09/09/2020

Desinteresse


Quase sem pensar, ergo os olhos para ver a constelação de Escorpião. Vó Chica gosta quando olho o céu. Sei tão pouco, digo-lhe dentro de mim, e consigo aprender tão lentamente estas coisas das estrelas. Ela ri, e me aponta com seus olhos sempre úmidos a caneta e o papel. 

Demoro-me ainda, porque esse olhar cheio de água me intriga e me conforta. Por que tanta água, minha mãe?, pergunto-lhe. Ela ri-se, como sempre faz: “Preferias que tivesse olhos secos e duros, filha? Não precisa interessar pelas águas que limpam meus olhos, eu mesma prefiro assim, desse jeito, os olhos molhados para a terra do coração não secar também”.

Vó Chica tem nos falado do desinteresse. Pensamos que é bom o interesse pelas coisas, pelos outros, mas ela diz que não. Diz que o interesse é quem desenvolve em nós a posse, o ciúme, o desejo, a ânsia, a querência das coisas que não são precisas. Interesse é “estar entre”. Podemos nos sentir importantes, ou que estamos “fazendo a diferença”, quando nos interessamos por alguma coisa ou por alguém, mas não estamos em nós, “estamos entre”. Já quando nos movemos nas trilhas da ação desinteressada, aprendemos as lições da neutralidade, da imparcialidade e do afeto genuíno, que deixa cada coisa e cada pessoa ser aquilo que deve, quando deve, como deve.

Desinteresse, na voz de Vó Chica, é trilhar o nosso caminho fazendo aquilo que podemos fazer, sendo úteis, que é a bênção maior que podemos ter, abertos a qualquer tarefa.

Eu sei porque Vó Chica quer que olhe o céu. Porque os tempos de Urano estão sendo chegados, como ela diz, e nesses tempos o futuro, a coletividade, o conhecimento intuitivo, a sensação de pertencimento à Humanidade vão ser as mais preciosas qualidades.

E como esse é um tempo acelerado, Vó Chica pede calma e tranquilidade. Pede que estejamos atentos aos nossos movimentos, e que não nos angustiemos nem nos deixemos levar de imediato e sem controle por nada que possa nos suceder. Pede que estejamos conscientes de com quem dividimos o espaço que ocupamos. Que nos coliguemos com a Natureza à nossa volta, a reconheçamos e nos tornemos seus observadores. Não são necessárias técnicas ou teorias. Para a ligação que devemos cultivar não há regras nem caminhos prontos. É a ligação que nos ensinará e para ela precisamos apenas silenciar a nós mesmos e entrar em contato. Ouvir o vento, os pássaros, os barulhos das folhas e dos galhos; observarmos uma árvore, uma flor, um pequeno inseto. Um cão. Um gato. Um pássaro no afã de seu ninho. Perceber e deixar ir, sem cultivar interesse.

Vó Chica pede que desenvolvamos por tudo amor sem julgamento, sem dedução, sem a lógica do nosso pensamento usual. Não importa, ao Sol, o que pensemos dele, mas sim como nos comunicamos com ele, que luz ele desperta em nós. Não importa o que possamos dizer - diminuiríamos aquilo que recebemos, e que não cabe em nossas palavras. Até se perde. Transmutemos o que recebemos e ofereçamos onde quer que estejamos.

Vó Chica pede que nos nutramos de silêncio para podermos escutar melhor. Que controlemos a palavra, que não a desperdicemos e tenhamos cuidado com o que colocamos dentro do ouvido do outro. Ouvidos são seres desprotegidos, não têm portas que se fechem nem pálpebras que os cubram.

Vó Chica pede que cessemos as discussões conosco mesmos, e que cultivemos o silêncio interno. Será mais fácil diminuirmos o que dizemos ao outro, e assim não contribuiremos para a sua angústia e a sua ansiedade. Na maior parte das vezes, diz baixinho Vó Chica antes de se ir embora, o que cada um quer é escutar a própria voz, e ter certeza de que existe algo que possa dizer. Não é necessário. Não importa o que você já viveu, as experiências que teve – a sua valia é terem se transformado em aprendizado. A própria experiência, de um tempo gasto e passado, não serve aos desafios do outro neste tempo presente. O silêncio é a melhor oferta. Em silêncio expandimos o nosso interior e ouvimos melhor o  nosso guia interno. As vozes dentro de nós nos distraem de nós mesmos.

Vó Chica fecha os seus e os meus olhos e me converte em sono. Quando os abro, ela já se foi, e todas as velas se apagaram. Ainda assim, está claro.


04/09/2020

A letra do ensinamento

É noite escura. Lá fora só o piar de uns poucos pássaros. Aqui dentro, as velas. Quitéria, de manso, está à minha frente. Sei porque sinto, não porque vejo. Nem ergo a cabeça. Meu foco é o papel e minha bússola o lápis. Foi assim que ela disse, e assim é. Ela é a letra do ensinamento, nas suas frases curtas, nos seus silêncios que tento decifrar inutilmente, porque silêncio é silêncio – você já devia saber disso, ouço-a pensar. Entre os silêncios, as palavras. São estas.

“Se vos atracardes como barco que ama o cais, não saireis nunca do lugar onde permaneceis. O cais são as vossas certezas, as vossas abrangentes certezas.

Espírito de aventura chama-se entrega. Não é possível cristalizar a entrega. As coisas não são da maneira como gostais delas, mas da maneira como têm de ser. Quando antes entenderdes, menos sofrereis o desnecessário, e menos fareis os outros sofrerem com a vossa indecisão inquieta.

Há um plano para tudo, e tudo está em seus lugares. A teimosia de sempre querer sobrepor-se e saber mais e melhor é o oposto da humildade. Assim que se formar o pensamento “eu sei fazer melhor” o caminho afastou-se do humilde. A humildade treina-se no silêncio e na renúncia a interferir. Em ambos. Não em um, ou em outro. Nos dois, um após o outro.

A humildade treina-se no abdicar da vontade, no reconhecer a própria insuficiência, a própria irrelevância, e no deitar no chão do congá sabendo que não se é mais do que ele é.

Cuidar da própria vida, costurar o próprio processo e não interferir no do outro é indispensável à evolução coletiva.

Concentrai-vos na tarefa que tiverdes em mãos, executai-a de forma perfeita – o vosso perfeito é a vossa superação. Depois desintegrai o vosso fazer e assumi outra tarefa, em silêncio, como um ser anônimo de uma multidão – a dureza do vosso grão de areia precisa com urgência da pequenez da vossa gota d’água. São indissociáveis, mas só sabereis disso quando reconhecerdes a dureza e a pequenez em vossos atos e em cada um dos vossos órgãos.

Não interessa o que já fizestes ou deixastes de fazer. Interessa o que fareis agora. Sem interesse por reconhecimento, elogio ou agradecimento. Sede gratos por terdes o que fazer. É o suficiente. Agradecei as correções. Assumi o que podeis e o que não podeis. Não vos desculpeis por trás de desculpas vazias. Os tempos são por demais desafiadores, e cada um de vossos músculos deveria já estar sentindo isso e agindo de acordo.

Esta vida precisa valer a pena. O trem está de volta na estação, retrocedendo para que vós, que ainda estais parados no cais, possais dar o passo e subir. A limitação é aparência. O ser é feito de espírito.


25/03/2020

Quaresmeiras em flor


Vó Chica espreita por entre as árvores da mata. É um pequeno golpe de luz aqui, uma brisa repentina acolá. Brilham-lhe os olhos miúdos, e eu já sei que preciso fechar os meus para poder vê-la e ouvi-la na sua voz inconfundível. Começo a ficar dormente, quase como se com sono. Deixo-me embalar por esse verde fresco que traz à sua frente. O mesmo sorriso, as mesmas mãos gretadas macerando um galho pequeno de alfazema. Senta-se ao meu lado – eu no meu banquinho baixo, ela no tronco largo esverdeado de musgo.

“Filha, o mundo pára para que vocês possam ouvir. Para que possam decidir qual o reino onde querem entrar. Para poderem silenciar e escutar o outro lado, que equivale a dizer a própria alma.

Não vos desperdiceis em pequenas coisas que não têm qualquer sentido.

Observa a pequena formiga que se prepara e trabalha hoje, com interesse nenhum pelo dia de amanhã. Quando digo observa, quero dizer olha com atenção, com os olhos, e não com a imaginação. Usa para isso o tempo que tens à disposição.

Assim como a pequena quaresmeira em flor na porta do terreiro: vê como brilha sob o céu azul cor de manto. Como ela, todas as outras. Onde estiveres, eleva teus olhos ao céu. Se precisas de algo que permaneça no mesmo lugar, para dar-te ânimo, para dar-te confiança, detém-te nele, de dia e de noite.”

E Vó Chica faz um longo silêncio, quase uma eternidade onde durmo um sono profundo deitada numa esteira, debaixo desse céu que ela contempla.

“Acorda, filha, que estamos na Quaresma. A cada dia, a escolha. É preciso dizer a nós mesmos que é preciso parar, parar de querer o que não é preciso.

