26/08/2013

Promessas são precariedades

Eu já conhecia a maioria de seus amigos, senão todos, mas a ele ainda não tinha tido o prazer. Tinham-me falado dele, com uma espécie de respeito que fez surgir dentro de mim uma das palavras que vinha caçando há semanas sem encontrá-la: veneração. Bom sinal, este de alguém que ainda não chegou já me presentear com as palavras que explicam. Especialmente essa, que deriva de nome de deusa e é a palavra do que falta; e assim que a pronuncio, que a faço vibrar dentro de mim, a falta acomoda-se, porque o som cria o mundo em que posso respirar.

E seu Zé do Coco chegou. Bem falante, aparenta a idade que tem (longa) e o conhecimento das coisas que a sua passagem lhe conferiu. As frases que pronuncia atravessam tempo e espaço e algo lhes confere o poder que, um dia bem longínquo, toda frase feita teve. (Frases feitas tornam-se agremiações de palavras que repetimos pasteurizadamente, achando que de fato pensamos. Não pensamos: são palavras que se climatizaram, palavras pre-cozidas.) Acho que veneração chegou antes dele para que eu pudesse estar preparada. Posso nomear o que sinto conforme o ouço, e assim ouvi-lo melhor.

Conversamos um tempo comprido. Nessa troca atenta e presente, seu Zé deixou comigo o legado de uma série de palavras, e eu ocupo-me delas como há tempos não me ocupava de nenhumas. Pensar nas palavras é a minha forma de meditação. Os dias em que recorto uma delas e a coloco à minha frente, observando-a de todos os lados e formas que posso, ora distante, ora alcançando-a com os dedos do sentimento, são os dias mais felizes e concretos, os dias em que o céu azul ou a chuva ou o vento fazem sentido.

Disse-me seu Zé que promessas são precariedades.

Veja bem.

Promessas são precariedades.

Com o passar dos dias, e a repetição das palavras dentro de mim, vou avançando para dentro do que dizem. Separo-as umas das outras. Promessas. Precariedades.

Promessas fluem e pendem. Prometem-se. Recorro à etimologia, nesse movimento que me aproxima do nascer mais profundo das palavras. Promissus, a raiz de promessas, é uma derivação do verbo promittere. Palavra composta por duas: omittere (deixar de lado, omitir, deixar de ir) e o prefixo grego pro (antes). Prometer é tudo aquilo que existe antes de deixar de dizer, antes de deixar de sentir, antes de deixar de lado. Pura precariedade, penso. 

É possível recuar um pouco mais, porque omittere é filha de mittere, que significava para os latinos antigos jogar, arremessar. Promete-se quando, por antecipação, se arremessa algo do passado (o antes) na direção do futuro. Como uma flecha que se cogita enviar para o depois, mas o arco está pousado ao nosso lado. Pode ser que a flecha vá; pode ser que não: o arco não está nas nossas mãos, talvez sequer o olhemos de fato. Uma ideia de mover-se que não pensa como sair do lugar.

Esse mover-se, instrui-me Zé do Coco, é feito de precariedade.

Precariedade nasceu da palavra precário. E precário é algo que, muito corretamente, nos faz duvidar. Coisas precárias inspiram insegurança. Não se sabe onde se pisa. Pede-se (reza-se, até) para que as precariedades se consumem. Se estabeleçam. Se concretizem. Porque a palavra precário é filha legítima de precari, que nada mais é que pedir e rezar. Olhando para trás, nossos olhos caem na sua raiz prex: orar. Precariedades fazem-nos implorar, pedir, suplicar - é isso que prex sinaliza. Pede-se sentido, concretude, realização.

Promessas vivem fora do tempo. Lançam-se do passado ao futuro sem sequer encostar no presente. São precariedades, porque não se ancoram nem no estar que está nem no ser que é. A insegurança e a dúvida geram-se no ar imaterializado, na célula não nascida, na semente inanimada, como se esperássemos que o broto já fosse fruto sem nunca ter sido gérmen. Não é, e nem será. O que é, é o que chamamos de "momento presente", essa frase feita que tão facilmente escorrega das mãos e se torna nada. O passado é uma nuvem que já choveu e o futuro o céu que ainda não clareou. A noite impera, suave e silenciosa, escura e úmida de orvalho. É bom que assim seja, e que assim se perceba. Tudo o mais é precário. Especialmente as promessas.


(A raiz primeira da palavra veneração, para quem se perguntou, o é Vênus, a deusa romana do amor e da fecundidade.)


Foto: Dani Lenton

19/08/2013

Sem

Ao soluço enterrado
no fundo das minhas entranhas,
procuro-lhe o caminho.

Não se move, não sai, não se altera.
Resiste indócil
estoico
heroico
às águas sem leito.

Observo-o de longe e atenta.
Entendo-lhe os limites fluidos.
Não foge.
Não se esconde.
Não se manifesta.
Parte insolúvel
terrosa
do fundo mais fundo das
minhas entranhas
internas,
existe apenas, como
espinho encravado.

07/08/2013

Diário

(side writing)

No dia em que Ofélia, órfã aos 12 anos de idade, conheceu Robélia, moradora da última rua do Morro do Tatu, o mundo quase desaba. A chuva engrossou o rio do Zinco desde manhã cedo, escorreu pela encosta do morro, até chegar à cidade baixa. Os carros foram entupindo ruas e avenidas, desgovernados diante de tanta água, os vidros embaçados, os limpadores inúteis. Ofélia e Robélia lembram-se vagamente desse caos, mais pelas notícias dos jornais do dia seguinte do que propriamente pela vida em si. 

No mesmo dia, a quilômetros dali, Délia abria as portas cotidianas da loja. O dia cinza, o carregamento das obrigações. Sem nuvens nem sol escaldante. A vida como um soltar de cadeado, portas pesadas sob trancas, chumbo erguido dentro das mãos de Délia, mantendo abertas entradas e saídas alheias. Sentada atrás do balcão, rodeada das autopeças que lhe sobraram de herança do marido que saíra e nunca mais voltara, vidrava os olhos nas lajotas desencontradas da calçada.

Ofélia era esguia, alta e otimista. Robélia apreciara especialmente essa última qualidade, sem desconfiar de que não era construção, mas condição. Sintoma de quem nascera para enfrentar o lado duro das coisas sem dar por isso. Parecia a Ofélia, filha única de pais idosos, que a vida de qualquer um fosse mais difícil e sofrida que a sua, o que facilitava relevar e diminuir os obstáculos do caminho. Enganava, por isso. Tudo apenas parecia lhe ser fácil. Até mesmo as conquistas, num efeito dominó, pareciam menores, como que envergonhadas da própria existência diante da miséria que enxergavam pelos becos.

Robélia gostara desse otimismo, porque a sua vida fora privada dele. A dificuldade e a dureza de cada centímetro conquistado à morte eram seu dia a dia, seu conhecimento, o pano com que a sua vida se costurara. Robélia era a quinta filha de oito; perdida em meio a toda a descendência de seus pais, não tinha lembrança que fosse só sua, que não precisasse dividir com nenhum irmão ou irmã. As memórias eram sempre de outro, calejadas pelas vozes que as repetiam sem a incluir. A vida esfumava-se diante das conquistas alheias, e seus olhos sôfregos demoraram a encontrar outros que se fixassem em seu centro sem se desviar. Robélia contaria a Ofélia, meses ou anos depois, dessa infância que só descobrira infeliz depois de conhecê-la. Ao que Ofélia responderia espantada “quem foi que te disse que a infância pode ser feliz?”. 

E Robélia pensou que talvez Ofélia fosse outras além da que via. Mas não deu importância e continuou a vida como se estivesse resolvida e encaminhada. Por coisas assim, dizia-se de Robélia que era prática e simples; àqueles que traziam problemas, Robélia aconselhava com justiça, ponderação, equilíbrio e lucidez. Resolvia contendas, equilibrava opostos e resolvia discussões como se tivesse nascido para conciliar os contrários do mundo. Sua escola foram anos separando brigas de irmãos e resolvendo picuinhas de irmãs, mas ninguém se lembra dessa sua atividade de árbitro e juiz da infância. Ela mesma só se lembrou disso quando Ofélia lhe perguntou, com aquele olhar de quem vê tudo pela primeira vez.

Délia não tinha a quem contar da sua infância. Isolara-se dentro da loja, como se tudo na vida se compusesse de bronzinas, tuchos, bielas e válvulas. Seu mundo seguro. Sem eventos que lhe alterassem a ordem das prateleiras. Interessava-lhe pouco perscrutar o próprio passado, porque se ocupara com afinco em apagar as partes de que não gostava. Apagara tudo. Délia fechava-se como uma ostra que não tem a menor intenção de dividir a construção da sua pérola com ninguém. Orgulhava-se de seu sofrimento contido, das suas lágrimas engolidas, dessa maneira distante e estéril que construíra para ganhar da vida. Não sabia como andava o placar, mas cada vez percebia menos as vitórias do time oposto. Não tinha amigos que se pudessem chamar de íntimos, mas todos que a conheciam pensavam que certamente era convidada para festas e jantares. Porque era basicamente simpática e sabia ser afável sem se doar. Délia saía de casa sozinha e sozinha regressava. Mesmo quando acompanhada.

