08/03/2014

A cidade feita de luz

Na cidade mais bonita do mundo há uma quantidade assombrosa de recantos que é preciso explorar. Porque pode-se passar à porta, ou diante dela, e achar-se interessante. Mas se não se entra, com a paciência e o sossego característicos desta capital, e uma dose de entusiasmo explorador marítimo, perde-se. E assombro perdido é assombro perdido.

Praça da Figueira, número 7. Vimos desde o Cais do Sodré à procura do lugar. Antes, é preciso comer as últimas castanhas assadas da estação, beber um café que nunca se bebe no Martinho da Arcada, os dedos encostados ao mármore que viu nascer quem sabe um guardador de rebanhos, e vir pela Rua da Prata acima. É preciso desviar das tentações feitas de bustos de Camões e Camilos Castelos Brancos, dos pequenos Afonsos Henriques com vestes templárias espalhados pelas lojas numa súbita paixão nacional pelo primeiro rei de Portugal. Atravessamos a praça que já foi mercado e aterrissamos em pleno Hospital das Bonecas. O burburinho da cidade submerge no lado de fora.

Aqui, a vida é brincadeira. Brincadeira a sério, como são as verdadeiras. Inaugurada em 1830, a Ervanária Portuguesa da dona Carlota em pouco tempo começou a receber as coitadas das bonecas acidentadas das miúdas que por lá passavam ou por ali viviam. Dizem que vinham com as mães e as avós ao mercado, e ficavam encantadas com as roupas de boneca que a jeitosa da dona Carlota fazia, sentadinha à porta da ervanária, entre um cliente que queria tília e outro que perguntava se havia lúcia lima e o outro ainda que chegava apressado para buscar a sua encomenda de amieiro negro. São lindos, os nomes das ervas.

Hoje é a Marta que está ao balcão. Trago a Rosinha, que coitada perdeu a cabeça. Boneca mais querida de casa, prometi que a traria ao hospital. A expectativa é grande. A Marta abana a cabeça: "Coitadinha...". Olha para mim com um olhar compungido (enquanto o filho adulto ao lado não sabe se ri se chora) e diz: "Olhe: ela vai precisar ficar internada". Pergunto-lhe se vai demorar muito tempo e ela diz-me espantada: "Mas, minha senhora... isto é um caso muito sério! Há de ficar aqui conosco por pelo menos um mês!". 

Fico a pensar na coitada da minha filha que acredita que os achaques de boneca são mais fáceis de tratar que os de gente. Engana-se, e nem sabe disso. Especialmente quando se perde a cabeça, e o mundo obviamente destaca-se da sua ordem costumeira, tanto faz se bonecas, se gente. Não é coisa de poucos dias, e não se tem certeza de como se ficará. Digo-lhe que está bem, o que é que se há de fazer, são as coisas da vida, veja lá se conseguem dar-lhe um jeito ao cabelo, já agora... E ela concorda: "Realmente, este cabelo está a precisar passar por uns cuidaditos... Deixe estar que há de ficar como melhor puder ser!", e começa a preencher a ficha da doente. Ao finalizar (precisa de todos os dados, e eu sequer sei o tipo sanguíneo da Rosinha...) instrui-nos: "Vejam, aqui está o telefone (aponta um número no papel), podem telefonar a informarem-se como ela está. Só é preciso que digam o número da cama"  - e aponta outro número, que qualquer incauto chamaria de ordem de serviço, para logo depois ser expulso dali aos pontapés. A Rosinha, que jazia deitada de olhos fechados em cima do balcão, seguiu para a enfermaria, mas não sem antes se despedir de mim, que entretanto quase me vi a encher os olhos de lágrimas. Até porque o respeito pela internação fez esperar os outros clientes da loja, donos da tal paciência, por quase trinta e cinco minutos. Sem queixas nem perguntas, num silêncio que parecia remetê-los às próprias agruras com a saúde dos entes queridos.

Saímos de lá com a alma a precisar de ajuda. Viramos à direita, e outra vez à direita, e chegamos às Portas de Santo Antão, de onde a "Ginja sem rival", da sua minúscula porta, firme e forte desde 1870, nos chamou sem precisar de insistência. Gosto deste gosto lisboeta de gostar das coisas velhas, satisfazer-se e orgulhar-se delas, e mantê-las iguais e idênticas entre um século e outro. O pequeno copo ali à porta, em pé e ao sol, restabeleceu as forças, indo buscar lá aos fundos da memória a sensação de outras épocas.

E continuamos nas andanças. Para esvaziar a cabeça dos problemas das demais cabeças, sejam elas de pessoas, sejam elas de bonecas. Não há, afinal, grandes diferenças, e o que é preciso é paciência, sossego e uma cidade como esta, cheia de luz, de pedras e de esquinas. Uma cidade a ensinar-nos que, para encontrar a primeira, basta aceitar as segundas, e confiar que as terceiras surgirão a cada momento, dispostas a levar-nos exatamente ao lugar para onde devemos ir. 


28/02/2014

Alfa códigos

Esse mundo virtual é um nunca acabar de aprendizado e de inspiração. Entre ontem de noitinha e hoje, repare a quantidade de estímulos que recebi. Por essas e por outras é que não devemos jamais e nunca em hipótese alguma julgar nada nem ninguém, nem antes e nem depois de acharmos que sabemos alguma coisa. Tá confuso? É de propósito.

Ontem de noite, sem querer e um tanto a modo de higiene mental, embarquei numa produção poética coletiva, a partir de um dos poemas do livro Pele, autoria do amigo querido Aléssio Di Pascucci. Outros (Pedro e Má) juntaram-se ao "sarau virtual", como um deles disse, e lá ficamos, umas boas duas horas, mantendo versos quase-quase paralelísticos, regulares na forma, subvertendo-a às vezes com boas sacadas morfossintáticas. Muito bom mesmo. Uma espécie de deglutição do dia que passou, fiquei imaginando, juntando narrativa, poesia e uma dose on the rocks de terapia. Cada um saberá do que falava: num átimo, o que era meu tornou-se nosso, e assim mais fácil de digerir à noite. Bom, né?

Pouco antes disso, havia me deparado com a notícia (que chegou inbox, via uol) para a qual só consegui ligar um adjetivo fora de uso, muito particular do Baixo Minho: estantia. Fiquei estantia. Estupefacta até dizer chega. Mizael de Souza, o triplamente condenado assassino de Mércia Nakashima, a quem o destino fez colocar num dos cursos que dei no Presídio Militar Romão Gomes, declara que vai escrever um livro. O Mizael vai escrever um livro. Para mostrar o seu lado. Os 20 anos a que foi condenado em júri popular, num processo transmitido pela primeira vez ao vivo pela rádio e pela tv, não renderam ibope no facebook, provavelmente porque ele teve a sorte de ser condenado no mesmo dia em que os mensaleiros foram inocentados, e mais sorte ainda porque há uma parcela da memória das pessoas que se esvai como água ralo abaixo. Mizael, aluno do curso de Escrita Criativa do presídio em que cumprirá sua pena, não escreveu na altura uma única linha. Manteve-se numa certa (vou chamar de) soberba convencida, arrogante; deu-se ares de superioridade; quis posar de pop star imaginando ser reconhecido por qualquer um em qualquer lugar. Talvez convicto de que seria inocentado. Errou.

Agora, entro na rede pra ver quem andou se deitando nela. Mole e aleatoriamente vou lendo o que ele, o facebook, sugere que leia: torpor absoluto, que só não é pior porque é consciente. Sim, eu sei que estou lendo o que alguém da além-normalidade me induz a ler. Tudo bem. Manterei o senso crítico.

Mantive, mas não estava preparada para a estultice que cairia sob meus olhos. (Estultice, como estantia, é daquelas palavras que nunca tenho ocasião de usar. Responde por ações estúpidas, insensatas, imbecis e tolas. É o caso.) O blog "Ask Mi" (Mi é uma pessoa) apresenta um alentado (porque só com muito alento mesmo) estudo, recheado de conselhos, resultado de um workshop que a tal Mi realizou com Dora Porto, que por sua vez é orientadora familiar. Nunca ouvi falar dela, mas é na linha daquele "Casamento blindado" à venda em tudo quanto é posto de estrada. Juro que fui lendo achando que a tal Mi estava de sacanagem. Que no final daria risada dos aprendizados recebidos e diria valha-me deus em que século estamos.

Mas não. Os conselhos de "Aprenda a ser uma esposa irresistível" existem pra serem seguidos e são a prova de que não estamos perdidos e há (aleluia!) luz no fim do túnel! Já que

"... a mulher consegue sim fazer mil coisas ao mesmo tempo: comandar uma empresa, cuidar do marido e dos filhos, gerenciar a casa, trocar mil e-mails,  atender o telefone, ir ao supermercado, salão, academia, dentista, médico..... tudo no mesmo dia! Ufa!! E aguentam fazer mais de 2 coisas ao mesmo tempo! O homem nem tanto (...) Eles têm outro ritmo!"

então é melhor se precaver e imprimir e colocar na porta da geladeira a seguinte pirâmide orientadora:

Assim, tudo entrará nos eixos como estava previsto no felizes para sempre e você terá seu marido perpétua e eternamente ao seu lado, como atestam a maioria dos comentários à matéria do blog.