Usa o tempo, filha, porque não há, como nunca houve, nenhum a perder. A única diferença entre ontem e hoje é que agora vês o que não vias antes, e agora sabes o que não sabias anteriormente. Em algum momento, o tempo de refletir terá acabado e a tua colheita dependerá da tua semeadura.

Esquece o que plantaste ontem. Essa safra já terminou, pertence ao passado. Semear é todo dia, e a colheita é quando se está maduro. Não apresses as plantas que semeias na tua alma, nem no mundo. Deixa que cada uma cresça conforme o adubo que for recebendo. Ocupa-te, tanto melhor, de adubar as plantas que tens em teu quintal.

E não penses, filha, que a semeadura foi bem feita. Não serás tu a ter os meios de saber a medida correta da semeadura – não é quanto mais, melhor; nem quanto melhor, melhor. É a medida exata, correta, nem a mais nem a menos. Ambos os extremos farão mal a todos, e só Deus poderá dizer-te com certeza, quando o encontrares.”

Vó Chica ri com gosto, imaginando meu encontro com Deus. Penso, já bem acordada, que prefiro que ela esteja ao meu lado como agora quando isso aconteça. E rio também. E ela olha-me com afeto, e sem pena.

“Volta os olhos para dentro, filha, e lida com as sombras que se formaram nas tuas paredes. Agora pode ser o último tempo, e ainda que não seja, não haverá outro igual.

Não desperdices. Não deixes para mais tarde, nem faças pela metade.

Serena teu coração, silencia o teu pensamento e vai passo a passo, degrau a degrau, em silêncio e escutando o que o mundo grita em silêncio.”

E é em silêncio que, assim como chega, se vai. Como golpe de luz, como brisa repentina. Deixa o gosto do destino dentro das minhas narinas e meus dedos cheios de palavras brotadas.






02/03/2020

Cinzel




















Tenho há muito tempo esta fotografia guardada, presente de uma aluna querida que se tornou amiga. "Assim como o cinzel, a caneta", foi o que pensei de imediato, porque o assunto era esse mesmo, a escrita, e o instrumento na imagem é um cinzel. Dentro dele, o corte. A palavra cinzel (que só de si já é linda, sonora, experimente falar em voz alta) deriva de cisellum, que era para os latinos um "instrumento de corte", derivado ele próprio do verbo caedere - cortar.

Nada alivia mais a escrita do que cortar - cortar excessos, rebarbas, nós, sobras, manchas. O que só se consegue depois de tudo ter posto do lado de fora, depois das palavras terem sido vomitadas, jogadas, lançadas, arremessadas contra o papel. Numa entrevista dada ao jornal O Globo por estes dias, a psicanalista Catherine Millot fala sobre a capacidade que a escrita tem de trabalhar em nós o que não conseguimos dizer. Olho para o que escrevo e penso o mesmo. Se eu tivesse de dizer metade do que escrevo, calava-me. Não só porque ao escrever posso pensar e repensar, posso rasgar, guardar, riscar, mas sobretudo porque posso cinzelar o escrito de ponta a ponta, antes de me decidir a compartilhar com alguém.

O poder do cinzel atua todos os dias, e assim, como diria Catherine se usasse essa palavra, trabalha-me a alma. A justa medida de peso e doçura, a precisão exata da inclinação da lâmina. Corto e corto e corto - às vezes, por capricho, deixo um veio aberto, uma ferida sem cicatrizar, uivando em meio ao escuro. Pode ser que volte mais tarde para acompanhar a sua cicatrização, e pode ser que a exponha ao ar, e espere que os cortes abruptos da vida cicatrizem da maneira como quiserem, deixando as marcas que entenderem, criando desenhos e rugas e peles onde lhes aprouver. A vida, na maioria das vezes, sabe melhor do que nós mesmos.

Por isso, ao escrever, começo por não medir palavras, para que saia o que tiver que sair, da maneira mais poluída, infame, desgostosa, raivosa ou desgraçada que for. Sou eu, ali. Inteira e sem cortes, nem mesmo aqueles que farei depois. Espero dar certo algumas vezes.

Não sei se o pior, nesse ato que é a escrita, seja querermos de imediato a perfeição, ou imaginarmos que a alcançamos em algum momento. A agonia de publicar um livro lateja nesse lugar. Por muito que tenha havido processos, até intermináveis, a imperfeição é tão latente e óbvia que dói. Qualquer um gostaria de ter podido fazer melhor, digo a mim mesma, sem ser grande consolação. O importante, nesse ato de lançar ao mundo algum grau de escrita, é despedir-se das palavras e saber que não são mais suas, penso antes de dormir.

Acho que essa talvez seja a minha maneira favorita de enganar-me e não pensar mais no assunto.

09/02/2020

Potyrom

Hoje foi dia de mutirão no Terreiro Pena Vermelha. Dia de mutirão é dia de unidade. Transcende, porque precisa transcender, os limites rasos do tempo e do espaço. Unitas, a palavra latina de onde deriva a nossa palavra unidade, refere-se a tudo aquilo que, se dividido, corre o risco de destruir ou alterar a própria essência. Por isso é tão importante buscar-se uma unidade, mesmo à distância, mesmo na não-presença física: para que não destruamos ou alteremos a essência.

As línguas, como as pessoas e os povos, evoluem. Absorvem coisas daqui e dali, se movimentam e modificam, como seres vivos que são. Ao falarmos, falam em nós íberos, celtas, fenícios, cartagineses, godos, visigodos, árabes, latinos; dizemos cafuné, fubá, cacimba, cachaça, inhame, camundongo, miçanga e zumbi - e resgatamos de longe toda a diversidade africana que nos habita.  Buscamos no mandarim o chá, nas indianas marati e malaiala o bambu e a canja, tomamos emprestados os pires à Malásia e os biombos às terras do sol nascente. Somos feitos de muitos povos, todos eles nossos ancestrais, que honramos mesmo sem saber que o fazemos, ao pronunciar-lhes as palavras. Quem pode duvidar do quanto somos plurais e diversos?

A palavra mutirão é uma palavra tupi. Deriva de potyrom, e este, por sua vez, de , que é mão. Mutirão pede soma: potyrom significa todas as mãos juntas. Não pede pensamentos nem palavras, nem opiniões nem discursos complexos - mutirão pede as mãos que trabalham juntas, e constroem e abrem caminhos e plantam e colhem e semeiam e tornam a colher.

Quando eu cheguei, já estava o mutirão fechado (porque tudo o que se faz junto precisa de abertura e fechamento, para não deixar ninguém à deriva ou à toa), mas a sua presença, dessas mãos todas em unidade de trabalho, ecoava por todos os lados. Os que estiveram de corpo e alma presentes, e os que estiveram em alma, dando sustentação e força às mãos físicas que puderam estar - todos se respiram nesta mata que nos diz "cheguem, cheguem mais, estamos à vossa espera".

Neste domingo de Lua Cheia, não poderia haver nada de mais importante para fazer. A mata canta feliz e a chuva tamborila no telhado. Como dizemos sempre que trabalhamos: somos gratos, Senhor, por quanto nos dás.


22/09/2019

Tempo a não perder


Aprende-se com Quitéria a arte de dizer das coisas o que elas são. Sem complacência. Seu único olho vê mais da vida do que os dois que teve. É ela quem diz, e acrescenta: na época em que tinha dois olhos, os caminhos apareciam dobrados. 

Quitéria perdeu a vista direita numa distração que quase lhe custou a vida. "Mas vê tu", diz ela, "não teria aprendido a olhar as coisas pelo lado de serem vistas se de outro jeito fosse, por isso te digo que tanto faz o tamanho da desgraça. Cada uma que chega é pra mostrar o que não se sabe, ninguém tem motivo pra reclamar de estar vivo".

Há um desencanto morno na fala de Quitéria, como quem viu muito da miséria humana em ação. Não a miséria de não ter o que comer ou o que vestir, mas a miséria de ser menos do que se pode ser. A miséria de ser mesquinho, sobretudo. 

Quitéria não guarda muitas ilusões sobre os seres humanos. Por experiência própria, sabe que as pessoas tendem à displicência, e essa ela não perdoa. "Vocês não durariam um dia na caatinga", diz sem sorrir. "A primeira bala perdida já os atingiria – como vos atinge o primeiro pensamento daqueles que invejam, debocham, desconfiam, desprezam. É preciso andar de sentidos abertos, e evitar o que é pra ser evitado".

Não há falsidade no entorno de Quitéria. Há humor, e muitas vezes ela ri, uma risada que soa por dentro como cristal estalando debaixo de sol quente. Não é o riso alegre e leve do povo da Bahia, nem o riso paciente e amoroso dos velhos curvados. Quitéria ri o riso de quem acaba de morder um jiló amargo, e olha para o reino humano ora com relutância, ora (mais frequente) com extraordinária falta de paciência.

“Recado dado, tarefa cumprida” é a sua missiva. Quando mal-entendida, ou quando as suas palavras são levadas pouco a sério, ou quando a pessoa está tão perdida dentro de si que sequer consegue escutá-la, Quitéria dispara. Nessas horas, é capaz de pegar a sua cartucheira e batê-la no chão, com a força que colocaria numa espada caso a tivesse. Assim como anuncia a sua chegada com o cheiro de pólvora recém queimada e o estampido de 50 balas cortando metálicas o espaço, assim rodeia a falta de inteireza alheia com a secura agreste do couro.

