29/05/2013

Homeostase

Minha vida é uma homeostase entre o que eu quero, deixei de querer, e o que sei que nunca vou ter.
Moreno Ribeiro

Entre as várias bençãos que se anunciam e se estabelecem ao se terem filhos, algumas estão no campo do imponderável. Um dos que tenho a sorte de ter trazido ao mundo aponta-me, desde o outro lado do mar, uma porta de saída para a aflição do momento: homeostase. Demorei um tempo até conseguir acessar a vaga gaveta onde foram alojar-se as aulas de biofísica. E o que lá encontrei foi  algo relativo a equilíbrio, o que é bom e necessário, e eu diria até que urgente e inadiável.

Acontece em sistemas abertos, a homeostase, e dedica-se a regular o ambiente interno para manter uma condição estável. Quem anda por perto de mim nos últimos dias deve estar gargalhando da precariedade homeostática que vem observando...

Os sistemas homeostáticos, que são abertos, e por isso se deixam permear, às vezes até invadir, além de extremamente estáveis são, ao mesmo tempo, muito imprevisíveis. Tão imprevisíveis, coitados, que passam a vida imaginando e organizando formas de manterem sempre e a todo momento o próprio equilíbrio. Parecem gente. Nessa doidice de se manterem balanceados, usam duas formas de se estabilizarem. Uma positiva, outra negativa. Ou colocam em ação uma força contrária que discipline aquela que se descontrolou, ou dão o gás todo a essa descontrolada, até que ela se canse dela mesma e decida parar de causar (espero ter entendido direito...). E assim os incomodados se retiram e o belo do sistema mantém-se aberto e equilibrado. Parece um sonho. Um tanto paradoxal, já que essa coisa aberta é, ao mesmo tempo, estável e imprevisível...

É assim que anda meu coração, para quem se pergunta a troco do quê tudo isto. Como de praxe, aberto: quem quer um coração fechado?! E, como sistema que é, porque composto de tantas partes, busca tenazmente o equilíbrio e com a mesma tenacidade perde-o de vista a toda imprevisibilidade que se apresente. Costumava, nos tempos idos do antigamente de uns anos atrás, ocupar-me do retorno à estabilidade através da retroalimentação positiva. Mas de repente (dizem-me aqui no bate-papo que deve ser da idade, só não sei de quem) parece que me dedico com afinco a retroalimentar-me negativamente, dando o gás todo àquilo que me desnorteia e, pasme-se, fere!

Este meu filho, com poucos minutos de nascido, olhava para mim com olhos de não reconhecer o mundo a que chegava. Hoje, que não tenho seus olhos por perto, olho-o nas palavras que escreve e vislumbro dentro de mim o mundo que quis construir no dia em que ele chegou. Graças às suas palavras, e ao meu coração que teimosa quero manter aberto e pulsantemente amoroso, tenho as minhas de volta. Com alívio imenso, porque o silêncio dos dedos que escrevem é o pior de todos os silêncios, próprios e alheios.


(Para quem sentir falta de saber a que propósito essa página de um livro, fotografado há semanas em São Paulo, eu sugiro que leia de novo e crie o seu próprio propósito. Vacas são seres que ruminam, e que precisam digerir as coisas várias vezes até estas se tornarem  parte delas mesmas.

22/05/2013

Escavação de memória



Marisol desembarcou em Guarulhos hoje à tarde. Uma mistura de sentir-se perdida e haver-se encontrado. Está sozinha, tudo lhe parece grande e lhe é desconhecido, mas ainda assim consegue encontrar um espaço para si mesma numa cidade em que a memória está por todos os cantos. Com a mente cheia de imagens, começo da ação da memória, acaba de sentar-se na mesa ao meu lado no restaurante espanhol para onde me deslocaram nesta noite paulistana.

Marisol olha o escuro noturno pela janela, protegida pelo voil da meia cortina. Encolhe-se na cadeira em que se senta e está vestida de negro. Ninguém a seu lado. Balança a perna cruzada com o ritmo de quem espera algo que não acontece. Pediu, como eu, um triângulo alto de tortilla. Neste momento, ocupa-se em esmigalhá-lo com o garfo. Seus dedos lembram-me outros, distraídos e espanhois como os dela. São eles que meus olhos recortam, depois de recortá-la a ela, dentro deste espaço onde as pessoas se acotovelam e pedem, ao balcão, mais um tinto de verano. Apesar do frio.

Marisol abre-me este buraco côncavo escavado dentro dos ossos a que chamamos memória. Depende do osso a quantidade da dor. Os sólidos e espessos são os mais fortes. Ou talvez as memórias mais sólidas e espessas. Não sei. Difícil é andar os dias no trabalho de processar as memórias alheias - digestão lenta, incomum, gritando por enzimas que reduzam com mais rapidez essa amargura com gosto de término que leio nos papeis que me entregam. Cavam buracos convexos, absurdos paradoxos anatômicos que a razão não tem ferramentas para deglutir. E assim, do osso, migram ao coração, que em desespero as engole e faz passar de um a outro ventríloquo, uma e outra vez e outra e uma ainda.

Restaurantes, que são justamente lugares onde as memórias e as digestões confluem, são bons lugares nesses momentos de aperto. Este, em especial, e hoje com Marisol como testemunha, é um desses bons lugares - o tom certo do barulho que fazem as vozes na conversa, os copos ao serem lavados atrás do balcão, a porta da cozinha no entra-e-sai de pratos. Copos cheios, talheres ocupados, mente sossegada. Pode ser que não resolva, mas alivia, enquanto se espera pela próxima manhã.


O Maripili ("tasca española"), fica na Alexandre Dumas, 1152, zona sul de São Paulo. Vale a pena pelo acolhedor salão, nem pequeno nem grande, os garçons atenciosos na medida certa, os preços que não pedem fígados e, sobretudo, a variedade de pratos espanhois de fazer pedir por mais. A tortilla, essa que Marisol e eu comíamos, é das verdadeiras, como se nos sentássemos em Sevilha diante da Giralda e pedíssemos uma igual. Difícil é ficar no primeiro pedaço apenas...  Como de todas as vezes que lá cheguei estava lotada, vale a pena o telefone: 11-5181.4422)



26/04/2013

Liberdade

Era essa a sua escolha. Vago, vazio, ocioso e desocupado. A qualquer ameaça de transbordamento, embalava-se. Como uma caixa hermética. Não lhe interessava nenhuma ocupação de traçado compromisso, e por isso passeava entre aventuras, até o momento em que começasse a pensar que o "a" poderia transformar-se em "des". Não lhe ocorria que a palavra um dia prescindisse de prefixos, talvez porque entendesse que a sorte não é coisa que ande aos sorrisos pelas esquinas, e mesmo que o fizesse... Seus olhos embalavam-se tanto quanto, e nada via, assim todo embrulhado. Aos olhos, seguiam-se todos os sentidos. Apenas o maior de todos, a pele, lhe segredava outras coisas, mas ele estava tão bem treinado no olhar silencioso e vago e vazio, que a pele calava-se e sofria suas dores dentro dos poros.

Esses, às vezes, choravam. Ele diria aos amigos que no verão suava demais. Mas era choro incontido. Talvez ele sequer soubesse disso. Habituou-se a andar com uma toalha dentro do carro, e enxugava sobretudo a nuca. Depois, porque até a pele é daquelas coisas que perde a memória, as lágrimas paravam de suar e a vida parecia voltar ao normal. A tudo as pessoas se habituam. Essa coisa vaga e vazia e ociosa que ele chamava de normal.

Quando ela chegou, e a partir daí sempre que chegava, era a pele que dava o sinal. Não em forma de suor, porque não era choro, mas em forma de calor, porque era desejo. Os olhos não perceberam, estavam entretidos em outras coisas. O gosto ficou-se por ali mesmo: ainda não a havia provado. Mas de repente ela chegou, e chegou de fato, ela própria sem saber a que vinha e a que chegava. E com ela aquele calor que só parecia encontrar sossego e refresco na companhia.

Amoleceu. Abriu espaço, do tamanho possível. Todos os pequenos nadas deixando o que é vago com sabor de preenchido. Mesmo que ele não soubesse dizer, e nem se arriscasse a saber. O que era melhor, isso de tentar nem saber. Poderia acordar aquela necessidade aprendida de ser hermético.

Demorou muito. Mas a pele não tinha pressa, só a do desejo, e essa não é inimiga da perfeição. Abria as portas e ventilava a vida. Por tempo pouco, talvez, e durante um sempre misturado à sonoridade dos poucos instantes. Mas ainda assim era como correr em campo aberto, sob a luz do sol e com os braços desprotegidos de par em par. A pele permitia-se respirar, e penetrava a outra com ousadia e firmeza, como se nunca o medo houvesse feito casa por entre as suas cicatrizes. Então, e durante toda essa eternidade, a felicidade reinava plena, e ocupava.


Imagem: grafite no banheiro feminino do 1º andar da ECA/USP.