Não sei quem é Mi, não tenho nada que ver com o casamento ou as opiniões dela. Nem as discuto, porque bem se diz que entre marido e mulher não se mete a colher. Cada um saberá das sandices, das convenções, das paranoias e das concessões das suas relações íntimas. Eu tenho as minhas, você terá as suas. Mas é impossível não pensar nessa parcela feminina que em pleno século XXI olha para a sua relação como se ela acontecesse na década de 60 do século passado, aquela mesma década que enormes contingentes de donas de casa tentaram transformar ( e veja: sem considerar que nós não vivemos mesmo na década de 60, onde as mulheres não trabalhavam fora de casa etc. etc. etc.). Isso, por um lado.

Por outro (vá conferindo na tabela), imaginar que o homem (e só ele!) queira uma fabulosa parceira sexual, e que lhe retribua as benesses sendo afetuoso, que à estudada atração que a mulher exerça o homem responderá com honestidade (leia-se: no other women), que o apoio no lar da mulher equivalha ao apoio financeiro do homem, e que a admiração feminina por seu homem criará/manterá nele qualquer forma de compromisso, é demais!

(Antes de ir, passo no mural do Ivan, que acabou de compartilhar uma receita de ovos cozidos em creme de espinafre de dar água na boca. E água na boca é o que há!)



Quer ler a matéria toda da Mi? Clique aqui:

A pirâmide puxei de lá, e os alfacódigos são (claro!) do The Matrix!

Mas bom mesmo é terminar com a tal receita de espinafres e ovos!


26/02/2014

Forma e sentido

Melhor que pensar é sentir. E melhor que compensar é consentir. Melhor do que pensar o que o outro pensa é sentir o que ele sente. Gosto, demais da conta como diz minha amiga Valéria, quando as palavras se encaixam dentro de mim em forma e sentido. E gosto de sentir com o que o outro sente. E, portanto, consinto: tanto faz que pensemos igual ou diferente. Ô sossego.

As palavras têm caprichos: pensa-se sobre elas, e elas ficam mudas, trocistas. Ocupamo-nos de outras coisas, distraídos como borboletas, e elas correm ao nosso encontro, querem contar-nos segredos. Não porque antes não quisessem: nós é que não as abordamos como elas necessitam. Leveza, abertura e sorriso: é disso que as palavras precisam para entrarem dentro de nós e comporem forma e sentido.

Tudo isso a troco do que, pensará você. Porque fiquei pensando um tempo na palavra espiritualidade, surgida a meio de uma conversa gostosa como banheira perfumada. Pensei na sua morfologia, esse ser substantivo que se ergue do raso das coisas para afirmar-se existente. Pensei naquilo que dela dizem os dicionários: qualidade ou condição do que é espiritual. E parei de pensar, porque a nada me conduzia. E senti a tal conversa, mais do que a ouvi.

As palavras precisam da nossa existência mais humana. Daquelas qualidades que se encontram no lobo frontal, como escreveria um neurocientista. As que fizeram Jung dizer "Eu não preciso acreditar em Deus. Eu sei". As que por causa dos gregos nós chamamos de entusiasmo: en-theos, o Deus dentro. As que fazem Leonardo Boff escrever que "é o saber-se pertencente a algo maior". E as que reverbera Daniel Bohm, discípulo querido de Einstein, quando fala da existência de uma "ordem maior subjacente à ordem sensível". São aquelas qualidades em nós que nos humanizam (e que Antônio Cândido diz ser a arte), é aquilo que nos retira do limbo do mundo, do limbo de nós mesmos, e nos estende novos horizontes, possibilidades, visões, encontros. A tal da espiritualidade. Por isso difícil pensá-la e mais tranquilo senti-la. Ou consenti-la.

Freud considerava a religião uma neurose coletiva, uma projeção do complexo pai/mãe num "Pai maior". Uma forma também de evitar psicoses: a neurose ilude, mas permite que se viva. Do ruim, o menos pior, ou algo assim. Os mistérios religiosos são por definição caminhos grupais delimitados por códigos de conduta restritos e precisos, conjuntos de rituais e crenças estabelecidos dentro de instituições e organizações. Igrejas, religiões: sobre a espiritualidade não sei o que Freud pensava e arrisco errar, mas creio que foi Jung quem lhe dedicou tempo e pensamento, quem descortinou por trás da existência humana essa sobre-existência, essa transcendência a que chamou (erro de novo, talvez) espiritualidade. Coisa do espírito, dessa nossa parcela que é a que nos confere o estado de humano, e por isso dizia eu ali em cima que as palavras precisam do nosso mais humano: porque elas são puro exercício de espiritualidade, são o próprio espírito em ação. Quando deixamos, claro e óbvio como vidraça recém lavada.

Mas isso sou eu, que gosto delas e com elas me entendo. Para outros será a espiritualidade outra coisa, porque é momento e caminho individual e pessoal, uma jornada que é um estado, e não um modo de vida. Esse fio condutor que une tudo a tudo reconhece-se assim que uma mudança interna e profunda acontece. O que a prepara, à nossa mudança, é o nosso movimento, o nosso exercício de relação e reconhecimento disso que é mais que nós mesmos e que somos nós ao mesmo tempo. O novo rumo, o novo sentido são os atributos visíveis da espiritualidade.

O que pressupõe o exercício da busca, e por isso nessa conversa surgia esse atributo: espiritualidade é exercício. Sem dúvida. São passos que se dão, com um norte intuído, que a alma percebe e persegue. Às vezes, o norte não leva a canto algum. E perde-se tempo. Ou não. Porque cada caminho é caminho e cada ser é ser. E por isso é mais fácil consentir, e aproximar-se do outro pelas forças que vivem no outro lado do lobo frontal, e que ganha o nome de coração. A geografia humana não obedece aos olhos da razão.

Leio num site que atribui a Lucas, 10, 25-37 palavras que não saíram de sua pena. Mas faz sentido: "Espiritualidade é tudo que é capaz de produzir em mim uma mudança de pensamento, atitudes e conceitos, que me colocam num novo rumo e me oferecem um novo sentido para a vida". Por isso, e outra vez consentindo: como, pela graça de deus, poderia alguém dizer a um outro alguém que a sua escolha de caminho está errada? Que a sua vivência espiritual está equivocada? Que seu caminho a nada conduzirá? O exercício da dúvida, outro atributo da espiritualidade humana, freia-nos a língua, impede-nos de dizer o indizível, de julgar o injulgável. Nos caminhos do espírito, a liberdade precisa imperar serena.

E, assim como nos céus, na terra.


19/02/2014

Marwan, Philomena, Hilda, Rosa e Chico

Devo ter visto em sonhos esse menino de só 4 anos chamado Marwan. Acompanho as notícias da crise no mundo árabe a distância segura, por detrás dessa tela onde é preciso filtrar e decodificar com constância. Desconfio de manchetes. Provavelmente porque prefira as coisas e as pessoas que não se constroem para chamar a minha atenção, mas a chamam por serem o que são. Quanto menos filtros, quanto menos encenações, melhor. Descubro, agora cedo, que Marwan não estava perdido e solitário em meio a um deserto do tamanho do mundo. A revoltante imagem do garotinho vagando pelo deserto com uma sacola na mão rodou o mundo inteiro, e sabê-lo afinal a poucos metros da família, perdido apenas na desordem do momento de atravessar a fronteira entre a Síria e Jordânia, quase parece querer retirar-lhe força. Marwan agora vive em Zaatari, um dos maiores campos de refugiados sírios. Aberto em 2012, cresceu a uma média de 1500 a 2000 pessoas por dia. Em julho de 2013, eram 144.000 refugiados. Marwan integra essa que é hoje uma das maiores cidades do país. A sua tragédia pessoal, longe de diminuir, aumenta. Catastroficamente.

Enquanto Marwan descobre sua nova morada, eu me sento confortável numa poltrona de cinema. Não sei como juntar as injustiças do mundo dentro do meu coração. Assisto Philomena. A saga de uma irlandesa atrás de seu filho, dado por adoção pelas freiras do orfanato em que vivia. Triste, hilário e emocionante, daquela forma que (acho) apenas os ingleses conseguem. Philomena é uma mulher de verdade, de 80 anos, que está neste momento engajada em forçar o governo irlandês a abrir os registros das adoções feitas no país. A sua tragédia pessoal, imortalizada como a de Marwan através de imagens e palavras, vem juntar-se às do resto do dia.