Naquele dia de chuva torrencial, Ofélia perdera-se. Antes de perceber a presença concreta e palpável de Robélia, encontrou seus olhos e estes os dela. Esqueceu-se de que estava perdida e parara para pedir informação. Saiu do carro, trancou-o e convenceu-se de que tinha fome. O pequeno restaurante em frente pareceu obra da providência, e providencial foi encontrar as mãos de Robélia e poder observar-lhes os nós dos dedos enquanto serviam seu prato. O sorriso de Ofélia desarmou as reservas da cozinheira. Se houvesse um cheiro para esse momento, seria o da hortelã recém-colhida. Ofélia perdeu a entrevista desse dia, e quase perdeu o emprego também. Demorou uma semana para reaparecer, com uma história vaga e mal contada de um carro quebrado e a reincidência de uma gripe mal curada.

Ainda hoje o barulho da chuva tamborilando no batente da janela traz aquele dia para dentro da vida de ambas. Ainda trocam olhares ou mensagens sentindo a falta mútua que a chuva desenha. O limpador do para-brisas do carro de Ofélia parece-lhe um adeus entristecido, assim como as gotas que escorrem pela janela da frente do restaurante lembram a Robélia as lágrimas de um enterro.

A vida quis que passassem mais tempo do que gostariam afastadas uma da outra. Em junho daquele mesmo ano, Ofélia estourou o escapamento do carro a meio de uma viagem. Parou numa loja de autopeças e foi catapultada para dentro da imensa e mansa loucura de Délia. A seu lado, a vida de todos os dias repentinamente desbotava. Mesmo parecendo disforme, não levantou a mão em recusa. Ofélia desfez-se da própria vida para abraçar a de Délia, e apenas a lembrança de Robélia existir em algum lugar enchia seu coração de esperança. O olhar otimista diante do adverso tornou-se escasso, porque o próprio adverso assumiu esporádicos contornos, como se tudo estivesse sendo o que estava previsto que devia ser. A inevitabilidade que Délia transpirava colou nos poros de Ofélia como piche.

Quando Robélia a encontrou, anos depois, Ofélia era um pálido esgarçamento do que fora. Os olhos da quinta de oito irmãos encheram-se de lágrimas que porém não transbordaram, porque também a sua cota de dor fora entregue conforme o tempo passara. Agarrou-a por uma mão e arrancou-a do mundo de graxa em que se enfiara até o topo do pescoço. Ofélia, que nunca antes permitira que a agarrasse pelas mãos, tinha os pulsos marcados e os ombros cheios de pesos que não eram seus. Robélia usou de toda a paciência que aprendera para retirá-los, um a um, enquanto alisava os pulsos de Ofélia e os ungia com o óleo que os santos usam e as igrejas vendem dizendo ser benzido.

Délia retomou o mesmo olhar sobre as lajotas das calçadas, ruminando a vida conforme ela se apresentava. Não se moveu nem mesmo pensou fazê-lo, nenhum quilômetro galgado para conferir se esse afinal não era mesmo seu destino. Porque o destino, e disso ela estava certa, era aquilo que lhe batia à porta e não se fazia força para encontrar ou abraçar ou possuir. Délia era uma mulher sem esperança e sem anseios. Viver ao seu redor era respirar o som do veneno. Sugara o otimismo de Ofélia como quem retira a substância vital de uma planta até fazê-la desabar no solo. Sem esforço, porque Ofélia o oferecera, enorme e belo como era, sem medidas e sem limites.

Engana-se quem achar que os anos de Ofélia junto a Délia foram difíceis, tristes, sombrios. Havia uma bem-aventurança legítima, um senso de compleição necessária, e a sua entrega nunca fora e nunca voltaria a ser a mesma. Não porque tivesse sido esgotada, mas porque era assim que devia ser. Ofélia e Délia arrastavam-se uma para dentro da outra, pela força do destino que era a força maior do universo. Ofélia, que nunca na vida pensara não ser responsável pelo próprio andar, parara de pensar por si própria para absorver por inteiro esse pensamento novo, e enquanto se desocupava para entender a memória da outra, esqueceu o quanto é importante ser previdente e adiantar-se às desgraças. Esqueceu os acidentes, os anos de orfandade e abandono, as cicatrizes da sua alma. Porque a alma de Délia pedia-lhe tanto, pensava ela, que seria triste não lhe oferecer tudo.

Não sei quem, das três, sofreu mais. Ofélia desiludiu-se de si mesma, Robélia deixou de acreditar no poder absoluto do amor, Délia não tinha mais com o que se desiludir. Quando as olho, nas fotografias que guardo dentro desta gaveta que já quase não abro, estremeço como se uma aragem gelada me chegasse pelas costas e me encontrasse desprevenida. Quero tocar-lhes os rostos, abraçar-lhes os braços e dizer-lhes que a vida sempre vale o preço que se paga.

05/08/2013

Las huellas

  1. Sabe aquelas palavras, as de difícil tradução? Como huellas, por exemplo.
Encontrar-lhes similares em português é tarefa ingrata. Às huellas, eu prefiro-as assim, na língua de Antonio Machado, e é dele que me lembro no momento em que me aparecem. Porque Machado é o poeta do caminho, e eu penso no caminho que segue adiante, no caminho que se solta no vento ao passar, nos caminhos aos lados que às vezes se trilham, às vezes se sonham, às vezes enganam. E tudo porque lembrei de que "Caminante, no hay camino/se hace camino al andar".

A quem caminha, o alerta do poeta: "son tus huellas el camino y nada más". Aí estão as huellas. Volta-se a vista atrás, sob o olhar do poeta sevilhano, e lá está, claro e nítido como o amanhecer da areia, o caminho desenhado a cada passo. "Golpe a golpe, verso a verso", porque é de golpes e versos que se constroem os homens.

Mas as huellas. Como traduzi-las? Pegadas? Impressões? Rastros? Marcas? É tudo muito pouco, nada diz diante das huellas: mais fundas que as pegadas, mais marcadas que as marcas, mais sutis que os rastros, mais sensíveis que as impressões.

São elas, as huellas, isto que permanece em mim nessa amálgama que não sei se chamo de caminho, se de tempo. Huellas construídas no compasso dos dias, espaço a espaço, galgando terreno por dentro de mim. São e ficam, espécies fossilizadas no chão do próprio caminho. "Todo pasa y todo queda", e de tudo o que os meus olhos veem, são as huellas o que fica, são as huellas o que resta.

Huellas, descubro, deriva do verbo hollar. Pouco usado, tanto significa pôr os pés sobre algo quanto abater e humilhar. Talvez romântico, esse Machado para quem o caminho seja o andar, e as huellas sejam o que resta desse ofício de andador que é o nosso. Estas marcas de pés sobre nós: abatem-nos? Humilham-nos? São essência? Ou existência?

Ouço Machado em vários destes passos que ando no continente da memória. Ouço-o na voz do aluno a meio do filme "La lengua de las mariposas", à porta da Guerra Civil espanhola que dilapidou a vida (também) de Machado. Ouço-o num quarto de hospital, último registro da voz de Miguel, a quem levei o único livro que tinha de Machado, porque Miguel estava indo, às portas do outro mundo, e achei ser-lhe boa companhia, eu que o conhecia tão pouco. Ouço-o dentro de mim nos versos que na minha boca têm gosto de espuma de mar: "Yo amo los mundos sutiles/ingrávidos e gentiles/como pompas de jabón".

Entre o primeiro livro publicado, Soledades, em 1903, e o último poema encontrado no bolso de seu casaco, em 1939 ("Estos días azules y este sol de infancia"), vive um poeta que vale a pena ler, na sua própria língua, saboreando esses encontros de letras que a nossa língua não tem. Porque permite que nos carregue ao domínio da linguagem antes dela ter sentido, como a vida às vezes não tem sentido, e é bom que a linguagem lhe faça companhia. Especialmente quando não se vê nem ouve o caminho, e os pés decidem aquecer-se na areia para desgastar suas dores caminhantes. Depois, então, dá-se outra vez a razão a Machado: "se hace camino al andar". Porque é preciso andar para tecer os caminhos.

29/07/2013

Localização: Mikladalur, Kalsoy, Ilhas Feroés

Para quem costuma olhar para as línguas latinas com mais familiaridade do que para quaisquer outras, encontrar uma língua a meio caminho entre o norte da Escócia e a Islândia, falada por 47000 pessoas, espalhadas por povoados que podem ter entre 20 e 150 pessoas, é um evento que marca o dia. A culpa, se é que uma coisa dessas é fruto de alguma culpa, foi a peça de Robert Wilson que o SESC tem feito o favor de colocar à nossa mão. "A dama do mar", na adaptação de Susan Sontag para a peça do norueguês Ibsen, provocou-me, entre anteontem que a assisti e hoje, que tenho tempo de pensar nela, o desejo de saber mais. Provavelmente porque a encenação impactante ficou alojada dentro do meu cérebro e precisava de expansão.