18/04/2013

Coisas sem peso

"Ó Ana" - diz-me uma amiga próxima ao coração - "é melhor que escrevas sobre coisas leves".

Gosto de conselhos, e gosto tanto da pessoa que me oferece este, que só por isso vou em busca de coisas leves. Dessas que têm o poder de deixar as pessoas numa espécie de estado de graça que, mesmo não sendo aquele da crônica da Clarice Lispector, dão a impressão de que sim. Apetece-me pesquisar sobre editoras, por exemplo. Estou mesmo à procura de conhecer algumas que há anos aprecio, este é um excelente momento. Vou começar pela Peirópolis.

Ora bem: antes de chegar à editora, descubro que Peirópolis é um bairro rural da muito mineira Uberaba (assim é o google: querendo uma coisa às vezes caímos em outra). Bonito, parece. Pela foto. Durante anos famoso pela extração de calcário. Chama-se assim por causa do espanhol que lá pelos idos de 1911 o explorou: Francisco Peiró. A ferrovia, que naquela época já atravessava o triângulo mineiro e levava os peiropolinenses pelos 21 km que os separam até hoje de Uberaba, passou quase 90 anos colorindo a paisagem com essa linha em movimento que são os trens. Depois, o mundo (essa coisa que nunca sossega, segundo Camões) precisou de energia elétrica, e lá se inundou um pedaço de chão para o lago de Jaguara nascer, hidrelétrica acoplada. Metade da ferrovia virou um ser subaquático.

Anos passados da morte de Francisco, Peirópolis recebe a visita do gaúcho Llewellyn Ivor Price. Nome nada comum a um gaúcho dos pampas. Mais precisamente, de Santa Maria. A mesma Santa Maria enlutada da boate Kiss.

Llewellyn foi estudar no país de seus pais. Em Harvard, USA. Tornou-se professor de lá mesmo, paleontologia. Quando voltou ao Brasil, porque nada lhe conseguia acalmar a saudade do cheiro das terras do sul (e se não sabe do que se trata leia Érico Veríssimo que descobrirá), lá passou as décadas de 40 e 50 em expedições por todo lado. Hospedou-se no Colégio Centenário, escola só para meninas, lá na sua cidade natal, chamado assim por ter sido fundado no mesmo ano da Semana de Arte Moderna, cem anos passada a Independência. Llewellyn devia gostar de ouvir as aliterantes Miss Louise e Miss Eunice, as missionárias americanas que fundaram o colégio, discorrer sobre a sua nobre e grandiosa tarefa, até chegarem à frase que conseguiu sintetizá-la: educar a mente a pensar, o corpo a agir e o coração a sentir. Se eu quisesse pensar em educação agorinha mesmo, escolheria essa frase, o ano em que foi dita e o tempo que nos separa dela para tecer algumas ideias. Mas como eu não quero, só reparo ainda que o Colégio Centenário mudou: na década de 70 (a mesma em que a ferrovia uberabense foi engolida pelas águas) passou a admitir meninos, e o pequeno chalé cresceu tanto que hoje chama-se também FAMES (Faculdade Metodista de Santa Maria). As bandeiras a meia haste ainda ressoam a consternação pelos alunos e pelas famílias soterradas pela dor do início do ano.

Mas eu estava em Peirópolis e para lá retorno, pela mão de Llewellyn. Literalmente. Eram seus os dedos nodosos que desencavaram de dentro das rochas e do calcário ossos e mais ossos, num destino arrastado que todos os palentólogos devem ter em comum. Pacientemente, organizou esse quebra cabeças de uma só cor. Dias e dias. Quando terminou, afastou-se alguns metros, coçou lentamente a orelha esquerda e segredou a seu assistente, um jovem de óculos de aro de tartaruga que mal lhe cabem no rosto estreito: 

- Lars, esse é o Uberabasuchus terrificus. 

Durante todo esse dia, que era de verão mas não de calor desmedido, Llewellyn ficou-se por ali, enamorado da própria recriação, imaginando os 300 quilos que um dia animaram aqueles ossos, os seus movimentos sinuosos de antepassado crocodílico. 

No dia do ano de 1980 em que Llewellyn descansou desta vida, o homem que escavou o país sentiu em si mesmo o peso dos anos e o peso dos ossos. E chegou à conclusão, antes do último expirar, que de nada adianta tentar fugir ao peso com que a vida nos persegue. E eu, que procurava coisas leves com as quais ir-me deitar descansada, acho-me agora com uma meia dúzia de sites que quero ler. Todos sobre dinossauros. E nem um que me dê notícias da editora que me apetecia.



(Para bem da verdade, não foi Llewellyn que nomeou o dinossauro uberabense. Desde as suas escavações em Peirópolis precisaram passar-se muitos anos. O Uberabasuchus terrificus nasceu para a posteridade perto do ano 2000.)

15/04/2013

Questão de discurso

Se tem um assunto que me encantava na faculdade era análise de discurso. Com colegas bem afiados no assunto, era fantástico ouvi-los enquanto se enfiavam por entre os meandros e as dobras do discurso alheio, num strip-tease forçado daquilo que mesmo sem querer se entrega. Basta prestar atenção ao discurso: as palavras entregam, seja pela falta, seja pela presença, mais frequentemente pelas escolhas que se fazem sem mesmo se saber que se fazem.

A imagem ao lado tem circulado no facebook nos últimos dias. Muitos de meus amigos a compartilharam. Alguns são professores. Revoltados com os resultados da análise do Forum Econômico Mundial com relação à educação em 116 países, onde o Brasil se situa abaixo "até" do Azerbaijão (e Chade, e Suazilândia). O "até" é matéria importante, aqui. Deve parecer óbvio, penso, revoltar-se porque os azerbaijonenses tenham escolas e professores melhores que o Brasil - sejam lá eles quem forem e onde exatamente no mapa múndi se situarem. Irrelevante não saber com qual das mil facetas possíveis se reveste a expressão "qualidade de ensino". (Com tudo isso, descobri que os azerbaijanos têm uma questão séria, que é a de como se chamarem uns aos outros: são também azerbaijenses, azéris, azerbeijanos, azerbaidjaneses e azerbeijaneses. Não fosse o tal estudo do Forum, e a coceira que me deu na ponta dos dedos, eu não saberia disso.)

Abaixo da imagem, bem clarinho, está o link da matéria do Estado de São Paulo. Vejamos do que se trata, afinal. As preocupações do Forum dizem respeito à capacidade de adaptação ao mundo digital e ao ensino de ciências e matemática na educação básica. O Brasil não está só "atrás" do Azerbaijão, do Chade e da Suazilândia, mas também  de Lesoto, Tanzânia e Venezuela. Apesar dos "avanços em infraestrutura e de um certo dinamismo do setor privado", a estagnação impera, e um dos motivos é a "qualidade do sistema educacional (...) que não garante as habilidades necessárias para uma economia em rápida mudança em busca de talentos". 

Depreende-se, portanto que 1) o problema não é do governo federal (já que a educação básica é responsabilidade dos municípios e estados), como induz a imagem de Lula e Dilma; 2) nem sequer da educação pública (já que há setores privados dinamizando o cenário, e foram considerados pelo estudo); e 3) nem exatamente uma "vergonha", já que investimentos foram e são feitos, e o Brasil subiu de fato algumas posições desde a pesquisa anterior (da 66ª para a 60ª posição). Isso sem pararmos para pensar de que "Brasil" estamos falando, com estados que ainda não pagam o piso salarial sequer, situação radicalmente diferente do sul e sudeste.

Que a educação enfrenta desafios e nos deixa perplexos de segunda a sexta dentro de sala de aula, não é novidade. Em todos os lugares, isso não é Brasil: é mundo. A adaptação ao novo universo que a tecnologia abre, e à velocidade que o faz, e às mudanças que processa de um dia para o outro, é tão dramática quanto a introdução da imprensa de Gutemberg a seu tempo, respeitadas as diferenças. O mais importante, que de repente esquecemos com frequência maior que a possível, é de quem mesmo é a responsabilidade. Meus amigos professores hão de desculpar-me, mas cada aula abonada, cada aula mal preparada "porque essa molecada não aproveita nada mesmo", cada hora mal gasta em sala de aula fazendo o que já se sabe não significará nada na vida dos cidadãos sentados diante da lousa, cada encolher de ombros para o que se pode fazer mas não se faz, cada desmerecimento oferecido às famílias que "não fazem a sua parte", cada "deixa disso" quando aparece uma possibilidade de mudança, é um tiro no pé de todos nós. Nós, os professores.

Meus filhos estudaram, há pouco tempo, em escolas públicas. Das 6 aulas que teriam no seu período escolar diário, raros foram os dias em que as tiveram. As às vezes quatro "janelas" passadas no pátio sem ter nada para fazer tumultuaram seu processo pedagógico, sua crença na capacidade dos professores de ensinar e na deles de aprender. Relativizaram a importância da escola e desmotivaram a assiduidade.

