18/04/2010

Entre o ver e o ouvir

Uma das vantagens da audição é poder ouvir o que dizem de nós, nesse movimento que alguns gostam de chamar de “espelhamento”, o saudável exercício de refletir, observar, pensar, especular afinal. Quando o espelho não é baço, encoberto e acinzentado pelo tempo, ou alterado pelo desgaste dos produtos que usamos, querendo deixá-lo insana e artificialmente brilhante e reluzente, é ótimo. Quando o momento de espelhar está bem determinado, e se limita àquilo que compreende a função para a qual se usa o espelho, ótimo também, e o mesmo acontece quando o olhar que desdobramos na direção do outro está permeado de amor e compaixão, na sua forma concreta que não quer despertar dores desnecessárias das quais nada sabemos. Com condições assim ideais, podemos confiar na imagem refletida como sendo, de fato, parte da nossa própria reflexão, e aproveitar-lhe todos os momentos para ir e voltar e ir uma vez mais à morada da nossa própria percepção.

Gosto por demais dessas oportunidades, até pela dedicação que, de um jeito ou de outro, pressupõe o movimento do outro especular sobre nós mesmos olhando em nossos olhos - o que nos permite, a nós os  observados, conhecer os outros através daquilo que eles dizem ver. A especulação bem formada engrandece o que especula e o especulado, e cria um entendimento profundo e verdadeiro entre almas. A reverberação dos sons que os outros escolheram para definir o que veem como nosso reflexo abre caminhos dentro de nós, suaves ou agrestes, enevoados ou luminosos.  Nem todo espelho reflete o mesmo lado de nós mesmos, e provavelmente por isso alguns nos percebam as curvas sinuosas, outros as planícies serenas, outros o mar em fúria, outros o espaço aéreo entre as falésias e as ondas, e outros ainda duas ou três dessas paisagens ao mesmo tempo, seja porque estão por perto há mais tempo, seja porque a história nos antecede a todos e alguns sabem disso sem saber e sem se lembrar.

Nesse espelhar do outro, há quem prefira não abrir os olhos, furtando-se a ter o outro refletido em seu cristalino. Pode ser que receie encontrar-se naquilo que reflita, o que pode ser um problema, e assim olha-se só para dentro de si próprio e confunde-se a própria imagem com aquilo que era suposto refletir. E outros, ainda, decidem observar o que lhes interessa e aquilo que vai ao encontro de seus desejos e propósitos e, por eles, quaisquer observações cabem e valem. Mas estes são entre nós muito raros, quase inexistentes, e não vale a pena oferecer-lhes muito do nosso tempo.

Nesses processos, pode ser que às vezes ouçamos falar do nosso avesso como se ele fosse o direito, e como se devesse transformar-se e viajar para os lugares onde outros acreditam estar o que é direito. Imagens de que gostamos, e cultivamos, aparecem repentinamente transvestidas com as peles do desequilíbrio, da instabilidade, da insatisfação, da ausência. Estivessem esses olhos abertos, talvez conseguissem ver como se mergulha até o fim dos poços da vida, e se bate o pé no fundo e se volta à tona com o diamante que com esse mergulho arriscado conseguimos abraçar e trazer lá de baixo conosco. Mas, penso comigo, talvez só nos sonhos de Alice os espelhos mergulhem sem antes garantir seu tubo de oxigênio, numa entrega que não se preocupe em dividir quantos lances de escada se vencem a cada dia. 

Imagens projetadas, e não mais refletidas, provocam o desconforto do próprio movimento. A projeção agudiza a consciência dos tentáculos por trás das superfícies espelhadas das paredes do poço em que se mergulha, estreitando-se para não deixarem passar aquilo que de fato somos. Na escuridão que essas superfícies formam, há aquilo que deixa de valer a pena, ainda que resistamos em manter acesa a luz que nos permita encontrar a saída e, com ela, o caminho que nos leve ao nosso destino.

11/04/2010

Bairros, comunidades e recortes afins

Tenho diante de mim, na minha mesa, uma pintura a óleo, feita por uma das minhas tias, que retrata um pedaço do mar da Foz do Arelho, praia da minha infância. Mesmo sabendo disso, transponho essa imagem diante de mim para todos os lugares marítimos que me apraz, e muitas vezes o que vejo é o recorte da janela da casa da minha bisavó na ilha do Faial, nos Açores. Esse recorte serve-me de companhia, invocação mesmo, quando me perco ou preciso ausentar-me do mundo. Não que isso signifique que tenha passado muitas horas à janela dessa janela, nem é o caso, mas a situação que idealizo remete-me a momentos que, se tivessem sido vividos, com certeza seriam preciosos e únicos. Basta-me pensar neles para que de fato existam, a ponto de consolar-me da vida quando entra em estado de insípido desalento.