Por isso, fui à procura da lenda da mulher-foca que teve a sua pele roubada e ficou aprisionada em terra. Para os três, Wilson, Sontag e Ibsen, esse é o ponto nevrálgico, que os faz aos três incursionar pelos labirintos metafísicos e simbólicos dos elementos. Seria o mundo humano imperfeito porque se afeiçoou à terra em vez de ter ficado no mar, lugar de onde veio e talvez devesse nunca ter saído?

A lenda nasce (e vive) em Mikladalur, um povoado minúsculo de uma ilha que já se tornou o meu desejo de viagem-assim-que-der: Kalsoy. É a ilha mais povoada das dezoito ilhas Faroés, as tais entre a Escócia e a Islândia: 147 habitantes; Mikladalur é um dos seus quatro povoados, e em 2006 contava com 42 pessoas. Do seu percurso histórico e linguístico, sobre o qual acabei de ler sem pretensões de guardar nada a não ser o que soasse interessante, apreendi o norueguês antigo e a Dinamarca, de quem as ilhas são região autônoma de há algumas décadas para cá. Seu nome, que na língua feroesa (língua feroesa: vou repetir isso até anoitecer!) significa "ilhas das ovelhas", parece dizer quase tudo sobre a sua vegetação e serventia: pastagem para ovelhas. A riqueza, dizem, está no mar, nos peixes. E é do mar que as focas saem, na décima segunda noite, que vem a ser o dia 6 de janeiro, após o por do sol. Com as consequências que se verão.

Mesmo com tão poucas pessoas, a ilha Kalsoy conta com dialetos. Percebe-se, leio, as diferenças entre um povoado e outro, embora todos se entendam quando se encontram e contam as novidades uns aos outros. Os povoados estão ligados por túneis, para os quais um site turístico alerta serem imprescindíveis lanternas. O túnel mais a norte, que liga Mikladalur a Trøllanes, é estreito, frio, úmido e escuro, e tem 2 km de extensão. Atravessa a região de Trøllanes e raramento se vêm veículos no túnel, porque lá só vivem 20 pessoas. Como para essas coisas tudo depende de quem fala, diz o site que as temperaturas são "amenas": para essas latitudes, "ameno" é algo entre 0 e 11 graus centígrados, o ano todo. A média, 6,7.  Segundo o site: verões frescos, inverno suaves.

Nesse anoitecer em que as focas saem do mar, despem as suas peles de foca e divertem-se como humanos (uma orgia, dirá uma das personagens no palco). E quando amanhecem voltam ao mar, e aguardam o próximo ano. Mas, um dia, um dos Mikladalurianos, escondido em uma caverna para ver as focas-gente, encanta-se com uma bela foca-mulher e corre a roubar-lhe a pele. Quando amanhece, a pobre procura sua pele de foca, e desespera-se e pede ao jovem que aparece que lha devolva. Mas ele recusa-se, obstinado como está de que ela seja sua, e ela segue-o até a sua casa (lá, antes, ele já havia escondido, sob chave, a pele roubada). Casaram-se e tiveram filhos, e viveram juntos por muitos e muitos anos. Até que, um dia, o homem esqueceu-se de levar a chave que sempre carregava em seu cinto, e sua mulher pôde abrir o baú onde jazia guardada sua pele de foca. Sem hesitar, vestiu-a e retornou à sua vida e à sua família marítimas. Antes, porém, apagou a lareira e trancou todas as chaves, para que suas crianças terrenas não se machucassem - o fogo e o corte, a lâmpada e a faca. Haja simbologia. Desisto da lenda, quero mantê-la no ponto em que ficou dentro de mim, que não prestei atenção ao seu desenlace (algo terrível, uma maldição de morte que se abate sobre a ilha).

Fico-me com a imagem do mastro a meio do palco, a dividir o mundo em quadrantes, assim como a história de Élida, a personagem principal ("uma potência anfíbia", diz um dos críticos da peça), se divide entre lenda e realidade, nos quadrantes que a vida lhe oferece. A oferta que ressurge do passado, e coloca em cheque o presente, o mar e a terra, a declaração de liberdade que aprisiona, a neurose para onde todos (aparentemente) caminhamos: a minha vida está agora povoada por mais uma ilha deste planeta, que meus dedos desejam percorrer, onde imagino se escondam as histórias que precisam ser contadas ainda que a primeira vista pareçam não ser nada, e só estejam à espera de quem as invente para que ganhem vida. Um pouco à maneira de Allende, quando se aproxima do arquipélago chileno de Chiloé em "O caderno de Maya", que acabei de ler estas férias: "donde el océano se come la tierra a mordiscos y el continente se desgrana en islas".

À esquerda, na fotografia, a ilha Kalsoy.

24/07/2013

A louça

Para as pessoas de quem aqui se fala

Sertão de Alagoas, meados da década de 50. A louça acaba de chegar. Um conjunto completo de café, almoço e jantar, acondicionado em grandes caixas de madeira e envolto em folhas de papel de seda. As empregadas que desembrulham as xícaras não sabem o que fazer com tanto papel, tão fino. As folhas acumulam-se, dobradas com precisão, ao lado das caixas. E a louça equilibra-se em cima de todas as mesas da sala.

D. Maria corre de um lado para o outro, enlouquecida com tanta fineza. A da louça, a do papel e a do presente que lhe convinha a filha não visse ainda. Não antes do casamento. Quando encomendara, imaginara algo grandioso, mas agora estava aflita porque seria necessário comprar mais armários onde exibir tanto belezura. Nem tirem tudo das caixas, vai dizendo às empregadas que se ajoelham no chão. E elas param, atordoadas.

Agora, D. Maria examina cada pires, um legítimo Wedgwood, e o delicado desenho a prata e ouro e traços de vermelho. Pensa ter escolhido um outro, faz tantos meses que enviou o pedido para Staffordshire, na Inglaterra. Pensa na longuíssima viagem de navio, imagina o desembarque de todas essas caixas de madeira no porto de Maceió, e o seu translado em lombo de burro até à fazenda. Melhor que considere o enxoval finalmente completo. As arcas com as toalhas de linho, as colchas adasmacadas, o faqueiro de prata, e agora as travessas e as sopeiras e as saladeiras. D. Maria senta-se em sua poltrona forrada de flores de chintz e suspira entre um inspirar e um expirar.

O casamento passa, as festas acomodam-se na memória, as fotografias nos álbuns. Francine já está na casa nova. As paredes caiadas de branco, os sofás estampados com as grandes flores de que os ingleses tantos gostam, as janelas abertas de par em par - está quente demais, esse verão alagoano. Nem uma chuva no horizonte que abaixe a poeira e levante o ânimo. Esses são os pensamentos de Francine enquanto não se atreve a olhar para o futuro.

A recém-casada organiza a arrumação das coisas, atenta ao relógio e ao horário do chá. O marido prefere a limonada, mas sua mãe fez-lhe ver o quanto os hábitos que não são os nossos nos engrandecem. As caixas ainda sem desempacotar assombram as paredes, e Francine decide guardá-las no quartinho à entrada do porão. Usa a louça branca para o serviço de todos os dias, e quem sabe, quando precisar, virá buscar esta tão fina. Quando vierem os convidados, pensa enquanto alisa a manga de cetim da blusa. Francine sente o prazer que lhe darão os jantares e festas que organizará ao longo da sua vida de casada.

As filhas nascem, e o sertão fica para trás. Na mudança para São Paulo, as caixas são desenterradas daquele quartinho de onde nunca saíram. A louça ainda dorme dentro delas. A casa grande acolhe tudo, com espaço e conforto. Até o dia em que é grande demais para o vazio que se incorporou à vida. Francine olha para as paredes que forram a sua vida e vê o passo diante de si: é preciso mudar e arejar. Ainda não é hora de voltar pras Alagoas, mas é hora de sair desta casa. Diminuir os espaços conforme a vida diminui a importância das coisas que pareciam preciosas e, afinal, eram só enfeites.

As caixas espreitam do armário da garagem. É a filha de Francine que se encarrega de abrir cada grampo que prende as madeiras. Mergulha dentro do oceano de seda que envolve cada peça e volta à superfície com tigelas e pequenos pratinhos que vão abrindo um sorriso em seu rosto. Seus gestos são ternos e macios como os gestos que embalam e recolhem recém nascidos. É preciso prestar atenção a cada dobra e a cada recanto em seu primeiro encontro com o ar. Cecília precisa separar os conjuntos que as netas de Francine herdarão - é muito louça para uma pessoa só, decidiram em conselho familiar na noite anterior.