Não há governo que consiga reverter esse quadro, especialmente se todos os nossos dedos forem ingenuamente apontados para ele. Uma escola de qualidade demanda compromisso e mais compromisso, e o compromisso é, no dia a dia, de seus professores e diretores e secretários e merendeiros e faxineiros, que dentro de uma escola somos todos educadores. É árduo, intenso e altamente estressante. Mal remunerado. Socialmente desprestigiado. Todos os dilemas da sociedade estão dentro da escola, latentes e prestes a explodir. Todas as desagregações, todos os desmantelamentos, todas as desigualdades, todos os pequenos e grandes infernos, todas as carências, infelicidades e sentimentos de inferioridade. Assim como todas as possibilidades.

Se olharmos para trás, a remuneração dos professores teve aumento expressivo nos últimos dez anos (16% em 2011; 22% em 2012, por exemplo). O estado decadente vem de há muito tempo, não é recente, nem provavelmente solucionável a curto prazo. A abertura do processo escolar a todos trouxe mudanças e desafios, e é preciso olhar para o passado sabendo o que se vê, fugindo de discursos tendenciosos e sensacionalistas. As infraestruturas precisam ser utilizadas com sabedoria e as decisões precisam ser compartilhadas. Livros em caixa e computadores trancados dentro de salas fazem sentido? Sistemas de ensino particulares, apostilados, uniformizantes e reducionistas, tomando quase de assalto as salas de aula da escola pública, são o caminho?

Agora, a aula de amanhã, e a de depois de amanhã, precisa fazer sentido, precisa ser o caminho e precisa ser possível. A qualquer custo. A imagem que prega "Seja diferente: não derrube. Ajude a levantar" tem quase o mesmo número de postagens que a cara da "vergonha". Os mesmos murais as exibem, as mesmas cabeças compartilhando coisas tão díspares. Como se não houvesse relação entre elas.

A matéria do Estado de São Paulo:

12/04/2013

Ó Botucatu!

Essa ferramenta absorvente chamada facebook há semanas me pede que defina em que cidade moro. Já me mandou a pergunta de várias formas: parece haver inteligência por trás dessa tecnologia. Hoje, foi uma espécie de enquete: três possibilidades com a bolinha para clicar em cima da minha escolha. Uma delas é Botucatu.

A minha vida tornou-se uma forma itinerante. Há dias em que, se me perguntam onde vivo, direi que no carro. Na estrada. A caminho de. Indo. Voltando. É claro que minha sagitarianice diverte-se com tudo isso, mas outros aspectos do meu mapa franzem o sobrolho e disparam um tsc tsc tsc como se fossem personagens de gibi: "Até quando, filha, você vai aguentar essa toada?". Hoje, curiosamente, o sotaque parece ser de Botucatu.

Poderia ser a cidade escolhida. Ainda mais esta semana, que faz aniversário e completa 158 anos. Mesmo sendo ela a aniversariante, vou-me dar um presente: se o facebook me perguntar de novo  por estes dias onde afinal eu moro, responderei em alto e bom teclar: em Botucatu.

E só tem vantagens. Os bons ares, logo de cara. Mas mais ainda as nuvens, que não encontram congêneres em lugar algum do planeta. O céu noturno, pelo menos este aqui da casa onde vivo, sem luzes nem barulho nem quase pessoas em volta. Gosto da impressão de "vou crescer mas quero ficar pequena" que a cidade me transmite. Habituei-me com as suas ruas, nunca vivi tanto tempo em nenhuma outra cidade. Criei raízes, parece. Aéreas, pode até ser, mas ainda assim raízes. Ou âncoras. Ou essa sensação que às vezes me desconcerta de ser acolhida e consolidada naquilo que quero ser em mim mesma. Em Botucatu e em qualquer cidade. É bom, no mínimo, voltar para cá de tempos em tempos, reencontrar-me espelhada aqui e ali, neste e naquele olhar, como uma garantia de ter, sim, um lugar próprio.

Parabéns, Botucatu!

10/04/2013

O ar rarefeito

Judite está sentada diante da janela da sala. Um dia cinza, como tantos outros. O aquecedor a óleo aceso dentro de casa para secar o ar úmido. O sol esgueirando-se por entre as sombras dos prédios.

Judite está de olhos fechados. Impossível captar-lhe a alma. Amanheceu de boca dormente, o coração à entrada da garganta, as palavras na dúvida de se manterem silêncio ou atravessarem o ar.  Atravessaram, e ficaram da cor do ar rarefeito. O problema, lembra-se de ter pensado, não é a falta do ar. O problema é a sua consistência rarefeita.

Agora, o corpo dói-lhe. Como se cada dor a invadisse feito ar de montanha. 

Talvez por isso se expanda quando ouve a palavra praia. Por causa do ar. Da densidade do ar. Da pressão maior que torna os contornos menos difusos e a vida mais concentrada. Menos neutra. Salgada e presente. Em vez dessa coisa passageira e transparente que lhe atravessa os pulmões e lhe liquefaz a alma.

A alma líquida. Por isso fecha os olhos, a Judite. As mãos não fazem nada, porque cada movimento lhe dói. Doem-lhe as marcas. E a cada dor o mesmo coração secando, entalado à entrada da garganta. O mesmo ar rarefeito. E doem-lhe os tempos. E sobretudo sobretudo a falta deles. 

O dia vem bater-lhe à porta, de mansinho mas insistente. Judite levanta-se do seu posto de observação. As palavras entram por baixo da porta antes mesmo dela a abrir. Enroscam-se em seus pés, lambem-lhe as solas, os dedos um a um. Como se tivessem olhos, vigiam-na enquanto se demoram em cada articulação. Judite sacode-as, como se fossem formigas pretas enterrando-lhe ferrões de açúcar na pele. E recolhe-as do chão, com uma ternura feita da dor que não a espanta, para colocá-las à mesa, a seu lado, enquanto agarra com as mãos desocupadas papel e tinta.

08/04/2013

De mãos dadas

Traduzo há anos. Com interrupções, às vezes mais às vezes menos, às vezes mais bem paga às vezes menos, mas há anos. Atividade solitária e silenciosa, há momentos em que fujo dela o quanto e mais longe posso. Porque é uma arte, e a arte às vezes dói, demora-se, frustra. Doem-me as costas. Demoro horas, meses (muitos), e ainda assim não consigo chegar às palavras de outras línguas que quero perfeitas na nossa. Poesia, então... dureza árdua. Se a descubro presente em todas as páginas (é o caso da tradução que tenho em mãos), preciso mover-me lentamente parágrafo a parágrafo, verso a verso, preciso desinquietar-me do mundo para estar à vontade entre as linhas. E preciso parar, de tempos em tempos, e ir em busca de inspiração nos bons tradutores dos bons poetas.

Começo pela língua original. Saboreio-lhe a riqueza diferente da minha terra mãe. Digo-a em voz alta, para que o ar em volta se compenetre dessa vida própria que preciso absorver para poder traduzir. Perco-me um tempo por entre as páginas. Como hoje, agora à noite, que decido ser tempo de Elisabeth Bishop. Paro muitos minutos diante das letras que formam o poema "One Art". Leio em voz baixa, leio em voz alta, corro ao espelho, saio à varanda, quase que chamo o vizinho para ouvir, e depois repito tudo outra vez. Preciso de apoio e de companhia, a vida tingiu-se de cores sem palavras.

The art of losing isn't hard to master;
so many things seem filled with the intent
to be lost that their loss is no disaster.

Lose something every day. Accept the fluster
of lost door keys, the hour badly spent.
The art of losing isn't hard to master.

Then practice losing farther, losing faster:
places, and names, and where it was you meant
to travel. None of these will bring disaster.

I lost my mother's watch. And look! my last, or
next-to-last, of three loved houses went.
The art of losing isn't hard to master.

I lost two cities, lovely ones. And, vaster,
some realms I owned, two rivers, a continent.
I miss them, but it wasn't a disaster.

-Even losing you (the joking voice, a gesture
I love) I shan't have lied. It's evident
the art of losing's not too hard to master
though it may look like (Write it!) like disaster.

De Bishop rumo ao seu tradutor - Paulo Mendes Britto. Encontro-me e aninho-me por entre o ritmo de austeridade mantido; por entre as imagens desconstruídas e reconstruídas com força e ímpeto tão iguais (de joking voice a riso etéreo, de hour badly spent a hora gasta bestamente, de losing farther, losing faster a perca mais rápido, com mais critério); diante do encontro que quase parece fortuito entre mistério/sério/austero/mistério colado em mesmo grau e intensidade a master/disaster/fluster/master. E outra vez leio em voz baixa, e em voz alta, e corro ao espelho, e saio à varanda e quase outra vez chamo o vizinho para que também ele possa ouvir. Apoio e companhia, e as cores tingindo-se de palavras diante do escuro da noite.


A arte de perder não é nenhum mistério;
tantas coisas contêm em si o acidente
de perdê-las, que perder não é nada sério.

Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero,
a chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Depois perca mais rápido, com mais critério:
lugares, nomes, a escala subsequente
da viagem não feita. Nada disso é sério.

Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Perdi duas cidades lindas. E um império
que era meu, dois rios, e mais um continente.
Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.

- Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo
que eu amo) não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser mistério
por muito que pareça (Escreve!) muito sério.

E vou e volto entre uma e outra, até que de repente meus dedos se desentorpecem e deixam escorrer e escapar as palavras que trago contidas, retidas, como se usassem um escafandro nessa água toda que de repente me inunda e se recusa a sair. Talvez sejam lágrimas, mas do lado de dentro parecem rios caudalosos. Saem assim, numa dose de serenidade inaudita:

Perde-se de vista o olhar encontrado.
Perde-se da mão estendida aquela que a preenchia.
Perde-se o risco da perda na tentativa.
Perde-se o sentido.
Perde-se o perdido.

Perde-se o centro dentro do espelho.


Perde-se o reflexo no escuro da retina.
Perde-se o outro à entrada da alma.
E ganha-se tudo quando a vida é absolvida e o amor inalterado.


Agora, sim, posso virar-me para o lado e recomeçar a tradução que devo terminar. Mãos dadas com a desinquietação que chegou de presente, e varreu o medo e a dúvida para o lado de fora da porta.




06/04/2013

A cidade grande

Disseram-me ontem que quase-que-estou virando paulistana. Talvez porque, onde chego, falo do trânsito. Ou da reportagem da CBN, que aparentemente meus companheiros também ouviam no caminho. Ou porque me divirto avaliando a probabilidade concreta de chegar ou não na hora esperada, já desistida de me inquietar ou irritar com coisa tão elementar. Começo a descobrir com razoável facilidade se meu caminho é fluxo ou contra-fluxo. Já sei que trechos de pontes das marginais evitar às nove horas da manhã. E qual avenida eliminar do itinerário por causa das obras. Enquanto os pés dançam entre acelerador e freio, a mão escapa para tirar uma foto ao acaso. Querendo reter a beleza escondida por trás da água e do cinza, pendurada nos fios que enfeiam ou enobrecem a cidade. Como sempre e em todo lugar, o que faz as coisas mudarem é a perspectiva com que se observa.

O fato é que, não me sentindo quase-que-paulistana, gosto do que vejo quando cá/lá estou. Gosto da garoa, gosto do movimento, gosto de cada pedaço que preciso descobrir para ir de um lado ao outro. De Franco da Rocha ao Tremembé, do Parque Novo Mundo à Granja Julieta, de Taboão ao Morumbi, são quilômetros, braços dados com trabalho, oferecendo-me a cidade que ainda não conheço, longe da República, do Arouche, da São João, da Teodoro, de Pinheiros e da USP que me são familiares. Afasto-me dos espaços que já me foram casa e paixão e descubro novos recantos. Como essa casa de chá em meio à Chácara Santo Antônio, ruas e minutos antes do horário do filme de logo mais no Lumiére.

A Teakettle, chama-se a casa de chá, já fechou. Fica na rua Alexandre Dumas, 1049. Não quero, e nem minha companhia quer, perder a viagem que nos trouxe - tocamos a campainha e mesmo fechada a casa abre-se, a água ferve e o chá aparece. Friozinho de começo de noite em São Paulo e um bule de chá na mesa redonda. Paredes forradas de simpatia e à vontade, um oásis repentino assim, de mãos dadas com o burburinho lá de fora. "Ainda bem que vocês vieram, assim sei que tenho uma companhia" - dona Silvia, a proprietária, diz-se feliz de lhe interrompermos o descanso. Não há como não sorrir e encher as xícaras e recostar-se na cadeira de palhinha. Ao longe há um eco de poema, mas o longe é dentro, aqui guardado onde decidiu construir-se, nítido e forte como cada milímetro desta cidade tão grande e que, num instante, cabe dentro de um bule de chá. Ou de uma gota de chuva com sabor de saudade imensa.


A casa de chá tem um site!


01/04/2013

O sol, riqueza dos pobres

Diz-se isso, algures: que o sol é a riqueza dos pobres. Veio-me à lembrança porque dia desses me perguntaram de onde mesmo vinha a palavra quarar. Com ajuda de uns e outros, descobri que a palavra deriva do corar lusitano, absorvido e transmutado pelo tupi. Vale o mesmo que branquear, ao sol, a roupa branca necessitada de um tratamento extra. Ninguém mais faz isso: talvez os pobres, quando o sol lhes é a única riqueza.

E por que isso? Porque tenho uma amiga que me pergunta, aflita, o que fazer com um lençol sujo, encardido e manchado. Poderia parecer mais fácil comprar um novo. O que custaria? Vinte reais? Que seja: as soluções fáceis e rápidas contêm em si um perigo. Vamos assumindo-as como se fossem possíveis, e a vida vai se tornando, com a sutileza das coisas que parecem não ter importância, uma coisa descartável: manchou, troca; sujou, compra um novo. No momento sério, aquele que ao olhar para trás poderá revelar-se o limiar de um novo nós, pode ser que tendamos a fazer o mesmo. E de repente descobrimos que nos perdemos. Melhor quarar a alma ao sol, vez por outra.

Pergunto a minha amiga de que manchas quer ela se livrar. De tudo, responde evasiva. Não vou me meter na sua vida - melhor ajudá-la de forma pragmática, até porque gosto de encontrar soluções que nos livrem do supérfluo do supérfluo, especialmente em termos de limpeza. Descubro uma infinidade de dicas para quem quer voltar a ter um lençol branco como neve, sem esvaziar as prateleiras do supermercado. Como pode ser que sirva a outros (quem não tem um lençol pra lavar?!), segue abaixo o receituário completo. 

Lençóis brancos, e a sua irrecusável sensação de limpeza, estão perto do que as nossas almas respiram: sujam-se e limpam-se e sujam-se e limpam-se. Erram e acertam, e acertam e erram. Às vezes, precisam de ajuda, especialmente para o limpar-se e o acertar. Pequenas dicas de quem já tenha se sujado e errado por aí. O importante, creio, é não se render, imaginando que as manchas possam ser descartadas ou encaixotadas - como uma pele que trocássemos porque a nossa se enrugou antes da hora. Cedo ou tarde, elas voltam - melhor cuidar delas, e com o carinho que merecem por tudo o que nos fizeram e fazem crescer. À alma, ponho-a a quarar amanhã cedinho; quanto ao lençol, seguem-se outras possibilidades:

- deixá-lo de molho durante a noite com uma colher de sopa de amoníaco ou suco de limão;
- se muito, mas muito sujo mesmo, ferve-lo em balde de alumínio, com uma colher de sopa de terebentina. Amoníaco, na falta dela. Suco de limão, na falta de ambos;
- lençol amarelado, mais do que sujo? Lave-se com meia xícara de álcool;
- a mancha é de sangue? Esfregue-se com água oxigenada 10 volumes;
- uma tampa de anil líquido, 3 colheres de sopa de álcool, 1 colher de sopa de amoníaco e 1 colher de chá de bicarbonato parece bruxaria - mas é da branca. Deixa-se de molho por 4 horas e não se elimina da receita o bicarbonato, que é quem impede que o anil manche;
- mais uma: em água fervente, dissolvem-se 2 colheres de sopa de sabão em pó, 1 colher de sopa de aguarrás e 1 colher de sopa de amoníaco; acrescenta-se a mistela a um balde com água fria, onde a roupa ficará de molho por 4 horas;
- a inusitada: em balde grande, dissolvem-se duas colheres de sopa de sabão em pó; bate-se até formar espuma e então junta-se um saquinho de filó cheio de cascas de ovos esmagadas. Molho de uma hora;
- para deixar preparado e juntar à água da lavagem: 4 litros de água, 1/2 kg de sabão em pó, 1 kg de bórax ou ácido bórico (vende-se em farmácias e serve também pra fazer bombas caseiras também; pode ser que alguém ache estranho...). Aquece-se a água, dissolve-se o sabão em pó e depois o bórax. Não é preciso ferver. Deixa-se esfriar e guarda-se. Usa-se uma xícara bem cheia no tanque; 3/4 na máquina.
- e se você é daqueles que preferem ver, e só vendo pra crer:
http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=ePaRlGPPKHA

Boa limpeza!


26/03/2013

Domingo de Ramos (às minhas tias)


Apesar de poder ter vários motivos para ter ido à missa neste domingo de Ramos, apenas um me fez por as pernas em movimento. Poderia ter ido porque, de fato, acho que este é o mais bonito domingo do ano. E isso talvez se deva (mas não é verdade) à cena de Jesus entrando em Jerusalém ao som de Hossana-hei-sana-sana-sana-ho de um Jesus Christ Superstar que vi até os olhos me doerem. Ou talvez se deva (embora também não seja verdade) ao trecho do evangelho de Lucas, em que Jesus sabe o que se vai passar daí a horas com os discípulos, e eu inquieta “mas eles não perceberam o que aconteceu?!” porque Lucas não diz nada do que os discípulos sentiram. Aliás, Lucas conta o que se vê, não o que se sente. (É aquele mesmo trecho em que Lucas diz que Jesus diz, com uma atualidade que nos acompanha desde sempre, que “se eles se calarem, as pedras gritarão”.)

