio diz-lhe que mantenha o casaco junto ao corpo. Não está frio, mas ainda assim Júlia sente frio.

E o analista intervém. Inventar no sentido que lhe confere a palavra raiz: criar a partir dos restos do que morreu. Mas Júlia diz, não reconheço com facilidade as mortes à minha volta; nem com facilidade lhes levo as velas de defunto, as ladainhas das carpideiras, o caixão, os olhos fechados, as mãos contritas unidas no centro do peito oco. Olho para dentro delas e devolvo-me um vazio, um não ser que não sei se alívio se tormento. Se não estão aqui, para onde foram, essas mortes? E um vazio de silêncio opaco estende-se entre o divã que é poltrona e a cadeira que é cadeira, onde o corpo vestido de cinza do analista a olha com compaixão.

Eu sei, diz Júlia antes de levantar-se e desistir da sessão e dizer que não sabe se voltará um dia, ou se essa noite será o seu último passado, eu sei: crio-me a partir dos restos do que morreu em mim, e nessa arqueologia da alma, vejo que outras coisas morrem, e quero correr com elas para a reciclagem, mas elas dizem-me que querem-se mortas e enterradas, e que eu obedeça o escorpião que me rege e lhes dê o que é da sua natureza. A morte. E o desenho dos seus dedos na maçaneta ainda está lá de manhã, quando o analista desce as escadas para comprar pão e leite. Quando voltar, dentro do elevador, sentirá a presença da névoa, e os menores cabelos da sua nuca se arrepiarão de frio. E a maçaneta devolverá o calor à sua mão, ao entrar na sala estreita e sentar-se na cadeira que é cadeira, vestida de cinza como ele próprio.

(Desenho de Ale Félix, que não tem nada a ver nem com a Júlia, nem com seu analista.)

12/05/2012

Dos diários III


"As coisas que estão mortas aliviam-me as próprias curvas, os abismos em que se precipitam os cada vez mais cheios rios que escorrem sem tempo por dentro das minhas veias. A cada cair, aumentam o seu caudal, o tamanho da sua força. A minha alma, suspensa na margem, está toda molhada da sede que avança.

As coisas que estão mortas são silêncio. Nada as interrompe nem altera. Jazem parecendo quietas, invisíveis debaixo do chão, sem ar, sem tempo, sem escolhas.

As coisas que estão mortas só foram, e as marcas que deixaram são tão invisíveis quanto elas, agarradas à terra debaixo do chão.

As coisas que estão mortas não se ferem, não se movem, já não são, e ainda assim sente-se a maciez do toque do que foi e permanece no que é."
(Dos "Diários de Hope", a personagem em busca de contorno)

11/05/2012

Exercício - o sonho


A mulher acorda com uma palavra entre as pálpebras. Lezíria. Vê as letras através dos cílios, dentro daquele tempo diminuto que vigora entre sono e vigília. Nem sabe exatamente se é assim que se chamam as margens transbordadas dos rios das planícies quando chove além do previsto. Ou quando chovem as águas certas no tempo certo. 

Lezíria. Há um traço de infância por entre os espaços das letras.

Deixa-se estar na cama, cortinas ainda fechadas, um azul filtrado pela cambraia branca. Dentro do seu sono há um árabe campino por trás da palavra – a galope, barrete vermelho, sua vara de tocar o gado erguida como lança preparada para a guerra. Não se lhe veem os olhos, nem a boca, transida num esgar amargo de vida mal preenchida. Atravessa o campo alagado, os cascos respingando água nos olhos entreabertos da mulher que ainda agora dormia. As margens do rio não param de transbordar, a lezíria inundada, o rio escorregando pra dentro da terra, sem força, sem peso, sem pressa. O mais fértil dos mundos debaixo d´água.

Quando as águas refluem, a terra encharcada abre-se à semente. Sua e contrai-se, a água em si que se seca, a terra magra, escura, como ossos que se desenterraram e secam ao sol. O campino toma emprestado o vigor que o rio lhe concede, e atravessa os campos cultivados com tranquilidade e orgulho, seu cavalo de cabeça baixa sem nada respingar.

A mulher vê-se atravessando a ponte de ferro por cima da lezíria e do rio. É ela, mas está magra e ossuda como a terra. Reduz a velocidade a meio, os campos alagados a seu lado virando-se sobre si mesmos para vê-la passar. A mulher freia e para. Desce e anda pela margem; a chuva que já se sente inchando o caudal do rio, as beiradas de bocas abertas à água que se anuncia. A colheita está feita e no campo só sobra o restolho amarelo queimado de sol. A mulher anda sobre ele, e ele estala sob seu peso. Fios de água escorrem por entre as hastes quebradas; molham-lhe as pernas e fazem-na voltar à ponte.

As cortinas ondulam na janela, abandonando a sombra do campino que já é passado. A mulher levanta-se, o lençol em desalinho, os olhos encharcados como lezíria em flor. Como um dia após o outro, a chuva, a semente, a colheita.

08/05/2012

Notícias do canteiro

Perguntam-me sobre a obra. Aliás, perguntam como ficou. Como se alguma coisa por estas bandas estivesse no ponto de "ficar". Só rindo, mesmo! Não: tudo movente, nada fixo, como queria David Mourão Ferreira, o poeta português perito em lapidação de palavras e formas. Lapidar a vida: deve ser essa a lição que preciso aprender.

O ponto da obra, então. Ontem o céu se entalou entre os palitos de laje. Faltaram as escoras, por isso mais um atraso no advento do fim. Em breve (espero) haverá um teto, mas por enquanto o que nos cobre é esse céu azul pleno, semeado da esperança de que não chova. Roupa? Não se lava mais, perdeu-se o varal, a tomada... Lavar o chão? Sem sentido, igual lavar calçada. Deixam-se as coisas como estão. Assim como a alma, atropelada pelos carrinhos de cimento que circulam até mesmo de noite e até mesmo quando o pedreiro não vem, espremida por todos os lados da vida.

Estranho viver num canteiro de obras. Mesmo sem mania de limpeza, irrita o pó por todo lado, brincando de esconde-esconde com o bom humor, atrás dos tijolos que aguardam a parede que não vem, a fome, a sede, tudo agoniado do lado de dentro da gente. Um teste de paciência para o tempo que passa tão devagar, o dia de amanhã custando a chegar.