Cecília escolhe um dia de sol e prepara um café da manhã para seus companheiros de jornada. Escolhe as tigelas e os pires e as xícaras que usará; as pequenas travessas para os pães variados; os potes para a manteiga e as geleias que encomendou; as leiteiras e os bules para o chá e o café; as jarras para os sucos e a água aromatizada com hortelã. Só por último escolhe a toalha, cenário para tanta beleza e história. A louça sorri para o ar à sua volta, o tilintar dos talheres faz com que ganhe a vida que nunca teve. Que tristeza seria, pensa Cecília, esse serviço ser separado ainda virgem. E seus olhos brilham conforme os companheiros chegam, um a um, e olham assombrados para tanta delicadeza, tanto amor que se deitou nessa toalha. E a louça - ah, a louça... A louça canta, enfeitiçada pelos sons e cheiros e tatos que são a novidade da sua vida.


23/07/2013

Basta um verso

De todos os poetas que me encantaram quando primeiro me deparei com as literaturas africanas em língua portuguesa, Jorge Barbosa foi o que, de longe, mais me comoveu. E por causa de uns versos simples, quase inócuos; desses que se colam aos nossos ouvidos e que, entra ano, sai ano, ali permanecem, música suave a embalar a passagem do tempo.

Jorge Barbosa nasceu no arquipélago de Cabo Verde no começo do século XX, e pertence ao grupo da Claridade, que, como pode bem imaginar-se, significou um farolete aceso na literatura chamada então de "ultramarina" pelo regime português. O movimento, aglutinado ao redor da revista que lhe deu nome (ou vice-versa), antecipou tendências e modernidades com uma espantosa clareza. Talvez daí a Claridade, mesmo sem que ela própria soubesse disso.

O poeta teve uma vida circunscrita às suas ilhas; a fronteira marítima serviu-lhe de moldura ao longo dos seus anos, mas a sua poesia elevou-se acima das ondas e fez com que navegasse longe. O mundo caboverdiano vive espremido entre o desejo de ir e a vontade de voltar; o caboverdiano há décadas é expulso da sua terra pelas condições difíceis da vida, que ali se ganha palmo a palmo. Há mais caboverdianos emigrados que caboverdianos em seu próprio solo, mas o que se diz é que o sonho de todos os que estão fora é voltar à sua ilha natal. Tanto quanto o dos que não partiram é ter um navio que os carregue. Jorge Barbosa inventou-se um navio costurado com palavras.

Tanto na sua obra quanto, de resto, na de todos os escritores africanos que criam literatura com o suporte da língua portuguesa, o Brasil tem uma presença iluminada. O Brasil-colônia liberta, o Brasil-Regionalista, daqueles que conseguiam diferenciara sua escrita da matriz portuguesa, inventando-se e reconhecendo-se longe dessa espécie de patriarcado feroz. Imagino uma espécie de ante-visão de si próprios nos trópicos, para esses africanos todos que só deixaram de ser colônia em 1975. A política fazendo vibrar a alma de tantos guerrilheiros-poetas.

O verso que ressoa em meus ouvidos está dentro do poema "Carta a Manuel Bandeira". É de tal forma preenchido e embrulhado e tangido por ternura, que (outra vez) faz com que o meu dia ganhe distância desse cinza frio tenebroso para onde a minha alma tinha escorregado nas últimas horas. Ouço-o e a minha alma respira, liberta. E é só isto, coisa mais simples!, que quando dito em voz alta ganha espaço e corpo e tempo.

Aqui onde estou, do outro lado do mesmo mar,
Tu me preocupas, Manuel Bandeira,
Meu irmão atlântico.

Deve ter sido para escapar do intangível da vida, das coisas e das pessoas que os deuses inventaram a palavra poesia.

21/07/2013

Moustaki


Há muitos anos, aprendi algumas canções francesas. Aprendi a tocá-las ao violão, e cantava-as, a duas vozes, com meu inesquecível amigo Stéphane. Estávamos em Zinal, nas montanhas suíças, rodeados por pessoas que se procuravam a si mesmas e pouco mais - era muito. Numa noite, Stéphane chegou com seu violão e sentou-se como quem vai bater um papo. O papo durou muitos dias, entremeado por cifras e letras e descobertas de um país musical que eu desconhecia e ele me apresentou.

Entre essas descobertas, muitas delas tinham a assinatura de Georges Moustaki. Descubro hoje que Moustaki morreu há poucos meses, e não consigo deixar de imaginar um Stéphane ansioso à porta do céu, suando frio por poder receber o amigo antes de qualquer outra pessoa. E Moustaki deve haver chegado, com certeza de cabelos despenteados pela viagem e o mesmo olhar sonhador de sempre, e deve haver encontrado entre os braços de Stéphane o mesmo forte abraço que levou consigo.

Talvez tenham se sentado para ver o pôr do sol, se é que do céu pode ver-se o sol quando se despede da terra: um grego nascido em Alexandria, no Egito, entrelaçado às culturas judias, gregas, italianas, árabes, turcas e francesas, e um francês de Marseille, quase russo e cigano. Talvez Stéphane tenha começado a dedilhar "Portugal", versão em francês do "Fado tropical" de Chico Buarque. Talvez tenha começado a cantar os primeiros versos como se sem intenção, com a voz cristalina cheia dos veios escuros e densos que a Rússia lhe legou, e que lhe permitia dançar por entre culturas como o próprio Moustaki fazia. Talvez tenha se emocionado em algum momento, talvez haja nesse instante portugueses à porta do céu, e talvez eles se sentem por ali, porque as lembranças da sua encarnação ainda persistem em seus órgãos, e precisem de mais uns instantes antes de irem à fase seguinte.

Moustaki deve ter-lhe pedido o violão emprestado, para apresentar-se a si mesmo a São Pedro. Imagino que escolha a mesma música que levantava qualquer plateia em qualquer lugar - qualquer, de fato, porque Moustaki era um errante por natureza, e pouco tempo viveu em cada país por onde passou. Ainda que tenha se ligado tão fortemente à França, a Georges Brassens e a Edith Piáf. Cantaria Le Métèque antes de atravessar o umbral. https://www.youtube.com/watch?v=TbhN8tYKjoA

Apaixonaram-se ambos, no fim da vida, que de um foi longa e do outro nem tanto, pelo Brasil, pela bossa nova, pela Bahia, por Jorge Amado. Talvez o bahiano afinal esteja também à porta do céu. Se é para lá que os comunistas peregrinam quando esta vida termina.

Esse Brasil que depois se tornaria a minha vida, a minha escolha de chão, o lugar de privilégio da minha alma, chegou-me de várias formas, vários sentidos. Passados anos dessas semanas em Zinal, Stéphane  foi um dos primeiros a me trazer os trópicos do meu futuro -  Moustaki fez-lhe companhia, na capa do LP que Stéphane me mandou já não sei bem onde morava eu na época. 

E a porta do céu deve estar neste instante cheia, cheinha de gente, que chega de todos os quadrantes por onde ambos andaram, nessa aventura contagiante de descobrir o que mais gostavam de descobrir: pessoas. Só posso ser grata por ter sido uma delas, e porque cada um deles, à sua maneira particular, ter feito a sua aparição na minha vida, e me legado essa possibilidade de dor tão particular que é a saudade. Devem ser eles, e os coros dos anjos, que ouço cantar. https://www.youtube.com/watch?v=B_JXfpBRe5o


Ainda mais umas, para quem gostou:


La carte du tendre, Joseph e L'homme au coeur blessé


Águas de março

C'es Là



Ma liberté (um de seus últimos shows, em fevereiro deste ano)

19/07/2013

Macular

Em meio à revisão de um romance sobre livros, descubro várias coisas interessantes. Por causa disso, a revisão demora mais tempo do que deveria, enquanto eu me divirto vagando por universos que se descobrem diante dos meus olhos, paralelos e cada vez mais distantes da questão que me levou até eles.

Descubro a existência de uma expressão específica para os livros publicados entre 1450 e 1500, os alvores da imprensa. Em tipos móveis, essas publicações são chamadas de incunabulas - as provenientes do berço. Não deixa de causar-me assombro a quantidade de coisas que se desconhecem, e a sua capacidade de aparecerem quando menos se espera. Sempre me pareceu que berços e livros tivessem uma relação muito particular, mas não sabia que tinha nome.

Descubro também o que são máculas. Coisas bem mais interessantes e abrangentes do que a sua falta na Virgem Maria, que por ser Imaculada (supunha eu) não carregava em si nenhum pecado. Algo assim ficou em minha memória dos tempos de catecismo. Máculas, achava eu, eram manchas, sujeiras agarradas à nossa alma, às quais o padre N. dava o nome de pecado, com um olhar enviesado que me fazia olhar também de esguelha para a porta atrás de mim, preocupada que me agarrassem e me condenassem ao fogo eterno. Mas são muito mais interessantes do que isso: nos livros, são pequenas manchas amarronzadas provocadas por umidade ou falta de ventilação adequada, e constituem importantes sinais para qualquer colecionador de antiguidades livrescas.

São evidências da passagem do tempo.

