02/04/2012

A cidade nova VIII - a calçada

Eu não devia, mas lavei mais uma vez a calçada. Em parte, porque depois de remover os 4 metros cúbicos de terra e pedra que aterrissaram do caminhão bem na entrada do portão, merecia. A outra parte é Dona S., que faz dias não vejo.

Passei o domingo procurando assunto. Quente, o dia. Quente, eu. Quente, a casa. Achei que saindo pra lavar a calçada Dona S. daria as caras, e o assunto viria com ela. Dito e feito.

Bastou abrir o portão e sair com a mangueira pro sorriso de Dona S. aparecer por detrás das grades dela. Que estão sempre abertas, pra poder entrar e sair rápido, já me disse. "E seu pedreiro não veio de novo nesse sábado, né?". Dona S. vive atenta. Uma das filhas vem logo atrás, sorriso parecido, olhos tão juntos um do outro que me fazem inclinar a cabeça. E conta que o pai de Dona S. era pedreiro, mas que ela não aprendeu nada, coitada - uma das irmãs sabe pintar, dois irmãos são azulejistas (um bom, o outro um horror), mas ela... nada. E meneia a cabeça, não sei se com dó se com desesperança da figura da mãe. Mas Dona S. interrompe-a, agitando as mãos salpicadas das cores da idade, para me dizer que ela aprendeu direitinho o serviço de servente,  aquele que ninguém dá valor mesmo. Já carregou muitas e muitas carriolas de tijolo pra cá e pra lá, muita areia, muita pedra. A filha tenta continuar a conversa, mas Dona S. muda de assunto. Ri com gosto porque estou descalça e já bastante molhada. E ri mais ainda quando me pergunta porque é que eu não ponho o lixo todos os dias pro lixeiro levar, e nem espera que eu responda: "é que você veio da roça, e lá nem lixeiro tem, não é?". E ri ri ri ri até dizer chega. E não é com maldade, como alguns podem pensar - não. O que a faz rir é lembrar-se da própria história, e meu papel aqui é só recordá-la de que a vida são histórias muito parecidas, enfileiradas uma atrás da outra, esperando ser vividas com intensidade e entrega. Como ela provavelmente viveu a dela e eu tento viver a minha.

Lá do outro lado da rua, Dona M. espreita a rua da casa dela. Sozinha, viúva há 10 meses, Dona M. não sabe bem o que fazer da vida. Assim que Dona S. volta para sua casa, abre seu portão automático e atravessa a rua com a dificuldade de quem tem uma prótese num joelho e artrose em todas as articulações. Vem lentamente, olhando cada pedra em que pisa, toda arrumada, vestido de flores vermelhas pela altura do joelho, batom rosado e olhos vivos pintados de azul suave. Nem precisa dizer nada: convida-se a entrar e ver como que anda a reforma. Como outros, olha em volta um tanto estarrecida e pergunta como é mesmo que damos conta. Diz que não é de reparar nessas coisas, mas percebe que trocamos o piso daqui, que fechamos aquela porta dali, que levantamos uma parede acolá, que aquele móvel quando for reformado vai ficar uma beleza.

Sentada no que será um dia a sala, conta que, para driblar a solidão depois que o marido se foi, comprou um computador (coisa que em vida o falecido impedira), que usa para falar com as amigas (atividade que em vida o mesmo via apenas com meios olhos), algumas delas colegas de hidroginástica (que quando vivo o marido proibira). É sobretudo para não se sentir sozinha de madrugada, quando acorda e não há ninguém ao seu lado, aquele marido de quem ela tem uma saudade muito específica, e ela não consegue adormecer de novo. Digo-lhe que também eu às vezes não consigo dormir, e ela acena entusiasticamente a cabeça, e diz-me que sim, que ela sabe: "quando acordo, vou logo ver se a sua luzinha lá do meio das caixas tá acesa... fico mais aliviada quando vejo que tem luz, sabe?". E eu digo-lhe que me chame, que me dê um grito se tiver vontade de conversar - pularei a janela e virei conversar com você, Dona M.!! Seus olhinhos piscam e ela olha-me escandalizada e diz-me baixinho, para que até quem nem passa seja impedido de ouvir: "gritar?! mas eu não grito!". E me assusta com esse tom peremptório que tende a usar quem já gritou muito, muito na vida, e percebe de repente que talvez não valesse a pena ter exigido tamanho esforço às cordas vocais. E dá-me uma palmadinha no braço, para que eu me deixe de bobagens, e me faz prometer que irei visitá-la, ver os móveis que mandou reformar (depois que o falecido se foi), o exaustor que finalmente comprou (depois que o falecido se foi), o ar condicionado que refresca agora as suas noites (depois que o falecido se foi), os corrimões que finalmente foram instalados, e que o falecido dissera que jamais seriam colocados. Prometo-lhe uma tarde de conversa. Ou madrugada, logo se verá.