Hilda e Rosa trabalham há mais de 30 anos no mesmo salão de cabeleireiro. Nesta luta insana que travo comigo mesma para eliminar a onicofagia (palavra muito mais fina do que "roer as unhas"), encontro pérolas dentro desses lugares. Assim que sei que trabalham ali há tantos anos, e que esse salão em pleno Santo Amaro tem mais de 50 anos de idade, imagino um sem fim de histórias dos áureos tempos, as modas passando na minha vitrine pessoal num entusiasmo ululante. "Ah, Rosa, você deve ter atendido pessoas bem diferentes...". Resposta lacônica: "Que nada, gente é tudo igual". E mesmo que aos poucos Hilda comece a contar uma coisa daqui, outra dali, até chegar ao sobrinho que morreu com 4 anos, e que ela não perdoa a cunhada, porque foi ela quem o matou (a barbárie à solta por todos os lados, dois meninos de 4 anos submetidos a elas todas), eu fico com essa da Hilda. Gente é tudo igual.

Como o Chico, morador de rua do bairro de Santo Amaro, como se apresenta assim que paro o carro na padaria e ele me pede uns trocados. Convido-o para tomar um café e não damos tempo ao entregador de comanda, que procura com os olhos o gerente e não sabe o que fazer com a visita incômoda. Fico me perguntando se as pessoas que olham de lado terão se emocionado com Philomena e se desesperado com a foto de Marwan logo cedo ao ler o jornal. E penso em Hilda, e na assustadora lucidez do seu "gente é tudo igual".

E agora, quando já não sabia mais como juntar tudo isso em algo que me faça por os pés pra andar e fazer algo de útil na vida, uma amiga querida e combativa oferece-me de bandeja a frase de Simone de Beauvoir: "O opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos". E eu penso, e respondo-lhe: quem, dentre nós, poderá jogar a primeira pedra? Quem, dentre nós, poderá dizer-se inocente do destino de todos os Marwans, de todas as Philomenas, todas as Hildas, todas as Rosas, todos os Chicos?


Imagem: Zaatari Camp, Jordânia. afp/getty images

Últimas notícias sobre o menino encontrado no seu peregrinar:
http://www.dailymail.co.uk/news/article-2562183/The-truth-heartbreaking-photograph-Syrian-boy-cross-border-separated-family-desert.html?ico=worldnews%5Eheadlines

Sobre o campo de Zaatari:
http://en.wikipedia.org/wiki/Zaatari_refugee_camp

Sobre Philomena, a pessoa
http://www.theguardian.com/film/2014/feb/05/pope-francis-philomena-lee-steve-coogan

14/02/2014

Com as estrelas

Eu, como várias outras dezenas de mortais, leio meu horóscopo todos os dias. Na maioria deles, o que o pequeno parágrafo faz por mim é oferecer-me uma nova luz que ilumine um detalhe ensombrecido do meu dia, ou da minha vida. Parece-me que o fato de se olhar com tamanho grau de atenção, minúcia e detalhe para um ponto luminoso no céu, e para seu encontro com outros, concede qualidades raras e importantes. E é isso que fazem astrônomos e astrólogos, figuras que aliás em sua origem eram a mesma coisa. 

Babilônicos e egípcios observavam o céu com uma sistemática absoluta, o que os fez perceber a influência que tem o movimento dos astros sobre a terra, inclusive sobre as internalidades dos seres bípedes que lá vivem, que no caso somos nós. Estrelas são coisas que brilham, e a sua observação faz outras coisas brilharem também. Por isso gosto de ler meu horóscopo: porque parte de uma região do universo em que as coisas brilham. Sweid, a raiz indo-europeia de estrela, significa isso mesmo: brilhar. Ao longo do tempo, sweid deu à luz sidus-sideris, a maneira sonora como os latinos falavam das estruturas brilhantes sobre suas cabeças. De forma entranhada, o sidério amalgamou-se a outros lugares da nossa vida, de tal forma que nem o percebemos mais. E por não saber que está ali, deixamos que passe batido.

É o que acontece com a palavra considerar. Deriva, como se percebe logo, de sidério. Portanto, da observação dos pontos luminosos. Na sua origem, considerare significava consultar em seu conjunto a posição dos astros, para comparar com algum fato acontecido ou vaticinar algum a acontecer, o que corrobora aquela teoria de que astrônomos e astrólogos tenham desenvolvido, ao longo de gerações de observação atenta, a possibilidade de encontrar relações entre os corpos celestes e as nossas vidas. Para nós, nos dias de hoje e de forma comum, considerar é observar algo atentamente: é levar algo em conta, dar atenção, pesar, examinar, apreciar, meditar em.

Ou seja: quando se considera algo ou alguém é porque se lhe presta atenção: observa-se fato ou indivíduo com a mesma sistemática e o mesmo grau de concentração que um astrônomo dedica a uma supernova. Por considerar-se, passa-se a saber mais do seu movimento particular, das partículas que emite, daquilo que lhe provoca nebulosidade e desconforto e das condições que fazem com que brilhe com mais intensidade. Considerar demanda dedicação e tempo, vontade e ação, curiosidade e interesse: sem o olho que encosta na luneta e se detém naquilo que a princípio parece distante e incompreensível, não há como saber nada sobre nada.

Levar alguém em consideração é carregá-lo dentro de si com esse grau de atenção. Desconsiderar é esquecer. Desconsiderar é deixar de prestar atenção. Desconsiderar é fechar a cúpula do observatório particular porque a vida às vezes incomoda, porque se ficou cansado. As estrelas, pensamos, amanhã continuarão no céu. E vamos dormir o sono dos justos. Mas as estrelas morrem longe de nós, embora o seu brilho demore muitos, muitos anos para apagar-se do nosso próprio céu. Só o olhar atento, cuidadoso, amoroso, o olhar tão gentil quanto o toque de um indicador sobre a pele virgem de um recém nascido, saberá dizer se o brilho que vemos no céu é de uma estrela que ainda vive, ou de uma estrela que já se tornou poeira cósmica, e da qual perdemos o tempo, o brilho, a entrega e a vida. 

Por isso, penso eu com meu horóscopo de hoje, quem tem tempo a perder, que o perca. Quando nasce em meu céu uma estrela, faço o que devo: dedico-lhe o olhar amoroso do astrônomo, dedico-lhe tempo e cuidado, pensamento e ação. E aguardo o tempo dessa nova luz cruzar seu olhar comigo, e desse encontro brilhante nascer algo a que podemos chamar o que quisermos, porque pertence a nós dois, e a ninguém mais diz respeito. E quando o tempo for passado, que o cosmos nos absorva.


Imagem: aquarelogravura de Ivani Ranieri

12/02/2014

Sensações, Sentimentos e Disposições

Dizem que no tempo em que o mundo se formava, existiam no universo três qualidades distintas: as Sensações, os Sentimentos e as Disposições.

As Sensações situavam-se à superfície da pele dos seres: delas derivam, em nós, a sensação de frio ou calor, de lisura ou aspereza, de delicadeza ou brutalidade. Naquele tempo longínquo, as Sensações respiravam livremente, sem os constrangimentos e as dificuldades que nós, seres humanos, trouxemos para a parcela de universo que nos foi reservada.

Os Sentimentos situavam-se poucos centímetros abaixo da pele dos seres. Talvez seja importante saber que a pele, nos seres dos tempos antigos, era a sua mais poderosa força, seu órgão mais sensível, mais perceptível e completo. Por isso, e não por outros motivos, as qualidades dos seres podiam ser observadas e sentidas através da pele. Coisa que nós, seres de hoje, também conseguimos, mas logo calamos em nós essas percepções tão profundas, porque a Obrigação, a Responsabilidade e a Culpa são qualidades que sobrepusemos aos Sentimentos.

Os Sentimentos, assim, viviam logo sob a pele, reino das Sensações. Nutriam-se daquilo que atravessava a então lisa e flexível membrana, recebiam as emanações das Sensações, e irradiavam-nas em forma de luz e algo que entretanto perdeu o nome, por todas as partes de dentro dos seres. Eram alimento da mais pura qualidade, e rebrilhavam na pele em seu caminho de volta. Aquilo que os olhos deixam transbordar são derivações atuais da qualidade Sentimentos. E por isso, quando o Poeta disse, "Esse seu olhar/quando encontra o meu/fala de umas coisas/que eu não posso acreditar", está realmente acessando essa memória ancestral daquilo que foram os Sentimentos na origem dos seres.

As Disposições vivem em regiões mais profundas. São, sabemos pelos antigos escritos, Sensações e Sentimentos transmutados. Tendem a ser mais lentas, mais firmes, menos abertas, mais silenciosas, talvez menos alegres. Se fosse preciso comparar, poder-se-ia dizer que as Sensações são as mais voláteis, os Sentimentos os mais plásticos e as Disposições as mais persistentes.

As Disposições gostam particularmente de tudo o que já foi esgotado e dissolvido. Desse fim a que tudo chega, resgatam a vida que a tudo subjaz. Observam-na, reviram-na, deglutem-na, amalgamam-na a sua própria matéria, e fazem-na reviver. Queimam como fênix. São os brotos nos campos requeimados. Resgatam do grande caldo amornecido que as Sensações e os Sentimentos produzem, as partículas de pura luz. Às vezes, são infinitamente pequenas, mas não importa, porque em sua evolução as Disposições aprenderam a sobreviver de quase nada. Dentro delas, quase nada é um mundo que não termina.