05/05/2012

A cidade nova X - o presente

Dona M. fez aniversário dia 25 de abril. Achei tão simpático (e revolucionário) fazer aniversário nessa data que resolvi visitá-la e levar-lhe um presente, e ainda umas flores. Flores, por aqui, é fácil encontrá-las; a duas quadras do cemitério, não faltam floriculturas em volta. Dia bonito, vou a pé escolher uma orquídea chocolate, suas flores miúdas delicadamente traçadas a marrom escuro. Bonito demais. E grande. Sorrio satisfeita, não tem coisa melhor do que dar presentes aos outros.

Volto para casa e embrulho um de meus livros. Não tenho papel, então o embrulho será invisível, mas a fita que o amarra fará as vezes do movimento de abrir que um presente demanda. Presentes abrem-se, deixam-se entrar, percorrem-se com os olhos, com as mãos, com a vontade. Deixam-se ficar ali, empoleirados em algum lugar da sala, e a cada vez que a vista pousar neles, quem fez a oferta materializa-se. Oferecer multiplica-se em quem sabe receber.

Dona M. espreita de dentro de casa com um sorriso espantado, e só então me dou conta de que talvez o presente em uma das mãos, o vaso repentinamente descomunal na outra, a visita a essa hora em que ninguém se visita, tudo isso junto, seja demais. E coro, vermelha de súbita vergonha de ter-me preenchido tanto da vontade de agradar ao outro que de repente tenha me perdido dos limites que se respeitam em situações assim. Mas o sorriso estampado de Dona M. não é desse tipo de espanto, mas da vida não lhe trazer presentes e flores todos os dias para diante de seu portão, que ela nem consegue abrir de tão atrapalhadas ficaram as suas mãos. E eu, que tinha pressa, e precisava só dizer-lhe com um gesto o quanto me alegrava e confortava a sua presença na minha vida, vejo-me rebocada para dentro dessa casa desocupada de quem já morreu. Passeio pelos quartos que se mantêm como se seus ocupantes fossem voltar a qualquer momento, como se os filhos que se foram pudessem sonhar ainda nesse travesseiro macio à meia luz, como se o marido morto pudesse perambular ainda e criticar-lhe as compras feitas sem raciocinar, diria ele. Dona M. conduz-me pela mão e eu deixo-me ir, porque eu não gosto de não deixar-me ir. Permito que entre em meu tempo e o desalinhe, que agarre a minha mão e a faça percorrer a sua vida, o seu passado, a colcha de presente que ganhou da nora viúva e de que não gostou, mas usará porque não importa o seu gosto, importa retribuir. Porque presentes, diz-me ela, são pedaços do outro, e pedaços do outro guardam-se para que o outro não se falte. Filósofa, minha vizinha.

Dona M. gosta tanto de receber presentes quanto de os dar. Mostra-me um freezer cheio de doces que não pode comer por causa da diabetes, e que faz para dar aos outros. Um armário cheio de panos de prato debruados a crochê, para quando perceber que alguém pode gostar. E conta-me tantas histórias que perco a hora, perco o compromisso, chego atrasada. Mas passo o dia sorrindo, pensando em Dona M. que pensará em mim no seu caminho da sala pra cozinha, e tropeçar nas flores, e da cozinha pro quarto, quando se deitar à noite, colocar seus óculos e me deixar embalar-lhe os sonhos.


26/04/2012

Side writing

O mapa da cidade em que nasci, Caldas da Rainha, é cheio dessas encruzilhadas surpreendentes a que chamamos (ao menos, em Portugal) becos. Beco do Forno, Beco do Estragado, Beco do Arneiro, Beco da Fé, Beco da Fonte, Beco do Borralho. Não são lugares de passagem, mas de ficagem. De entrar e sair pelo mesmo lugar. Não conduzem, são caminhos sem saída. Exatamente como alguns dos textos que me sucedem a meio do processo de criar e que não vão para lugar algum, sequer pertencem. Apenas aparecem e ficam, e me deixam estar quieta a observar detalhes de uma cidade interna que se constrói aos poucos, da memória dos tempos, da vida que pulsa por baixo do que é aparência. É de becos cheios de letras que a minha escrita tem se alimentado ultimamente.

E porque a palavra beco não agrada a muitos (já percebi), decidi chamar a esse processo de side writing. Assim, em inglês, que é como pensei no assunto, e porque não consigo chegar a nenhuma tradução que me deixe satisfeita. Side writing pode ter um efeito extraordinário sobre a criação de texto. Da seguinte forma.

Imagine-se submerso num ambiente qualquer de ficção - sendo, portanto, ficcional, situa-se naquela linha nem tão imaginária entre a sanidade e a loucura. As coisas são, mas não existem. As pessoas vivem, mas ninguém ainda as vê. As situações acontecem, mas não são palpáveis. E por aí vai.

Você está, então, imerso nesse ambiente paralelo à sua vida normal, aquela que inclui (existentes, visíveis e palpáveis) filhos, companheiro, amigos, supermercado, mecânico, almoço e jantar, roupa, vassoura, escritório, vizinhos, ruas, dentista, escola e esse looongo etcétera que você já desenhou para você mesmo. Esse ambiente outro, o da ficção, que se insinua por entre as esquinas dessa vida de fato, curva a sua vida como uma bola arremessada com efeito; faz com que o movimento usual se desvie um tudo nada, mas o suficiente para transformar-se em estado de alerta, inclinando imprevisível e irremediavelmente tudo o que você vive. Gerando angústia e premência. E assim se vai, o dia inteiro perambulando de uma janela a outra, inconformadas ambas de que não se lhes preste atenção plena.

Buscando solução para viver nesses dois universos sem prejuízo a nenhum deles, tentam-se formas de organização: estabelecem-se horários, rotinas, métodos e locais para a revelação completa dessa vida quase e tão real quanto a outra. Porque é isso que o universo ficcional quer: revelar-se e ser revelado. A todo custo. E de repente, naquele minuto tão esperado e aguardado, de repente de repente de repente não há nada dentro dessa vida para ser dito. Assim que há tempo, desaparece. Há só um branco, muito bem distribuído entre mente, papel e tela. E fica a ficção prejudicada, as personagens de boca aberta sem saberem as próprias falas, as ondas do mar paradas, os ciclistas espantados porque as suas pernas não pedalam. O coração, que se queria calmo e satisfeito, num turbilhão aflito.