Olho para a calçada, enquanto espero que atravesse a rua até sua casa, e vejo que a sarjeta ficou cheia de restos de areia. Neste novo mundo de convenções urbanas, não sei se me cabe a tarefa de limpá-la, lavá-la, varrê-la, dar-lhe sumiço. Penso que sim. Entro em casa para buscar pá e vassoura, mas quando volto a filha de Dona S. (a outra, que mora ao lado esquerdo) já está de mangueira em punho, lavando a rua com uma forma de fúria e obstinação que me fazem recuar instintivamente. Não sei ainda como interpretar essa sanha das minhas vizinhas, até onde devo entender um tanto das suas ações. Melhor varrer e limpar tudo o que tenho dentro - e que não é pouco.

01/04/2012

Quijoteces


“Allá donde están los molinos del Quijote”: foi assim que ele se apresentou na roda em que estávamos, quando lhe perguntaram de onde vinha. E isso foi o bastante. O namoro, o meu primeiro, durou poucos dias; sequer me lembro do nome dele, nem consigo ver-lhe o rosto ao fechar os olhos. Só essa frase. Poucos dias, mas intensos; um acampamento, tudo novidades, a frequência diária. Quando o visitei, semanas depois, fugindo à vigilância paterna, nas suas terras de La Mancha, recebeu-me com aceitunas e queso manchego, que fomos comer debaixo das pás dos moinhos escolhidos como corpo da sua referência. A paisagem plana e lisa à nossa volta, como os sentimentos que amainavam. Inesquecível.

Cervantes acompanhou-me, de lá pra cá, aqui e ali; sofri com as Novelas Ejemplares na escola, pouco disposta a essas leituras na altura, querendo respirar só Lorca, só Rubén Darío, só Neruda. Não as li direito até hoje e, nesse meio tempo, Cervantes foi cedendo espaço a Camões.

“O homem de La Mancha” voltou anos atrás, quando Marco Antonio me pediu que revisasse a peça que seus alunos, entre eles meu filho mais velho, encenariam. Cervantes a la Broadway, numa apresentação bonita e simples na Casa das Meninas, em Botucatu, sob a batuta de Kim Marques. Hoje, precisando identificar um momento pessoal de revelação de personagens, escolho esse, achando que seja aleatoriamente e ao acaso. Não é.

Quem faz curso de letras inevitavelmente descobre em algum momento que as personagens da narrativa se dividem básica e simplesmente em personagens planas e redondas. Lembro de ter gostado demais dessa definição geométrica, metáfora perfeita para o que é preciso lembrar da história. Foi o ano de descoberta de Barthes, dos estruturalistas, das teorias da narratologia, de um Forster que dizia “Como posso saber o que eu penso, até um escutar o que eu digo?”, e isso fazia tanto sentido. O mesmo Forster que apelidou as personagens de Homo fictus, seres ficcionais no âmago de qualquer narrativa, e propôs a sua divisão nesses dois tipos, flat e round no original. Como qualquer teoria é dada às suas falhas, nem sempre consigo que as personagens que leio ou escrevo se encaixem com tanta perfeição em um ou outro lugar, mas há (lembro) exemplos lapidares, como o corajoso e bondoso Peri (plana) ou o denso e surpreendente Dom Casmurro (redonda). Personagens planas tendem ao tipo, à caricatura, à densidade nenhuma, às atitudes previsíveis, ao caminho reto e sem surpresas. Personagens redondas (ou personagens que se arredondam) são densas, imprevisíveis, nunca se sabe o que dirão, o que farão, o seu caminho é feito de transformação, e mantêm-nos num suspense que nos faz soltar ahs e ohs conforme a sua descoberta avança. Porque as personagens redondas precisam ser descobertas, conquistadas, não se oferecem de cara como as planas, que podem revelar-se numa frase apenas, que nos diz tudo e nos faz sentir que estamos satisfeitos.