Quitéria está entre aqueles que me vigiam. Chegou quando eu fiquei pronta para conhecê-la. Fosse antes, teria sido reduzida a pó. Quitéria não se ajoelha, Quitéria não usa máscaras, não propõe a guerra e vem de peito aberto. Se aquilo que a recebe não está à altura, tem as armas prontas, e dispara sua Palavra na direção do coração do outro, certeira como um bisturi afiado. Quitéria se enfurece, numa espécie de fúria santa, com aquele que já sabe, e ainda assim erra. Se tem algo que Quitéria não perdoa é o pouco caso com aquilo que é obrigação de gente.

Conhecer Quitéria não é caminho raso, nem rápido. Ela não tem pressa. Tem urgência quando é de se ter, mas não pressa. Está pouco preocupada em que se goste ou não dela; aliás, acho que ela prefere que não se goste, para que não sejam corações amolecidos que a guardem. Prefere a construção lenta, e por isso se desdobra lenta – encara quem a teme, quem a respeita e quem a admira com o mesmo olhar e a mesma altivez. Não é dada a explicações, é dada a dizer o que as coisas são. A outra parte, diz ela, é tarefa do ouvido de quem ouviu. E o tempo se encarrega do resto, e Quitéria sabe, e por isso não se apressa. Cronos e Kairós são a mesma coisa dentro dela. O que muda é a certeza inabalável que tem de que a vida está aqui para ser vivida, feita, amassada e assada como pão, e por isso digo que não acalenta ilusões. Sabe dos limites que pode um ser humano, sabe o quanto não se muda ninguém, mas sabe também que a decisão interna provoca revoluções. E por isso urge: "para quando, a tua mudança?" E a pessoa responde: "é verdade, fui ingênua". E Quitéria responde: "Não foi, tu foi é besta".

Indulgência e displicência são palavras que Quitéria não usa, ao contrário de Vó Chica, que em seu amor macio e doce nos leva pela mão à compreensão das coisas. Quitéria está em outro lugar. Considera que já aprendemos, de tanto ouvir a sábia Chica. E cobra. Dura e prontamente. "Não veio ainda? Não fez ainda? Continua a mesma coisa? Para que fazer perder meu tempo então? Se tu não muda, não vou ser eu que vou te fazer mudar."

Trabalhar com Quitéria é ter a segurança de que nada ficará encoberto, sem revisão. Muito pouco ela deixa passar, e quando deixa é porque mais adiante vai laçar, quase rindo de eu ter achado que ela teria passado sem ver, ou (pior) que não tivessem importância as coisas que têm. Por isso, se algo Quitéria me ensinou foi a agir sem ter todas as explicações, e a saber na pele que hora de correr é de correr, e hora de enfrentar é de enfrentar. "E preste atenção", diz ela que não quer as coisas pela metade, "a hora não é eterna: se não se aproveita o degrau do tempo, perde-se a escada inteira".

Quitéria é atenção plena, é raio faiscando o ar, é trajeto certeiro de bala. Não erra o alvo porque não se distrai, e não se distrai porque pagou com a vida a própria distração. Por isso seu amor nos atinge em cheio. Porque ela sabe. Ela sabe o que é titubear. O que é relutar. O que é esse campo traiçoeiro da ingenuidade, que nos faz imaginar que o que não muda, mudará, que o que não tem, terá, que o que nos machuca um dia nos amará. "Acorda", diz Quitéria, "e vai se olhar no espelho. Vê se quem te olha do outro lado é quem você quer ser do lado de cá. Não adianta trocar o espelho, o que adianta é trocar dentro de ti o que não te vale a pena". Quem com ela conversa, espera ao final um até logo, algum sinal de despedida. Quitéria frequentemente se esquece das regras da boa convivência, dos protocolos da civilidade. A pessoa pisca, e Quitéria já se foi. O que tinha a fazer foi feito, não há mais tempo a perder.

16/09/2019

Comunidade-terreiro

Vó Chica tem formas muito suas de indicar caminhos. Não é bem paciência com os outros, mas antes um respeito imenso pela forma como cada um escolhe viver a própria vida. Isto é: bem antes de pensar em ser paciente, a impressão é de que observa e busca o momento e lugar exatos em que existem olhos e ouvidos abertos.

Viver em comunidade-terreiro demanda esses olhos e ouvidos abertos. Nesse grupo de pessoas que se reúne numa busca espiritual comum, há um lugar a alcançar que não é individual, e nem coletivo. É um lugar onde a harmonia e o fluxo da vida se manifesta pelo encontro de todos com um todo indefinível. Esse todo pode ser indefinível, mas se materializa em ritos, ritmos, preceitos, ordenações. O ritmo ordena a nossa forma no espaço e no tempo, e os preceitos, como bem diz Rudolf Steiner, nos dão as forças necessárias para permanecermos vigilantes. Estar vigilante é estar atento, antes a nós próprios que aos outros. É vigiarmos nossos pensamentos e nossos sentimentos exteriorizados, as emoções. É vigiarmos as nossas palavras, e logo depois nossas ações. É permearmos de consciência cada um pedacinho de nós, sem que com isso precisemos gastar tempo e esforço, porque a disciplina do ritmo abre portões gigantes para que um fluxo se instale. Sem a disposição para aqueles olhos e ouvidos abertos, nem valerá muito a pena pertencer a uma comunidade-terreiro, porque o esforço parecerá excessivo e o fardo pesado demais a carregar.

Vó Chica ri-se quando digo do quanto é importante lembrarmos que vivemos todos sobre o mesmo chão, o mesmo planeta. Diz-me assim: "Filha, é claro que é importante. Mas mais ainda é vocês se lembrarem que aqui é lugar de passagem, e que outros depois virão, e também para eles será uma passagem. Não se esqueçam de que estão aqui, mas não são daqui. O que ficará não se chamará mais "meu corpo", e será casca, casca verdadeira. O ser que pulsa, e que é eterno e impermanente ao mesmo tempo, estará solto, e logo quem sabe se em outro chão. Este chão, como qualquer outro que seja passagem, pode tornar-se prisão ou campo fértil. É preciso conseguir separar, no pensamento, umas coisas das outras, e saber, sem conseguir explicar como, por onde andar e como, a que dar a valor e quando, o que fazer sem que ninguém lhe diga nada. Sem essa disposição, será difícil perceber por onde caminhar.

Viver em comunidade-terreiro significa perceber a flor seca e dar-lhe água, a poeira ao canto e buscar a vassoura, o vaso quebrado e cuidar de que haja outro. Sem que sejam precisas palavras nem ordens. Numa comunidade-terreiro, caminha-se para outros lugares. Busca-se a ordem precisa e a limpeza exata. Não por elas, mas pela necessidade de beleza e ritmo que a própria vida ao mesmo tempo oferece e pede. Numa comunidade-terreiro vive-se a possibilidade de olhar para si mesmo de forma diferente, experimentar formas distintas de lidar com o outro e com a tarefa da vida. Numa comunidade-terreiro, não se está apenas por si, mas pelo outro que acorre em aflição e angústia. Junto aos que nos guiam e a nós se oferecem em trabalho de puro coração, podemos esquecer-nos de nossos pequenos corações e ingressar nesse coração maior que é o coração de Deus.

Numa comunidade-terreiro, existe o silêncio. Assim como a gargalhada e a piada alegre, o momento solene e as lágrimas nos olhos. Mas o silêncio interno, esse que permite que ouçamos "o ressoar das planícies no vazio", como diz Sophia de Mello Breyner Andresen, ou "a consciência atenta que dos confins do universo me decifra e fita", esse silêncio não tem palavras que o descrevam, e vive pleno em cada oração, em cada canto, em cada sintonia de aproximação aos mundos espirituais. Com esse silêncio, vive dentro de nós a entrega, e a possibilidade de deitar-se ao comprido diante de Deus e dizer-lhe aqui estou, toma-me em tuas mãos e ajuda-me a ser uma pessoa melhor.

Vó Chica mergulha em água salgada os potes de louça que cada um preparou, em um desses vários ritos que servem para nos estabelecermos melhor em nosso caminho de autodesenvolvimento. Pede, logo a seguir, que cada um retire o seu, e com esse gesto entrega a cada um de seus filhos e filhas um instrumento para concretizar sua união com o mundo espiritual. Como ela mesma disse, não é Deus ou seus Orixás que precisam da louça, mas nós. E também a intenção precisa ser nossa. Nessas horas, ressoa um infinito amor dentro do meu peito, e os véus se descerram e há uma trilha extensa entre nós e esse lugar do cosmos a que damos o nome de Oxalá, e que responde por todos os caminhos da Fé. 
- Quando ela faltar, diz Vó Chica antes de partir, - essa confiança que tudo contém, entrem no silêncio do coração de Oxalá, o silêncio que vive dentro do pote de louça, vossas intenções guardadas na mais pura intenção do coração.