É nessa hora, descubro nos últimos tempos, que é preciso sair da estrada principal e procurar os viecu - as vias pequenas, os becos, os caminhos que parecem não levar a lugar algum. Por isso esses side writing, por isso sair do arquivo principal em que se sucedem os capítulos da história, e ganhar tempo com detalhes e recortes tão ínfimos quanto uma carta de amor que se escreve, a resposta que se recebe, o arrumar de uma mala, uma página de diário, cenas do cotidiano de personagens que se nos colam ao corpo como visgo.

Os textos que se produzem nessa bola de efeito que decido chamar de side writing ficam assim, quietinhos. Lado a lado com a autoestrada em que a ficção se transformou. Alimentam-na, permitem que respire, que se afaste de si mesma para perceber-se melhor. Quase como se a deitássemos no divã, e puséssemos suas personagens em fila diante da porta do analista. Esperam ajuda para serem descobertas, para entenderem as situações todas que lhes tiram véus e cortinas da frente. Cada texto que pula dos meus dedos para a página é, creio, uma sessão bem sucedida.

25/04/2012

Exercício - a mala de viagem

"Acordas-me de manhã, ainda escuro, para que faça a mala. Segredas-me ao ouvido que não esqueça de levar-te - e por isso és a primeira coisa que ponho na minha bagagem. O lugar que elejo para guardar as coisas que não quero perder, a nenhum preço.

Agasalho-te com a toalha com que me enxugarei no primeiro banho em meu destino. Uma toalha densa como as tuas mãos, para que os poros da minha pele se aqueçam na tua lembrança. Uma toalha áspera, que me arranhe e dilacere como o fazem as tuas unhas ao me arrancarem do sono.

Do outro lado, esticadas junto às tuas costas aquáticas e lisas, as roupas com que me vestirei primeiro, quentes do teu corpo que não arrefece. E depois, aqui e ali, o resto. As poucas coisas de que precisarei numa mala para ir a qualquer lugar: uma roupa para o dia, uma outra para a noite. Uma para ir dançar, o sapato que não dói, um outro que levarei para caminhar nas madrugadas da cidade aonde for. Porque sem a tua presença a meu lado meu sono é pouco, minha noite é curta, a cama expulsa-me de seus lençóis. Percorro a cidade noturna, vestida com a roupa que se confunde com as esquinas, que não desafina o coro dos seres que vivem de noite e dormem de dia. Quando a madrugada for atropelada pelo sol, troco-me por uma roupa mais leve, do tecido dos sonhos que tenho acordada.

Um perfume, talvez. Leve, como a aragem que deixas ao passares por mim na direção da porta. Como nos dias em que me acordas e me tiras da cama, dando-me banho para me despedires e para que leve em mim a marca do teu corpo todo, os teus lábios pregados a cada pequena estreiteza da minha pele.

Mas primeiro, antes de tudo, quero e deixo que me acordes. Devagar, lenta e profundamente. Mesmo com os sentidos todos já despregados, fecho os olhos e finjo dormir ainda, para que insistas no meu acordar, e fiquemos ambos inquietos, despertos, sedentos já do dia em que eu voltar.

A mala, essa, pode esperar."





24/04/2012

25 de abril lat -21° 47' 40'' long -48° 10' 32''


Meia noite em Portugal.

Antecipo-me à madrugada porque, pela primeira vez em tantos anos, minha mãe não me acordará com o seu “25 de abril sempre!” às 4 da manhã de Lisboa. Por uma dessas muito raras coincidências, sempre pudemos, ela e eu, estender-nos um fio de telefone que nos fizesse lembrar-nos de que uma está e a outra também, e a liberdade sempre estará, todos os anos, desde 74 . Desta vez, porém, os fios de telefone não conseguirão encontrar-se, apesar de todas as tecnologias. E esta será uma madrugada mais longa, de repente, porque pensei nisso quando lá já é amanhã e aqui ainda é hoje.

Dentre tudo o que me habita e vive guardado atrás desse dia de primavera é provável que a maior memória sejam os versos que ouvia de pequenina, quando ainda não podiam ser cantados.  Versos de Manuel Alegre, entoados pela minha mãe, que gostava de ouvi-los na voz de Adriano Correia de Oliveira, faziam-me adormecer. Embalou-me muitas vezes com essas palavras, esse fado coimbrão revolucionário que às vezes aparece dentro dos meus ouvidos sem que eu tenha chamado por ele. Como se me dissesse, caso esqueça, quem sou e de onde venho. É bom, quando isso acontece, apesar do risco de surto melancólico...

Hoje de manhã, uma amiga querida mandou-me de presente um video de Mercedes Sosa cantando os versos do chileno Julio Numhauser, Todo Cambia. E este 25 de abril, tão diferente dos que madrugaram na minha vida nos últimos anos, muda tudo. Porque tudo mudou, desde a minha mãe que não telefonará até eu que preciso acostumar-me a estar mais sozinha do que gosto neste dia. Consola-me descobrir que até os Capitães de Abril, neste 2012, mudam, e se recusam a estar presentes na cerimônia oficial da Revolução, de tão longe veem que está Portugal daquilo que os moveu. E também ali não estará Mario Soares, e assim até a memória vai mudando num mundo que vai ficando de cores diferentes, e eu desisto de querer achar quais prefiro. Tantas voltas que o mundo dá, tantas que sequer as vemos. A algumas, só damos por elas quando nos ultrapassam e surpreendem lá na frente – aqui na frente. Quando tudo muda tanto que se torna irreconhecível, nós mesmos diante dos nossos espelhos – e, de repente, por causa de uma data, por causa dos cravos que aqui em casa já sorriem de dentro da jarra, tudo vibra e é pleno, justamente porque mudou, e porque tudo o que este dia nos diz é que as utopias podem ser realidades e tudo pode ser sempre diferente.

