04/06/2013

Para os que arriscam

(Porque branco de página é o pavor de quem escreve nos dias em que não sabe o que escrever. Todos inventam artifícios. O meu hoje é este: ditados populares. Pode dar samba...)

Quem não arrisca não petisca.

Às vezes, é melhor. Petiscar tem um quê de superfície que profundidade gastronômica alguma altera. Assim é.

Comem-se pequenas quantidades de comida bem confeccionada, quando se petisca. São iguarias, das quais nos aproximamos sem nos aproximarmos realmente: sim, como-te, diz-se àquela porção fumegante que acabou de pousar na mesa posta. Mas um pouco, e só de vez em quando. Já pensou, se gosto tanto que não quero comer outra coisa? Já pensou, se de tudo o que tiver de comer daqui em diante me surgir a imagem fantasmagórica de uma delícia dessas? Já pensou, se for crescendo a vontade de te transformar, ó petisco, em refeição, e de te ter à minha mesa em todas as ocasiões? Pior: e se de repente me afundo numa espécie estranha de nostalgia do que eu poderia ter transformado em refeição e mantive na prateleira das distrações? Não, não: melhor não arriscar.

É que petisco não é alimento: é satisfação primária. Agrada-se o paladar e esquecem-se as entranhas. Elas que digiram como melhor puderem, depois. Para isso existem: digerir sem incomodar. O problema são as úlceras, um dia, talvez, quem sabe... essas feridas abertas na superfície do estômago, todos os petiscos do mundo convergindo para a fragilidade das paredes, abrindo frinchas que se convertem em chagas. Anti-ácido tampona, mas não resolve. O que é preciso é parar de petiscar e se alimentar de forma correta, diz o médico num meneio de cabeça. Que pode ser qualquer coisa, a rigor, para isso temos um supermercado de ideologias alimentares à escolha, e como somos seres da modernidade nem é preciso que nos formatemos em lugar algum. Coma tudo cru, ou tudo cozido, ou só proteína, ou nada de animal, ou só um pouco, ou tudo líquido, ou todas as cores no prato, ou jejue de vez em quando que é bom. Ou então inverta tudo e se alimente só de luz. Para a alma, deve ser o melhor. É capaz de ser bom para diminuir a extensão da sombra, ou dar-lhe um pouco de claridade. Não é preciso acabar com ela, e nem é aconselhável. Como diz Clarice, era capaz de que nos acostumássemos com a felicidade, e quando felizes somos egoístas. Eu gosto muito da minha sombra, não quero perder-me dela nem que ela vá atormentar outras criaturas.

Agora, bom mesmo é uma mesa de bar na Plaza Mayor de Madrid: começa-se pelos petiscos, que eles chamam de "tapas", e depois vai-se aos pratos principais. Entre tortillas e porções de jamon serrano, entre mejillones e angulas al ajillo, tecem-se os primórdios da refeição, o início do prazer de degustar. Como se fosse um ensaio. Como se se dessem os primeiros passos na direção daquilo que vale a pena ser vivido. Pode até demorar horas, que seres ibéricos gostam de demorar-se à mesa, e são horas de ordem e rigor, disposição e entrega. Raros são os que se ficam pelos petiscos: em algum momento, pedem-se as matérias que dão substância ao corpo e à alma. Num acordo tácito, os convivas tilintam os copos, esse som festivo que anuncia a existência e o reconhecimento do que não é matéria. Nessas mesas de amigos, nessas ocasiões tão únicas em que os olhos se encontram e a vida se divide, as travessas crescem, e as refeições se completam. Dessa forma, sem medo de errar, é bom de arriscar, é bom de petiscar, e é bom de se alimentar. E haja apetite!

Na foto, umas gambas al ajillo, coisa boa para esquentar o frio.

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