09/06/2019

Pentecostes de Oxalá

O ano é 1296 e a vila é Alenquer. O dia é como o de hoje, 50 dias passados da Páscoa. Dia de Pentecostes. A rainha de Portugal, Isabel, já então apelidada de santa pela sua dedicação a minorar a fome dos pobres, convence seu marido D. Dinis a uma festa bastante particular: um dos mais pobres há de receber a coroa e o lugar do rei, passando a presidir um Império. 

A festa do Divino Espírito Santo, mais do povo do que da Igreja, é a festa onde todos podem ser coroados, onde se distribui a abundância da época da colheita do hemisfério norte: pão, carne e vinho povoam as ruas de todas as freguesias açorianas, tabuleiros de pães correm as ruas de Tomar, festas em honra aos mistérios do Espírito Santo, o Divino, espalham-se por todos os lugares por onde passaram portugueses, das ruas de Boston aos caminhos à beira mar de Florianópolis. O Divino faz-se presente.

Isabel pensava numa oferenda, certamente. Invocava a intervenção divina para resolver o problema da sucessão ao trono. Seu marido preferia o filho bastardo, o que redundaria em mais uma guerra ibérica. Fazia-se necessário manter a sucessão através de Afonso, filho de ambos, e que viria mesmo a ser o rei Afonso IV. Isabel, como já fizera em outros momentos, dirige-se a esse lugar do invisível e pede. Oferece. Isabel era uma rainha piedosa. Desconfio que não haja criança portuguesa que não tenha ouvido a lenda dos pães transformados em rosas quando interpelada pelo rei sobre onde ia e o que levava. D. Dinis passou à história como forreta e a Rainha Isabel foi canonizada em 1625. Isabel distribuía pão a quem não tinha, peregrinava a Compostela, e, já viúva, recolheu-se ao convento de Santa Clara de Coimbra, lá mesmo onde se inventaram os famosos pastéis, de onde saiu apenas uma vez mais na vida.

As oferendas, desde que o tempo é tempo, reconhecem que a origem do que temos é divina. Ao apresentar qualquer elemento como oferenda, antes mesmo de pedirmos alguma coisa, reconhecemos que aquilo que oferecemos não é nossa criação. Se estivermos conscientes disso (e o problema é que metade do que fazemos é na inconsciência, quando não na ignorância), fechamos os olhos e baixamos a cabeça, em reconhecimento à origem divina de tudo o que nos rodeia, e de nós mesmos. Na gênese de qualquer forma de oferta ao mundo espiritual, sejam palavras, sejam cantos, sejam frutas, flores, festas, viagens - o que fazemos é reconhecer profundamente a nossa própria existência não terrena. 

Neste dia de Pentecostes em particular, Isabel está presente outra vez, lembrando-nos de que o que temos é de todos; que todos têm a sua própria coroa, onde vem pousar a pomba da paz. Entre os símbolos do Divino Espírito Santo estão a pomba e a coroa. Oxalá, orixá da criação do mundo, da sabedoria dos anciãos, da ligação entre Céu e Terra, ostenta a sua coroa e no alto de seu cetro, o Opaxorô, pousa a mesma pomba.

Jesus, em sua época, recolheu-se ao deserto durante 40 dias como forma de se preparar para o seu destino; após seu retorno crístico, manteve-se junto aos apóstolos e apóstolas por mais 40 dias. Após finalizar a sua missão terrena, em seu nome aqueles que o seguiam recolheram-se ao cenáculo. Prepararam-se para a chegada dos frutos, e estes vieram dentro de imagens, nos símbolos do fogo e do ar. Línguas de fogo e forte vento. Pentecostes nos lembra da necessidade de nos prepararmos para o encontro com o divino, esse encontro íntimo que é no fundo o encontro conosco mesmos. 

Podemos abrir-lhe a porta descuidadamente, passar por ela sem lhe prestar atenção, sequer perceber o que a atravessa e entra em nós. Ou podemos dedicar-nos, fazer silêncio e ofertar todo o nosso ser, reconhecendo a nossa existência para além deste veículo que nos transporta na Terra. Neste fogo e neste vento, na pomba que voa e pousa em nossa coroa, nosso mais elevado centro energético, caminham juntas a liberdade e a responsabilidade. O que fazer com ambas, só cada um com cada um.

Imagem: Nicholas Roerich (Rússia, 1874-1974)

19/05/2019

Estar acordado

(Ao amigo querido que anda a embrenhar-se pelos territórios vastos da origem das palavras. Um prato cheio, posso dizer-lhe, cheio de boas tentações, e sustos pelo meio. Ao longo de anos nesses campos, sei que encontramos as palavras que nos respondem quem somos e onde estamos. E, às vezes, isso pode não ser tão agradável quanto pareça à primeira vista. Se, por um lado, as palavras nos fazem sonhar, por outro pôem-nos a sangrar.)



A palavra de hoje, vigília, foi pedida há alguns dias. Para que fosse praticada, e com consciência, que é o que nos deveria mover de um lugar ao outro nestes tempos. Saber o que se faz. Vigilia é o oposto de estar a dormir. A sua raiz latina gira em torno do prestar atenção. Aquele que está em estado e atitude de vigília é aquele que está acordado, que cuida, que vigia. Pela origem mais antiga, no indo-europeu - weg, chega-se ao ser ativo, ser forte. A mesma raiz deu também origem à palavra que nos faz rápidos, vivos e velozes: -velox.

A Casa de Umbanda que tenho a honra de dirigir está, durante as próximas semanas, em atitude de vigília. Todos os dias, às 13h e durante meia hora, as pessoas reúnem-se para exercitar o estar acordado, ativo, em posição de cuidado. Com consciência e com disciplina, dia após dia somos chamados a esse treino que, por arte de mágica, se estende ao resto das horas do dia. Nem sempre vêm todos, nem sempre se está confortável. Um dia após o outro, como deve ser, tentando ser melhor que ontem e pior que amanhã.

O mundo espiritual, e a vivência religiosa, permitem dessas coisas. Que se treinem atitudes e posturas na direção de um mundo novo, e isso modifica o aqui e o agora, a relação que tenho comigo mesmo e a relação que cultivo com o outro. A Umbanda, e acredito que todas as religiões, é para ser vivida todos os minutos do dia. Modificar quem somos, melhorar aquilo que fazemos nem sempre é fácil; na maioria das vezes, é bom ter ajuda.

A vigília é uma dessas ajudas. Um chamado para parar e estar atento. Prestar atenção aos seus movimentos, às suas ansiedades. Escolher desligar-se das comuns obrigações e simplesmente estar. Lembrar-se de estar. Até forçar-se a vir. Encontrar o tempo de juntar-se a si mesmo para caminhar na direção de ser uma pessoa melhor - mais aberta, mais alegre, mais solidária, mais afetuosa, menos julgadora, menos preconceituosa.

Nesta vigília que nos foi pedida, dizem-se orações e cantam-se canções. Não é preciso mais do que isso, porque a intenção é abrir os canais do coração, cultivar essa paz que tanto queremos.

Gandhi dizia que a oração dita em voz alta faz abrir-se o coração. Por isso, as vigílias dizem orações. As vigílias cantam. As vigílias contemplam. Abrem o centro cardíaco do nosso ser à vivência do que não é palpável. Pedem-nos disciplina, abertura e entrega; preparam o futuro, e aqueles que podemos vir a ser.



16/03/2019

Se Deus é Onipotente e Onipresente, por que precisamos dos Espíritos para chegar até Ele?

Na tarefa de educador, ouvir perguntas é indispensável. Podemos preparar uma magnífica aula, mas ela depende de quem está junto, de quem tem sede de conhecimento, de quem tem curiosidade e a expressa. Ninguém dá aula para o vazio. Alunos que dormem em sala de aula estão alheios, falta-lhes curiosidade? Pela vida, certamente que não - quando podem, conversam pelos cotovelos! Têm as suas indagações internas, suas angústias, seus medos, sua necessidade de saber. Conseguir equilibrar aquilo que se quer dizer com aquilo que quem está presente quer e precisa ouvir é talvez a maior tarefa de qualquer educador. Abrir espaços para perguntas é uma atitude interna que demanda ter interesse pelo que o outro quer dizer e quer saber. Na verdadeira educação, os limites engessam, foram feitos para ser expandidos e movidos de lugar.

A pergunta que dá título a esta postagem foi feita por escrito durante um espaço-tempo de aprendizagem sobre Umbanda. É um desafio, responder a perguntas não programadas. Mas é justamente aí que novo conhecimento pode surgir, nutrindo a todos. Vale para qualquer aula, especialmente quando se entendem os espaços de aprendizagem como espaços de troca, de pesquisa, de dúvida e de busca de respostas.

Então vamos a ela: "Se Deus é Onipotente e Onipresente, por que precisamos dos Espíritos para chegar até Ele?". É uma incrível pergunta, do tipo que faz pensar, pedir auxílio por respostas que não sejam as prontas. O melhor de tudo é que elas, as respostas, vêm, intuições com cheiro de sálvia fresca, um adocicado de tabaco perfumado com alfazema e alecrim bem ao fundo. O Espírito de Vó Chica é um primor nessas horas.