(-21° 47' 40'' long -48° 10' 32'': coordenadas de Araraquara/SP)





Trova do vento que passa
Manuel Alegre/Adriano Correia de Oliveira

Pergunto ao vento que passa
notícias do meu país
e o vento cala a desgraça
o vento nada me diz.
o vento nada me diz.

Mas há sempre uma candeia
dentro da própria desgraça
há sempre alguém que semeia
canções no vento que passa.

Mesmo na noite mais triste
em tempo de servidão
há sempre alguém que resiste
há sempre alguém que diz não.

Exercício - a resposta

"'Ah, meu bem', lê Isaura à sombra dos ciprestes, 'que pena não te ter agora junto à saudade.' E Isaura estremece porque ouviu a própria voz, oculta pelo tronco da árvore que lhe distende as costas. O silêncio do cemitério agrada-lhe - ali, ninguém a incomodará se chorar, ninguém virá perguntar-lhe porque fecha os olhos e se apoia na árvore esguia, imóvel numa espécie superfície de dor sufocada. Não: aqui está em segura e absoluta solidão, a não ser pela carta em suas mãos.

O envelope rodopia entre seus dedos, resistindo a ser aberto. A marca dos tipos da máquina de escrever passeia-lhe pelas pontas dos dedos. Suas unhas vermelhas ressaltam a brancura do papel e num de repente a lateral se rasga, para fazer nascer a carta  qual feto de dentro dela. O papel não escorrega. Isaura abre mais. Isaura tem paciência, não há nada em seus gestos que seja irmão da inquietude, da pressa, da ânsia. Não: Isaura está calma porque o tem entre as mãos. Em forma de papel, mas ainda assim entre as mãos, qual bicho que desabrochará entre as palmas, resfolegando e arfando como se no último minuto.

Os olhos de Isaura sorriem. Sorriem do segredo tipográfico, por que não uma carta manuscrita? Por que reescrever tantas vezes à máquina, só para um resultado tão perfeito, tão homogêneo, tão equilibrado, tão contido? E seus olhos sorriem porque no fundo ela sabe. No fundo, lá num lugar onde às vezes as coisas se escondem, ela sabe. As grandes paixões: Isaura guarda-as lá, e elas escondem-se, e querem enganá-la. Dizem que nada do que sente se aproxima do sentimento - que haverá outras coisas no lugar, que nem de si mesma ela se deve fiar, que dirá dos outros, Isaura preste atenção em nós agora, olhe só para dentro, agora. Mas os olhos sorriem antes de Isaura perceber que a boca se contrai. E nem ouve essas tímidas imprecações das paixões que a invadem.

E logo o papel segreda-lhe, lá de dentro: 'Ah, Isaura, meu bem.' E a tarde será curta para o amor que se desfia de todas as letras de Armindo. Isaura vai esperar anoitecer para voltar para casa, atordoada depois de todas as linhas."

20/04/2012

No avião, as poltronas



Braços de poltrona são terra de ninguém. Espaços de propriedade indefinida – ganha-os quem lhes chega antes com os próprios braços, quem é mais ousado e se atreve a deslocar o cotovelo alheio, quem tem a seu lado alguém que gentilmente cede esse estreito espaço. De vez em quando, há cotovelos que se permitem o toque, forma de permitir que ambos passageiros apoiem seus braços e viajem tranquilos. Cada vez mais raras, pessoas assim. Cada vez mais raro permitir o toque. Uma pena.

Indo e voltando de Porto Alegre, escolho sentar-me num assento do meio. Nem corredor, nem janela. Justa e sintomaticamente, são essas as poltronas que sobram para quem chega atrasado ao aeroporto, o que me oferece duas oportunidades de conhecer gente nova, e de perceber mais coisas a respeito de braços de poltrona, que é meu verdadeiro motivo aqui. Na escrita.


À minha esquerda, à janela, Sandra sentou-se armada de óculos escuros, revista e tablet. Armas contra intrusos, penso. Mas eu me levantei logo cedo com vontade de gente, essas barreiras não têm efeito qualquer sobre mim. Aliás, tornam-se mais é motivos. "O que você está lendo?", "faz tempo que usa tablet?", "lindos, esses seus óculos..." – levanto rapidamente uma série de formas de aproximação. Escolho a primeira, é a mais sincera.
Sandra lê “Os livros dos outros”, de Fernanda Young, que por sorte eu já li, e assim a conversa acontece de fato. Linguagem interessante a da Fernanda (assim mesmo, nessa intimidade de primeiro nome...), uma forma de angústia obsessiva bem trabalhada, as ideias entrelaçando-se aos poucos à nossa própria conversa. Sandra mora em Porto Alegre e vai passar o feriado a São Paulo. E pega o livro dela, e eu pego os meus “Contos italianos” de Górki, e ambas alisamos as capas antes de abrir os livros. No encontro de braços da poltrona, reparo que a pele de Sandra é morna e não refuga o contato. Sorrio para dentro do livro, antecipando o resto da conversa que virá.

Espio pelo canto do olho o homem sentado à minha direita. Marcelo veste terno, gravata, sapato social, cinto preto. Viaja compenetrado, deve ser um homem sério preocupado com o sucesso; a custo diz-me o seu nome e conta que é publicitário. Feriado? Não, viaja a trabalho, para ele não há feriados. Desliga o celular conforme pedem, fecha os olhos e dorme de forma instantânea, seu braço sequer percebendo que existe onde apoiar-se. Não vou saber mais nada de Marcelo. De Marcelo para o livro, e do livro para Sandra.

Conversamos sobre o impulso que é preciso para a decolagem, um esforço incrível de motores, tremor, barulho, excitação do voo que se aproxima e se torna êxtase recompensado: voa-se. Como se um orgasmo de nave, penso mas não digo. Conto até 10 assim que o trem de pouso larga a terra, porque alguém me disse um dia que é nesses segundos que o avião pode explodir. Bobagem, tenho quase certeza, mas ainda assim conto, e sorrio quando termino. Sandra voa muito, vai a cada quinze dias para São Paulo, onde vive sua namorada. Ela gosta, assim – talvez a relação não se desgaste, talvez a distância nos preserve, talvez a frequência não se intrometa entre a verdadeira vontade de sermos, e talvez assim prolonguemos a felicidade por mais tempo, quem sabe talvez nos amemos para sempre. Leio-lhe nas palavras uma melancolia urbana, que se parece com a de Young, numa contaminação gostosa da pessoa pelo que lê. Depreendo que sabe de fato ler, e bem; que se entrega às palavras e as deixa entrar dentro dela e fazer-lhe morada. Olha-me bem nos olhos, como se de repente se apercebesse de que era comigo que falava e diz-me que é isso mesmo, que é para isso que lê, para ser permeada pela palavra do outro.