E as Disposições alegram-se, porque a sua tarefa é a transcendência da morte, e só elas sabem que por trás de tudo está tudo o que há. As Disposições são camaleônicas: tingem-se, vestem-se, despem-se. Reviram todos os seus avessos e ressurgem da maneira que for precisa. Só as Disposições não desistem. E só as Disposições reconhecem a mão do destino. Tem razão aquele que diz delas serem concretas: são pura concretude num mundo que tende à dissolução dos seres.




Lemniscata de luz, símbolo do amor infinito, 

06/02/2014

Insular, verbo feminino




Há palavras que dá gosto fazer passear por dentro da boca. Repare nesta, uma das minhas preferidas. Tão grande que precisa de um parágrafo só para ela.

Insular.

Gosto de pensá-la verbo, e de pensá-la em ação dentro da minha vida. Insulam-se as coisas à minha volta, agora que escrevo. Insulam-se os meus pensamentos: rodeio-os dessa substância chamada Palavra que, além de alimento, é aquilo que não me trai. Insulam-se os meus dias, e torno-me ilha.

Paro um instante, antes de prosseguir, para dizer a palavra em voz alta. Insular: sai-me por entre os dentes, sibilante como um braço de água virgem. Demoro-me nas vogais, para que o vento dessa água possa transportar-se para dentro das palavras escritas. Tenho cada vez mais a impressão de que as palavras nascem de dentro do vento. Tenho um amigo que ouve vozes-vento. Eu insulo vozes nascidas no vento.

As ilhas não são apenas palavras de género feminino: as ilhas são seres femininos. Veem-se ao longe antes de serem tidas de perto. Um assombro, estar-se embarcado durante dias e de repente, em meio ao espelho azul que é o mar, ver surgir a Ilha como que num encantamento. Todo mar é masculino, assim como toda ilha é feminina. 

As ilhas permanecem em meio a vagas e serenos, mares de todos os tipos lambem as suas praias, nuvens de espuma marítima alçam-se na direção dos penhascos mais altos das suas encostas. Nelas, abrem-se grutas secretas, onde só os primeiros olhos conseguem chegar e ver. Há ilhas lisas e calmas: toda a sua extensão se desdobra diante dos olhos sem cautela alguma. Há ilhas escarpadas, arredias, como cervos assustados ao ouvirem o tiro distante. Há ilhas que se dobram sobre si mesmas, reinventam-se a cada estação para não sucumbirem.

E há ilhas que se reconstroem, após a invasão das ondas. Choram as suas dores internas em lugares que ser algum conhece. Curam-se em silêncios de grito engolido. Há ilhas tenazes, persistentes, teimosas. O mar cobre-as inteiramente, quase parecem desaparecer. Mas os mares sempre, sempre refluem, mais dia menos dia. Vão-se em busca do seu tamanho, conscientes da ferida que é a sua natureza aquática. As ilhas reaparecem no lugar onde sempre estiveram. São novas, e são as mesmas.

Há ilhas cheias de remansos e lugares bons para os homens aportarem nas embarcações que usam como cavalos do mar. Baías e enseadas protegidas, o sol a pino a secar os corpos que nadam através das águas salgadas, do barco à praia. Estas são as ilhas lugares de acolhimento. Abrem-se sem conhecerem o que é o pudor. Permitem a entrada àquele que deseja entrar. As suas árvores, os seus arbustos, ainda que precisem de facas que os deitem ao chão, não sabem opor resistência que os homens não possam vencer. E por isso as ilhas são às vezes tomadas, às vezes saqueadas, às vezes roubadas, às vezes invadidas, às vezes magoadas.

Mas há um território inconquistável em cada ilha. A esse território, ninguém subjuga, permanece escondido e protegido e inviolável. Está por baixo dela, na escuridão do mar, espaço único onde ilha e mar são coisa única e se misturam e convivem como se fossem cada um sozinho o mesmo lugar do outro.

Gosto de pensar nesse lado de baixo das ilhas, braços de rocha a estenderem-se numerosos até o fim absoluto da terra. Imaginá-lo cheio de reentrâncias, por onde a água do mar caminha com delicadeza e suavidade, os dedos cuidadosos estendidos na direção dos lugares mais vulneráveis, e proibidos, e sensíveis. Pode haver tempestades à tona d'água: nesse lugar do embaixo, a vida corre em outro tempo, em outro mundo, de outras formas. 

Talvez seja esse o lado mais feminino da ilha: um lado que não é lado mas absoluto todo, um lado iridiscente, a luz própria de toda ilha a iluminar o mundo sem luz do fundo do mar. E o mar, então, azula-se em tons nunca vistos, um passeio do negro mais escuro aos cerúleos, aos cianos, aos marinhos, aos cobaltos, aos cárdeos, aos safiras mais faiscantes. Surgem seres vermelhos, pequenos camarões de grandes olhos, que sorriem para esse mar transfigurado. 

A ilha revela as cores do mar. Amalgama-se às suas pernas, ao seu tronco, a cada uma das partes sem nome que o mar não nos diz ter, para que achemos que ele é apenas uma massa compacta de água, e sal. Mas não: o mar, quando descoberto dentro da luz do lado escuro da ilha, cresce em tamanho e poder, e é verdadeiramente o mar que nasceu para ser. À ilha, basta-lhe insular.


Publicado originalmente em

30/01/2014

As mil palavras

Foi Confúcio quem disse, 470 anos antes de Cristo nascer, que uma imagem vale por mil palavras. Não consigo, em lugar algum, encontrar o contexto em que ele chegou a essa conclusão. Talvez quisesse alertar seus discípulos do silêncio que deveriam manter ao observar uma imagem, para que as suas mil palavras não atrapalhassem as do colega ao lado. Ou talvez o mestre chinês discorresse num dia ensolarado sobre a volatilidade da palavra falada, e da necessidade da sua contraparte-ação se tornar visível - algo assim como "promessas, só quando fatos". Ou talvez nada disso, e apenas seus olhos estivessem em contemplação profunda do entardecer de sua janela, e ele não conseguisse encontrar palavras que descrevessem o que via.

O fato é que essas suas palavras atravessaram os quilômetros e os séculos que nos separam da China e do ano 470. Estão aqui, vibrando diante de duas imagens que vejo, veiculadas no facebook. Fiquei tentando perceber que conjuntos de mais de mil palavras poderiam elas representar para quem as observasse.

Dentre todas as mil palavras pelas quais pode (ou não) valer a imagem aí ao lado, o recorte está estabelecido na diferença que existe entre o mundo emocional do homem e da mulher. O que só contribui para aprofundar o abismo sexista entre todos nós, superficializando o nosso entendimento sobre o masculino e o feminino. Concluí que, das duas, uma: ou o machismo nosso de todo dia é realmente implacável e impede o mundo masculino de sentir o seu ao-redor e o seu em-dentro, ou o mundo feminino tem a capacidade de integrar, em 24 horas, 18 vezes mais emoções do que o mundo masculino. A maioria dos comentários à imagem, no entanto (as tais mais de mil palavras pelas que a imagem deve valer) reportam o entendimento de que as mulheres são instáveis, complicadas e exageradas, e que os homens, em comparação, são poços de equilíbrio e equanimidade. Embora ambos coincidam no fim: dormem. Todos nos rimos, e vamos em frente. E a imagem fica, porque, já sabemos, vale mais do que mil palavras. Só que as palavras, os fotógrafos que me desculpem, são o reino do humano, e não só valem quanto pesam, mas ficam.

Porém, a imagem que mais me suscitou incômodos foi essa à sua esquerda. Que vale, realmente, por mais de mil palavras, que deveriam levar-nos à constatação do grau descivilizatório a que chegamos, nessa precoce, abusiva e incensada alcoolização de nós mesmos. Os comentários-mais-de-mil-palavras sobre a imagem riem-se, e tornam a rir-se. Não sei se de constrangimento ou iniquidade: os rsrsrs e os kkkk são dúbios demais para saber, mas eu fico-me com a impressão da inconsciência meio boçal pairando leve, solta e lisa.

No meio desses comentários, um chama a minha atenção: "Deve ser pros professores chegarem no 'grau', pra suportarem o 'rojão' que os espera!!!".

Com as aulas começadas esta semana, fico me perguntando qual o desastre maior. Se a imagem, se as palavras. Vejo os novos professores dos meus filhos, e nenhum deles me parece precisar "chegar em grau" algum, porque consigo reconhecer o brilho do entusiasmo de um ano que começa. Mesmo com as previsões mais terríveis e catastróficas que queiram fazer-se, ser professor é adquirir o "grau" no exercício da sua paixão, que é estar em sala de aula com as pequenas e grandes pessoas com quem irão conviver pelo menos ao longo de um ano. Com todos os desafios que isso comporta, e ainda bem, que sem desafios ninguém se torna o que vai se tornar. Vejo os funcionários das escolas, e a dedicação no abrilhantar, no limpar e no organizar os espaços, para que acolham e recebam essas pessoas especiais que vão ser a sua convivência diária. Vejo os novos colegas dos meus filhos, e o que sobressai é o brilho do reencontro com os amigos e a expectativa do que o ano reservará. Nenhum rojão, a não ser de festa por mais um ano começado.