Se Deus é Onipotente e Onipresente, significa que tudo pode e em todo lugar está. Inclusive dentro de nós, ao nosso redor, dentro dos nossos amigos, dos nossos inimigos, daqueles que gostamos mais e daqueles que detestamos. Se tudo pode, pode comunicar-se conosco, e pode também querer que nós nos esforcemos para nos comunicarmos com ele. Na sua infinita sabedoria, esse Deus (que podemos chamar de muitos nomes, de Consciência Cósmica, Fagulha Inicial e um enorme etcetera) está contido e contém ao mesmo tempo. Difícil abarcá-lo, difícil perceber a sua presença (que pressupomos), a sua atuação, o seu lugar. A trilha da evolução abre-se diante de nós em nossa condição terrestre cheia de limitações, e todos precisamos, aqui e ali, de auxílios para caminhar por ela,

Os Espíritos que se dispõem à tarefa de nos auxiliar são seres em evolução que, por livre e espontânea vontade ou aceitação, se oferecem para nos auxiliar nesse caminho. Não são propriamente intermediários desse Deus que tudo contém e em tudo está contido - ou o são também, visto que Deus os habita e é habitado por eles. A sua tarefa maior é oferecer-nos ajuda para nos encontrarmos dentro do burburinho que somos, o que equivale a encontrarmos dentro de nós o próprio Deus vivo. Com a sua ajuda, seus exemplos, seus conselhos, suas recomendações; com seus banhos de ervas, seus pedidos de acendimentos de velas, seus passos energéticos - o que os Espíritos fazem é nos ajudar a entrar em sintonia e equilíbrio conosco mesmos, para que possamos perceber e sentir a presença de Deus.

A tarefa é portanto nossa. Já se foi o tempo em que íamos à igreja porque a família inteira ia, em que rezávamos porque a tradição era assim e o movimento do todo nos auxiliava nesse direcionamento para o Divino. Hoje, as pessoas buscam uma relação com Deus porque querem, porque faz sentido, porque algo as impulsiona nessa direção. Depois desse desejo primeiro, impulsionador do querer, o que há pela frente é dedicação e trabalho. Deus está à nossa espera, mas dificilmente o rio muda seu curso para satisfazer a nossa pequena necessidade. Será mais fácil nos movimentarmos em sua direção para o encontrarmos e nos podermos banhar em suas águas serenas, conscientes do quanto somos nós os responsáveis pela nossa própria evolução. E aos Espíritos, seremos gratos, por se disporem a nos ajudar, generosos, humildes e retos.

13/03/2019

Quaresma e Umbanda

A noite no terreiro, quando a cidade dorme e silencia, é permeada pelas velas acesas no congá. Como presenças divinas que são, lembretes tremeluzentes da luz que existe dentro de nós, transmitem a calma e a paz necessária à reflexão profunda. Muletas?, questionam alguns. Vó Chica diz que não: velas são intenções firmadas, tornadas visíveis nesse mundo de matéria em que vivemos, iluminações de nós mesmos fora de nós. Por que negar sermos o que somos?

Neste tempo de Quaresma, o recolhimento do congá parece assumir outro aspecto. Vó Chica sorri quando penso essas coisas: ela sabe da minha formação católica, e não se incomoda nem um pouco com a maneira como transpira em mim o ser do espírito, livre de nomes que eu dê. E diz mais uma vez: para que negar ser o que se é? São Francisco, a seu lado, aspira o primeiro ar da manhã, e de repente os passarinhos cantam lá fora e me acordam de vez. Dia e noite, noite e dia, o mundo avança.

A Quaresma, sai ano entra ano, é questão que divide/incomoda/inquieta a religião umbandista: devem celebrar-se (ou não) os ritos cristãos dentro da Umbanda? Há templos que não atendem durante esse período, linhas de trabalho a quem algumas casas não abrem as portas de atuação, criam-se penitências de vários tipos - como religião congregadora, é natural que a diversidade impere, e assim como há casas que celebram a quaresma de forma bastante católica, também as há que se distanciam das práticas de outras religiões. Com o passar do tempo, essa flor que o Caboclo das Sete Encruzilhadas fez brotar na mesa farta e ampla das religiões do mundo, vai criando espaços próprios, livres e abertos à profissão da fé de cada um. É bom que estejamos atentos à nossa vontade de cartilhas e manuais, que nos apontam caminhos mas que correm o risco de nos aprisionar dentro deles e não conseguirmos mais ver a realidade. O cultivo da consciência, amparado pelo estudo e pelo conhecimento, é quem realmente nos liberta.

A Quaresma vive no ano litúrgico cristão como um tempo de busca da reconexão com o Cristo, de forma mais intensa do que durante o resto do ano, preparando a vivência pascal, da ressurreição e da materialização do Cristo Cósmico como regente da Humanidade. Esse tempo é celebrado em todo o planeta, porque é a todo o planeta que a essência divina do Cristo se liga, ainda que varie de nome.

Dentro dos preceitos católicos vivem várias práticas, mais ou menos antigas, que visam esse reconectar-se; a vivência das cinzas, por exemplo, como purificação, como percepção da transitoriedade, como aceitação da nossa condição humana terrena e finita. As cinzas relembram-nos que somos pó e ao pó voltaremos, e nos convidam a perceber se o que fazemos, pensamos, dizemos e sentimos entre um pó e outro vale a pena e nos aproxima ou não de quem somos em essência.

Há várias maneiras de fazer esse movimento, e a liturgia umbandista, que depende e varia de casa para casa, vale-se de muitas coisas. Seja neste tempo ou em outro, é preciso escolher momentos de recolhimento, de "olhar para dentro" para conferir o caminho trilhado. Por um lado, recolocar  no lugar correto o que tiver se desviado. Por outro, organizar as necessárias correções de rota, à luz dos aprendizados do tempo. A Quaresma presta-se a esse movimento.

Na sua pessoal preparação para a Páscoa, Jesus retirou-se durante quarenta dias para o deserto, sendo tentado diversas vezes por espíritos que se empenhavam em levá-lo para outro destino que não o seu. Podemos imaginá-lo olhando o seu destino, com a coragem que demanda, colocando as coisas em seu devido lugar, dentro e fora dele. As tentações fortalecem-no, como podem fortalecer-nos as nossas, se tivermos coragem suficiente para percebê-las como tais e fazer-lhes frente. Redobrar a vigilância? Fazer penitência? Individualmente, como cada um quiser. Do ponto de vista de uma comunidade de Umbanda, o que se redobra é a necessidade de acolher e ser acolhido, de escutar e ser escutado, de amparar e ser amparado. É nesse lugar, do Amor e do Afeto, que se firma e funda a fé, e é a ele que retornamos, em profunda reverência, gratidão e busca do exercício pessoal necessário. Por isso, hoje, em muitos terreiros,os trabalhos são mantidos, porque talvez seja este um momento de maior necessidade, e por isso mesmo demande mais ação, mais abertura de coração, mais mãos estendidas. Cuidados? Sim, com certeza - com o próprio pensamento, as próprias ações, com as vibrações com as quais nos permeamos, as companhias que escolhemos, as distrações que aceitamos, os caminhos que escolhemos para o nosso dia. Vó Chica, que definitivamente não se prende aos nomes que damos às coisas espirituais, me assegura que estes quarenta dias são um bom período para nos olharmos mais a fundo, mais no cerne, percebendo-nos como seres espirituais sujeitos à temporalidade do corpo físico, necessitados de um campo de disciplina que nos ajude a não perder tempo. Só isso já nos fortalece no cultivo da humildade. da aceitação e da entrega.

Imagem: https://steemit.com/life/@blessme/helping-hand

11/03/2019

O ronco e o raio


Vó Chica, quando olha para dentro dos olhos das pessoas, vê coisas que os nossos olhos comuns não veem. Às vezes, até, mudam a forma externa para que se pareça mais o que se vê com o que se é de verdade, sobretudo quando tentamos a todo custo esconder aquilo e quem somos. Outro dia, a conversa dela dizia mais ou menos assim.


"Filha, você precisa prestar mais atenção nas coisas à sua volta, e olhar para elas da maneira correta. Senão, você acaba não vendo nada por querer ver tudo de uma vez só. É sempre um passo de cada vez - um, e depois o outro. Não ajuda nada andar a dar pulos com os dois pés ao mesmo tempo. É como um rio, que começa é riozinho, e depois é que vai engrossando, engrossando, até chegar ao fim. E no meio desse tempo, o que é que ele faz? Ele corre, ele se deita sossegado parecendo que nem se mexe, ele salta por cima das rochas de nosso pai amado Xangô, ele lambe as beiradas das matas, vai se espreguiçar nas areias das curvas longas que faz, quando já cansou de ser rio e quer ser mar.

Pois então, olhar as coisas tal qual elas são. Igual esse céu aqui por cima de nós (e Vó Chica põe a sua mão calejada de anteparo nos olhos, e eu estranho, porque é de noite, estamos debaixo de teto, mas Chica vê tudo e longe, e eu vejo junto com ela esse telhado que e repente se transformou em amplidão de sidério). Esse céu, olha lá, filha. Tem vez que ronca e vez que relampeia, não é? E você escuta o que, filha? O ronco ou o raio? Se for querer escutar o raio e ver o ronco, não vai conseguir saber de coisa nenhuma.