E o tempo esvai-se enquanto penso nessa Virgem nova que me aparece sem essas novas máculas. Sem evidências de que o tempo passe por ela, e por isso não a manche. Esta é a Virgem que se renova a cada instante, porque o tempo para ela não passa nem existe nem causa sombra. Porque Ela é para além dele, como nossa essência. Prefiro-a bem mais do que à outra,  e parece-me fazer bem mais sentido.

Como os livros, também a pele tem as suas máculas. As causas são várias. A concentração de melanina produz máculas com excesso ou deficiência de pigmento; percebem-se a olho nu, como manchas mais escuras ou claras. Defeitos na microcirculação da pele também causam manchas (como o eritema, que desaparece sobre compressão e depois retorna, como me informa sisudamente o texto médico que leio), assim como as máculas hemorrágicas, as equimoses, que podem ser pontos, ou linhas, ou placas. Mudam de cor conforme a concentração de hemoglobina do sangue diminui, e por isso vão do arroxeado ao amarelado em alguns dias - e nelas se percebe a passagem do tempo, o envelhecimento das dores, o esquecimento cutâneo dos danos.

Dos livros à pele, e dela de volta aos livros: é preciso que a revisão termine, para que eu possa dedicar-me a ler a pilha de livros que guardo ao meu lado, sem prestar muita atenção ao tempo que terei (ou não) para acariciar cada uma das páginas-pele à minha espera. Poderia continuar perdida em pensamentos sobre o que faremos sem a pele dos livros quando a hecatombe virtual nos dominar por completo, e sucumbirmos à praticidade óbvia dos ebooks e aparentados. Mas não devo - porque o tempo começará a passar veloz entre os meus dedos e o fim da revisão, e é preciso terminá-la.


16/07/2013

Nerudianas

Para mi corazón basta tu pecho
para tu libertad bastan mis alas.

Penso que Neruda pode bem ter acabado de escrever estas palavras, como costuma, do seu baluarte diante do Pacífico, nessa sua opção de pescá-las conforme as vê formarem-se à sua frente. Talvez possa dizer, meses depois, quando o mar lhe falte e o céu se anuncie, que sente o fim do oceano diante dos olhos, a inexistência do arrastado barulho das ondas em seus ouvidos. A mesma coisa estampa-se hoje na areia da minha praia. Essa praia que são tantas e ocupam todas as paredes da minha morada.

Tenho a inspiração do poeta sentada ao meu lado, e com os seus olhos por dentro dos meus posso ler as palavras que evaporam de cada franja de espuma. Como se me escrevessem a mim mesma. Como se eu pudesse, a cada uma delas, transportar como desenho para adornar essa musculatura serena que tenho entre os dedos. A que os homens usam quando dormem. A que só se percebe por baixo de um lençol ténue, essa forma fugaz e branca e leve, como as nuvens que se formam na ausência e encobrem o horizonte aquático que ainda não existe diante dos olhos.

E aqui está o poeta, esse corpo feito todo inteiro de palavras.

Pergunto-lhe: se nos bastam peito e asas, para que os punhos fechados, os braços crispados, os olhos nesse arder acossado? Para que, se estão coração e liberdade à espera, e o peito aberto, e as asas estendidas? Do que estamos à espera? Nessa estrada que sabemos feita de nuvens? Como as que desenham as pegadas antes sequer que os pés se movam, antes que as ondas apaguem os rastros com os seus dedos de medusa? 

Talvez responda: a nossa geografia é feita de plumas, e a nossa anatomia do ar que encharca invisível a pele escassa dos pulmões. Talvez por isso o amor tardio, talvez por isso a capacidade pétrea de não nos arrancarmos de onde estamos por não saber onde cairíamos. Como se a vida fosse incapaz de ressuscitar os canais extintos.

Adormeço-me dentro das palavras, neste poente lunar que guardo entre os dentes, como se o apoiasse na língua e esta se compusesse de todas as palavras que penso para que o mundo se forme, úmido, à entrada da minha garganta.


15/07/2013

Vizinhos de rua

Aproveito o dia ensolarado pra levar minha xícara de chá a passeio. Do outro lado da rua, com o calor característico desta cidade logo às 8 da manhã, dona M. já está de mangueira em punho e vestido de alças, nesse cotidiano esporte local que constitui lavar calçadas. Em seu rosto redondo, dois olhinhos apertam-se querendo que eu acredite que ela sofre de vista difícil. Não consegue, eu já tenho provas suficientes do quanto M. é expert em ver as coisas do outro lado da calçada – no caso, as minhas janelas. É efusiva, ela, e dirige-me o cumprimento costumeiro, abraçando-me com seus braços largos.

‒ Ana, mas quanto tempo... desta vez fica o resto do mês?

Não lhe digo nem que sim nem que não, devolvo-lhe o sorriso e ouço-a reclamar da sujeira da frente de casa.

‒ Nada disso é meu, vê se pode... ‒ e vai varrendo hidraulicamente a tal da sujeira até o limite da casa do lado esquerdo.

‒ Novos vizinhos, dona M.? ‒ pergunto-lhe, percebendo o quanto eu mesma atravessei a rua querendo saber da vida alheia. Estas coisas pegam-se.

Pois é: novos vizinhos.

‒ Você não sabe o que eu estou passando, Ana.

Por acaso sei. Ouvi-os uns dias atrás, num pagode que durou o dia inteiro e insinuou continuar noite adentro, interrompido apenas (descubro agora) pela ameaça de dona M. chamar a polícia.

‒ Gente difícil, Ana, eu não merecia isso no fim da vida... Olha lá a janela do meu quarto, não consigo mais dormir...

Agora é dona L. quem atravessa a rua. Magra e baixa, de cabelo curto todo branco, parece um passarinho correndo através dos paralelepípedos. Tem um piano em casa, e, quando a filha vem visitá-la, a rua inteira ouve as sonatas que a sua memória recupera.

‒ Vi vocês lá da janela da sala! Um convescote em plena manhã, que beleza!

E dá-me dois beijos sonoros, um em cada bochecha, que é o que sempre faz quando me vê.

‒ M., minha filha, que barulheira foi aquela esses dias? Quase chamei a polícia pra você! ‒ e dona M. retoma o fio da reclamação do pagode vizinho, que lá pela meia noite já não concatenava o ritmo do surdo com as batidas esporádicas de um pandeiro perdido.

‒ E bebem, L., como bebem, ai que tristeza...

Dona S., do outro lado, abre o portão e torna a fechá-lo correndo. Minhas duas companheiras abrem ao mesmo tempo um sorriso mecânico, calam-se e entreolham-se como se tivessem combinado. E decidem querer saber como estou. Na verdade, não querem: querem saber é da minha convivência com dona S. Não sei a quê andarão prestando atenção, mas desconfio que esse sorriso automático tenha alguma relação com a calçada. Dona S. ainda não perdeu o costume de lavar a minha calçada quando a lava a própria, e me fazer saber do fato (coisa que acontece, pelo que sei, todos os dias). De pouco adianta eu lhe dizer que prefiro não a lavar, que gasto de água sem necessidade etc etc. Estas duas senhoras devem ter ouvido reclamações do lado de lá.

Para desviar do assunto dona S., elogio o muro de dona L., todinho recoberto de unha de gato, numas formações antigas e bem aparadas que parecem até desenhar silhuetas medievais por cima dos tijolos chapiscados. E digo-lhe que não vejo a hora dessa obra interminável de minha casa acabar para poder plantar pelos menos umas três árvores na frente dela – pata de vaca, ando pensando, uma de cada cor... Dona L. não perde tempo.

‒ Ah, Ana, boa sorte. O pobre do seu Ambrósio [defunto morador da minha casa] bem que tentou... As mudinhas sumiam toda vez que ele as plantava, de madrugada, ninguém sabe como – e, enquanto fala, seu olhar passeia entre as casas de dona S. e a de sua filha, cada uma a um lado da minha. Dona M. encolhe os ombros e dispara na direção de L.:

‒ Vizinhos a gente não escolhe, vai fazer o quê...

E L. cabeceia e marca seu gol de saída:

‒ Mas M., a Ana aqui foi premiada! Dos dois lados? ‒ e ri até dizer que está na hora de entrar, precisa caprichar no almoço, que a filha vem visitar. Vamos ter piano mais tarde no nosso quarteirão.


12/07/2013

Dia de pesca

O tempo tem andado bom, aqui na praia. Desde criança gosto de andar na areia, vou e volto vezes sem conta, tanto faz o sol, o vento ou o frio. Quando pequena, diziam-me que era hiperatividade, agora posso dizer que preciso de exercício, e ninguém parece incomodado. Às vezes, vou falando sozinha, dando-me conselhos que na maioria das ocasiões não sigo, ou conversando com quem está longe, fato que dificilmente me impede de ouvir respostas. Com tempo bom como este, a praia não está deserta, e convém que olhe na direção do mundo concreto, muito mais plausível. Deve ser por isso que reparo nesse casal que já ontem percebi pescando aqui na ponta da praia, um sentado ao lado do outro nas suas cadeirinhas baixas, as duas varas bem em frente, enterradas na areia, as linhas esticadas a perder de vista. Quando passamos, na ida, estão sentados, mas na volta a senhora de chapéu está sozinha. Sorrio daqui, sorri de lá, e enlaçamos conversa.