O preconceito múltiplo dessas menos-de-mil-palavras atinge-nos como professores, como alunos, como pais, como educadores, mas principalmente como seres humanos. Ainda assim, e apesar disso, continuamos na efervescência volátil e aparentemente inócua dos rsrsrsrs e dos kkkkk. O que equivale a abdicar dessa capacidade nossa chamada pensar, e a forçar-nos a entrada num universo de falência dos valores que tanto queremos prezar, da solidariedade à inteireza, da honestidade ao respeito, da lisura à inteligência. 

Salve Confúcio, salve o novo ano, e salve todas as escolas que temos ao redor e dentro. E salve Millor Fernandes também, que completou o mestre acrescentando: vá dizer isso com uma imagem. 

28/01/2014

Alheiras, Miranda do Douro e Oxóssi

Se há uma coisa que me espanta, é a maneira como as ideias se espalham e se reencontram no exercício do pensar. Agora à noite, um instante antes de tentar adormecer, pensei que escrever sobre alguma coisa haveria de fazer-me bem. Para aquietar o coração. Pus-me, por isso, a pensar em qualquer coisa que quisesse insinuar-se. A ideia de precisar escrever tornou-se imperiosa, e logo percebi que, sem escrever, não conseguiria mesmo dormir. Era de se esperar.

Mudei de lugar. Fui àquele onde a inspiração se tem notado mais presente nos últimos dias. Ando com a ideia de que a inspiração é também um fator regido pelas microgeografias de uma casa. E vem-me, sem querer, a imagem de um arco e uma flecha. Lembro-me da imagem aí ao lado, guardada há tanto tempo e à espera de ser precisa. É hoje que a uso: penso no orixá que se acabou de comemorar dia 20. Dia de Oxóssi. É ele que se aproxima quando se pinta, se escreve, se modela, se borda, se tece, se esculpe, se dança, se canta, se toca. Onde há arte, há a mão, o arco e a flecha de Oxóssi, qualidade divina da sustentação da vida. Oxóssi é o caçador arquetípico, aquele que se celebra ao redor da mesa, é a alegria, a independência. Expande-se e fortalece-se nas matas, nos ambientes virgens onde pode avançar sem constrangimentos. Os animais e as plantas são parte do seu ser, e neles a sua qualidade se reanima. Oxóssi aproxima-se de mim, invariavelmente, sob a luz de um novo aspecto do que já conheço. A partir da sua presença em mim, adquiro a capacidade de olhar com novos olhos esse terreno que se revirginou, e ressignificar a vida à minha volta. A flecha rápida e certeira de seu arco atinge-me a meio do corpo.

Essa nossa capacidade humana de ressignificar a vida é uma forma de encantamento. Ressignificamos sofrimentos e mágoas amparados na premissa de que tudo necessita transformar-se. E mesmo que muitas vezes esperemos a transformação do outro, os nossos passos fazem-nos inexoravelmente transformar a nós mesmos. Esse movimento de transformação aproxima Iansã de Oxóssi. E a alegria de Oxóssi alegra-se mais no encontro com a força direcionadora de Iansã - toda essa força criadora encontra no vento e nas tempestades de Iansã o lugar de seu direcionamento. É de se aproveitar.

Nessa minha intenção de observar os caminhos do meu pensamento sem interferir muito neles, nem sei bem como, de Oxóssi, cheguei às alheiras. Tá certo que um amigo querido publicou na internet uma fotografia saborosa de uma dupla de alheiras na brasa. Mas há algo mais.

Esse algo mais é justamente a capacidade ressignificadora. Alheiras são um tipo de enchido comum em Portugal. Parece-se com o chouriço português (que é mais uma linguiça do que um chouriço feito de sangue, lá em Portugal aliás chamado morcela), mas não é. A marca da sua nascença foi querer-se parecido com o parente. Ressignificou-se o alimento para que um povo pudesse permanecer vivo.

Da seguinte forma. Nos tempos em que os judeus precisavam converter-se ao cristianismo, uma das formas de conferir a verdade dessa conversão era aferir a existência ou não de chouriços nos fumeiros das casas dessas pessoas. Já se sabe que judeus não comem carne de porco, e que chouriços são feitos de carne de porco. Portanto, difícil um judeu comer um chouriço. E porque a fé de um povo não se remove por decreto, foi preciso ressignificar o dia a dia. Em algum momento, alguém teve a ideia de produzir um enchido que pudesse pendurar-se no fumeiro e que pudesse ser comido por quem não comia carne de porco. Nascia a alheira: um chouriço que não era chouriço, feito de carnes de frango, ou peru, ou codorna ou perdiz ou o que se encontrasse e não fosse ser chafurdante na lama. Estamos ao norte de Portugal, e muito especialmente numa região resistente, de onde brotou não só a alheira, mas também uma cidade chamada Miranda do Douro, berço da segunda língua oficial portuguesa.

(Aproveite para ressignificar o seu conceito sobre a Lusitânia: duvido, e muito, que você soubesse da existência de uma segunda língua oficial nesse país que tem menos habitantes que a cidade de São Paulo!)

Para ressignificarem a vida, e ressignificarem a sua relação com esse mundo-cão que tudo engole, os 15.000 falantes de mirandês realizaram uma série de proezas oficiais. Entre elas, a publicação de dois livros de Astérix em mirandês: uma espécie de afirmação contundente do caráter revolucionário de resistência desse pequeno grupo. Uma pequena ilha em meio à barbárie europeia. 

Existe também uma wikipedia em mirandês, a Biquipédia: http://mwl.wikipedia.org/wiki/P%C3%A1igina_Percipal, e existem placas bilingues por toda a cidade de Miranda. 

Quer um exemplo de mirandês? Segue um, mas com o aviso de que vale a pena surfar um pouco pela net e descobrir a quantidade de sites nessa língua. 

Durante ls seclos XV i XVI, Pertual fui ua poténcia mundial eiquenómica, social i cultural, custituindo-se l purmeiro i l mais duradouro ampério quelonial de amplitude global. Zde la cunquista de Ceuta an 1415 até a la cessaçon de la admenistraçon de Macau, an 1999. 

Sabendo-se que Pertual significa Portugal, não será difícil entender o que está escrito. E é lá, nessa região mirandesa, que nascem as tais alheiras, as mesmas que o amigo Claret celebra na sua publicação. De uma tacada só, ressignifica-se a língua que falamos, a comida que comemos, a história que sabemos e a vida que vivemos. 

Encerrar este dia cheio de demandas com tanta ressignificação faz-me olhar para a noite que se apresenta com outros olhos, e, mais além, o dia de amanhã, com outros também renovados olhos. E meu último pensamento do dia assume a forma  a força de um desejo: que, a cada dia, a energia irresistível do vento da mudança nos atinja, permitindo que ressignifiquemos eternamente a nossa permanência amorosa uns junto aos outros.

26/01/2014

Do México à Cantareira

Hoje, acordo na Mooca: como deixar passar em brancas nuvens os 460 anos da cidade de São Paulo? Primeiro, de véspera e em boa e especialíssima companhia, jantou-se um caprichado nachos y queso y chili. Preparação para a festa. Hoje, almoça-se um temperado falafel no Mercado da Cantareira. Tudo junto e misturado a esse calor insano a sol pleno. Fosse o Rei, diria quantas inumeráveis emoções.

De tudo um pouco, e quase sem se perceber. Tem pernambucano guardador de carros observando de dentro da sua camisa o povo que vai, o povo que vem. Abre-me uma vaga que vai logo logo estar na sombra. "Bem vestido porque é dia de aniversário", diz ele em seu sorriso de poucos dentes, quando lhe pergunto se não está assando de tanto calor dentro da camisa escura de manga comprida, abotoada até o pescoço. Os olhos miúdos quase se escondem por trás da pele curtida e grossa de anos de labuta sem fim nessa selva tão de pedra quanto o sertão. Tem dois argentinos parados na frente do Mercado, querendo saber de museus, e tem a Cida, maquiadora de Jundiaí, que decidiu mostrar-lhes São Paulo. Vem me perguntar se sei onde que tem museu: diz ela que tenho cara de quem gosta de arte, e ela quer agradar os novos amigos que fez no metrô com isso mesmo, arte. Gosto, digo-lhe, até quando não devo. E ela ri. Bonita vitrine do seu trabalho, elogio-lhe a maquiagem caprichada. A artista, afinal, é ela. E ela ri, agora sem jeito, piscando os olhos de cílios compridos.