Mas não. Mesmo sendo este o mais bonito domingo do ano, não é por isso que vou à missa de Ramos, e que me lembro de levar um galho de folha de palmeira, e que entro calada e um tanto alheia dentro da igreja, e que se me enchem os olhos de lágrimas quando a procissão entra sacudindo as folhas e a igreja retumba com o padre (que canta bem) e se enche de verde, seja ou não a cor da esperança.

Estou aqui porque lá, longe, do outro lado do mar, sei que as minhas tias estão também em alguma missa de domingo de Ramos. Pressinto-lhes o passo nos adros de todas as igrejas em que estiverem, e quero que saibam que estou num adro semelhante. Assim que fecham os olhos, que também se lhes enchem de lágrimas, quero que saibam que também os meus transbordam. E não porque os padres cantem bem, ou a imensidão verde dos campos do Senhor invada as naves de todas as igrejas em que estamos. Não por isso.

Estou aqui porque preciso fazer algo que me diga, e concretize, e garanta, e torne nítido como uma manhã açoriana, que o tempo e o espaço são nossas criações, e nada mais. Que não nos vamos, porque sequer chegamos. Que o lá, e o aqui, e o do outro lado são as mesmas coisas, vestidas de tules diferentes.

E por isso, porque são criações e não realidades, com os olhos fechados neste domingo de Ramos, vejo a mais nova das minhas tias. Vejo-a no seu riso rouco. Vejo-a nos seus dedos que como os meus têm as unhas roídas. Vejo-a na sua recitação acelerada do Pai Nosso nas missas de domingo. Vejo-a deitada ao meu lado, ambas cativas de hepatites gêmeas. Vejo-a hábil à máquina de costura. Vejo-a modelando flores de papel para uma festa na garagem nas Caldas. Vejo-a gargalhando. Vejo-a por entre as nuvens de fumo dos seus cigarros. E vejo-a quando uma voz tão conhecida diz “Ó Manela, então já cá chegaste?!” e eu viro-me e são ela e meu pai, que me acenam do outro lado do tempo e do espaço, e me dizem “até logo” e se afastam, porque a minha avó os chamou também de outro lado, e eu fecho os olhos porque as saudades impedem-me de querer ver o resto.

E volto à missa, e ao domingo de Ramos: esse domingo tão lindo, acho, porque nos diz que tudo o que será já é, e nós sabemos. Só fazemos de conta, às vezes, que não.


03/03/2013

O lago de Isaura

Este é o último dia. Isaura muda-se para um lugar menor, mais apertado. Escolheu-o pelas janelas, que são maiores e deixam entrar mais luz. Tanto faz que o espaço seja menor, mas porque é menor, e bem menor, Isaura está sentada no chão de ladrilhos do seu ainda apartamento, arrumando em caixas estreitas o que decidiu deixar. Entre todas as coisas, há aquelas que não levará, e nem ao peso da recordação que se lhes amarrou. As mãos de Isaura acariciam as superfícies. Ainda estão quentes. A garrafa vazia de café. Os lábios tatuados no copo de vidro. A sombra dos cigarros no cinzeiro queimado. E outras coisas, que não tiveram tempo de ganhar nome. Também as palavras, aquelas de natureza volátil como cheiro de nuvem, aquelas que aos poucos se apagam (se apagarão) das telas das retinas dos olhos de Isaura. Também elas precisam ser encaixotadas. Como pinturas complexas e vibrantes de consistência líquida, são palavras que se descolam das retinas. Isaura observa o seu cair diante do espelho baço do banheiro. E lembra-se da escova de dentes, e volta à sala para colocá-la junto às demais coisas. Armindo ganha forma no chão da sala, feito das coisas que se lhe encostaram. Nenhuma marca de sua música, apenas as marcas de seus dedos, e mesmo elas tão difíceis de serem recriadas.

Isaura fecha os olhos, porque toda essa água que cai diante do espelho lhe dói. Porque a garrafa de café lhe dói. Porque a caixa em que guarda o café sem abrir lhe dói. O presente sem entregar lhe dói. O cinto esquecido lhe dói. Mas a água continua sem atenção à dor, e já está o chão do apartamento cheio dela, e sobe pelas paredes como se subisse através da pele da casa de Isaura, e levasse as últimas marcas. A água escorre pela garganta de Isaura, lava-lhe o corpo por dentro. Está tudo inundado, a garganta, o sexo, os espaços entre os dedos dos pés, o corpo amarrado ao colchão. Isaura escoa-se em água e está dentro do lago. Costuma ser um sonho, isso, mas Isaura sente a pele molhada como se secasse ao sol em cima de uma pedra, ao lado do rio de onde a içam quando querem.

Há um homem, na margem desse lago, e Isaura gostaria que fosse Armindo. Mas Armindo está longe, rodeando outros lagos, e ele, diz Isaura por entre a água que a invade, ele, mesmo assim, com tudo, ainda assim - Armindo não riria, e o homem na margem ri. Mas enquanto a água lhe sobe narinas acima, Isaura sabe que ninguém a não ser Armindo saberia que esse é o lago do seu afogamento. E como o riso na margem é tudo o que ela ouve, tudo o que ela ouve é o riso de Armindo, aquele que sabe do lago. Os olhos de Isaura transbordados da água do lago, os olhos de Isaura inundados da sua própria água. Os olhos de Isaura dentro do lago - esse lago parado como é da natureza dos lagos. Uma ilusão salobra, um silêncio aquático liso, interrompido pelas notas distantes do riso do homem à margem, de Armindo à margem. 

A escuridão calada da profundeza das águas move-se por baixo, sem que ninguém a veja, mas Isaura sente-a aliciando-lhe as plantas dos pés, enredando-se como hera em suas pernas, puxando-a para baixo. Pode-se fazer de conta que o lago não é triste. Pode-se fazer de conta que se pode ficar o tempo que se quiser dentro dele, as narinas cheias do cheiro antigo que o corpo reconhece, e fechar os olhos e imaginar uma outra noite qualquer em que se consiga escapar ao enfiar os pés no lago e ser sugado por ele. Fazer de conta que a solidão do lago é diferente da solidão das outras coisas, e estas diferentes da solidão dos abismos, e esta da solidão das noites, da solidão do tempo, da solidão do abandono. E fazer de conta que há um cheiro flutuando ao de cima do lago, quando não há nada a não ser o riso do homem à margem.

E o lago penetra Isaura, ela permite-lhe passagem para dentro de seus pulmões, presença de líquido onde só o ar faz morada pacífica. E só o que se ouve é aquele ruído rouco de riso de que já se falou tanto, no lago que sobe em direção à garganta. E então a janela fechada, a luz e a água que agora vive no chão da casa de Isaura invadem as narinas, e o lago está lá, ainda, seu silêncio encrustado, de mãos dadas com o riso à margem. Tudo diluído nesse fim de apartamento, quando a dor transborda os olhos para que a alma passe.

24/02/2013

Alice, a que não morre

Recebo assim: "Dou-te a notícia sem preâmbulos. Como um corte, porque é assim. A Alice faleceu.". Frases curtas e secas, de onde escorre a história de uma vida inteira.

Alice é amiga de minha mãe, assim como quem me comunica a sua morte. Gente que me viu pequena e me fez crescer, mantendo-se dentro de mim como mastros de navios que não tombam. Aos olhos azuis do António, o missivista, vejo-os de vez em quando, nos momentos em que as águas do mar dos Açores me visitam acordada. Tenho saudades de ambos os azuis, seus olhos e o mar da janela de casa. À Alice, guardo-a em muitos lugares, porque a convivência se desenrolou no tempo, e acompanhou-me do nascimento até agora, numa forma de presença leve que me fez observá-la muitas vezes sem vontade de dizer nada. Professora de português nas Caldas da Rainha, companheira de minha mãe, era uma mulher surpreendente e corajosa, ria muito, sempre, e entre risos era cortante e incisiva, uma forma de dizer verdades que não admite resposta. Fomos vizinhas também, mesmo que eu não me lembre, e que tenha sido ela a me devolver uma memória fantasiada de uma Ana debruçada na janela, horas à conversa com quem quer quer passasse.

Fizemos uma viagem, ela, minha mãe e eu, há anos atrás, à Vidigueira, pequena cidade do Alentejo português. Alice e seu marido, o Custódio, que era médico, foram importantes pessoas na luta anti-fascista em Portugal. Custódio, que já morreu há anos, esteve preso em Caxias, e há quem se lembre dele acudindo os presos que precisavam de cuidados médicos. Quase no estalar da Revolução dos Cravos, foram responsáveis por colônias de férias para os filhos dos presos políticos. E, depois da Revolução, foram de um entusiasmo sem par, mudando-se para a alentejana Vidigueira, onde então despontava o movimento cooperativista agrário e onde me encontro com Alice, em viagem de rememoração. O movimento revolucionário no Alentejo, mesmo que haja quem o diga, está longe de ter sido um fracasso: saiu-se da miséria física e moral mais atônita em que se vivia.