Dona Maria chegou há três dias, não pescou nada até então, mas isso é só um detalhe para essa senhora que faz amanhã 60 anos. Moradora de Santos, costuma pescar na Boraceia, ou na Barra do Una, mas tanto ela quanto o marido enjoaram de pegar peixe no rio e vieram pra cá, pra praia. É o que ela prefere, diz, com os olhos piscando pela luz refletida na areia. No rio não entra na água, aqui leva a linhada lá pra longe e volta nadando, devagar, só rindo do tanto de coisa que a vida ainda lhe reserva. Três dias de pesca e não pegar nada só pode ser coisa da lua – é lua nova, bom mesmo é lua cheia ou crescente. Digo-lhe que a lua ontem estava tão linda e sorridente que achei já estivesse crescendo, mas ela garante que não. Se não tem peixe, é porque não tem lua. E encolhe os ombros e nem se aflige, porque a lua continua seu caminho e ponto. Logo mais haverá peixe.

No dia das mães convidou filhos e netos (já são quatro) para uma moqueca, e todo o peixe que usou foi ela mesma quem pescou. “Feliz?”, pergunto-lhe eu, só pra que continue falando, que feliz é óbvio que ela está. “De todos os jeitos”, diz ela: “já plantei uma árvore, já tive filhos e netos, já comi o peixe que pesquei – só me falta o livro”. Tento ajudar, prometo-lhe a crônica. Os olhinhos piscam por detrás das lentes e da armação vermelha e pergunta: “É? Você escreve? Mas que beleza! E pescar, pesca?”. Decepcionada com a minha resposta, diz-me que é preciso paciência, mais nada. Tanto faz se vem peixe como se não vem, bom mesmo é ficar aqui, eu e o homem, fumando um cigarro sossegados e olhando as ondas que não vão pra lugar nenhum.

Na próxima folga vão até Paraty. “Só fico pensando na distância... o que é que os filhos vão fazer se precisarem de mim?”, diz ela batendo a cinza do cigarro enquanto acaricia a carretilha da vara de pesca. Diz que não gosta de ir muito longe, por medo de ser necessária e não estar lá pra acudir. Como da vez em que a netinha caiu da escada e só ela conseguiu acalmá-la pra costurar o corte. Ou como quando Mateus precisou arrancar um dente e declarou que só ia com a avó. Não pode mesmo ir pra muito longe, esta avó que enquanto fala comigo espia o marido dentro do mar, parece que só vai voltar quando nos formos embora, “é que ele não gosta muito de gente, sabe?”, num convite delicado para que nos retiremos.

Fica-me o sorriso de dona Maria dentro dos olhos, e essas ondas que vêm e vão – ou eu achava que viessem e se fossem, mas dona Maria tem razão: estão sempre aí, não tem idas e nem vindas. Não sei o que mais haverá na vida que tão inocente e absoluto se declare presente. Nem sei se, existindo, eu teria olhos para ver. Talvez eu tendesse a perceber as diferenças entre as gotas, mesmo sendo todas quase iguais umas às outras, e não conseguisse sucumbir à beleza que dona Maria vê nas coisas que não mudam nunca, e jamais o farão. Talvez seja preciso treinar o olhar para ver as semelhanças, e encantar-se com elas, tal qual fazemos com tudo o que é tão diferente de nós mesmos.

16/06/2013

O poder da mão



Na semana passada, numa das aulas de Escrita Criativa, usei essa fotografia tirada na Cracolândia paulistana, horas antes da "Operação Sufoco". A intenção era despertar o olhar observador objetivo, distante dos processos de julgamento. Costuma ser um exercício poderoso e importante quando as pessoas se dispõem a escrever, "funciona" em qualquer grupo, de qualquer idade e constituição, seja homogêneo ou heterogêneo. E serve-me a mim, às vezes, para radiografar essa mesma constituição e pensar nos passos seguintes.

A escolha da fotografia, nesse dia, obedeceu ao reconhecimento do grupo que a veria: um grupo de policiais militares presos, uns julgados e condenados, outros aguardando os processos jurídicos. E um ou outro cumprindo pena pelos "excessos" cometidos na invasão da Cracolândia que a fotografia mostrava.

Usar imagens extáticas para exercitar o olhar observador foi inspiração que me chegou pelas mãos de Saramago, numa pequena crônica que escreveu sobre a sua relação com uma fotografia da Amnistia Internacional em defesa aos direitos dos presos políticos chineses. Um texto tocante e forte, sobre a necessidade de conseguir ver o que está nas coisas. E, depois, tomar posição. E, depois, não se deixar aniquilar pela sucessiva, anestesiante e contemporânea exposição maciça a imagens e mais imagens.

Nem todo grupo com quem trabalho consegue chegar a um patamar de observação objetiva com facilidade. Quanto mais próxima é a imagem do universo e do repertório dos alunos, mais difícil fica. As injunções, as deduções, as especulações, aparecem com muito mais facilidade quando se tem a impressão de que se sabe o que se vê. Por isso, normalmente, prefiro usar imagens que não sejam familiares ao grupo com quem trabalho. É mais fácil ser objetivo com o que não se reconhece.

Mas não neste caso. Porque, na realidade, quis tocá-los rapidamente. Levá-los à exposição de si próprios sem reflexão. Acessar os seus mecanismos automáticos nessas 12 horas que temos juntos ao longo de algumas semanas.

Fui bem sucedida. Todas as frases construídas, que se pretendiam e buscavam ser objetivas, foram subjetivas e emitiram julgamentos. Espantamo-nos, nós que observávamos os observadores, não tanto com a dificuldade em se afastar do motivo da observação e enxergar apenas o que é visível, mas  com a enorme insistência em querer referendar a sua visão pré-concebida como legítima. Demorou tempo para chegarmos a consensos do que era e do que não era visível.

As frases que usamos para esse processo são aquelas a que se chama comumente de "afirmativas". São afirmações e, por isso, verdades indiscutíveis. Para serem indiscutíveis, precisam ser referendadas por todos os olhos que as observam. É preciso que todos reconheçam aquilo que a frase afirmativa diz. Assim, "um grupo reunido em roda" é diferente de "um bando usando droga". Levou tempo até chegarmos ao consenso do "grupo reunido em roda", e mais ainda para percebermos "um homem de costas, sem camisa, de calça jeans, mãos na cintura e camiseta listrada enrolada na cabeça" em vez de "um cara querendo comprar bagulho". Levou mais tempo do que é costume com outros grupos.

Fiquei surpresa e assustada com o ter sido tão bem sucedida. Bem sucedida em conseguir acessar o que não gostaria de conseguir acessar tão facilmente. Porque tão fácil quanto ser manipulado é manipular. Conduzir o outro por onde você quer que ele vá. Seja o objetivo nobre (quero acreditar que o meu seja) ou não, é um tanto assustador ver a sua manipulação surtir efeito tão rápida e intensamente. O poder da "mão que sugere" é habilmente usado todos os dias, a todos os momentos, por todas as mídias e recursos que nos rodeiam. Manter-se imune é quase impossível, e não ser massa de manobra quase uma utopia.

Nesse dia, fui obrigada a olhar para esses homens à minha frente, policiais concursados agora sob o estatuto de presos condenados, de forma diferente. Ainda não se esfumaram todos os preconceitos que se abrigam em mim contra as forças policiais (forças que tenho dificuldade em entender outra coisa que não repressoras), mesmo com o trabalho que tenho desenvolvido dentro delas. Meu coração ainda dispara e os pés ainda gelam quando um guarda rodoviário me pára, mesmo eu com todos os documentos do carro em ordem. São reflexos arraigados, quase um atavismo; mas diminuem extraordinariamente quando entro em contato humano com esses policiais presos. Quando sei seus nomes e me espanto com os crimes que cometeram e a maneira como falam deles.  Quando ouço o que escrevem e sinto dores, aspirações, arrependimentos e desejo de ser melhor do que se é, como quase todos nós que vivemos do lado de cá das grades. Tanto faz que todos se declarem inocentes, ou com tantos atenuantes que seja quase a mesma coisa. Tão frágeis quanto qualquer um, tão expostos à cultura de manipulação quanto qualquer um.

Num segundo momento, migramos para o segundo tipo de frases, aquelas que desejam intensamente relacionar-se com o objeto que tão bem e tão desapaixonadamente se observou. São as frases que provocam o diálogo. São as perguntas. Assim, nesse mesmo dia e muito muito aos poucos, chegamos a um "estarão usando droga?" que transforma tão radicalmente a afirmação errônea por princípio de "um bando usando droga"; chegamos a "esse homem está procurando comprar droga?" em vez de "um cara querendo comprar bagulho". Aqueles mesmos policiais que vinte minutos antes não hesitaram em julgar o grupo que observavam, transformaram as suas afirmações apressadas em perguntas que transpiraram humanidade. A contra-gosto, a bem da verdade, e nem todos, que Escrita Criativa é bom, mas não é milagre.