Passa rápida, essa hora e pouco de voo. Conversamos pouco, depois dessa troca tão límpida. Porque nos debruçamos cada qual sobre as palavras dos outros, para nos contaminarmos e nos salvarmos de nós mesmas, das nossas prisões todas, nossos desgostos, nossos anseios, nossas dúvidas. Como se pudéssemos viver a vida alheia sem sair nem por em perigo a nossa. E ao fechar o livro sermos mais do que éramos, por contermos mais humanidade dentro dos olhos. É por isso, dizemo-nos em silêncio, que lemos. E à saída trocamos um olhar de despedida que ressurge aqui, no papel em branco, um sintoma do poder de criação dos livros e das pessoas que os leem.

19/04/2012

Sombras

Há muitos anos atrás, ouvi uma palestra de Leo Buscaglia. Tinha acabado de ler um de seus livros ("Vivendo amando e aprendendo", esse da capa original aí ao lado) e me sentia muito impactada pelo que ele tinha escrito, a maneira como olhava para as pessoas, para a demonstração de amor e afeto entre elas. Estava no meio de um momento difícil, o coração encharcado pela enormidade de um oceano inteiro que me separava de quem (me) amava. Foi difícil, viver aquela perda, e o livro de Buscaglia chegou às minhas mãos. Aliviou-me os olhos, acalmou-me o coração, fez-me chorar.

Hoje não são oceanos que me separam de nada; os aviões voam no meu céu e eu posso estar dentro deles. Estou segura (ou quase) de por onde meus pés de carne e osso devem ir. Mas há outras águas à minha volta, águas escuras, silenciosas, águas que se reconhecem e onde se quer mergulhar e não sair nunca mais - mas assim que o mergulho se esboça, as águas mudam de lugar, pouco afeitas ao serem mergulhadas. Ainda que sejam na realidade poças d'água e não oceanos, doem tanto quanto. Sufocam por dentro, sobem garganta acima impedindo o ar que precisa descer aos pulmões. E os meus pés de carne e osso se confundem, e acham não saber mais o caminho.

Não sei onde pus o livro do Buscaglia, não posso lê-lo agora de novo. Só posso lembrar-me das ondas de tristezas passadas, descobrindo que passaram, que foram avançando pela praia da minha alma, absorvidas a cada vai e vem pela areia que a preenche. Posso lembrar-me das dores que guardei, mesmo que não tenha aprendido a aceitar as coisas que passam, como os verões da infância. Coisas que parecem intermináveis, e terminam, e sem elas a vida volta ao que os outros dizem ser o normal. Que nunca parece o normal.

É difícil compartilhar os momentos de tristeza - as alegrias, as conquistas, as descobertas, o dia a dia do qual se extrai algum significado e aprendizado, é mais simples. Buscaglia insistia, de um jeito caloroso que só ele sabia ter, que os nossos afetos precisam ser abertos, entregues, completos. Que não se criem reservas nem expectativas. E que dentro dos afetos haja reconhecimento das tristezas, que se deixem transbordar tal qual fazem as alegrias, os êxtases, a felicidade pura. Mas o risco de contaminar o outro, de entrar-lhe pelos olhos e tumultuar-lhe o dia parece-me tão grande que sim, escrevo, transbordo-me - mas as coisas ficam por aqui, à espera de algo inusitado que as preencha de uma centelha que seja luz. Para que a sombra não impere absoluta.

Buscaglia é a minha finalmente centelha de hoje. E por causa dele consigo transformar este longo longo dia, porque aproximo o que sou de quem lê, num encontro de humanidade e transparência. Justamente as duas coisas que me afligem hoje, que me encharcam dessa tristeza que preciso deixar sair, vazar, escorrer de mim, como as águas dos oceanos todos que me cercam, embalam e dão sentido aos meus dias, mesmo os longos longos. Um paradoxo, sim - como tudo o que é amor.


14/04/2012

A cidade nova IX - a barbearia

Seu Devair está por aqui, nessa sua barbearia, desde 1958. Nos seus 77 anos bem vividos (diz), viu de tudo. Viu a cidade mudar em volta, viu a segurança ceder espaço às chaves, trancas, portões, cadeados. Viu a família minguar, as ruas crescerem, as modas mudarem. Já a barbearia, mudou pouco - mesma tesoura, mesma lâmina, mesma cadeira. Mesmas quatro paredes diante da porta única, aberta ao jardim da praça, a mesma pia, o mesmo espelho.

"Mas eu", diz ele, "eu mudei. Hoje eu sei que sou mais feliz do que era antes. E hoje eu sou mais vaidoso também, por isso comecei a tingir o cabelo, tá vendo?". E me mostra orgulhoso, num esgar de moleque que não some da vida por muito que ela avance, o cabelo bem preto emoldurando o rosto vincado pelo tempo. Seu Devair põe e tira a dentadura a todo instante. É quase um processo hipnótico, e eu preciso lembrar-me várias vezes de desviar o olhar que provavelmente está fixo nesses maxilares imparáveis, o lábio que pende e se recolhe de repente, sem parar sem parar sem parar.

Chegam dois outros clientes, um da idade de Seu Devair, outro parecendo décadas mais velho. Sentam-se ao meu lado, um à direita e outro à esquerda. Seu Ambrósio (invento-lhe um nome, porque não fala), chapéu surrado, camisa branca de botões desencontrados, tem um tique nervoso em volta dos olhos, deve ser parente da dentadura de Seu Devair; abrem e fecham sem parar, debaixo de umas sobrancelhas espessas, fartas, silenciosas. Mantém as mãos dentro dos bolsos da calça, mesmo sentado, e não diz uma palavra. Deve esperar pela sua vez. De vez em quando inclina-se para ver o que passa na rua. Das três cadeiras para quem espera, neste espaço de 14 metros quadrados, olhar para fora é quase uma necessidade. Em vez de lhe chamar Ambrósio, prefiro chamar-lhe Paciência.