Nessa viagem, visitamos antigos amigos de Alice. Rugas em forma de pessoas. Sentámo-nos muitas vezes à beira das casas caiadas, o pote de cal virgem a borbulhar ao lado, o pincel pronto para branquear qualquer mancha na parede. As ruas vazias debaixo de um sol de muitas dezenas de graus. O tempo parado, o vento parado, o som parado. Saí para andar pelos campos, lembro-me. Pelos campos de sobreiros e azinheiras, sangrando eles pelo corte recente da cortiça, retorcendo-se elas para dentro da terra em busca da água tão escassa, e o chão forrado de bolotas à espera dos porcos e dos javalis. E ao longe os montes, e mais longe a silhueta de um castelo, e mais longe ainda as curvas do Tejo que não vejo mas pressinto, e me encaminham para Lisboa. Volto, e Alice está de olhos fechados sentada à sombra de uma latada - e porque tudo está ligado e acontece agora em meio ao passado, vejo ao seu lado o meu avô, que também se chamava António mas não tinha os olhos azuis, tesoura em punho no corte das uvas já maduras que se penduram até alcançarem os seus dedos. Está nos Açores, o meu avô, e o seu olhar amalgama-se ao de Alice, que acorda de chofre e oferece-me uma piada, e um dito, e uma música da resistência.

Nas primeiras horas do dia 25 de abril de 74, estávamos ela, minha mãe e eu diante do mar bravio da praia da minha infância, cantando a plenos pulmões "Somos livres, somos livres, não voltaremos atrás". As gaivotas passavam por cima de nós com seus gritos ácidos, e as nossas mãos levantavam-se e diziam-lhes adeus, antes de nos irmos embora, comer um peixe fresco e beber um copo de vinho temperado das lágrimas que choram o tempo que não cede. À tua saúde, Alice, tu que nunca voltaste atrás e não morres porque nós que ficamos havemos de te manter viva.



23/02/2013

A pele e o afeto

Num dos comentários a este blog, algumas semanas atrás, uma minha tia muito querida queixava-se, além mar, da minha escrita brasileira, que lhe dificulta a leitura do que escrevo. Concordo com ela, às vezes preciso mudar o meu registro linguístico, porque sei perfeitamente que escrevo mais para o leitor brasileiro do que para o lusitano, o que leva a algumas escolhas. Pode ser que seja um engano, mas assim é. Nesse processo que gravita entre o semântico e o lexical, algumas palavras complicam-me a vida mais do que outras. 

Demorei um tanto de tempo, por exemplo, para me acostumar com a palavra "vivenciar" (portugueses entender-me-ão). Não há como fugir dela ao pensar em educação nos tempos de hoje: na pedagogia waldorf, por exemplo, a vivência das coisas é o degrau a partir do qual se sobe a qualquer lugar. Não sei em que ponto andará este vocábulo pelas areias de Portugal. Houaiss foi de grande auxílio, incorporando-o ao léxico em (creio) 2009. Talvez tenha sido antes. De qualquer forma, meno male.

Vivenciar é coisa diferente de viver. Quem vivencia uma dada situação, deixa-se afetar profundamente por ela. (Quem diz isso não sou eu, é o Houaiss.) Já se sabe que podemos ir pela vida afora sem sermos afetados pelas coisas, muito menos profundamente. Assim, vivendo, simplesmente. Mas é o ser afetado que faz a diferença: o ser quando se imbui de afeto. 

Não à toa, referiam-se os latinos a affectus para indistintamente se referirem a afeto, paixão e amor; entendiam-no como condição, disposição e estado - tudo isso junto ou de forma separada. Para desenvolver afeto, diz-nos ainda a preciosa etimologia, é preciso tanto ser possuído quanto dotado dele. O afeto afeta-nos, permite-nos estados de transformação internos que o cotidiano por si só não permite. O ser afetado é o ser imbuído de desejo, de aspiração - de afeto vivenciado, tudo aquilo que o sujeito torna representativo dentro de si.

Situações às quais nos ligamos através do afeto transformam-se em outras muito diversas. Ontem, só por causa do afeto, terminei o dia numa palestra que chegou sem aviso prévio. Não sabia muito bem do que se tratava, mas minha companhia queria muito assisti-la. Fui, pelo afeto que tenho por ela, e lá estive presente imbuída de afeto, basicamente porque reconheço, cada dia mais e a duras penas, ser condição necessária à minha subsistência.

A palestrante, Marcy Axness, apresentou seu livro (Parenting for peace) e as suas constatações do quanto é necessária uma nova forma de educar para que tenhamos um mundo futuro mais pacífico. Uma nova forma de educar que envolva e parta do mais puro e primordial afeto - aquele que nos faz ir na direção do outro a partir das suas necessidades. Claro que a sua fala não foi essa (quem lá estava talvez não reconheça o que digo!), mas foi assim que a entendi e signifiquei dentro de mim. Colocar-se no lugar do outro, a verdadeira (e única) forma de compreender alguma coisa a respeito dele (e assim ter qualquer papel educador), pode ser um processo impactante e intenso. Se imbuído de afeto.

Paul Valéry dizia que o mais profundo é a pele. Marcy fala de inteligência celular. Localiza-a na membrana, o órgão capaz de dar e receber. Observo-a, na imagem que escolho por entre tantas que o google me oferece, e vejo a pele que nos demarca e contorna, colocando-nos em contato uns com os outros, células de uma vida que não se constrói a sós. Uma membrana tecida com poros como os nossos, que podem oferecer e absorver afeto. Não lhes é uma condição dada, talvez não dependa deles, mas do afeto que colocamos em disponibilidade ao afeto do outro, para sermos ancoradouro e navio ao mesmo tempo. Afinal, para que tudo valha a pena, é imprescindível que a alma não seja pequena.




Interessou-se pelo livro de Marcy Axness?

16/02/2013

Pactos e compromissos

Como não lhes conheço os nomes, invento-os: da esquerda para a direita, um tanto desfocados, Júlio, Samuel, Paulino e Josias. Quatro amigos camaradas, quatro histórias cruzadas encontradas num banco de supermercado num dia de quarta feira.

Invento-lhes uma memória também, já que lhes inventei o batismo. E descubro por entre as prateleiras de onde os observo, com os poucos elementos que me oferecem, o pacto que fizeram anos atrás: contarem uns com os outros,  "ainda que o jogo seja 0 a 0" (diz um deles, não consigo perceber qual), e sobretudo quando a morte inevitável aproximar seus passos. Qualquer lugar é lugar, desde então. E agora, todos aposentados e sem muito para fazer, fazem o que há de mais importante, que é dar linha livre ao pacto.

Discutiam justamente, nesse dia, a incrível vantagem de terem decidido firmar um pacto, em vez de terem chegado a um compromisso, que era a ideia original de seu Josias, que gosta de palavras que começam com "com". "É que pacto", ouço que dizem, "é coisa muito diferente de compromisso.  E não fique triste, Josias, que pacto é coisa que se com-põe, que se pega com quatro mãos, e se arranja da maneira que se quer. No nosso caso", e riem com gosto, "composição a oito mãos!" Deve ser bom assim, envelhecer distribuindo sorrisos novos, sem se preocupar com quem se esconde atrás das prateleiras para ouvir conversa alheia.

Seu Paulino, mesmo sem perceber que a única pessoa que o escuta sou eu mesma, discorre sobre o assunto. Descubro, através das suas palavras arrastadas de professor de latim de antigamente, que "compromisso" chega-nos (claro) do latim. Compromissum, basicamente um depósito em dinheiro como garantia. "Foi aí que começaram os problemas, lembram?", interrompe Samuel. Seu Paulino continua: "...que vem de compromittere, que é precisamente concordar em pagar a tal quantia". Anoto, para não esquecer, o que se segue: concordar, por sua vez, vem de promittere: prometer. A complicação piora: promittere deriva de omittere, que não é só o óbvio omitir, mas também deixar ir, ou largar a um canto. E mais: omittere deriva de mittere: jogar, arremessar (fora, depreendo), e daí ruma na direção do proto-indo-europeu per, que graças aos deuses não fazemos a mínima do que quisesse significar nesses primórdios dos primórdios. De garantias em dinheiro a omissões e coisas largadas e jogadas a um canto, começo a detestar seriamente esse tal de compromisso.

Nem preciso da conversa inaudível dos quatro senhores, concluo como eles: venham a mim os pactos, que de um simples pactum (acordo) ruma para um mais simples ainda pangere (compor): composição de desejos e aspirações, simples e serena, com cheiro de conforto e sinceridade e clareza e confiança. Qualquer coisa que se queira pôr, lado a lado. Garantia de, no máximo, liberdade. Liberdade de ir, e vir e, sobretudo, liberdade de ficar. Como o pacto destes senhores, de se amarem e se sustentarem até num banco perdido de supermercado em dia de quarta feira. Ou como qualquer pacto que se queira de vida plena, inteira, intensa e na direção que queira compor-se, com as mãos que estiverem ao nosso alcance.