Na pouca experiência que tenho com esses policiais, o que vejo são cérebros que observam coisas que eu não observo; que depreendem situações e realidades que mesmo podendo ser verdade, não o são objetivamente; que estão treinados para agir sem hesitação e com rapidez, quando chamados a isso; que sentem a ameaça ao redor o tempo todo e são instados a agir antes que o outro o faça. Corpos policiais, em países que suportaram sistemas ditatoriais, são perversos por natureza. A GNR portuguesa, ou a Guardia Civil espanhola, com quem tive mais contato do que com a PM, vêm-me à memória muitas vezes. Transformar a cultura interna desses sistemas, conferindo-lhes humanidade, sensatez e justiça, leva muito tempo, e demanda muita vontade e habilidade política. Um dos alunos desse presídio dizia-me outro dia que quando foi selecionado no concurso ficou muito orgulhoso, por ter conquistado uma das 1.000 vagas disputadas com 50.000 outros cidadãos. Apenas agora, que convivia dentro do presídio com o pior que existe dentro da "corporação" (ou não...), via que isso nada significava. Ser um desses 1.000 o deixava realmente deprimido, pela falta de qualidades que via em seus colegas.

Ao ler na internet tantos e tantos textos sobre a repressão policial às manifestações populares dos últimos dias, reparo na violência verbal contra os policiais. As ações truculentas e arbitrárias explodem diante dos nossos olhos, em tantas e tantas filmagens que são compartilhadas. A nossa capacidade de observação e reflexão é alterada pelas imagens que recebemos, e como consequência o nosso julgamento sobre elas. Não o imediato, que, é claro, vê a estupidez que reina. Mas no que se segue, e que precisa ajudar-nos a ver que é a polícia, e seu sistema de seleção e preparação, que cria a situação que vemos, e não as individualidades que se perdem disformes dentro dos uniformes e dn punho dos cassetetes. Como nós todos, sujeitos às arbitrariedades que nos ultrapassam.

Não sei se todas as manifestações em curso terão o poder de alterar o rumo de alguma coisa. Falta reflexão e direção e sobra furor. Como uma força da natureza, a multidão avança qual tsunami, comparação de Viviane Mosé antes de ser vaiada por quem normalmente gosta do que a filósofa escreve. Descontrolado e assustador. Justificado e compreensível, mas nem sempre justo, nem sempre equânime.



15/06/2013

Amigos de longe

Com a internet regularizada em casa, é momento de voltar ao contato de quem está longe. Passo a manhã nisso, janela do skype aberta.

Começo pelos filhos que moram do outro lado do mar, e que me oferecem meia hora de prosa como se estivéssemos aqui um ao lado do outro, como em outras épocas que quase parecem vidas passadas. Desligo e fica essa sensação de vazio tão grande. Quase era melhor não falar. E rio-me. Nada disso: amanhã ligo de novo.

Amigos que estão dispersos aqui e ali. Tão bom tê-los a todos assim, à distância de um clique. Prefiro sem câmera, para que a vontade do abraço fique onde está, dentro do coração, e não seja tentada a atravessar os olhos. A cada nova conversa, a vontade de escrever para dizer mais do que já foi dito, ou talvez para dizer a mesma coisa, mas dessa forma palpável a que se pode voltar uma e outra vez. E agora que os tenho tão perto, mais lhes sinto a falta. Talvez porque estes amigos me devolvam a justa medida de mim mesma, talvez porque ouça nas suas vozes o espanto por umas coisas e a anuência de outras. Como se me dissessem "nisso eu te reconheço" ou "pareces outra pessoa agora, por onde foi que andaste?". Guardo-lhes algumas frases, aqui no papel, para poder voltar-lhes depois. A essa forma tão exata que têm de perceberem aquilo que de nós se projeta.

Volto desses encontros cheia de novidades suculentas. Uns, oferecem-me novos poetas; vão até à prateleira rapidinho para me apresentarem aos versos de que mais gostam. Outros lembram-se depois de duas horas que ainda não almoçaram, e sinto que se despedem porque o relógio acusa o tempo e não porque a alma o solicite. E outros, que já almoçaram mas precisam lavar a louça, ficam contentes porque, enquanto a lavam vamos conversando, com o tilintar dos talheres ensaboados como música de fundo.

Passam-se meses, às vezes anos. Quase nunca nos vemos. Mas as nossas palavras são as mesmas, e reencontram-se sorridentes através desse mundo que nem de fios mais precisa para se comunicar. Rimo-nos das mesmas coisas a léguas de distância. Sabemos de que dores o outro fala. Sabemos que o embargo da voz é a lágrima presa. Que o silêncio compassado é a dor que não alivia. Que o riso que interrompe a frase é daquilo que já se sabe mas ainda não se assume, porque não é tempo.  E não dizemos nada, porque não é preciso. Sabemos do que os amigos falam, não porque sintamos o mesmo, mas porque sabemos de que tom de vermelho está constituído o coração de quem amamos. O coração desses de quem, talvez por pudor, dizemos sermos amigos em vez de dizermos que amamos. Porque reservamos o amor para aqueles seres raros que nos cortam a respiração. E talvez porque esqueçamos que amizade é amor. E que amor nunca é demais.


Foto: Pedro Ozório


09/06/2013

Albardar

Uma coisa leva à outra. Às vezes perdem-se os motivos pelo meio do caminho, mas de repente eis que surge uma ideia costurada com palavras, que se vão estendendo pelo papel afora sem se saber de onde surgem as coisas que as unem. Hoje, à procura do ditado que preencheria o meu dia e me faria escrever, longe que estou das ficções às quais decidi dar descanso, fui dar à palavra albarda.

Já se sabe que as palavras que começam com al são nossas parentes árabes. Muitas e muitas, algumas caindo em desuso porque aquilo de que falam também cai em desuso. Assim são as coisas: vão se acabando pela mão dos homens e as palavras retornam ao seu mundo extático de antes de nascidas. Dói-me a alma ver uma palavra que morre.

A esta, ressuscito-a. Li outro dia que uma pessoa só morre de fato quando o seu nome deixa de ser falado pelos vivos. Que só morre quando o último pronuncia o seu nome. Com as palavras deve acontecer o mesmo. 

Albarda. Do árabe albarda'a. Usa-se em burros ou mulas (que descubro responderem coletivamente pelo termo "muar"), e servem como selas, mas mais grosseiras que as usadas em cavalos. Basicamente, são feitas de serapilheira e enchidas de palha, normalmente de centeio. São costuradas com fio forte de sisal, e seus enfeites dependem do uso a que se destinem. A da foto, por exemplo, é uma albarda mais festiva.

Mestre Zé é como um hipopótamo pigmeu da Libéria. Quase extinto. Vive numa aldeia retirada ao norte do Algarve, de nome que me foge, mas que se parece com Alcoutim, vila onde o impiedoso avanço árabe ainda se cheira nas esquinas. Mestre Zé é albardeiro.

Antigamente, conta-me, era diferente. Chegavam os clientes aos magotes, que a fama dele corria a terra. Albardas? É com o Mestre Zé, lá de perto de Alcoutim. E chegavam os mais ricos e os mais pobres, aqueles montados em cavalos com a mula puxada atrás deles. O olho experiente de Zé media então a altura da cernelha do animal e a inclinação das espáduas, para mentalmente fazer as contas e saber qual o cepilho correto, a patilha exata, se um suador mais aberto ou fechado, dependendo da largura do tórax. A albarda perfeita para o animal à sua frente. A que se encaixa e alivia o animal das cargas que precisa carregar em seu lombo, inclusive as cangalhas que a vida aqui  e ali sempre impõe. Nisto tudo Mestre Zé não levava mais que alguns minutos.

Mas todo animal tem dono, e os muares não são exceção. E às vezes Mestre Zé precisou curvar-se à vontade do dono, àquilo que ele acha melhor e de melhor lucro para o animal que carrega consigo como se uma parte de si próprio fosse. Aliás, Mestre Zé gosta desses donos que olham para seu animal como quem olha para sua própria alma, ou seu próprio coração. Mesmo sendo pra esses que mais é difícil trabalhar, disse-me ele nesse dia de prosa algarvia, porque nada os convence de que precisem de uma albarda mais larga. Para esses clientes, Mestre Zé descansa do que vê e do que sabe, e faz a vontade ao dono - inclusive para não o perder, porque são mais raros os que nos dias de hoje procuram uma albarda. E é por isso, filha, conclui Mestre Zé, que o povo diz: albarda-se o burro à vontade do dono.


04/06/2013

Para os que arriscam

(Porque branco de página é o pavor de quem escreve nos dias em que não sabe o que escrever. Todos inventam artifícios. O meu hoje é este: ditados populares. Pode dar samba...)