Dos anos de faculdade até agora não se tornou mais fácil acoplar as ideias estruturalistas à minha prática. Não é que não goste; gosto, mas não me afino. Só isso. Por isso olho para esta minha escolha, Dom Quixote à minha esquerda, Sancho Panza à minha direita, e reluto em encaixotá-los em algum lado. Tendo a achar o Quixote até previsível – lembro-me de que, embora risse, porque não há como não rir, me cansavam as estripulias da Triste Figura, que começam a ficar previsíveis - mas sei que é geralmente considerada uma personagem redonda. E tendo a achar que Sancho é o mais imprevisível, na sua paciente e persistente decisão de acompanhar seu amo em todas as batalhas enlouquecidas – embora eu saiba que é por vezes exemplo de personagem que tende ao plano. Ambos parecem-me planas, às vezes. E ambos parecem-me redondas, logo depois. Porque há densidade e conteúdo em ambas, detalhes ricos que se descobrem aos poucos, a humanidade inesgotável de Sancho, a intrepidez alucinada de Quixote. No que preciso escrever, decido, direi que ambos são tipos alinhavados de dentro para fora, para que não seja óbvio e para que a identificação seja lenta e interna, e vou abster-me da geometria.

E, como se gostasse no minuto em que me decido por esse caminho, Sancho de repente ganha luminosidade, ao lado de um Quixote que cavalga a sombra da própria estampa. O Sancho que acompanha e vela e cuida da loucura alheia, esquecendo-se de si próprio a cada instante. Tão idealista quanto o cavaleiro, largando a vida no campo para ser o que a tradição lhe dizia que poderia ser: um escudeiro servindo a seu senhor. Carrega escudo, remédios, comida - e sobretudo equilíbrio. Gordo, analfabeto e pragmático, faz-nos rir ao longo do romance, num riso que espelha identificação das nossas mazelas humanidades cotidianas. Come demais, vomita, é mal criado - mas é ele quem cura as feridas, quem cozinha, quem leva e traz recados, quem vê rebanhos onde o outro vê exércitos, moinhos onde se levantam gigantes. As longas conversas entre os dois, pelos campos de La Mancha, são provavelmente os pontos altos do romance, talvez onde se torne mais claro o quanto um jamais sobreviveria sem o outro, o quanto um se realiza e se permite porque o outro está ao lado, vigilante ou louco.

São raras, mas há pessoas que medem o horizonte com os olhos do impossível e agem sabendo que o mundo pode acabar na próxima esquina, como se conscientes e mergulhados nos dias que se sucedem um ao outro. Como se amalgamassem sonhos quixotescos - irrealizáveis e fadados à derrota, mantendo-os vivos e pulsantes dentro de si mesmos, numa coragem que inspira e fascina – à ação impressa com pulso e decisão no cotidiano alheio, às vezes cinza, às vezes pleno de brilho. Pessoas que sonham ao estender a mão. Pessoas que estendem a mão e fazem sonhar uma vida melhor, ainda que seja impossível e tudo diga que não. Pessoas quase personagens, um risco no meio da vida, ao qual (escrevem-me lá de Porto Alegre) devemos nos dedicar, mas com cuidado, e sobretudo ao escrever.

28/03/2012

A cidade nova VII - o presente

Dona S. tem andado quietinha nos últimos dias. Quase não a vejo. Ontem saiu de casa com o genro, de carro. Arrumada e aposto que perfumada. Com pressa. Nem me viu aqui dentro da janela.

Hoje, como se a consciência lhe tivesse pesado, espreita pelo portão justamente quando chego de bicicleta. Dona S. tem uns olhos vivos que piscam sem parar, o cabelo grisalho cortado curto, jeito de andar de quem é despachado na vida. "Se eu soubesse andar de bicicleta e não tivesse vergonha de andar com as pernas de fora que nem você, também andava, sabia?". Rio, encolho os ombros e lembro de agradecer os pastéis de cebola que ela trouxe no sábado, pra mudar o rumo da conversa. Mas Dona S. é dura na queda: "Pois é, e de novo você não estava aqui, né? Tanto que você trabalha, pela mãe santíssima!". Se eu fosse me dar ao trabalho de ficar pensando que os outros querem dizer uma coisa dizendo outra, ficaria com uma pulga atrás de cada orelha. Mas é demais isso, prefiro convidá-la para entrar.