Ao meu lado direito está Eustáquio. Só sei que se chama assim porque Seu Devair o cumprimenta, assim que a filha o deixa na porta da barbearia, avisando-o que o recolherá daqui a duas horas - como se fosse uma encomenda que o tempo leva e traz a todo instante. Seu Eustáquio parece vindo de outras eras. O rosto pendurou-se ao longo dos anos; o queixo vive agora muito lá embaixo, tão longe dos olhos encovados, de um azul que parece ter perdido a luz, a boca entreaberta porque o maxilar e a gravidade a puxam para baixo. Muito (mas muito) corcunda, parece um pequeno anão, embora não o seja. A calça, hoje larga, está presa por um cinto ao qual alguém foi acrescentando com o tempo vários furos. A cintura é fina fina fina, quase uma linha, se se olhar de lado. Seu Eustáquio olha para mim de tempos em tempos - quando me viro para sorrir-lhe, desvia o rosto rapidamente, o que não combina com a sua lentidão arrastada ao andar. Talvez Seu Eustáquio tenha desistido de se comunicar com o mundo, e prefira recolher tudo o que olha dentro de si, para quem sabe lembrar-se à noite, quando se deitar e não tiver no que pensar porque a vida se esvaiu.

Meu filho, enquanto isso, corta o cabelo. Foi isso afinal que nos trouxe aqui, e o preço em conta, que este meu filho pesquisa e persegue com maestria. Hoje, porém, não foi feliz na escolha: sai de lá torcendo para que o cabelo cresça rápido, passando o dedo no pequeno corte que os 77 anos de Seu Devair fizeram na sua nuca. Mas, como eu, reparou em tudo, e assim temos assunto enquanto subimos rua acima, pensando em quanto as cidades mudam, as pessoas mudam e nós próprios mudamos, sobrevivendo a nós mesmos. A idade é só um acidente, concluímos, que cada um ultrapassa a seu modo. Não há nada que, entretanto, não nos enriqueça.

09/04/2012

Páscoa de reforma

A Páscoa despede-se devagar, aqui por casa. As suas marcas estão por todo canto, pequenas cruzes de uma penitência a que se dispõem as paredes. Amarrações cruas. A vida que será nova, por trás delas, agarra-se com ferocidade, para não se deixar cair, para poder erguer-se em colunas e vigas e paredes e tetos.

Não se queixam, as paredes. Deixam-se furar, atravessar, arrancar, despedaçar. Sem um gemido. Apenas o estrondo quando chegam ao chão. E depois só silêncio novamente.

As caixas de madeira agarram-se a elas presas por arames, prestes a receber baldes e baldes de concreto - areia, terra, cimento e água numa amálgama que aos meus olhos concretiza uma espécie de futuro. De forma ainda distante. Sobe-se e desce-se por andaimes e escadas, baldes a tiracolo, num esforço quase desumano de fazer erguer a sustentação da vida.

É domingo pleno de Páscoa. A água escorre pelas paredes machucadas. O que era só vazio, ocas colunas de ferro na projeção do espaço, recebe capa da madeira e verter de recheio. Endurece e cria forma. Amanhã, ou depois, ou depois, serão colunas de concreto diante de mim. E as cruzes poderão desfazer-se, arrancadas da parede que deu cria.



07/04/2012

Exercício: a carta de amor

"Meu querido Armindo: 

Já a noite vai longa e a lua alta, e eu não consigo aplacar o sono. Escrevo-te, para que quem sabe contigo entre a caneta e os meus dedos eu possa conciliar o cansaço do dia com este sentimento que me agita as entranhas. Sim, as entranhas. Pensaste talvez fosse o coração, a respiração, o seu arfar - mas não, são as entranhas. Onde a vida vive em mim - no oscilar do estômago, nos ácidos que fluem do pâncreas, nas enzimas a decomporem no fígado, em cada tentativa de digestão e apreensão deste remédio amargo e doce que me dás a cada vez que nos vemos.

Sim, repito-te, para que não penses teres-te enganado: amargo e doce. Amargo porque não posso ter-te em mim todos os minutos de todos os dias de toda a minha vida, e ao saber disso, ao escrevê-lo, as mãos tremem-me, diante do inevitável monstro de saudade e perda que assoma no horizonte. E doce, porque posso ter-te quando te posso ter, quando as cortinas se abrem e o quotidiano se transveste de milagre, e as tuas mãos oferecem-se às minhas assim que os nossos olhos poisam uns nos do outro. E o tempo desaparece e somos. Torna-se o doce cada vez mais doce, porque ao seu lado caminha o amargo cada vez mais amargo.

Assim como é o querer dormir e não conseguir; sentir-te as mãos invisíveis a tatearem-me os braços, as pernas, a virar-me na cama para que o teu corpo inevitável e sem peso crave a sua marca no meu. Se me deixo flutuar nesse espaço entre eu mesma e o corpo que não trazes até mim mas eu sinto, desaparece o  quarto, a cama, a janela, a cadeira onde deixei a roupa ao tirá-la - e vai-se o sono. Preciso levantar-me, enfim, para não ser engolida nessa tortura de descobrir o doce que é sentir o gosto amargo de não te ter a escorrer entre os dentes.

E por isso sento-me à escrivaninha e escrevo-te. Tantas e tantas palavras quantas caibam dentro dos dedos que abro para que lambas, para que os impregnes com o teu hálito transparente, que não consigo reproduzir sem que estejas em mim. Por isso escrevo-te, para trazer-te para dentro a cada palavra que sai de mim, olhos fincados no que lerás quando abrires este envelope ainda em repouso na tua caixa de correio. 

Agarra-o, meu amor, e cheira-o antes de o abrires, para que comeces a lembrar-te primeiro pelo cheiro. Tateia depois o papel, conforme o tires de dentro do seu invólucro pardo, como se o despisses, com as gemas mornas dos teus dedos; percebe como em cada dobra estão depostas as curvas que beijas quando enlaças o teu corpo ao meu. E, por fim, entrega-te à leitura. Mas que estejas sozinho, à meia luz, em silêncio - para que nada se interponha entre os suspiros que deixo por entre as linhas azuladas de tinta e os teus olhos. Depois, deita-te à minha espera - e dorme.