Quem não arrisca não petisca.

Às vezes, é melhor. Petiscar tem um quê de superfície que profundidade gastronômica alguma altera. Assim é.

Comem-se pequenas quantidades de comida bem confeccionada, quando se petisca. São iguarias, das quais nos aproximamos sem nos aproximarmos realmente: sim, como-te, diz-se àquela porção fumegante que acabou de pousar na mesa posta. Mas um pouco, e só de vez em quando. Já pensou, se gosto tanto que não quero comer outra coisa? Já pensou, se de tudo o que tiver de comer daqui em diante me surgir a imagem fantasmagórica de uma delícia dessas? Já pensou, se for crescendo a vontade de te transformar, ó petisco, em refeição, e de te ter à minha mesa em todas as ocasiões? Pior: e se de repente me afundo numa espécie estranha de nostalgia do que eu poderia ter transformado em refeição e mantive na prateleira das distrações? Não, não: melhor não arriscar.

É que petisco não é alimento: é satisfação primária. Agrada-se o paladar e esquecem-se as entranhas. Elas que digiram como melhor puderem, depois. Para isso existem: digerir sem incomodar. O problema são as úlceras, um dia, talvez, quem sabe... essas feridas abertas na superfície do estômago, todos os petiscos do mundo convergindo para a fragilidade das paredes, abrindo frinchas que se convertem em chagas. Anti-ácido tampona, mas não resolve. O que é preciso é parar de petiscar e se alimentar de forma correta, diz o médico num meneio de cabeça. Que pode ser qualquer coisa, a rigor, para isso temos um supermercado de ideologias alimentares à escolha, e como somos seres da modernidade nem é preciso que nos formatemos em lugar algum. Coma tudo cru, ou tudo cozido, ou só proteína, ou nada de animal, ou só um pouco, ou tudo líquido, ou todas as cores no prato, ou jejue de vez em quando que é bom. Ou então inverta tudo e se alimente só de luz. Para a alma, deve ser o melhor. É capaz de ser bom para diminuir a extensão da sombra, ou dar-lhe um pouco de claridade. Não é preciso acabar com ela, e nem é aconselhável. Como diz Clarice, era capaz de que nos acostumássemos com a felicidade, e quando felizes somos egoístas. Eu gosto muito da minha sombra, não quero perder-me dela nem que ela vá atormentar outras criaturas.

Agora, bom mesmo é uma mesa de bar na Plaza Mayor de Madrid: começa-se pelos petiscos, que eles chamam de "tapas", e depois vai-se aos pratos principais. Entre tortillas e porções de jamon serrano, entre mejillones e angulas al ajillo, tecem-se os primórdios da refeição, o início do prazer de degustar. Como se fosse um ensaio. Como se se dessem os primeiros passos na direção daquilo que vale a pena ser vivido. Pode até demorar horas, que seres ibéricos gostam de demorar-se à mesa, e são horas de ordem e rigor, disposição e entrega. Raros são os que se ficam pelos petiscos: em algum momento, pedem-se as matérias que dão substância ao corpo e à alma. Num acordo tácito, os convivas tilintam os copos, esse som festivo que anuncia a existência e o reconhecimento do que não é matéria. Nessas mesas de amigos, nessas ocasiões tão únicas em que os olhos se encontram e a vida se divide, as travessas crescem, e as refeições se completam. Dessa forma, sem medo de errar, é bom de arriscar, é bom de petiscar, e é bom de se alimentar. E haja apetite!

Na foto, umas gambas al ajillo, coisa boa para esquentar o frio.

01/06/2013

O último dia

Aos que falavam de Heráclito e Parmênides

É uma paisagem de rugas, o centro da cidade. Nas esquinas, nas paredes das velhas casas decadentes que abrigam sem variar bordéis ou cortiços, cravam-se marcas do que nem se lembra mais de ter sido. A decrepitude está por todos os lados, colada ao barulho e ao movimento sem nexo de pessoas que vão sem irem e que chegam sem terem vindo. E eu gosto. Nessa impressão de fim há vidas no mesmo processo de perda. Olhos que viram, mãos que tocaram. Uma desesperança sem cor por todos os lados, e a vida de repente escorrendo pelas sarjetas sem que ninguém lhe dê atenção. Eu gosto de sentar-me nos bares desses centros. E de olhar em volta, em busca dessas rugas que não entendo nem me consolam de nada, mas me fazem pensar.

Nem sempre carrego os pensamentos corretos. Ou ordenados. Ontem, na mesma hora em que Helena tombou, ocupava-me com Heráclito. Não conhecia dona Helena, mas fiquei em meio à multidão que se foi juntando, ouvindo retalhos de verdade da boca de todos. Doze facadas.  Tentaram reanimar, mas não teve jeito. E o homem lavando com calma a faca assassina na pia de casa, como se não lhe pertencesse. Ali mesmo, a polícia pegou, o sujeito era vizinho. A faca foi aumentando nas bocas dos que nada viram mas tudo sabem, desenham-lhe o tamanho com as mãos estendidas. E o tamanho de Helena diminuindo nas lembranças que todos já confundem. Acendem-se cigarros nervosos nas bocas desdentadas dos velhos que vivem essas esquinas todos os dias. Mulheres com filhos a tiracolo olham de lado e atravessam rápido, antes das perguntas. Motoboys descansam as motos e discutem todas as hipóteses da traição. Um diz que foi o marido. O outro, que foi o amante. O terceiro investigou: foi um cliente. E eles se entreolham, perguntando-se com os olhos cliente de qual mercadoria. E riem-se, mas sem desaforo, porque há silêncio por entre os corpos, e todos se sentem um pouco estendidos ao lado da mulher morta. Está calor, são ainda cinco horas da tarde. Quem tinha pressa, esqueceu-se dela, guarda o que vê para contar à mesa do jantar. Deve ter sido causa de droga. Foi não: foi mulher mesmo. Ou dívida. Diz que não pagou a cerveja de de manhã, e Helena cobrou. Foi lá e buscou a faca. E gostou do som da lâmina entrando na carne macia da Helena, não conseguiu mais parar. Coitada da Helena. Arrastada pelos cabelos, não teve tempo de pegar a arma dela debaixo do balcão. Ali mesmo, na calçada, as doze facadas. O garoto de olho ressecado diz que o povo gritou, mas ele nem ligou. E foi pra casa lavar a faca, o malandro. Bandido. Drogado.

Dona Helena, dona do bar menos afamado do centro, não ouve mais nada. Está dentro do rio que a conduz ao outro lado da vida. Deixa escapar a mão por baixo do sudário prateado com que a polícia a embrulhou sem cuidado. Há um anel nessa mão, num dedo curto e gordo que acaricia inerte a pedra da sarjeta, e uma tira espessa de sangue coagulado que se agarra com determinação às pedrinhas da calçada. Para tornar-se marca, que nenhuma água consiga lavar ou esquecer.

Enquanto Helena era esfaqueada, eu pensava no nada que sei de Heráclito e por consequência em Parmênides. No rio que ambos atravessaram, cada um a seu tempo e com uma impressão diferente sobre a verdade da água, e ao qual Helena se congrega, nesta tarde de sexta feira. Uma senhora ao meu lado, com uma imagem grande de Nossa Senhora das Graças, diz-me que agora sim ela está livre. Livre do pecado e livre do sofrimento de seus 47 anos, que acabam hoje em meio a esse tumulto de interessados no fim das coisas. Coitada, diz um rapaz ao meu lado, ninguém a defendeu. A mulher que tropeça na falta de dentes deixa escorrer as piores palavras que conhece: teve o que mereceu, essa puta da Helena.

E eu penso em Heráclito e em Parmênides, e nessas oposições contraditórias que a vida oferece como forma de encontrarmos sentido, e penso mais ainda quando a multidão se embaralha em volta dos cordões de isolamento nessa esquina dessa rua desse centro decrépito, e a polícia quer desfazer o novelo, e liga as sirenes, e em seus olhos brilha a intenção de passar por cima de quem não respeite as luzes que giram e a buzina que não dá sossego, e a turba é um rebanho que obedece sem perceber e tudo isso é uma coisa só e agora faz parte de mim porque aqui estou. Insisto em retirar os véus que Maya persiste em sobrepor diante dos meus olhos. E de repente vejo as lágrimas de duas mulheres, e os braços amparadores de um homem que aparece como consolo. Um estalar de afeto sem ruído. Difícil sair desse cenário, esse reconhecimento coletivo de destino na mulher caída, o pescoço aberto na facada fatal, a roupa ensaguentada, o sapato que escorrega de seu pé e cai sem que o enfermeiro da ambulância possa fazer qualquer coisa, porque se esqueceu de olhar para trás e ver. Como às vezes se faz com a vida, que escorrega para fora do pé, e não se tem nada a receber a não ser o choque duro e cru do asfalto esburacado de um centro qualquer de cidade.


Imagem: recorte de "Hombres leyendo", uma das "Pinturas Negras", de Goya.