Não tem tempo, tem uma missão importante. E chega-se para perto, olhos cravados em nosso vizinho, Seu G., vindo da esquina de lá em passos hesitantes. Mesmo sem tempo, empurra-se pra dentro do portão. Seu G. não deve ser o problema: seus grandes olhos azuis esquecidos, cor de Alzheimer, perguntam-me todas as manhãs quem sou. Não se lembraria do que ouvisse.

Dona S. tem um presente pra me dar. Mas antes quer me perguntar se eu quero, que não é coisa que se dê a qualquer um, assim de qualquer jeito. Anos atrás, quando seu marido morreu, comprou um plano funerário. Desses que a gente paga a vida toda pra não dar trabalho pra quem fica quando a gente se for. O plano dela é dos melhores - não paga quase nada, um sistema que não entendo de "quando morre um tanto de gente que começa com S., que é a letra do meu nome, aí que eu pago, mas só um tantinho...". De vez em quando, tem uns sorteios, conta, assim como se fosse um consórcio. E Dona S. ganhou um dos últimos: 10 caixões para distribuir pela família. Decido sentar-me - a história vai longa e promete.

Como não tem família pra tanto caixão, quer oferecer-me um de presente. E prende entre as suas uma de minhas mãos, para garantir que não seria para qualquer um que faria esse agrado. Eu procuro, mas não encontro reação pra lhe dar. Conta-me detalhes do imóvel de vida eterna: não é coisa de luxo, mas também não é daqueles de pobre. Não que faça diferença, diz ela, mas não precisa esculhambar. Acrescenta que se eu quiser um plano desses, ela me leva lá, e ainda me consegue um desconto. Porque além do caixão, tem outros gastos, o transporte, as velas, as flores, o tapete... Ri-se de repente e diz que "de transporte nem precisamos, né? é só empurrar até o fim da rua!!" E ri com sua grande boca de risos incontidos. É que moramos na rua que morre no cemitério. Eu sorrio, aceno a cabeça, falo um "hmm" de vez em quando...

Não sei que lhe diga. Nunca me fizeram uma oferta dessas. Pergunto-lhe onde fica o caixão até ser usado: "filha, na funerária... vc queria ficar com ele em casa?!". Deve achar que eu não penso, penso. Mas penso, e estou até atônita. Não sei se quero um caixão e não sei como dizer-lhe isso. Estou quase prestes a aceitar, e a agradecer, tudo graças à boa educação que me deram, quando ela se levanta e me diz que pense, pense que isso é coisa séria, não é pro resto da vida mas é pro tempo todo da morte. E assim como veio, com pressa e dizendo que não podia entrar, foi-se, acenando pro Seu G. que entretanto nem saiu de onde estava, encostado à árvore da calçada com quem conversa todas as tardes.

27/03/2012

A cidade nova VI

Dizem-me que faz tempo desde o último "A cidade nova". Têm razão. Vou em busca das mudanças dos últimos dias, pra registro e satisfação de quem está longe e quer saber. Ora bem, aí vai!


O roteiro segue o curso do dia. Resgatado o costume civilizado de ter tomadas elétricas na cozinha, todo mundo quer cozinhar. Panquecas na hora do almoço?, pergunta um. Posso preparar um suco? diz o outro. E a todos respondo que sim, imersa num daqueles dias em que tudo é tão, tão relativo. Tudo o que querem fazer conecta-se à rede elétrica, todos felizes com a quantidade de possibilidades pela cozinha. Pena que lavar a louça não precise de eletricidade: teria 4 pares de mãos à disposição para o trabalho sem maiores discussões...