Imagem: Tai Ribeiro, companhia  boa de supermercado!

02/02/2013

O entrelugar das vias metabólicas

Não há coisa que consiga suscitar-me mais movimentos internos do que a percepção de que há algo em palavras que ouço que lhes confere um poder que não consigo apreender de imediato, mas está lá. É uma espécie de compulsão (sadia), essa necessidade de guardar pequenas coisas que não são  ainda em mim o que por natureza são em si.

Desdobro-as depois, a essas palavras. Tenho várias, aqui ao meu lado, no caderno novo que inauguro para inaugurar-me nova, como é bom que se faça quando se começa novo caderno ou novo trabalho. Olho para a minha coleção de novas palavras, mastigo-as com os olhos. E penso no entrelugar de onde saíram e vieram alojar-se em mim.

Não é minha, a palavra entrelugar: devo-a ao colega professor. Um entrelugar ao qual de repente sinto pertencer também, um entrelugar de encontro entre o delicado e o explosivo, a ordem e o caos, o silêncio e o grito, o antes e o depois, o caminho terminado e o abismo adiante. Esse entrelugar tem nome, e endereço. Chama-se N.O.I.A. e fica em Botucatu; muito simbolicamente, liga duas ruas paralelas, cria um espaço de encontro entre o que está separado. A minha impressão é de que nesse lugar entra-se para se estar. À vontade, inteiro e em respeito.

Aos que desconhecem, explico: N.O.I.A é um cursinho preparatório para as provas de ingresso às universidades. Redutora a definição, porque este é um cursinho muito particular, que parte da "fé inabalável na humanidade", coisa boa de se ouvir da professora de biologia, como se um resumo do porquê estar aqui, e ser. A mesma professora oferece-me de bandeja o título desta crônica: as vias metabólicas. Ela fala das bactérias, eu sei, mas acho que no íntimo ela me diz outra coisa; vou à procura: "vias metabólicas são reações químicas que servem de substrato à reação que lhes sucede". É isso, este entrelugar: imensas reações químicas que servirão de substrato à reação que virá, às descobertas que eclodirão, às pessoas que se encontrarão e se reconhecerão. Às vezes tateando por entre os calos e as sutilezas que a vida inteira oferece, este entrelugar vai muito além da preparação para uma prova, e é aí que reside seu encantamento (além do fato de cumprir a meta dos vestibulares, sejamos pragmáticos também!). Aqui, ouço, a tônica é "não desistir nunca de nenhum aluno", e é aí que as reações que as vias metabólicas geraram mostram-se em todo o seu esplendor, a interdependência palpável nas palavras que se dizem. Sou professora há anos, estou habituada às falas tonitroantes e às intenções mais que positivas que não conseguem deslanchar na direção do concreto; mas não há tonitroância, aqui, antes reconhecimento de atitude necessária, ainda que custe ter de mexer na própria crença. "Num círculo de 360º", ouço logo a seguir, "por que agarrar-se a apenas um grau?" Porque desistir de parte? Porque abdicar da possibilidade de ser inteiro? Porque não se reinventar a partir do encontro com o outro?

Articulam-se polaridades e dá-se atenção aos "pequenos cheiros" de cada dia, neste entrelugar. Está-se atento e alerta. Aqui palpita um mundo que se quer observado, palpita a paixão pelo conhecimento, palpita o encantamento por conhecer o mundo em que se vive e o outro com quem se vive. Surpreendente, convenhamos, que este entrelugar seja um cursinho, espaço por natureza duro e mono-motivado. Há esperança, fé e garra por trás deste espaço-lugar de entre-morar: há "um vulcão em erupção, em função não do que somos, mas daquilo que quer se fazer em nós". E vejo que esse sentimento é motor do silêncio que se instaura, e vejo e sinto: este é o entrelugar que eu buscava. A todas as palavras que ouvi e mastiguei, nessa digestão que me alegra o dia e me dá sentido à alma, junto uma, que devolvo a todos os que me doaram as suas palavras hoje: gratidão.


28/01/2013

Coisas que parecem iguais

Não sou espírita, como não sou muitas outras coisas que me interessam, e das quais me aproximo de vez em quando. É bom, por vezes, precisar de ajuda e recebê-la, pelos caminhos que for; tanto quanto oferecê-la a quem dela precisa. Nessas trocas, nem sempre iguais, nem sempre equivalentes, há momentos em que é preciso pedir socorro, atitude que se aprende a ter, acho que não se nasce sabendo. O socorro é pedido, e depois é ficar atento, porque ele vem, na forma que escolher. Ontem, por exemplo, a meio de uma palestra no centro espírita que tenho frequentado, soube que há uma grande diferença entre acreditar e ter fé. Mas grande mesmo.

Voltei para casa pensando nisso, o que normalmente, dentro desta minha estrutura imperfeita, resulta ser positivo. No fundo, acreditar não é difícil. Primeiro porque, como se diz, cada um acredita no que quer, o que não deve incorrer em grandes prejuízos para ninguém. Há quem acredite em vida extraterrestre, em reencarnação, em comunicação entre espécies, em gnomos e fadas. Escolhe-se no que se acredita. Seja da boca pra fora ou da boca pra dentro, acreditar não demanda muito mais do que observar e anuir, consentir, concordar. Quase que uma atividade passiva. Acreditar nos outros: fácil, desde que não criemos expectativas que eles não possam atender e nem imagens a que não possam corresponder. E, assim como se acredita, é fácil desacreditar. Fácil e rápido.

Já a fé é feita de material distinto. A fé implica em viver conforme aquilo em que se acredita.  É ação, a fé. Decisão. Compromisso. Pode-se acreditar, mas não ter fé. Pode-se acreditar, mas não se conduzir conforme aquilo em que se acredita. Pode-se ter fé na vida extraplanetária, mas não considerar, no corriqueiro dia a dia, que há gente diferente da gente pululando por essas galáxias afora, e agir consoante o que se considera, conduzindo os próprios passos a partir do que eles podem impactar essa vida na qual se acredita - e se tem fé. Pode-se ter fé na reencarnação, mas não se conduzir de acordo com os pressupostos (dizia o palestrante, que se apresentou apenas como Paulo) que a reencarnação considera - pode-se fazer aos outros o que não se gosta que façam a si, pode-se desprezar o preceito fundamental da fraternidade, aquele que nos une a todos e permite que sintamos as dores alheias como se fossem as nossas próprias, esquecendo de fazer o que estiver ao alcance para reduzi-las ou aplacá-las. Pode-se acreditar na comunicação entre as espécies (e o assunto está fresco porque terminei de ler o livro da Sheila Waligora, "Eu falo, tu falas, eles falam..."), mas viver sem que esse acreditar nos faça agir e viver considerando e evitando aquilo que as magoa, que as insulta, que as agride, que as diminui na sua condição de seres viventes. E nas formas mais simples: posso acreditar que meu cachorro me entende quando falo serena com ele, mas esqueço-me e dou-lhe um grito quando ele pula em cima de mim.

Claro que ter fé é mil vezes mais difícil, mas muito mais, do que acreditar. Talvez porque ter fé seja, antes de qualquer coisa, compromisso, e nós tenhamos tanta, mas tanta dificuldade de nos compromissarmos, de abdicarmos de nós mesmos em função de outro. A fé num outro que demanda olhar, admirar, acompanhar e ser-lhe presente. Para mim (porque não há como generalizar) a fé no outro, nesse outro em que acredito porque está bem diante de mim e existe, e palpita, e me reconhece, demanda ver-lhe a parcela luz, a parcela divina que antecede a sua própria existência. Demanda acreditar que antes de tudo é matéria de irradiação luminosa, e demanda agir consoante o que acredito. Por isso, não posso barrar-lhe caminhos, não posso empedrar sua estrada, não posso podar os seus galhos nem quebrar-lhe os seus membros. O que posso é estar aqui onde estou, que aqui me encontrará quando lhe for necessário.


Imagem: Antonieta Miranda


22/01/2013

Do simbólico

Dia desses,  fiquei com vontade de comprar lã para tricotar. Há tempos que uma vontade dessas não aparecia. Comprei. Gosto de tricô desde pequena. Vivi a infância cheia de peças por acabar, casacos e coletes e meias começados e nunca terminados - a vida tinha a peculiaridade de me perseguir com novos brilhos e insistências, desviando-me dos meus reais e bem intencionados propósitos. Minha avó, observadora, tentou inutilmente ensinar-me crochê, achando que talvez me fosse mais fácil e rápido, mas desde o começo desgostei-me com aquela pobre agulha solitária; mesmo que não chegasse ao fim da peça, preferia o par de agulhas conversando entre si através do fio em transformação. Eram bonitas, as peças de crochê que ela fazia e com as quais me tentava, mas no fundo também ela preferia tricotar casacos e mantas e xales para toda a sua grande família. Também ela ouvia o diálogo silencioso entre as agulhas, como se fossem pessoas construindo afetos, e o fio entre elas a matéria prima da troca.