Para cada coisa da vida é preciso o sentido correto. Se é de ver, é com os olhos. Se é de escutar, é com os ouvidos. E tá um mais certo do que o outro? É claro que não! Cada coisa se percebe com aquilo com que pode ser percebida. E a vida fica mais fácil quando a gente se humilda assim e se curva diante de Nosso Senhor Pai Oxalá, e pede a bênção e a inspiração pra fazer as coisas do jeito que ele mesminho pensou, antes de nós estarmos aqui. Se fez o raio pra ver, pra que é que nós vamos querer escutar? E pois ainda tem pessoa que quer ver, e se tumultua tudo, e à família também, porque quer que as coisas sejam do seu jeito, e não do jeito que são.

E eu falei em humildade, filha, porque não tem coisa melhor. Quem cultiva a humildade, colhe paciência e aceitação. E quem tem paciência e aceita as coisas sabe muito bem quando que é dia de gritar e quando que é dia de calar, e não fica gastando a vida à toa batendo cabeça nas portas que só vão abrir é mais de tarde, quando o sol se põe e a vigilância do povo adormece. Aí sim, filha: aí é hora de agarrar a maçaneta da porta e abrir igual vendaval.

O que eu mais quero, filha, é que você fique bem perto das coisas divinas, porque foram elas que me ensinaram a ser quem eu sou, que é o que eu já era antes de vir pra esse mundo e sair dele. É tudo mais simples do que você às vezes pensa, e o mais é a espera, que pode ser dolorosa, se for combatida, mas pode ser descanso, se for acolhida dentro dos braços como se fosse um recém-nascido, igual esses que a gente colhe assim que escorrega da Mãe."

27/10/2018

Mente, coração e mãos a serviço

A Umbanda convida-nos a tornar visíveis, com o nosso corpo, nossos pensamentos e sentimentos. Corpo mental, corpo emocional e corpo físico precisam de alinhamento, para que possam viver, de forma coerente, uma mesma intenção ou percepção. Observar a Natureza das coisas é um dos caminhos propostos pela Umbanda para perceber o mundo espiritual à nossa volta, e a forma como propõe a nossa relação com esse mundo também bebe dessa fonte. Estabelecer pontes significativas entre aquilo que pensamos, sentimos e fazemos é uma forma de nos aproximarmos desses mundos invisíveis e impalpáveis.

"Bater a cabeça", que é o ato físico de reverenciar o mundo espiritual ao chegar a um templo de Umbanda, é um convite a que, a partir da sede da nossa ligação mais sutil com esse mesmo mundo, estabeleçamos contato com os mundos sutis. Em nossa Casa, sob a orientação do Caboclo Pena Vermelha, significa deitar-se no chão com a cabeça voltada para o altar, ou congá, lugar onde se torna visível a energia que nos sustenta. Estamos entregues, e dispostos a essa entrega, em várias dimensões. Nossa cabeça, nosso coração e nossos membros estão rés do chão, assentados sobre aquilo que é comum a todo ser humano no planeta, em contato com essa dimensão que a todos iguala: o chão.

Nesse lugar, pensamentos, sentimentos e ações não se sobrepõem uns aos outros, antes se colocam a serviço, diante dessas forças que reconhecemos na natureza das coisas. Por isso a cabeça, o peito onde se aninha o coração, os braços e as pernas que projetam a nossa ação no mundo, estão deitados, alinhados nesse plano mais básico e sustentador de vida terrena. Tornamos visível a nossa prontidão e o nosso desejo de reconhecer a humanidade em todos os que pisam a Terra, não importando escolhas, passado, desejos ou ambições.

Nesse exercício, entender que o mundo físico, e as nossas ações dentro dele, está profundamente ligado aos nossos pensamentos e sentimentos, faz com que os três precisem ser coerentes entre si. Penso uma coisa, mas faço outra? Sinto de uma forma, mas as palavras que expressam meus pensamentos dizem outra coisa? O alinhamento entre o que se pensa, o que se sente e o que se faz é um fator de saúde - da própria pessoa e a da sociedade ao seu redor.

Observar a natureza das coisas demanda que o meu pré-conceito, o meu julgamento prévio, a noção que tenho das coisas até o momento, as minhas opiniões - tudo isso seja colocado em segundo plano. Eliminar o que me constitui hoje seria um contrassenso, porque esse meu pré-conceito, esse meu julgamento, é (também) a minha identidade. Mas identidade é algo que se reconstrói, todos os dias, a partir desses olhos novos que veem o que nunca foi visto, escutam o que não foi antes escutado, e permitem que o mundo avance e se modifique. Desafio? Sem dúvida.

Na vivência de terreiro, exercita-se esse olhar, e exercita-se a percepção de igualdade, a partir desse gesto básico e inicial que é o bater a cabeça. Saudamos todos os que integram o grupo, reconhecendo em cada um a própria humanidade, e assim nos preparamos para o exercício que nos propomos, que é o compromisso em servir. Mente, coração, braços e pernas na direção do Outro, do Próximo, a quem reverenciamos reconhecendo Nele a presença Dele, a presença divina.

Aguardem-nos tempos fáceis ou difíceis, parece indispensável que consigamos nos reconhecer no outro, que encontremos campos de encontro e de troca, que possamos superar a nós mesmos para superar quaisquer diferenças que possam existir entre nós e o outro. Nada terá valor se a coragem nos faltar, diz Rudolf Steiner; são as almas plenas que fazem tudo valer a pena, diz Fernando Pessoa. Que não falte à nossa alma a coragem de reconhecermos que este chão que todos pisamos é a Terra que a todos acolhe.

25/08/2018

Ser do Santo

Perguntam-me, depois do último texto, se eu eu virei umbandista. Virei, há anos.

Não gosto (nada) de definições, essas coisas que, mesmo não querendo, nos restringem. Dizer que se é uma coisa, poderá parecer que não podermos ser outras muitas. Porém, parece que chega uma hora em que são precisas, as definições. Para facilitar a comunicação. Ou estabelecer lugares de fala. Por isso, é bom esclarecer: sou umbandista, também.

Numa palestra bem interessante durante um encontro de escritores no começo deste ano, intitulada "The Healing Self" (o link você encontra logo aí abaixo), Deepak Chopra diz termos muitos e muitos corpos. A cada semana, um novo. A cada ano. A cada período de vida. Um bom ponto de partida para refletir que, mesmo ainda sendo os mesmos e vivendo, somos sempre uma nova edição desses nós mesmos.

Por isso, hoje posso dizer ser umbandista, dentre as várias outras coisas que também sou, as que fui e as que serei. Movimento e liberdade são fundamentais.

E o que vem a ser "ser umbandista"?

Vem a ser colocar-se num posto de observação de si mesmo e do outro que privilegia duas pequenas palavras: amor e afeto. Se formos à etimologia da palavra caridade (caritas) encontraremos ambas. E caridade é uma palavra indispensável no universo da Umbanda, essa religião brasileira que ergue a bandeira do amor e a leva alegremente, entre cantando e dançando, feliz de estar encarnada e atuante no mundo hoje, mudando e servindo conforme necessário, sincrética como a sociedade que reflete.

Ser umbandista é uma alegria diária, um lugar onde alicerçar a fé, um recanto onde encostar o cansaço, onde renovar a esperança, onde se nutrir de presença e "firmeza de cabeça", onde exercitar a fraternidade e onde perceber nítida e clara a presença do mundo que não podemos ver com os olhos físicos, mas que os olhos da alma reconhecem.

Parece um bom tema para escrever mais algumas coisas!



"The Healing Self", Deepak Chopra

19/08/2018

O ser deitado

Entre os muitos processos da Umbanda, a deitada é um dos que mais me encantam. Há casas e templos que a têm entre seus ritos e outros que não, por que a Umbanda é assim: nem todas as pessoas são iguais e fazem as mesmas coisas, nem todas as casas são iguais e fazem as mesmas coisas. E está muito muito certo que assim seja, desde que alguns princípios estejam observados.

É o que acontece na deitada, feita de puro amor, o princípio maior de toda Umbanda.

Chegam os filhos da casa no horário combinado e deitam-se no chão do terreiro: trazem a sua esteira, o seu lençol e a sua devoção pelos Orixás, pela essência divina que permeia toda a criação, das pedras à passagem do vento. Preparam as suas oferendas, essa forma de tornar visível a nossa compreensão e alegria pela vibração do divino e assim com ela nos comunicarmos. Acalmam seus corações da azáfama diária. Um traz um livro para ler durante esse dia de deitada, outro um pequeno trabalho manual ligado ao trabalho espiritual que realiza, um outro traz os pensamentos que precisa acalmar, outro as emoções que precisa soltar. Na deitada (que pode durar de horas a dias, e receber outros nomes dependendo de quem dela fale), o importante é cultivar a paz e o silêncio.

Deitam-se porque vão descansar. Descansar a alma no lago profundo que é a sua própria fé, esse lugar onde nos situamos quando temos certeza de sermos capazes de fazer o que devemos fazer. Descansam o corpo, descansam a alma, descansam o espírito. Retiram-se do burburinho diário, deslocam-se para um espaço e tempo de devoção e reverência. A devoção nos abre as portas do coração e a reverência nos faz rever quem somos, nos faz rever a essência do que somos, nos faz rever aquilo que nos acompanha sempre, ainda que às vezes esqueçamos.

