18/04/2010
Entre o ver e o ouvir
11/04/2010
Bairros, comunidades e recortes afins
06/04/2010
Ser sozinho ou acompanhado?
03/04/2010
Fotografia nova na parede da sala
02/04/2010
Oliveiras
Encontrei uma oliveira, num destes dias, das mais velhas e antigas a que já prestei atenção. Tenho dado comigo com apreço mais do que o normal por tudo aquilo que é não obviamente velho. Sei que esta oliveira em questão é antiga pelo estado do seu tronco, retorcido e rasgado, em processo claro de duplicação, fato que às vezes acontece às oliveiras, que entretanto sobrevivem graças às suas tenazes raízes. As torções do tronco, que conectam as oliveiras ao eixo de rotação da terra, encaram tempos que mais parecem eternidades como se fosse o cotidiano do dia a dia. E a separação em si próprias conclui estes milagres chamados oliveiras.
31/03/2010
Aos medos, comê-los
Minúsculas, em termos: uma delas chega a ser habitada, tem um farol e até uma fortaleza que hoje é roteiro turístico. Imagino que tenha uma importância biológica razoável, já que descubro que são reserva natural já há muitos anos, sem que eu o soubesse.
Lembrei-me delas porque pus-me hoje a cozinhar um polvo. Venci nestas últimas semanas o horror infantil que tinha a esse bicho cheio de ventosas e braços desarticulados entre si. E as Berlengas estão cheias deles, horrorizando-me com os seus movimentos sinuosos, esgueirando-se por entre as pedras e escondendo-se nas muitas cavernas que esse micro arquipélago tem. São pequenos e escuros, os polvos das Berlengas, e este que comprei, além de claro (provavelmente porque suas células não excretem mais o que antes o camuflava e escurecia), é razoavelmente grande – 1,5 kg, que é como manda a receita.
Meu horror foi vencido à força de garfo. Tive que comer, porque foi uma oferta e já se vê que oferta não se recusa, e como já tenho idade suficiente, não entrei em pânico nem em agonia, e até me dispus a apreciar o que todos me dizem, há anos sem conta, ser uma iguaria. Os que já se foram ficarão satisfeitos se me puderem ver agora, avental vestido, tesoura de corte em punho,a avançar em direção a esse cefalópode pronto a ser temperado e cozido e comido. Além de vencer o medo, aprendi a cozinhar o dito cujo, de uma dessas maneiras simples que tem a cozinha portuguesa, em que não são precisas medidas porque tudo é resumidamente “q.b.” (ou seja, quanto baste) ou “uma pitada”. Ainda bem que estou sozinha em casa, porque a minha intenção é preparar o jantar com carinho e dedicação, pensando nos convidados que aqui estarão logo mais, e desta vez preciso realmente de quietude e solidão absolutas, porque sei que mexo num medo ancestral que me vive dentro. Não sei o que Freud diria, mas acabar com ele desta forma parece bastante convincente. Fico pensando nos outros medos, nos dissabores da vida, e creio que tentarei fazer o mesmo com alguns deles: olhá-los de frente, mergulhá-los na água a ferver, passá-los pelas brasas de um carvão incandescente, espetar-lhes o garfo e mastigar até o fim cada uma das suas fibras rijas. Provavelmente resistirão, meus dentes se fartarão, mas, como a este polvo, quero inseri-los na minha própria carne, fazer-me de cada uma das suas moléculas.
Os convidados chegam e sentam-se. Polvo não é um prato comum, e eu espero que não sejam apenas atenciosos e se sirvam só para não me afligir. Mas não – repetem uma e outra vez, e assim, de vez, o meu medo aos polvos dissipa-se. Dividi-o com os meus amigos, contei-lhes o que se passa, e eles respondem ajudando-me nessa orgia atávica em que se mastigam todos os pavores temperados. Como já imaginava, dormi muito melhor esta noite, desacompanhada de pesadelos.
28/03/2010
Uma nesga de sol no Guincho
O Guincho é um dos lugares mais selvagens da costa de Lisboa. Já o foi mais, porque agora há muitos restaurantes, tradições de Cascais que mudaram de endereço – frangos assados com piripiri que se compravam lá e que agora se compram cá. Ainda assim, em dias como hoje, de vento, chuva e frio, no Guincho são as mesmas rajadas de antes que quase nos levantam do chão. Se viramos as costas à estrada, aos poucos carros que passam, e abstraímos os restaurantes instalados nos antigos fortes, são os elementos e mais nada a dizerem-nos uns da brevidade da vida, outros da sua inviabilidade. Que mais somos a não ser as folhas que o vento leva para longe das árvores?
No mar, algumas dezenas de surfistas arriscam-se junto às pedras. Lembram os barcos nos Açores, que atravessavam da Horta ao Pico com os motores desligados, a deixaram-se levar pelas vagas das águas que separam uma ilha da outra. Na volta, perto das pedras da ponta da Espalamaca, era um susto, um arrepio, seguidos das palmas aos grandes mestres navegantes que tripulavam as lanchas e as salvavam dos arrecifes e das escarpas.
O mar está hoje azul ao longe, cinzento aqui perto. As ondas rebentam nas pedras e molham-me os olhos. Sinto-lhes o gosto salgado e as pernas dobram-se-me – o gosto é diferente, é claro que sabe a sal e deve ser, já se sabe, das lágrimas de Portugal.
Dias depois, volto de bicicleta por esse mesmo caminho, agora ao sol. As vagas mantêm-se à direita. A subida não é íngreme, mas faz-me parar constantemente, para ver de perto as falésias. Gosto dessa palavra antiga, uma das pontas do que nos liga ao passado celta – falésias. Demoro-me muito tempo perto delas, porque me parecem ser feitas dessa palavra. Aquilo que sinto encostada a elas, em cima delas, olhando para elas, constrói-se exatamente com essas letras. Tudo o que sinto transforma-se em palavras sem que eu possa controlar. As ondas rebentam nas rochas íngremes, mil gotas de sal a molharem-me toda, num arrepio de mar gelado cujo destino é acordar-me. As pedras, enormes, impassíveis, testemunham o Tejo que se projeta em direção ao oceano.
Ao voltar tropeço nas plantas que sobrevivem nas rochas, provavelmente porque não o quero fazer, mas é preciso, já são horas de voltar para a realidade das pedras da estrada. Antes que o sol se ponha, corro até à entrada da Boca do Inferno, gruta desmoronada onde se chega por cima, e assisto mais uma vez ao espetáculo que maravilhou Aleister Crowley quando veio a Lisboa conhecer Pessoa – uma placa, hoje, assinala o dia de 1930 em que o mago inglês simulou aqui seu próprio suicídio. Uma outra atesta a coragem de alguém que perdeu a própria vida, há duas décadas, para salvar outros que estavam em cima destas rochas. Neste e em tantos outros promontórios, cabos e falésias país afora respira um povo que vive há séculos de frente para o mar. Assim que retomo os pedais da bicicleta, afasto-me sem pressa, querendo que este momento se mantenha presente, revendo mentalmente as palavras que agora, ao chegar, posso depositar no papel.