A sempre tua,
Isaura"


(A foto da foto: exposição no Museu de Arte Contemporânea do RS, em março deste ano. Sem querer, perdi a referência: nem sequer o nome da autora da intervenção bordada. E não consigo achá-la na internet... se alguém souber, pf, diga!)

02/04/2012

A cidade nova VIII - a calçada

Eu não devia, mas lavei mais uma vez a calçada. Em parte, porque depois de remover os 4 metros cúbicos de terra e pedra que aterrissaram do caminhão bem na entrada do portão, merecia. A outra parte é Dona S., que faz dias não vejo.

Passei o domingo procurando assunto. Quente, o dia. Quente, eu. Quente, a casa. Achei que saindo pra lavar a calçada Dona S. daria as caras, e o assunto viria com ela. Dito e feito.

Bastou abrir o portão e sair com a mangueira pro sorriso de Dona S. aparecer por detrás das grades dela. Que estão sempre abertas, pra poder entrar e sair rápido, já me disse. "E seu pedreiro não veio de novo nesse sábado, né?". Dona S. vive atenta. Uma das filhas vem logo atrás, sorriso parecido, olhos tão juntos um do outro que me fazem inclinar a cabeça. E conta que o pai de Dona S. era pedreiro, mas que ela não aprendeu nada, coitada - uma das irmãs sabe pintar, dois irmãos são azulejistas (um bom, o outro um horror), mas ela... nada. E meneia a cabeça, não sei se com dó se com desesperança da figura da mãe. Mas Dona S. interrompe-a, agitando as mãos salpicadas das cores da idade, para me dizer que ela aprendeu direitinho o serviço de servente,  aquele que ninguém dá valor mesmo. Já carregou muitas e muitas carriolas de tijolo pra cá e pra lá, muita areia, muita pedra. A filha tenta continuar a conversa, mas Dona S. muda de assunto. Ri com gosto porque estou descalça e já bastante molhada. E ri mais ainda quando me pergunta porque é que eu não ponho o lixo todos os dias pro lixeiro levar, e nem espera que eu responda: "é que você veio da roça, e lá nem lixeiro tem, não é?". E ri ri ri ri até dizer chega. E não é com maldade, como alguns podem pensar - não. O que a faz rir é lembrar-se da própria história, e meu papel aqui é só recordá-la de que a vida são histórias muito parecidas, enfileiradas uma atrás da outra, esperando ser vividas com intensidade e entrega. Como ela provavelmente viveu a dela e eu tento viver a minha.

Lá do outro lado da rua, Dona M. espreita a rua da casa dela. Sozinha, viúva há 10 meses, Dona M. não sabe bem o que fazer da vida. Assim que Dona S. volta para sua casa, abre seu portão automático e atravessa a rua com a dificuldade de quem tem uma prótese num joelho e artrose em todas as articulações. Vem lentamente, olhando cada pedra em que pisa, toda arrumada, vestido de flores vermelhas pela altura do joelho, batom rosado e olhos vivos pintados de azul suave. Nem precisa dizer nada: convida-se a entrar e ver como que anda a reforma. Como outros, olha em volta um tanto estarrecida e pergunta como é mesmo que damos conta. Diz que não é de reparar nessas coisas, mas percebe que trocamos o piso daqui, que fechamos aquela porta dali, que levantamos uma parede acolá, que aquele móvel quando for reformado vai ficar uma beleza.

Sentada no que será um dia a sala, conta que, para driblar a solidão depois que o marido se foi, comprou um computador (coisa que em vida o falecido impedira), que usa para falar com as amigas (atividade que em vida o mesmo via apenas com meios olhos), algumas delas colegas de hidroginástica (que quando vivo o marido proibira). É sobretudo para não se sentir sozinha de madrugada, quando acorda e não há ninguém ao seu lado, aquele marido de quem ela tem uma saudade muito específica, e ela não consegue adormecer de novo. Digo-lhe que também eu às vezes não consigo dormir, e ela acena entusiasticamente a cabeça, e diz-me que sim, que ela sabe: "quando acordo, vou logo ver se a sua luzinha lá do meio das caixas tá acesa... fico mais aliviada quando vejo que tem luz, sabe?". E eu digo-lhe que me chame, que me dê um grito se tiver vontade de conversar - pularei a janela e virei conversar com você, Dona M.!! Seus olhinhos piscam e ela olha-me escandalizada e diz-me baixinho, para que até quem nem passa seja impedido de ouvir: "gritar?! mas eu não grito!". E me assusta com esse tom peremptório que tende a usar quem já gritou muito, muito na vida, e percebe de repente que talvez não valesse a pena ter exigido tamanho esforço às cordas vocais. E dá-me uma palmadinha no braço, para que eu me deixe de bobagens, e me faz prometer que irei visitá-la, ver os móveis que mandou reformar (depois que o falecido se foi), o exaustor que finalmente comprou (depois que o falecido se foi), o ar condicionado que refresca agora as suas noites (depois que o falecido se foi), os corrimões que finalmente foram instalados, e que o falecido dissera que jamais seriam colocados. Prometo-lhe uma tarde de conversa. Ou madrugada, logo se verá.

Olho para a calçada, enquanto espero que atravesse a rua até sua casa, e vejo que a sarjeta ficou cheia de restos de areia. Neste novo mundo de convenções urbanas, não sei se me cabe a tarefa de limpá-la, lavá-la, varrê-la, dar-lhe sumiço. Penso que sim. Entro em casa para buscar pá e vassoura, mas quando volto a filha de Dona S. (a outra, que mora ao lado esquerdo) já está de mangueira em punho, lavando a rua com uma forma de fúria e obstinação que me fazem recuar instintivamente. Não sei ainda como interpretar essa sanha das minhas vizinhas, até onde devo entender um tanto das suas ações. Melhor varrer e limpar tudo o que tenho dentro - e que não é pouco.