A sala, que não existia, ganhou espaço - a céu aberto, é verdade, mas o certo é que dois dos montes de entulho e terra foram substituídos  pelo chão da sala, contra piso grosseiro onde desenharam um "bem-vinda, Ana!" no fim de semana, ao lado de um "Valdete" que atesta o autor da obra. As colunas ainda lá estão, ferro sem preencher, fantasmas sob o sol do meio do dia. Sento-me a seu lado, disposta a me reconciliar com esse clima estranho desta cidade, que me faz zonzear pela rua se não ando pela sombra. Aliás, é o que me diz Luzia, que encontro de repente no meio da rua hoje cedo, mãe de amiga querida que se foi pra São Luís: "Ana, Ana... ande pela sombra, minha filha". É o que eu tento, respondo-lhe: mas no fundo eu gosto do arder do sol na pele. E me descaio da sombra de vez em quando, como se fingisse estar distraída.



E agorinha, a meio da tarde, fujo de dentro de casa, para dentro do quintal que há nas traseiras, e do qual nem quase falo. A luz que tremeluz por entre as folhas, os verdes que confraternizam no fundo desta casa de cidade fazem-me desapertar a espessura amarga da distância que se criou de repente hoje pela manhã, ao tentar desabotoar uma saudade que já se torna mordente. Não resolve, mas amaina, à espera que o tempo passe. Enquanto trabalho no que preciso.





Dores

Nunca tinha feito fisioterapia na vida. Numa sequência de médicos dispostos a me ajudar, o último finalmente acerta no diagnóstico: um nervo pinçado.  Tive sorte na escolha, baseada apenas na coincidência entre descobrir uma oficina de reparo de sanfonas e achar seu nome na lista de médicos disponíveis: Dr. Luís Gonzaga. Com a polidez que só os médicos de outrora têm, pergunta-me da vida, do sono, da alimentação. E da felicidade. Devo ter feito uma cara de surpresa absoluta, porque ele tira os óculos e sorri um sorriso de dentes antigos e diz simplesmente: porque é preciso ser feliz, não é mesmo? E recoloca os óculos para quem sabe anotar (seria bom) um "sim, é feliz".

Envia-me à farmácia e à fisioterapia.  Tenho 10 sessões pela frente, todas seguidas, um dia após o outro, sem interrupção. Nesse momento em que o mundo parece arrastar-se ao meu lado, a premência de algo que acontecerá peremptoriamente todos os dias, sem trégua, é um alívio. O consultório do fisioterapeuta é imenso, e cheio já às 7h da manhã, assim que abre. Uma porção de gente com pequenas e grandes questões, recém-operados, traumas de todo tipo, aparelhinhos e lâmpadas ligados por todo lado, despertadores que avisam a cada instante que algo chegou ao fim. Meu nervo pinçado é um detalhe irrisório no movimento deste mundo.

As ondas curtas são meu único tratamento - durante esses 45' vezes 10 momentos dos próximos dias, não preciso fazer nada, a não ser deitar e pensar na vida (se quiser), enquanto os aparelhinhos ora me formigam o tal nervo, ora me são completamente indolores. Estes últimos são as tais das ondas curtas, e são de longe os que mais me espantam.

Meu companheiro na maca ao lado, com uma lâmpada de infravermelhos sobre a articulação do joelho, diz-me que ondas curtas é tudo de bom: aquece por dentro sem se sentir nada por fora, inibe as terminações nervosas de nos fazerem sentir dor. Conta-me que faz fisioterapia muitas vezes: gosta de jogar futebol aos fins de semana e normalmente excede-se. A fisioterapia é seu sossego, acrescenta: não preciso fazer nada, aqui, e só converso se me apetece. Mesmo feliz de ter sido eleita sua interlocutora, nem consigo escutá-lo muito; tenho grudado em mim um aparelhinho que conscientemente não sinto, que não dói, que não aquece nem esfria, e que faz com que a dor realmente desapareça. Parece milagre, e eu quero prestar-lhe atenção, para que nada me escape. 

Podem não ser somente as ondas, mas também o gel e o comprimido receitados pelo Dr. Gonzaga - o fato é que a dor do corpo já se foi. E me deixa mais aliviada, mas ao mesmo tempo mais atenta às dores dos outros lugares, naquele efeito, tão bem conhecido de quem já passou por um parto, de que é impossível sentir-se dor em dois lugares ao mesmo tempo. Difícil às vezes é saber se isso é uma vantagem ou um inconveniente.