Passeio pelo povo que dança ouvindo os Demônios da Garoa. A mais paulistana música no mais paulistano dos mercados. Vem a homenagem ao Wando, que gravou com eles. E o povo aplaude. Vem a homenagem ao Herbert Vianna, que gravou com eles. E o povo aplaude. E qualquer coisa que tocassem o povo aplaudiria, e riria, e dançaria pra cá e pra lá numa felicidade só, porque logo, não demora, virá o Trem das Onze tocando todo mundo embora. Tem a Sandra, ao meu lado, que não sossega, e só diz querer mesmo é um bebedouro, pra poder refrescar esse suor todo de tanto sambar. E ri. Aponta para o casal à nossa frente que dança desconjuntado: "aposta quanto que são gringos?". E ri. E ri de novo. Mesmo sorriso largo da senhora mulata mais adiante, sambando agarradinho a um sujeito tatuado que olha pra ela apaixonado, como se nada houvesse em volta dos dois. E quando seus olhos cruzam os meus, ela descobre-me uma fiada de dentes grandes desencontrados, cada um mais radiante que o outro nessa boca que logo corre pra beijar o parceiro. Todo mundo ri, e eu rio de volta, nessa cidade de concreto cheia de recantos de humanidade: parecemos todos velhos amigos que na saída marcarão encontro amanhã, mesmo horário, mesmo lugar, despedidas efusivas de quem conseguiu criar, contra qualquer expectativa, um minuto eterno de alegria feliz.

Percorro com o pensamento vestido de memória o dia preenchido nessa cidade estranha, onde me sinto tão em casa. Vejo as todas cores e as todas coisas, as ruas e as avenidas cortadas de um lado ao outro, um zootrópio inesperado ensinando cinema de animação, piscinas de sesc lotadas com corpos cada vez mais redondos, banheiros públicos encharcados de gente que quis ir pra rua nesse feriado tão mas tão paulistano: todas as lojas abertas, uma 25 de março que esqueceram de avisar pra fechar, sacolas de todos os dias mesmo em dia feriado. A cidade que não pára entra no seu 461º ano de vida fazendo juz à fama que tem. Só rindo, e voltando pra casa sem sentir os quilômetros espaçosos que passam por baixo do carro.

Foto: a Mooca, por Ilundi

24/01/2014

Nós, os seres cordiais

Descubro, agorinha cedo, que uma amiga querida está internada, lá do outro lado do mar. Sente-se sozinha, claro, passará o fim de semana ali mesmo, entre quatro paredes brancas, mas ainda assim me diz: "Ah, mas eu até prefiro ficar aqui, sou bem cuidada, não preciso cozinhar e as pessoas, no hospital, vêm me visitar. Semana que vem, em casa, vai ser bem diferente".

Da vontade que me deu de nadar todas essas milhas náuticas que nos separam para estar à porta da casa dela na segunda, e impedi-la de cozinhar e de ficar sozinha, fui-me rápida ao Sérgio Buarque de Hollanda. Ao seu cordial homem brasileiro. Aquele que age e reage pelo coração, passional, avesso a toda convenção ou formalismo social. A minha reação interna acho que nasce dessa cordialidade que transplantei lá das terras lusitanas para estas brasileiras, e que só fez crescer, regada e adubada prolixamente.

Exemplos há por todo lado, dessa cordialidade que nada tem de bondade, concórdia ou subserviência, como bem nos esclarece Buarque de Hollanda. O ser cordial não é bonzinho, não aperta as mãos de ninguém se a vontade é de esmurrar. O ser cordial esmurra quando seu coração diz esmurra. E beija quando o coração diz beija. E ama quando o coração diz ama. E odeia quando... e assim vai. Minha amiga, se aqui estivesse doente, internada ou não internada, seria visitada. Com arroubos efusivos de preocupação e desejos transformados em bombons e flores, teria a sua casa invadida por amigos e nem tanto, uma mão cheia de seres cordiais, com o coração batendo inflamado do lado de fora da pele. Poderia durar alguns dias. Ou mais. Ou nem tanto. Não se sabe, porque o coração tem razões que a razão desconhece, e assim fica difícil saber qual será a reação do próximo momento. Lá, de certa forma e pelo menos, ela tem a certeza de que ficará sozinha. Não serve de alento, minha amiga querida, mas serve para se ocupar filosofando - coisa que, já disse Caetano, parece fazer-se melhor nessa língua que você fala aí do que em outra. Sabe-se mais com o que se pode contar, porque a ação do outro está mais regida pela razão e menos pelo sentimento, e por isso oscila e se entrega menos. Há vantagens nisso, embora a minha cordialidade tenda ao querer esmurrar ao pensar assim.

Entre as vantagens, o próprio pensar. A dissecação do sentimento pela fria lente do pensar. A transformação do sentimento desordenado em sequência ordenada através da palavra. Seja escrita, seja falada: que a palavra possa nos salvar dos solavancos das relações abertas pelo tumulto do sentir cordial. Essa tranquilidade fria que emana dos seres que pensam, ainda que eles mesmos se digam atormentados pelo fluxo de pensamentos que precisam organizar: é o descordializar. 

Essas coisas que nascem do coração pertencem, diz Buarque de Hollanda, à esfera do íntimo, do familiar, do privado. O que me faz pensar no tanto que as redes sociais, esses lugares onde o público e o privado se misturam e confundem promíscuos, fazem sucesso entre nós, seres cordiais, e nos tomam horas e neurônios e sobretudo células coronárias: afundamos e emergimos de estados ora melancólicos, ora eufóricos a partir de indícios da importância que temos na vida dos outros: curtiu? não curtiu? comentou? não comentou? Uma gangorra de cordialidades mil, dificultando que pensemos na nossa própria e humana capacidade disso mesmo: pensar.

Salve o hospital com suas visitas, e salve a semana que vem sem presenças: que a vida, a todo momento, seja plena e cheia de tudo o que faz com que o coração fique onde o queria o Mestre: ao alto.


O Chico, filho do Sérgio, fala sobre o homem cordial aqui:
http://www.youtube.com/watch?v=xAVRGvoy2Sk

Foto de Clara Rocha - obrigada!

21/01/2014

O espaço brilhante

Decidi oferecer-me uma aula de fisiologia das membranas celulares. Porque às vezes é tão difícil entender o mundo de fora que o melhor é olhar para dentro. E como eu quero chegar às menores partes, aventuro-me por elas, as células. E porque pessoas, a seu modo, são como células. 

Há células, como há pessoas, que possuem paredes celulares. Nem todas, veja bem. Entenda-se por parede algo rígido, construído e assentado, o que nos dificulta aqueles dias em que células e pessoas desejam mudar de forma. Desconstruir paredes é trabalho árduo, e nem sempre vale a pena. Valendo ou não, meus olhos querem ver mais, e avançam para a próxima camada...

...que é um envoltório menos denso, mas que efetivamente dá suporte físico à célula. Imprescindível, tanto que todas as células a têm - e, assim, todas as pessoas também. Poderíamos dizer que é a pele, mas meus olhos estão voltados para outros lados. Não é a pele do corpo que me interessa, mas a da alma. Esse envoltório funciona como proteção contra agentes infecciosos. Indispensável, porque em todo lugar existem agentes que desestruturam, que inflamam, que adoecem. Há pessoas cujo envoltório é espesso demais, e veem perigo em todo canto, e há pessoas com esse manto tão diáfano que faz com que se envolvam onde não devem quase que todo dia. É um indício da necessidade de equilíbrio, única condição para que não se veja perigo e ofensa onde ela não existe.

Próxima camada. A que mais me interessa: a membrana plasmática. Quem consegue chegar à membrana plasmática do outro, conseguiu já atravessar uma ou duas grandes camadas de separação. Às vezes, esquecemo-nos disso. Chegamos a ela sem perceber que antes já fomos aceites como seres não infectantes, e já atravessamos paredes que mantêm o outro de pé. Ainda que imóvel, mas de pé. E já se sabe que a condição humana é a condição de estar de pé. Uma felicidade, chegar à membrana plasmática.

A membrana plasmática permite-nos duas coisas: proteção e seleção. Mais uma camada dessa paranoia biológica chamada proteção. Garante que o núcleo e todas as demais estruturas e órgãos vivam uma vida calma. Sem sustos nem sobressaltos. O que raramente acontece, mas enfim. E carrega em si ainda o poder de selecionar o que entra e o que sai. E como raios fazem as células para selecionar o que deve entrar e excluir o que deve sair?

Ora bem. Fazem uso de quatro recursos que, olhando bem, nós pessoas também fazemos.

Podemos desenvolver em nós a capacidade de absorver o que está ao nosso redor, como esses outros que vivem ao nosso redor. Discriminando mais ou menos, interferimos nessa capacidade. Ou aumenta, ou diminui, e são as microvilosidades que fazem esse trabalho. Absorvendo mais do que menos, permitimos um contato maior.

Desejando um contato maior, podemos também fazer crescer em nós reentrâncias e saliências, pequenos apoios para que as células, perdão pessoas, que estão em volta, consigam melhor do que pior fixar-se em nós, e assim podermos observar-nos melhor uns aos outros. Mais de perto. Com mais tempo e proximidade. O que leva, claro, à intimidade. As interdigitações (veja: dedos!) são nossas aliadas nessa criação de encontro - são elas essas reentrâncias e saliências que nos permitem enxergar o outro e dar-nos a enxergar.