Esse é um dos motivos pelos quais a deitada me encanta: porque permite espaço e tempo às pessoas, para que elas repousem e respirem, abrindo os braços e o coração àquilo que mais profundamente são.

Nós outros, os que ficamos do lado de fora do espaço da deitada (porque há um espaço determinado, protegido, silencioso, amparado e resguardado), passamos o dia trabalhando para que os que estão deitados o façam na maior qualidade possível. Resguardamos o silêncio, ficamos atentos. Preparamos a comida, cada tempero, cada elemento com seu porquê e sua forma. Pensamos nos motivos que nos levam a fazer o que fazemos. Ou não pensamos nada, porque ali não estamos por nós, mas por outros. Nos movemos na ordem, na disciplina e na limpeza. Promovemos harmonia, exercitamos a alegria de estarmos juntos no espirito da fraternidade que nos agrega uns aos outros. Enquanto eles se deitam na esteira, nós nos deitamos neste longo e frutífero rio que é o servir. Fazemos tudo o que fazemos pelos outros, os que deitam. E o serviço, essa dádiva, nos permite sair de nós mesmos sem nunca nos abandonarmos, e assim entrarmos no outro princípio da Umbanda. É quase no fundo aquele mesmo primeiro, porque a caridade é puro afeto e amor. A caridade desperta em nós e nos faz exercer o amor, amando-nos a nós mesmos como amamos os outros e vice-versa, e a deitada faz isso por nós. 

Quando termina o dia, e nos alegramos com os cantos que entoamos e nos emocionamos com o mundo espiritual que de tão tão perto nos acompanha e sustenta, podemos levar nas mãos, de volta às nossas casas, esse presente tão especial que é perceber como é grande e poderoso tudo o que nos habita.

17/08/2018

De rua

Romualdo e Ivanir passaram há uma semana pela minha vida. Literalmente, puxando seus carrinhos de (pensei) recolha de recicláveis. Não. Eram as suas coisas mesmo, as suas casas ambulantes, com todos os seus pertences dentro delas, numa arrumação muito particular acima da lei da gravidade.

Junto com eles, vários cachorros. Limpos, bem cuidados, bem alimentados, de pelo lustroso, olhos atentos e sossegados. Como se estivessem exatamente onde queriam estar, à vontade e satisfeitos com a vida. É Romualdo quem me diz: "você devia era se espantar de nós não estarmos tão cuidados quanto, não acha não?". Decerto.

Ivanir está umas quadras adiante, com dois vira-latas daqueles que parecem rir. "Dona, eu vou cuidar de quem, se não for de quem me cuida?". E não, não é porque os cachorros guardam as suas carroças-casas, e consequentemente as suas vidas. É porque são os únicos que os olham com olhos de ternura, os únicos que percebem quando estão mal ou tristes, os únicos que, a meio da anestesia indispensável à vida na rua, se aninham a seus pés num gesto de amparo. Quem olha para eles, me pergunto.

Como não ficar atordoada? São apenas seis quadras caminhadas, no centro desta São Paulo cada vez mais estranha. Garagens abrigam e lustram carros dia e noite, enquanto pessoas procuram onde se esconder, e aos seus filhos, nas noites de frio intenso deste ano. Toda marquise, requadro e viaduto estão ocupados por casas de faz de conta, ilhas de fantasia de doer o coração. Nesta, à entrada, num papelão recortado no tamanho exato do espaço que sobra, está o chinelo que o dono deixou antes de entrar no barraco improvisado com metade de uma tenda. Ali, do outro lado da calçada, a vassoura e a pá encostam-se à estrutura arriscada da casa, tentativa de manter limpo e habitável o metro quadrado de vida. Mais adiante, espremida no espaço entre a parede e a rua, uma mão aberta e descaída, os dedos longos e escuros, guardados por mais um cachorro de olhos sábios, terminando de lamber a marmita dividida. No meio da praça, o amigo guarda tudo o que encontra, de pasta de executivo a flor encarnada, criando uma sala no meio do vazio cinzento deste dia gelado. Por todo lado, a tentativa absoluta de conseguir um pouco que seja de dignidade, de conforto, de percepção de ser humano.

Cada vez há mais gente nas ruas de São Paulo. E cada vez há mais carros. E cada vez mais pressa. E mais cegueira. E mais incapacidade de perceber que o que é de um é de todos, e a miséria que é do outro é a miséria de todos nós. Estes cachorros do Romualdo e do Ivanir, como se tirássemos Zola da prateleira, estão mesmo mais bem tratados que seus donos humanos, e são estes que tratam deles com o cuidado e atenção que não recebem de ninguém, sem se importarem em reparar muito na própria condição. Dizem que o ser humano se acostuma com qualquer coisa. Eu espero nunca conseguir acostumar-me com essas ruas repletas de olhos e mãos, nunca conseguir encolher os ombros e caminhar sem me incomodar com as minhas mãos vazias, sem palavras possíveis para expressar a tristeza que sinto por poder fazer tão, tão pouco.

Imagem: Gabriel Marcondes

08/05/2018

Dia de feira

Eu nem fui, mas estou aqui lendo os testemunhos de quem foi. Por exemplo:

“É o primeiro ano que eu venho aqui. Eu não sabia. Estou encantada. Eu abraço todo mundo, porque eu voltei lá na minha origem. Eu sou do Maranhão, moro aqui desde 94. Eu estou emocionada com o rosto de cada um desse povo, feliz. Eu vi neles a imagem das pessoas que eu perdi, que eu amava, que são meus avós. Porque eu plantei, eu colhi, eu comi, eu vivi, eu sorri. Meu avô cedia terra para as pessoas plantarem. Eu estou muito emocionada”.

Essa é Alcione França, do Maranhão, migrada desde 1994 em São Paulo. Vou guardar só o depoimento dela, e não mais esquecer, e desejar que ela, que agora sabe, não esqueça. Não esqueça dessa riqueza que todos nós podemos ver nos outros, inclusive as pessoas que perdemos, inclusive aquelas que fomos nós mesmos na infância, esse tempo em que se resiste bem melhor a pautar a vida pelas diferenças que se encontram, e se brinca e se constroem mundos onde todos têm espaço, tempo, lugar e afeto. Estou tão emocionada quanto ela, por ela, e com ela.

Alcione foi visitar a feira do MST neste fim de semana no Parque da Água Branca. Com ela, milhares de pessoas, encantadas com a variedade, a simpatia, o astral, a alegria desses assentados de todos e cada um dos 24 estados brasileiros, trazendo pra São Paulo, sob a grande bandeira vermelha do MST, a sua produção orgânica, verdadeira e suada. A feira causou um reboliço também nas redes sociais, inimizades acendidas pela crescente incapacidade de lidar com o que é diferente de si próprio. Parece o reino da obnubilação. Não há o que se diga, nem evidências que se mostrem. A pessoa é contra, e contra quer ser. Quase parece que abdicou da sua humana capacidade de pensar para além do que já pensou.

Eu nem fui na feira, mas meu filho Cândido foi. E também o amigo dele, Pedro. Entrou hoje na kombi, carona pra escola, de boné MST na cabeça, camiseta vermelho vivo por baixo da camisa xadrez e um sorriso no rosto que me capturou o trajeto todo. Eu olhava pra ele pelo retrovisor, e ele sorria. Nem sei (pensei) se já voltou da feira, acho que o coração dele ficou por lá. Acho que o coração dele se encantou com um país que é tão raro poder se ver, de gente bonita e alegre, sorridente dentro de tudo o que lhe falta, comprometida com o prato de comida que é preciso pôr na mesa de todos. Um país que é raro poder se ver neste sudeste tão rico de tudo e às vezes tão carente do afeto simples que brota de um abraço calejado. Um país que sofre mas não calado, que luta mas não esfaqueia pelas costas, que grita mas não se torna surdo.

Volto para casa e recebo a entrevista de Leonardo Boff, sobre a hora e meia que (finalmente) passou com Lula. Vejo a emoção que não o deixa prosseguir. Abaixa a cabeça e imagino-o na luta para deixar a lágrima para depois. Diz que encontrou seu velho amigo, que é difícil essa vida numa solitária, podendo trocar palavras apenas com quem lhe traz a comida, "uma pessoa muito simpática", completa. Penso em toda a sua luta pelos que mais sofrem, penso no que seus olhos já viram, nas mãos que já apertou, nos corações que já consolou e na luta terrível que deve existir dentro dele para criar na Terra a mesma justiça que Jesus pediu no templo, todos os dias, amanhecendo amanhã parecendo que o ontem nem criou raiz.

Chego por acaso a uma citação do discurso do deputado federal João Amazonas, já lá se vão 70 anos, quando se discutia a questão terra na Assembleia Nacional. Dizia ele: "Resolver o problema da terra é resolver o problema da fome no Brasil, é abrir novas perspectivas para o desenvolvimento industrial do país, porque só com a terra entregue ao povo, em poder dos que trabalham, poderá aumentar o nível de vida das grandes massas e crescer, como se torna necessário, o mercado interno". Setenta anos atrás.