26/03/2012

Dos diários II


"Agora que você não está ao meu lado, começo a desabitação da presença. Talvez para que o abandono não me doa. Que o olhar de adeus que você lançou às minhas costas, e que fez os meus músculos se retesarem, não perfure meu espaço aéreo. Qualquer som tornaria concreta a abstração tão grande deste boiar. Por isso desabito-me de você. Imóvel e em silêncio.

Vão faltar-me os nós dos seus dedos ao baterem à minha porta, mas não me interrompo no preparo da mala em que seguirá com você tudo o que nos pertence. Não é preciso que nada fique para trás. Nem um som sequer. Nem um esboço de gesto. Bastam-me as impressões gravadas por todas as paredes desta minha casa, o molde de gesso dos dias somados um ao outro, nesta casa que você habitava até eu perceber o início da desabitação. Quando a dizíamos: nossa casa. Quando assim se tornou, assim que abri a porta e deixei entrar o seu corpo esguio e oscilante, sem perguntar quase nada. Ou perguntando apenas: o que fará comigo quando se for? 

Não houve resposta, e ainda assim deixei você entrar, e o meu espaço tornou-se seu. E o tempo em que os seus passos ecoavam nas escadas de pedra da entrada de baixo fica guardado na áspera gramatura da minha memória. E eu voltarei a ouvi-los, fecharei os olhos e sentirei atrás do meu pescoço o hálito quente do toque das suas mãos. Como se elas tivessem voltado. Como se elas tivessem se reacendido no desejo que palpitará por entre as minhas veias, incendiando todo o meu corpo até chegar ao meu centro.

Dobro-me em duas nessa falta de habitação. Escorro a mobília, tão pouca, ao longo dos corredores encerados. Dobro as cortinas ali encostadas, ainda à espera da escada que nunca veio. Doo a louça ainda nas caixas, à espera de que nos sentássemos um diante do outro, as xícaras e os pires e as taças tremeluzindo nos olhares que trocamos. E de repente passa sobre mim o voo da ave que diz que a vida acaba antes de começar, mesmo quando no início tudo é já tanto. Seus olhos de azeviche, na sua dureza cruel e crua, refletem o meu rosto. Leio nele que sequer ainda começava a ser sua. E no entanto você já se foi."

(Dos diários de Hope, a personagem nascida no sul)

25/03/2012

O homem de Porto Pim


Para Antonio Tabucchi (1943-2012)

Muitos escolheram Lisboa, ao longo da vida, como seu lugar de morada. Mais raros foram os que, agora ou antes, se decidirão a mudar horizontes apaixonados por um poeta.Foi o caso de Antonio Tabucchi. Apaixonado por um pequena coletânea em francês de alguns versos de Pessoa, estudou português para lê-los no original. Mudou-se para Lisboa para penetrar a alma portuguesa com dedicação e afinco. Para assim poder ser o tradutor de Pessoa para o italiano, tarefa que manteve por toda a vida.

Conheci  Antonio Tabucchi muito por acaso há anos atrás, nas prateleiras de uma livraria pequena em Ponta Delgada, capital de São Miguel, arquipélago dos Açores, Portugal. "Mulher de Porto Pim e outras histórias". Nunca tinha ouvido falar dele, mas gostei de conhecer a escrita de um italiano que se debruçava sobre uma mulher açoriana. Estava grávida, naquele ano, fazendo um curso sobre literatura insular, e o Tabucchi foi um contraponto agradável, que me deu leveza às noites de fim de gravidez em que os pulmões espremidos nos sufocam e não nos deixam dormir.

Depois desse encontro, acompanhei-lhe os passos aqui e ali; vi a adaptação de "Afirma Pereira", um dos últimos trabalhos de Mastroianni, um ano antes de passar-se ao outro lado. E hoje, 25 de março, quem se passa para esse outro lado é Tabucchi.

Acho estranho quando um escritor morre - já escrevi isso em algum lugar. Porque nem me parece que ele estivesse vivo, que de fato vivesse enquanto escrevia. Talvez porque invariavelmente me pareça que entre as muitas palavras que leio há aquelas que vêm de um ponto que não está nem na vida nem na morte. A arte é domínio à parte, não pertence à seara do tempo.