A intimidade, e o encontro, geram fluidos. E da consistência, da fluidez e da existência de movimento nesses fluidos encarregam-se os cílios e os flagelos. Às vezes, é capaz que doa. Cílios e flagelos às vezes provocam dores. Porque o movimento gera dor, e desconforto, e é preciso passar por ele - no sentido de atravessá-lo e sair do outro lado. Esse outro lado, é essa consistência fluida e terna de elementos, que a intimidade gerou e a nossa disposição aberta alicerçou. Através de cílios e flagelos nasce uma nova estrutura, fantástica, revolucionária, curadora. Os plasmodesmos.

Que merecem um parágrafo só deles.

De repente, eis que essas membranas, perdão pessoas, de tão próximas e em contato, tão em conexão fluídica, promovem um pequeno milagre: as suas membranas, subitamente, se interrompem. Abrem-se espaços em tudo aquilo que mantém o um separado do outro. Acontece nas duas células/pessoas, e imagino que, se não ao mesmo tempo, em tempos muito muito próximos. E, como se abrem espaços, estabelecem-se pontes, porque o intuito de tudo isso era permitir que o que está em um permeie o outro e vice-versa. E ambos sejam mais porque se contêm. São as pontes protoplasmáticas. Esse momento em que os espaços se abrem, essas pontes se criam e as células, assim como as pessoas, têm livre trânsito umas por dentro das outras.

E aí tudo pode inflamar-se, porque há segurança. Tudo pode procurar-se, porque há encontro. Muito melhor do que quando, como células, nos fechamos ao mundo oferecido e nos voltamos para nossos buracos negros, para esses lados escuros da lua que escolhemos, porque não olhamos de frente e de olhos abertos, e não vemos a luz que vinha na nossa direção. 

Às paredes, galgá-las. Às membranas, atravessá-las. Às pontes, caminhá-las. E que juntos possamos ser mais do que menos.

09/01/2014

Liturgia das horas 2

Lia eu outro dia, num artigo sobre não sei bem o que, que o fotógrafo que não sai às ruas não tem assunto sobre o que fotografar. Acho que o mesmo, muitas vezes, se aplica à escrita. Depende do dia, porque depende da disposição interna, mas há dias em que os olhos estão mais abertos para as coisas que não se veem. Esses dias são a glória, e andar pelas ruas formigadas de gente do centro de São Paulo é quase uma dádiva. Hoje, foi um desses, regado a surpresas.

A liturgia das horas, que me acompanhou desde manhã e desde o post anterior, é a oração pública comunitária da igreja católica. Consiste numa série de orações para serem feitas ao longo do dia, um ritmo de oito momentos que Bento estabeleceu lá no século quinto da era cristã e se tornou um pilar na formação da cultura ocidental, ganhando o nome de "Regra de São Bento". Efetivamente, criou pausas estratégicas dentro da agitação mundana para que nos lembremos de que o mundo do espírito vive dentro da matéria. Assim sinto, ao menos: acho que não há nada mais espiritual do que a matéria encarnada, por dentro da qual e através da qual o espírito se fez tão presente que se tornou visível. As horas, e a sua passagem, parecem-me provas irrefutáveis.

Deve ter sido por isso que pouco antes do meio dia, muito mas muito por acaso, entrei na igreja do mosteiro de São Bento. A tempo do ofício da Hora Média: as doze horas, momento de agradecer a manhã que se teve, o almoço que logo chega e a tarde que antecederá a noite. Os monges vestidos de escuro contra o fundo também escuro da igreja, a penumbra e o suave canto gregoriano sobrepuseram-se à azáfama lá de fora. Silenciaram todas as perguntas. Fecharam os olhos. Diminuíram as batidas do coração. E eu deixei-me ficar, sem pensar em quase nada, até que as doze badaladas anunciaram o começo da tarde e me catapultaram de volta ao mundo mortal.

Foi bom ter tido a pausa de agradecer a manhã. Bom e mais do que apropriado, porque esta babilônia paulicéica que é São Paulo oferece motivos de agradecimento a cada esquina. É tanta variedade, tanta cor, tanto brilho, tanta diferença, tanta semelhança, tanto som, tanto movimento que seriam precisos oito pares de olhos para conseguir ver tudo. Como só tenho dois, dou testemunho da parcela do que vi.


Emerson é pernambucano, e por isso aguenta 7 horas seguidas de prestidigitação ao sol de rachar destes dias. É ele quem diz. E é cobra dentro da mochila, é ovo e pinto dentro do saco, é óculos que desaparece e reaparece na cabeça da moça bonita, é brincadeira com um, brincadeira com outro, malícia de um lado, ingenuidade de outro. A roda forma-se em torno desse homem ágil, alto, sorriso falhado. Um respiro em forma de roda no meio do mar de sacolas da 25 de março. Emerson pede um aplauso para Jesus Cristo, sem ele não somos nada, povo de deus!, e depois volta com a mesma brincadeira, misturando macumba com evangelismo e mágica com safadeza. A hora que pede uns trocados e se vira pra um dos lados com a sacolinha na mão, o outro lado desaparece no meio do povo. E Emerson ri, e diz "ê povo... se eu fosse precisar de vocês pra comer não tava aqui pegando sol! Eu quero é divertir vocês!". E logo aparece uma nota de cinco reais e ele corre pra pegar e graceja de novo: "ainda bem que tu não acreditou, negão!". Quando passa por mim, dou-lhe um punhado de moedas que tenho na bolsa e ele pisca um olho e diz: "menina, assim eu vou é ficar rico!. Eu pisco meio sem graça de volta, a roda inteira racha o bico, e eu não sei, mas vou embora com a impressão de que tenho um segredo guardado.

Victor é ator. E Tânia também. E a companhia que formaram faz tudo a mesma coisa: gente estátua parada nas esquinas. Victor é um anjo barroco, de sorriso beatífico que faz sorrir de volta. Dá vontade de ficar ali, sentadinha debaixo do guarda-sol dele, esperando a hora de subir pra casa, quer dizer, pro céu. 

Ponho uma moeda na caixinha, acho que já estou há tanto tempo ali, tirando fotos. Ele dá-me um papelzinho desses com mensagens genéricas sobre ser melhor e tranquilo na vida, esperar as agruras passarem e etc. Quando vai retirar o papel da caixinha, deixa um outro cair. Eu pego do chão e proponho-lhe uma troca com aquele que ele me estende. Ele sorri diferente e quase sem querer pisca-me um olho, aceitando a troca. Eu pisco-lhe outro de volta, e lá vou, certa agora de que tenho não um, mas dois segredos a mais na bagagem.

E Vanessa vende pedrarias. Entro na loja dela, 4º andar do prédio da esquina da Ladeira Porto Geral, indicação certeira do amigo Ivan. Espreito pela porta e só entro, mas só entro mesmo, por causa do sorriso que ela abre, uma boca cheia de dentes brancos que parecem doidos pra conversar. E vou perguntando, puxando assunto, tem cascalho de granada, tem conta de cristal, tem firma de vidro, tem conta de quartzo rosa, tem pedra disso, tem pedra daquilo... E ela vem atrás de mim, enquanto eu vou passando a mão pelas cestinhas de contas, um tilintar quase inaudível entre o céu e a algazarra lá de baixo. Vanessa vai me mostrando as coisas e de repente pára. Ah, eu vou te mostrar o que vale a pena mesmo. E lá de baixo tira umas caixinhas com outras contas, mais transparentes e mais brilhantes, mais pesadas e mais de verdade. Segredos. E eu sorrio e ela sorri, e ela pisca-me o olho e eu pisco de volta. No elevador pra descer solto uma gargalhada. Ninguém entende: eu tenho mais um segredo na bagagem.

Liturgia das horas I



 Meio dia no pátio do mosteiro, sol a pino. Joana, 22 anos, porta da igreja. Pede-me um trocado, digo-lhe que na saída. Sento-me ao lado dela, na calçada mãe de todos. Interrompe a conversa toda hora que alguém entra ou sai da igreja. 10 centavos moço 10 centavos moça. Só responde quem dá de cara com os meus olhos que hoje querem ver tudo. Enquanto estive ao seu lado, nem uma moeda. A maioria não olha. Na verdade, não vê. Joana faz parte da parcela invisível que alumbra as ruas da cidade. Joana quer voltar pra casa. Consegue 10 reais por dia. Quem mais dá são as mulheres, porque  têm mais coração que os homens. Mas ninguém olha, ela fala mais pra ela que pra mim ao seu lado. Joana quer juntar dinheiro pra voltar casa. São José dos Campos. Quero saber desde quando está em São Paulo. Na verdade, quero saber tantas coisas, tornadas tão inúteis nesses minutos fora do tempo perfeito das pessoas atarefadas. Dezoito anos. Levanto-me para comprar uma água. O rapaz da água grita sem parar: água pra hidratar, água pra hidratar, água pra hidratar, ajuda eu, moça, minha sogra mora mais eu. Trago duas garrafas e dou uma à Joana. Ela não sabe como agradecer, acho que ela nem sabe que existe agradecer. Fico me perguntando se alguém já terá lhe agradecido alguma coisa. Joana tem olhos claros, arredios até passarmos 10 minutos sentadas lado a lado. Cabelo curto mal cortado, dedos longos todos cortados, pés descalços da cor do asfalto. Ficamos em silêncio. Porque na realidade o silêncio diz-lhe mais, e a mim o silêncio corta-me menos. A mulher em frente, num balanço infinito, repete sem cessar "um emprego pelo amor de deus". Joana grita "tchau ana" quando já estou nas escadas do metrô. Viro-me e aceno. Ela faz um gesto de brinde com a garrafa de água já quase vazia - meus olhos enchem-se de lágrimas. É seu agradecimento sob o sol a pino. Grito-lhe de volta "se cuida, Joana". E o rapaz que desce ao meu lado me pergunta, já dentro do metrô: aquela lá é sua amiga? e eu respondo: sim, do peito. E fecho os olhos para que não me pergunte mais nada.