01/04/2012

Quijoteces


“Allá donde están los molinos del Quijote”: foi assim que ele se apresentou na roda em que estávamos, quando lhe perguntaram de onde vinha. E isso foi o bastante. O namoro, o meu primeiro, durou poucos dias; sequer me lembro do nome dele, nem consigo ver-lhe o rosto ao fechar os olhos. Só essa frase. Poucos dias, mas intensos; um acampamento, tudo novidades, a frequência diária. Quando o visitei, semanas depois, fugindo à vigilância paterna, nas suas terras de La Mancha, recebeu-me com aceitunas e queso manchego, que fomos comer debaixo das pás dos moinhos escolhidos como corpo da sua referência. A paisagem plana e lisa à nossa volta, como os sentimentos que amainavam. Inesquecível.

Cervantes acompanhou-me, de lá pra cá, aqui e ali; sofri com as Novelas Ejemplares na escola, pouco disposta a essas leituras na altura, querendo respirar só Lorca, só Rubén Darío, só Neruda. Não as li direito até hoje e, nesse meio tempo, Cervantes foi cedendo espaço a Camões.

“O homem de La Mancha” voltou anos atrás, quando Marco Antonio me pediu que revisasse a peça que seus alunos, entre eles meu filho mais velho, encenariam. Cervantes a la Broadway, numa apresentação bonita e simples na Casa das Meninas, em Botucatu, sob a batuta de Kim Marques. Hoje, precisando identificar um momento pessoal de revelação de personagens, escolho esse, achando que seja aleatoriamente e ao acaso. Não é.

Quem faz curso de letras inevitavelmente descobre em algum momento que as personagens da narrativa se dividem básica e simplesmente em personagens planas e redondas. Lembro de ter gostado demais dessa definição geométrica, metáfora perfeita para o que é preciso lembrar da história. Foi o ano de descoberta de Barthes, dos estruturalistas, das teorias da narratologia, de um Forster que dizia “Como posso saber o que eu penso, até um escutar o que eu digo?”, e isso fazia tanto sentido. O mesmo Forster que apelidou as personagens de Homo fictus, seres ficcionais no âmago de qualquer narrativa, e propôs a sua divisão nesses dois tipos, flat e round no original. Como qualquer teoria é dada às suas falhas, nem sempre consigo que as personagens que leio ou escrevo se encaixem com tanta perfeição em um ou outro lugar, mas há (lembro) exemplos lapidares, como o corajoso e bondoso Peri (plana) ou o denso e surpreendente Dom Casmurro (redonda). Personagens planas tendem ao tipo, à caricatura, à densidade nenhuma, às atitudes previsíveis, ao caminho reto e sem surpresas. Personagens redondas (ou personagens que se arredondam) são densas, imprevisíveis, nunca se sabe o que dirão, o que farão, o seu caminho é feito de transformação, e mantêm-nos num suspense que nos faz soltar ahs e ohs conforme a sua descoberta avança. Porque as personagens redondas precisam ser descobertas, conquistadas, não se oferecem de cara como as planas, que podem revelar-se numa frase apenas, que nos diz tudo e nos faz sentir que estamos satisfeitos.

Dos anos de faculdade até agora não se tornou mais fácil acoplar as ideias estruturalistas à minha prática. Não é que não goste; gosto, mas não me afino. Só isso. Por isso olho para esta minha escolha, Dom Quixote à minha esquerda, Sancho Panza à minha direita, e reluto em encaixotá-los em algum lado. Tendo a achar o Quixote até previsível – lembro-me de que, embora risse, porque não há como não rir, me cansavam as estripulias da Triste Figura, que começam a ficar previsíveis - mas sei que é geralmente considerada uma personagem redonda. E tendo a achar que Sancho é o mais imprevisível, na sua paciente e persistente decisão de acompanhar seu amo em todas as batalhas enlouquecidas – embora eu saiba que é por vezes exemplo de personagem que tende ao plano. Ambos parecem-me planas, às vezes. E ambos parecem-me redondas, logo depois. Porque há densidade e conteúdo em ambas, detalhes ricos que se descobrem aos poucos, a humanidade inesgotável de Sancho, a intrepidez alucinada de Quixote. No que preciso escrever, decido, direi que ambos são tipos alinhavados de dentro para fora, para que não seja óbvio e para que a identificação seja lenta e interna, e vou abster-me da geometria.

E, como se gostasse no minuto em que me decido por esse caminho, Sancho de repente ganha luminosidade, ao lado de um Quixote que cavalga a sombra da própria estampa. O Sancho que acompanha e vela e cuida da loucura alheia, esquecendo-se de si próprio a cada instante. Tão idealista quanto o cavaleiro, largando a vida no campo para ser o que a tradição lhe dizia que poderia ser: um escudeiro servindo a seu senhor. Carrega escudo, remédios, comida - e sobretudo equilíbrio. Gordo, analfabeto e pragmático, faz-nos rir ao longo do romance, num riso que espelha identificação das nossas mazelas humanidades cotidianas. Come demais, vomita, é mal criado - mas é ele quem cura as feridas, quem cozinha, quem leva e traz recados, quem vê rebanhos onde o outro vê exércitos, moinhos onde se levantam gigantes. As longas conversas entre os dois, pelos campos de La Mancha, são provavelmente os pontos altos do romance, talvez onde se torne mais claro o quanto um jamais sobreviveria sem o outro, o quanto um se realiza e se permite porque o outro está ao lado, vigilante ou louco.

São raras, mas há pessoas que medem o horizonte com os olhos do impossível e agem sabendo que o mundo pode acabar na próxima esquina, como se conscientes e mergulhados nos dias que se sucedem um ao outro. Como se amalgamassem sonhos quixotescos - irrealizáveis e fadados à derrota, mantendo-os vivos e pulsantes dentro de si mesmos, numa coragem que inspira e fascina – à ação impressa com pulso e decisão no cotidiano alheio, às vezes cinza, às vezes pleno de brilho. Pessoas que sonham ao estender a mão. Pessoas que estendem a mão e fazem sonhar uma vida melhor, ainda que seja impossível e tudo diga que não. Pessoas quase personagens, um risco no meio da vida, ao qual (escrevem-me lá de Porto Alegre) devemos nos dedicar, mas com cuidado, e sobretudo ao escrever.