E lá se vai Tabucchi - que dizia de si próprio ser existencialmente um professor de literatura portuguesa na Toscana, mais do que um escritor propriamente dito. A sua rotina dividia-o entre seis meses em Lisboa, seis meses na Toscana, ensinando literatura portuguesa na Universidade de Siena.  De longe, parece-me uma vida pacata, como o é a sua escrita - forte, densa e com uma dose pacata de olhar pra vida e vê-la assim, passando por nós como barcos à beira mar. Para desejar-lhe uma boa viagem, gostaria de saber em que caixa se escondem seus livros, para poder folheá-los a todos e escolher umas páginas ao acaso, lê-las em voz alta antes de dormir. Para que ele tenha certeza, no caminho que faz, de que o que escreve fica entre nós.

Do álcool - e de como nos rimos do que não tem graça

Uma de minhas colegas de curso em Porto Alegre, na sua apresentação, declarou-se vegetariana e imediatamente advertiu e pediu desculpas por simplesmente não poder olhar nos olhos de alguém que coma carne. Declarou-se radical absoluta nesse terreno. Ninguém disse nada, embora tenha sido fácil registrar um ou outro olhar trocista dos comedores de carne de plantão. O típico.

Conversei com ela depois, na hora do intervalo, porque pessoas assim funcionam-me como ímãs. Fiquei intrigada com o pedido de desculpas, tão desnecessário achei. Ela explicou, sem muitos rodeios, que estava cansada de ser taxada de radical depois de um tempo, e preferia que a vissem logo como era no primeiro contato. Achava que todo mundo saía perdendo menos tempo. Saímos pra tomar uma água, e a dureza inicial foi substituída por um interesse pelo alheio difícil de encontrar em pessoas amena e declaradamente não radicais. Em pouco tempo que olhou pra mim entreviu um tanto de coisas, e perguntou sobre elas de forma bem radical. Gostei.

Além dos animais, que não come, ama escrever (que é o que ali nos une a todos) e ama descobrir todos os terrenos em que a humanidade é dupla, ambígua, ali mesmo onde se perde pensando que está se encontrando. E por isso começamos a conversar sobre álcool. Falei-lhe das imagens que tinha recolhido uns dias atrás pelo facebook, piadas inofensivas (se tal coisa existisse, segreda-me o Freud que escreveu sobre chistes e inconsciente) em torno do consumo de álcool - aliás, eu diria que da paranoia generalizada de como tudo se reduz a beber. E ela pediu-me que lhas mandasse. Aqui estão.

Tudo engraçado, ou quase. A facilidade do botão de "curtir" faz com que todos sejam(os) vítimas fáceis do que à primeira vista é uma piada inocente e aos poucos (olhe em volta) se torna uma realidade grotesca. À qual todos nós estamos conectados e pela qual somos todos consequentemente responsáveis. Curtindo ou não curtindo as piadas de internet, o fato é que somos todos responsáveis pela quantidade assombrosa que se bebe todos os dias em todos os lugares. Por todas as idades. O estado tenta (ou parece tentar) controlar alguma coisa, lei anti álcool batendo nas portas dos bares e restaurantes, mas nada muda e o mundo bebe.  Sobretudo, os jovens. Sem saber onde tudo isso pode/vai parar. E nesse mundo colorido pela auto-complacência fácil, nossos umbigos desaparecem nessa hora, e dificilmente nos vemos eletrocutados pelo que acontece. Eu? Comigo? Não...

Todas essas imagens são auto-explicativas, dispensam comentários. Fomentam e disseminam a ideia de que estamos à merçê do álcool: é ele que ilumina meus fins de semana, é a ele que cedo o espaço dos meus peixes, a ele que dou as mãos como se fosse família, a ele que devo obediência, a ele que salvo quando tudo parece estar perdido, por ele que procuro assim que alguém chega até mim, a ele que apelo quando me falta a serenidade.

Lembro-me delas sempre que passo de bicicleta, já noite, pelas dezenas de bares que rodeiam a minha casa; enquanto diminuo a velocidade até parar e apoiar o pé na calçada. Penso no que pensarão essas centenas e centenas de pessoas, jovens na sua gritante maioria, que os enchem noite após noite. Visito-os de vez em quando - e não há conversa que consiga sustentar-se num lugar que tem tudo, menos o silêncio mínimo que permita que se ouça o interlocutor. Ou seja, conversar não precisa. Claro que a paquera rola solta, turbinada e amaciada à segunda ou terceira cerveja - mas não há nada que me faça pensar em que daqui sairão relações que durem mais do que uma noite. Ou talvez me engane, e seja este um ponto de partida válido como qualquer outro. Certezas são sombras perigosas.