Tenho agora um par de agulhas em mãos. Iguais, do mesmo tamanho e espessura, e do mesmo material e cor. Tenho também um fio, lã que quis macia ao toque, duas cores entrelaçadas que quase se escondem uma na outra, porque querem desejar-se, talvez, invisíveis. Não creio que vá desmanchar nada do que tecer com estas duas agulhas, mesmo que estranhamente me apeteça a paciência e a espera de uma Penélope que trocasse o tear pelo tricô, mas presto-lhes atenção: por serem da mesma grossura, oferecem-me um tecido harmonioso, sem falhas nem inconsistências. São congruentes, estas agulhas. Interpretam o fio que se lhes oferece, trabalham-no sem esforço mas com constância e firmeza; não o largam, nem o quebram; não o apertam, nem o deixam frouxo. Minha avó dizia-me que nem uma coisa nem outra fazem bem, um ponto firme e solto ao mesmo tempo é o que se quer no tricô e na vida.

E o fio estende-se, uma metamorfose tecida sob o movimento articulado das agulhas. Cresce em comprimento e largura, deixando-se entrelaçar nesse diálogo sem palavras que ouço tilintar entre os meus dedos. Minha avó tricotava à noite, assim como rezava após o almoço. Terço entre os dedos, parecia dormitar, mas meditava. Em um e outro momento, eu invariavelmente mergulhava ao seu lado num livro, atividade que preferia a qualquer outra. Mas de vez em quando levantava os olhos e observava-a, demorava-me nos movimentos de seus lábios e de seus dedos, como se soubesse que ambos momentos eram semelhantes e eu precisaria da lembrança mais tarde, para mergulhar dentro de mim mesma de uma ou outra forma.

Nesse universo palpável que nos rodeia, onde tudo é símbolo de realidades mais profundas e internas, que acessamos ou não dependendo do quanto olhamos para as coisas com olhos de ver, são-me oferecidas estas agulhas, este fio, este tecido terminado. São chaves, capacidades dormentes em minhas mãos. Uso a mesma estratégia de menina: levanto os olhos e observo, em silêncio. A peça pronta que, dias depois, seguro nas mãos, porque não sou mais criança e aprendi a terminar o que começo, é a resposta à pergunta que faço.




11/01/2013

Limpeza

Passei um bom tempo em Minas nesta mudança de ano, revisitando espaços e práticas e pessoas que não via há tempos. Em Figueira, onde as coisas mudam conforme a necessidade se apresenta, coisa muito saudável e rara, reconheci um pedaço de passado que reincorporei à minha vida. Em meio às mudanças e às novas determinações nesse lugar inusitado, algumas coisas mantêm-se como eram há 20 anos, e deram-me uma sensação reconfortante de "nem tudo mudou na vida".

Um exemplo. Em Figueira, assim como em outros lugares, fala-se de "harmonizar" os espaços e as coisas quando se quer dizer limpar e arrumar. São ações práticas, importantes e indispensáveis à vida humana sobre o planeta. Eu não tenho nada contra qualquer uma das três palavras, mas concordo que "limpeza" e "arrumação" soem mais entediantes do que "harmonização". Percebo que as pessoas sorriem com os olhos quando dizem "vamos harmonizar os banheiros" ou "acabei de harmonizar o armário das vassouras", e provavelmente a mudança de palavra ajude a perceber a tarefa também de uma nova forma, a abrir uma nova janela na superfície cotidiana da vida. Uma consciência mais consoante com o propósito geral de Figueira, que é, entre outras coisas, manter a consciência naquilo que se faz. 

Hoje de manhã, "harmonizando" a casa, dispus-me a essa forma de presença. Limpei e arrumei, feliz da vida, retirando de pelo meio os empecilhos que podem atrapalhar o dia a dia. São coisas às vezes invisíveis, poluição mental transformada em cantos impenetráveis.

Atenta, vou pensando que há uma medida, nessa ação toda - não quero limpar a ponto de perder de dentro das coisas aquilo que são por causa do que passou por elas. Há os cheiros que é preciso preservar - que cheire a limpo, mas que não desapareça o cheiro adquirido com a vida. Há as pequenas manchas que se limpam, mas não de todo - como as rugas, são marcas do que viveu. Passo de um cômodo ao outro, e sou comedida em algumas ações, porque quero, muito, preservar a história.

Termino, e olho em volta. As coisas que ficaram, tal como ficaram (e que vou chamar logo mais de lembranças), olham-me de volta com um sorriso agradecido, porque não as tirei delas mesmas; um travesseiro deixou de ser um travesseiro, um copo deixou de ser um copo, até um cabo de vassoura deixou de ser um cabo de vassoura, porque há histórias marcadas em tudo, e reconheço-as pelas marcas, que às vezes são manchas, às vezes amassados, às vezes uma trinca por onde o passado chega e me atinge, inteiro e verdadeiro. As presenças alheias estão impressas até o mais fundo das coisas, que é onde vive o espírito com força e verdade. Por isso cuido das coisas, por isso as limpo mas sem as perder, por isso as olho e as afago, porque a vida pulsa dentro delas, assim como pulsa dentro de mim, que as limpo e acolho dentro das minhas mãos abertas e gratas.


Foto: Tai Ribeiro

05/01/2013

Novo ano

São as mãos da esposa que correm à lembrança do Pontes*. Lembra-as com todos os detalhes possíveis, o dorso de veias fortes, as palmas de sulcos profundos, a delicadeza dos dedos, a força do aperto. Conforme escreve, observo-o, absorvido pela ação da memória. Vejo-o balançar a cabeça de vez em quando, nesse esforço de se recordar de umas mãos quaisquer, desde que importantes. Outros lembram-se das mãos da mãe, das mãos do filho, até das mãos de Deus, aquelas que são invisíveis mas podem sentir-se. Por todos temo que seja excessiva a tarefa de lembrar-se; é um terreno sombrio, este da memória dentro de um presídio. 

Trago as mãos da esposa de Pontes para casa, dentro da pasta. Digito-as, a todas as suas letras, para mandá-las como presente a ela. Não me pertencem, estas mãos. E agora que é noite, e recolho as folhas para as ler outra vez, ao mesmo tempo em que percebo os avanços inegáveis na pontuação, vejo por entre as linhas de caligrafia harmoniosa e serena os sinais impronunciáveis  da dor da saudade e da ausência. Se entrecerro os olhos, quase consigo imaginar essas "mãos de dedos que se abrem e fecham como leques" descobrindo na tela do computador o quanto estão presentes dentro do marido preso. Imagino-a rodeada pelos oito gatos que são como filhos, e ao lado os dois filhos de fato dormindo no sofá, e os olhos que piscam porque já é tarde, e levantaram-se cedo, e estremecem eles também com a luz ofuscante da saudade. A mesma insônia que faz Pontes não dormir avança por entre as ruas da cidade escura até chegar às mãos da mulher que também não consegue adormecer.

Neste novo ano, Pontes anseia pela sua saída da prisão. O mesmo desejo e a mesma expectativa de muitos destes homens - ser este o ano da sua libertação, do regresso à vida da família. Não há nada, parece, que tenha mais importância na vida desses homens do que a mulher e os filhos que ficaram do lado de fora.

Brandão é diferente - cada vez que se aproxima o dia da saída, de alguma forma ele consegue uma punição de mais seis meses. É-lhe insuportável pensar em voltar a ser uma pessoa lá de fora. A cadeia, de certa forma, protege-o e oferece-lhe um lugar no mundo. Brandão conta piadas e alegra o ambiente assim que chega, às vezes atrasado e sempre bem humorado. Mas o olhar trai o seu receio, e quando conversamos e olho em seus olhos, ele desfaz o sorriso que usa como máscara.  E seus olhos ficam cinzas de tão tristes. Brandão conhece a mulher do Pontes, e enquanto ouve o companheiro ler o seu texto em voz alta, a meio de um silêncio respeitoso feito catedral, emociona-se e diz-lhe ao final:

- Caramba, Pontes, é assim mesmo, eu lembro das mãos dela, é que nem você fala, eu queria saber falar das minhas coisas bonito que nem você faz.

E enxuga os olhos com as costas da mão, e é preciso que o lembrem do texto que escreveu agorinha mesmo, quando todos sentiram a sua mesma emoção no gosto da caranguejada que gosta de preparar com a ajuda do pai. Estão todos emocionados, com a força e a verdade das lembranças próprias e alheias. E eu também. E quem mais estivesse aqui sentiria o mesmo, porque a empatia ainda é o nosso dom mais precioso, e sentir a dor alheia, solidarizar-se com ela pela lágrima que escorre ou pela mão que acolhe, é uma possibilidade preciosa de redenção e de humanidade.

A todos, um feliz ano novo, cheio de oportunidades de olhar e sentir o outro na sua dor e na sua alegria.


*Todos os nomes usados são fictícios. Já as histórias não - e podiam ser as minhas ou as suas.