E penso. Não chego a grandes lugares, mas os olhos de Pedro lá no banco de trás da kombi, e o brilho que trazem, recolhido por entre tudo o que viram neste fim de semana, me dão certeza, como se as mãos me dessem, de que nem a luta termina nem a iniquidade passa.



Onde está o depoimento de Alcione: https://www.brasildefato.com.br/2018/05/06/paulistanos-se-encontram-com-os-frutos-da-reforma-agraria/
E a entrevista de Leonardo Boff: https://www.diariodocentrodomundo.com.br/video-leonardo-boff-conta-como-foi-sua-visita-a-lula-na-prisao/
Fonte da foto, e do trecho de João Amazonas: http://ujs.org.br/index.php/noticias/mst-historia-de-luta-e-resistencia-por-rafaela-elisiario/

03/05/2018

Rápido demais

Vetiver Essential Oil
Um querido amigo confidenciou-me, esta semana, tudo parecer estar rápido demais em sua vida. "Não consigo digerir e decantar tudo o que está acontecendo", disse ele. "Parece-me que preciso parar, para poder olhar em volta e entender o que está à minha volta". Não é ainda, entendi, querer saber o que fazer. É entender o mundo ao redor e provavelmente, mais ainda, o mundo dentro de si. Não consegui dar conselho algum que eu mesma pudesse ter aproveitado, mas fiquei com a sensação pairando ao meu redor, várias vezes voltando como pensamento, lembrança, como impressão. Fiz o que costumo fazer: pedir orientação e ficar à espera.

Há meses atrás, minha irmã ofereceu-me um vidro de óleo essencial de Vetiver. Tinha ouvido falar bem vagamente desse óleo, ela disse que me faria bem, segui sua intuição e usei-o alguns dias. Não sei se o óleo ou os dias, tudo estava muito calmo e assim permaneceu, firme e seguro. 

Hoje cedo, preparando o dia de quinta feira, caiu-me o óleo nas mãos, literalmente, da prateleira do armário em que esbarrei. Decidi entender a que vinha.

O óleo de Vetiver é conhecido por nos ajudar a aterrar as nossas emoções, a voltar ao nosso próprio centro. Desconfio que tenha a ver com a forma como crescem as suas raízes, voluntariosas na direção do centro da terra, sem se abrirem em leque e se espalharem em volta. Formam um todo quase esponjoso (deduzo, pelas fotografias), que parece absorver o que está ao redor enquanto continua firme em direção ao centro. Abro o vidro e fecho os olhos - conselho que sigo sempre, de vó Chica, quando quero apreciar alguma coisa. Muitas vezes são os cheiros que me atingem primeiro, mas logo a seguir, e de repente, é a audição que desperta, e então eu ouço.

Vetiver tem cheiro de madeira, madeira úmida e terrosa. Só cheiro, porque é raiz, mas mesmo assim, em perfumaria, figura ao lado dos patchouli, cedro e sândalo. (Descubro que ganhou fama em 1957, quando foi lançado com esse nome mesmo, Vétiver, pela perfumaria Carven; que o Vétiver da Guerlain tem um toque picante, graças a uma pitada de noz moscada; que Térre d'Hèrmes também tem boas doses de vetiver, assim como outro da Guerlain, Vétiver Tonka, com toque de amêndoa e baunilha; que o Vétiver Cologne, da perfumista Goutal, é mais cítrico e solar e que o Sel de Vétiver oferece um aspecto mineral algo salgado. Desde que li "O Perfume", do Patrick Suskind, nunca mais pensei em perfumes.)  

Perfumes à parte, o que me interessa (e interessará a meu amigo) é que o óleo de vetiver resgata de dentro de nós as emoções profundas submersas nos mares do nosso inconsciente. Não sei se, por isso, lho recomende. Em momentos específicos da vida, pode ser que as emoções que subam à tona sejam por demais poderosas e assombrosas, mesmo sabendo que o poder de vetiver, de aterrar e dar chão para essas emoções, seja um de seus grandes trunfos. É uma jornada dupla, sussurra vó Chica, como tudo na palma da vida. Várias linhas que se cruzam, vários sulcos se aprofundando, criando novos veios, novas veias, sangue novo circulando. Nada disso é indolor, mas não é preciso sofrer.

Vetiver, em tamil, língua de onde nos chega a palavra, significa "machadada para cima". Arriscado e perigoso, usar lâminas cortantes viradas para cima, mas parece ser a única forma de arrancar as raízes de vetiver para delas poder extrair seu óleo e usá-las para mais uma infinidade de coisas há mais de 6000 anos. O mais seguro, creio que lhe vou dizer, será primeiro verificar onde estão seus pés, abrir a consciência para o onde se pisa, antes de adentrar com confiança e força esse mundo vetiver. Ser submergido no mais profundo das emoções para ser pela mesma mão terapêutica, guiada pelo cheiro do vetiver, devolvido à superfície, talvez quase sem ar, talvez quase sem chão, mas percebendo à chegada os pés mais firmes na Terra, e as emoções ao seu lado, tão afirmadas e centradas quanto o próprio ser, a quem vetiver ajuda como se fôssemos solo fértil onde é bom cultivar. Como em tudo, caberá a cada um escolher, de acordo com o lugar que a sua consciência ocupa e os caminhos que dentro dela deseja desbravar.


(Como usar o óleo de vetiver? Abrindo o vidro e aspirando seu aroma. Combinado a outro óleo, pode ser esfregado nos pulsos (essa foi a receita da minha irmã). Em inalações, funciona bem combinado a alfazema/lavanda: apazigua e tranquiliza a mente. Em massagens, combinado ao óleo de coco, esfria corpo e alma, tensões e ansiedades, ajuda a lidar com insônias renitentes. Crianças que chegam da escola irritadiças, como se tudo fosse demais? Lição demais, aulas demais, pressão demais, sentimentos demais? Um pouco de vetiver esfregado delicadamente no pescoço ou na sola dos pés, pode trazer alívio e permitir que recuperem seu próprio ritmo.)

Site bacana sobre perfumes http://1nariz.com.br/2013/falando-perfumes



21/10/2017

Águas de rio


Lembrei-me agora tarde deste rio que chamei de "Das Flores" tempos atrás, um dia em busca de Endovélico, um antigo deus pagão do Alentejo português. Um perfume de baunilha enchia o ar, e o rio quase que não deslizava, antes hipnotizava as coisas à sua passagem.

Passaram-se os anos. Com certeza as águas do Das Flores continuam na sua longa e perfeita marcha em direção à foz. Assim como todo rio é matéria de água, todo rio desliza ou corre ou mergulha na direção do futuro.

Observo este rio de hoje, este rio que sorri por entre rochas antigas, do tipo invencível e paciente, e me estende as mãos em convite. Faço-lhe alcançar os meus dedos e mergulho de uma só vez em suas águas claras.

Ouço seu sussurro, essa recitação suave que diz deita-te, deita-te, e deixa-te levar. Estou aprendendo. Experimento deitar-me nas águas como se me deitasse num leito. É um leito, de rio, feito casa em redescoberta. Recebo nas mãos as lições de que preciso. A da entrega. A dos olhos fechar.  A do sorriso como gesto natural do lábio.

Deitar-se ao largo no rio faz o coração inchar. A garganta apertar. As mãos tremerem quando aqui e ali roçam sem querer roçar o fundo de pedras roladas escorregadias. Parece que afundo. Mas não.

Olho para o lado, com cuidado para não encher os olhos d'água. E vejo-te. Estás ali, à distância de um palmo curto, pequeno e largo. Em vez de afundar sorrio. E depois de sorrir respiro.

As águas deste rio imenso atravessam a planície.  Deslizam suaves, sem tropeço de pedra. Adiante o contorno de rochas azuis. Dois pássaros secam-se ao sol, sacodem as penas luzidias, piscam os pequenos olhos. De dentro da cortina d'água, desaparecem no fundo azul do céu. Meus olhos também piscam. 

Há corredeiras à frente, penso, e logo quase digo em voz alta: e uma curva longa, sinuosa e lenta adiante. Todo rio é feito de água e corre na direção do futuro, e o futuro é só o amanhã em processo de chegada. Já está aqui e ainda não chegou lá.

Não há perigo, nem sequer é preciso pensar, escuto. Se o corpo arqueia, em substrato de medo, sinto o teu vibrar ao meu lado, tão na água quanto eu, tão no leito quanto eu, tão na entrega quanto eu. Deixa a água conduzir, dizes-me, e eu descanso os músculos tesos. Respira: quando se arqueia o corpo, os pulmões esquecem-se de tudo e extasiam sem nada fazer. O rio respira sob e sobre mim, e tu ao meu lado.

Saberei deixar-me conduzir por dentro deste rio? Não me lembro de manhã tão cedo mergulhar em águas claras e largar-me assim, debaixo delas como se delas fizesse parte. Talvez o rio seja meu, seja nosso, o nosso primeiro.

Como todos, este rio, feito de água, brilha debaixo do sol amarelo enquanto o vento balança os longos galhos das árvores numa espécie de carícia. As minhas costas tremem como numa lição de amor. As águas deslizando me levam e eu só  me concedo deslizar com elas.