Há uma vibe intensa e uníssona, e para entrar nela é preciso sim beber uma ou duas doses - é isso que me diz um garoto, feliz da vida por ter passado na faculdade e por poder curtir a vida com aqueles que (imagina) se tornarão seus amigos. Acrescentar "pro resto da vida" seria uma licença poética exagerada da minha parte, porque nem ele diz isso nem está sequer pensando que exista algo assim como "o resto da vida". Com um copo na mão, é mais fácil conversar, a vida parece muito mais amena, a manhã de estudo muito mais longe, o garoto na mesa ao lado muito mais perto. As fronteiras, ô delícia, se dissolvem, e não é preciso comprometer-se com quase, quase nada. Nem com o dia de amanhã nem com a felicidade de ninguém.

Embora a atmosfera seja leve, alegre, descontraída, as imagens que acompanham este desabafo estão fixas nas minhas retinas, assim como se fixam dentro dos cérebros desses jovens que acreditam que a felicidade que mora dentro de uma garrafa é de fato um caminho viável e inofensivo de chegar à felicidade da vida. Que publicam e curtem todas elas nos seus murais. Que crescem acreditando que um trago a mais não faz mal. Que uma bebedeira ou duas não tem risco. Porque nós fizemos igual - ouvem em casa de seus pais condescendentes. Porque faz parte dessa fase da vida - ouvem de quem quer que seja. Porque é preciso conviver com o álcool e saber beber.

Tenho andado arredia demais pra conversar, estes dias. Prefiro observar de longe, o mais distante que possa para preservar-me a mim mesma. E por isso volto pra casa, sem saber por onde continuar, ou o que começar. Têm razão os organizadores da festa do próximo 7 de abril de Botucatu - e agora José? 






24/03/2012

Dos diários

"Lembra,  meu amor, de todos os lugares que já visitamos planejando viver em cada um deles, como se pudéssemos viver todas as vidas que temos reservadas em uma só? Uma urgência de querer ser tudo a meio do caminho de ida? Sem pensar em como fazer e já fazendo, num esboço de percurso a traços largos, abertos, amplos, que se constrói só de palavras e desejo e se satisfaz pleno? Você lembra, meu amor, aí onde você está agora?

Como, num dia, a moenda de farinha de madeira antiga plantada no centro de um vale ensolarado, um rio cruzando-o a meio, cão tão branco como a lua atravessando-o para vir ao nosso encontro. Como, num dia, a fábrica de rapadura no centro do sertão queimado, quase abandonada de tão à venda e por tanto tempo. Como, num dia, o boteco à beira mar, na calma das praias abandonadas. Ou a lua alta por detrás de um castelo medieval. A escarpa sanguinária projetando-se sobre o mar. O quintal de alfaces e couves verdes na beira da estrada de muros de pedra, uma senhora de preto acenando que entrássemos. O mercado barulhento a meio do deserto escuro e fundo. A casa abandonada do vigia das ondas do fim do mundo. A enseada tranquila que de repente alguém transforma em cenário de um amor improvável. Ou a dureza da pedra no chão de terra, a vida dupla. Ou a fome. O olhar da desgraça. Todos esses que se fizeram nossos lugares de morada.

Por isso a nenhuma cidade posso ocupá-la como lugar de vida imaginária sem a sua companhia.

As coisas passam por mim e ficam, demoram-se nas perguntas que me fazem, curiosas do reflexo que teriam nos seus olhos, se você aqui estivesse. Como esta feira livre, e o seu mar, as pessoas que compram, planejam, sorriem, falam quase que em outra língua, um novo acento na emoção do tempo. E vejo por dentro como só as solidões como esta que construo com a sua ausência me fazem sorrir os lábios. Ouço as perguntas que você faria, escuto as histórias que descobriria e vejo os caminhos que se abririam só porque somos tão diferentes naquilo que ouvimos, perguntamos, descobrimos. Como dois mundos que se encontraram e se juntaram sem saber mais onde começa um e termina o outro. Nem a ausência, a distância, o som mudo da voz que se cala mudam a vida."

(feira do Brique, em Porto Alegre, onde nasce a personagem)