05/01/2014

As coisas simples

Alcaparras, limão e sal. Grelha e manteiga. O peixe, filés quase rosados. Ela gostava de coisas simples. Ele também. As coisas simples são as que permanecem. Comida simples que não se mascara, assumida na leveza direta de dois ou três sabores, uns dentro dos outros como pertencimentos e não encontros. Ela gostava de pertencimentos. De entradas e saídas sem precisar pensar em desocupação. As coisas simples e as coisas perfeitas. Comida inclusive.

Perdera a conta das vezes da receita. Mas lembrança não se gasta, ganha vida em baixo relevo na parede da memória. A parede da memória era a pele da sua vida. O órgão mais extenso. O de maior e inescapável memória.

Ele não soube. Não da pele, matéria virgem diante de si mesmo, mas das mãos na carícia dos limões antes de arrancá-los do pé; dos olhos entreabertos filtrando o verde das alcaparras contra-luz; dos dedos na lavagem escorregadia e fria dos filés, do deixá-los escorregar por entre os dedos e depois sossegá-los na tigela. Em cada ação, o pensamento tornado metáfora. Era ele, e não o mundo, no transcorrer do dia.

Ele não soube do tempo de repouso na mesa, dos minutos de rede no espiar das nuvens, a sua mesma pressa. Faltou-lhe saber do calor dos olhos no derretimento da manteiga. Da hora à porta. Do cabelo molhado a secar no sereno. Da lua, da noite. Dos braços apoiados na cerca primitiva de arame, o olhar nas estrelas em assombro espalhado. Do mundo todo preparado para recebê-lo, num compasso de antecipação. Podia ter sido um dia como tantos.

Mas não. Porque o tempo inaugura espaços próprios, diminui os vãos e alimenta o que circula abaixo da superfície do lugar comum da vida. E esse é o lugar tão pouco comum das coisas, ela pensou.

Isso foi momentos antes de se permitir o sonho. E amá-lo.



04/01/2014

Ouvido de passarinho

Pode até ser, pensando bem, que eu tenha ficado atenta demais a tudo o que afeta os ouvidos. E isso porque, ontem de manhã, fiz a lavagem de ouvidos mais fantástica e bem feita de toda a minha vida. Estou ouvindo até o que não me diz respeito. E pode ser que me meta onde também não me diz respeito, mas assim como não consigo tampar os ouvidos, também não consigo calar a boca (ou, no caso, os dedos).

Por exemplo, ontem, começo de noite. Show-tributo a Elis Regina. Cantora boa, repertório bacana, assistência entusiasmada. Nesse calor que varre o Brasil de norte a sul, todo mundo quer é rua, é fresco, é brisa, é vento. E lá vamos todos, uns atrás dos outros, à procura da alegria desse ano novo já de três dias velho.

Estranho ver, no meio de tanta gente animada, dançando, cantando, aplaudindo, assobiando, tantos bebês de colo. Criaturas pequenas, de olhos abertos e cabeças quase implumes, sobrevivendo ao mundo adulto dos microfones, das guitarras, das baterias. Fiquei pensando no quanto eles prefeririam a conversa dos passarinhos de hoje à tarde nos galhos da acerola.

Eu sei, com bastante profundidade e experiência, o quanto é difícil criar filhos. O quanto é difícil atender a todas as solicitações da vida, moderna ou nem tanto, as que inventamos e as que nos inventam. (E ainda as da nossa própria alma, essa que vai se tornando mais densa e consciente de si conforme os anos passam.) Como é difícil sentir-se fazendo parte da vida quando ela assume esse novo contorno, invariavelmente improgramável e imponderável, e que parece afastar-nos da vida tal qual os outros a vivem. As certezas, nessa hora, esfumam-se, ou alojam-se em lugares tão estranhos, viscosos e escuros que certamente nada mais têm a ver conosco. É o que sentimos, pelo menos.

E é então que se começam a construir novas certezas. Ou pontos de vista. E como não somos nós o centro desses pontos, mas eles, os filhos, as coisas assumem outras premências, às vezes com o aspecto feroz da luta da leoa para manter seu filhote a salvo. Não são bem certezas, mas convicções de que a vida pode ser melhor do que parece, e nossos filhos merecem-na, e merecem que façamos levitar a nossa pequenez para consegui-lo.

Por isso as pessoas querem ter seus filhos da forma que acham correta, seja ela qual for. Por isso querem uma escola que respeite este e aquele valor, este e aquele ponto de vista e de formação sobre o mundo. Por isso procuram a alimentação melhor e mais de acordo com o que percebem e querem da vida. Por isso fazem as escolhas que fazem.

A questão é mantê-las e sustentá-las, e não se deixar abater por dragão algum: nem o lugar comum, nem a mídia, nem o "bom senso", nem a família, tradição e propriedade, nem as nossas fraquezas. Não é fácil.

Às vezes, falta informação. Outras, a informação vem, mas é tão difícil assimilá-la dentro da vida que já se tem, que deixa-se ir, esquece-se em cima de uma prateleira alta, dentro do armário entulhado... Às vezes, o imediatismo da vida moderna, a satisfação das vontades a qualquer preço, ataca-nos pelas costas, e quase não conseguimos desviar E às vezes não desviamos mesmo.

Mas o mais difícil é quando nos esquecemos de que é preciso pensar: pensar na coerência que as nossas escolhas, atitudes e movimentos precisam e devem assumir nessa coisa nova e transcendental que é ter uma criatura tão minúscula sob nosso cuidado e responsabilidade. E de mais ninguém, que essas coisas parecem ser divisíveis com avós, tios e primos, mas é mera ilusão: são as suas escolhas que vão pra balança, as escolhas eventuais dos outros são só bolhas de sabão. Ninguém precisa dar-lhes continuidade.

Ora bem. Se, em hipótese, eu decido que quero que meu filho nasça num ambiente humanizado, em que as suas necessidades de silêncio e penumbra sejam respeitadas, em que o tempo que corra seja o tempo dele e não o do mundo, e por isso o cordão umbilical só seja cortado quando já não pulsar; se, em hipótese, eu decido que a escola que eu quero para meu filho precisa respeitar as fases de seu desenvolvimento, o que inclui a imensa atenção e cuidado ao seu desenvolvimento físico especialmente nos primeiros sete anos de vida; se, em hipótese, eu procuro dar-lhe uma alimentação pura, seis meses de amamentação exclusiva pra começar, e depois o mínimo de agrotóxicos e processos industriais; se essas são as minhas hipóteses e é delas que parto para ir em direção ao horizonte: é preciso que também as demais escolhas sejam feitas, com os olhos no mesmo querer.

Por isso esses bebês imersos nesse ruído não podem ter espaço. A formação das suas capacidades auditivas em pleno processo de maturação torna-os permeáveis, a esses bebês, não só pelos ouvidos, mas pelo ar que os cerca como um todo. Ouvem com a pele, com os órgãos, com a água que forma 75% do seu corpo - e a pele, os órgãos e a água são plasmados pelo ambiente que lhes propiciamos.

Ao longo dos primeiros três anos (sobretudo) oferecemos às crianças a base rítmica para toda a sua vida. Sono e vigília, inspirar e expirar: a vida é feita de ritmos, a criança sabe disso e nós precisamos garantir que ela possa construí-los com saúde. Por isso horas certas de dormir e acordar, por isso atividades que conduzam de um estado a outro estado com suavidade. Também o ambiente auditivo, e os sons que formam um ouvido atento, sereno e compreensivo, precisa ser cuidado. Para que essa criança possa ser alguém permeável às paisagens sonoras da sua vida. Que possa ouvir o silêncio da mata. Discerni-lo do marulhar da água do mar no encontro com a areia. Do chilrear da passarada ao amanhecer. Do ronronar dos carros numa avenida ao longe. Do silêncio solene das estrelas numa noite de lua nova. Do companheiro que dorme ao seu lado. Do amigo que precisa de um ouvido. E do amor que segreda palavras doces - e verdadeiras.

E por isso valem a pena os sacrifícios - porque são ofícios sagrados no movimento etimológico mais exemplar. Valem a pena as concessões que precisamos fazer a nós mesmos e aos outros. Valem a pena o cuidado, a presença, o estar muito atento e o compartilhar de tudo isso. Porque o melhor todos queremos ser e fazer, mas é preciso o ouvido do outro para recebermos de volta o que nós mesmos precisamos ouvir.


Foto: Maíra Ventura