Recortes assim, da vida e do mundo, são matéria de todos os dias. Esse mar diante de mim não é o mar, mas sua imagem, a imagem que minha tia formou dentro de si e transportou com suas tintas e pincéis para uma tela branca. Tornou sólido o que era líquido. Eu, a  milhas náuticas de distância de tudo isso, mar, tintas, tia e praia, tomo essa solidez e, de certa forma, transformo-a no meu especial tipo de mar. Um tipo sólido de mar. Um estereótipo de mar. Inofensivo.

A formação de estereótipos, aprendi na faculdade há anos, é vital para o nosso processo de comunicação, usada todos os dias, todas as horas, a todo momento. Formamos estereótipos internos do que seja uma árvore, e assim não precisamos descrever à exaustão o conceito “árvore” quando queremos com muita simplicidade dizer a alguém “quem me dera ter uma árvore para ficar sob a sua sombra”. A árvore está lá, ainda que talvez não esteja, e ambos interlocutores podem entrecerrar os olhos e sentir a sombra da árvore inexistente que é a mesma nesse momento para os dois, sem o ser.

Sim, alguém logo poderá dizer (porque esse é o estereótipo da palavra estereótipo), “mas estereótipos criam problemas”. Certamente. Quando o meu “tipo sólido” decide além de sólido tornar-se opaco, e sobrepor-se à translucidez alheia, passa de fato ao estatuto de problema e muda de nome: chama-se preconceito ou discriminação, e age em consonância com a nova denominação. Os efeitos da comunicação de massa, com as suas características específicas de tempo, modo e forma, produzem cotidianamente estereótipos. Alguns geram preconceitos e discriminação, outros formam imagens que aos poucos se tornam verdades, aptas a distorcer a realidade. Ampla e irrestritamente. Com uns, nos identificamos; com outros, nem tanto.

Há uns anos atrás, tivemos na Demétria uma discussão mais ou menos efervescente sobre a propriedade (ou impropriedade) de nos chamarmos “bairro” ou “comunidade”. Talvez, penso eu agora, pelo crescimento exponencial do grupo, e a consequente necessidade de encontrar uma forma que pudesse definir-nos frente ao mundo. Defensores de uma e outra denominação apresentaram aqui e acolá seus motivos e razões, e eu naquela altura nem pensei em ir às origens de ambas as palavras. Graças à reportagem veiculada pela rede Bandeirantes nestes dias, sob o pomposo título de “Famílias mudam de vida e produzem o próprio alimento”, voltou-me aquela discussão à mente, basicamente porque fiquei à procura, na matéria, do que vejo da janela da minha casa. O subtítulo não me ajuda: "Em Botucatu, interior de São Paulo, uma comunidade produz o próprio alimento de forma sustentável".

Aquela discussão acabou elegendo a ideia de “bairro”. Comunidade parecia, a uns, ligada à criminalidade das favelas-valha-nos-deus, a outros dava uma sensação de bicho-grilo-ainda-nos-sessenta, a outros ainda soava estranho, como bairro será mais interessante, diziam, a nossa situação perante o município. Foram muitos argumentos de parte a parte, todos eles amparados e justificados pelo estereótipo interno que cada um, inclusive eu, formou  ao longo da vida sobre cada um desses dois conceitos feitos palavras. O fato é que bairro ficou. E agora, inusitadamente, vira notícia como “experiência comunitária”. Reconheço cada um dos atores presentes nos pouco mais de quatro minutos de matéria, e em todos reconheço parte da “culpa” por sermos o que somos. O difícil é conseguir encontrar-nos por entre as imagens. É claro que ali está uma parcela de nós, feliz ou infelizmente pequena, e o seu dia a dia, só não consigo ver que essa parcela represente, mesmo de longe, o "bairro Demétria".

De vez em quando dou umas voltas por alguns dos atuais meios alternativos, e dos mais emblemáticos como o enca, aos mais focados, como os grupos de parto humanizado e afins, a reação parece-se: abre-se uma boca de espanto e emite-se um “ah” de êxtase ao saber que vivo na Demétria. Da primeira vez achei divertido, da segunda engraçado, da terceira comecei a ficar incomodada. Provavelmente esse mito saia fortalecido com esta matéria da Band, e nós que construímos essa nação sem pátria ficaremos um pouco mais longe de vestir a roupa dos mortais comuns, que veem o Olimpo como se deve: com os pés no chão.

Mas a questão aqui era etimológica, e se eu soubesse disso antes ... Para bairro, bastam dois clicks no google e uma checagem no Geraldo Cunha aqui ao lado: deriva de bárri – o espaço “exterior” dos árabes hispânicos, o "lado de fora", que por sua vez deriva do árabe clássico barri, igual a “selvagem”. Bastam-me os árabes ibéricos, que todo exagero é ruim, inclusive o linguístico - o "lado de fora", portanto. Para comunidade, a formação é mais óbvia: uma "unidade comum", por sua vez trivial, vulgar. Ser “bairro”, ser o lado de fora; ser “comunidade”, ter qualidades comuns e triviais, daquelas que dão a noção de pertencimento.

A minha atenção é chamada (assim mesmo, na voz passiva, porque diante da televisão raramente nos chamamos a atenção, é ela que nos chama, e isto sem julgamento de valor pelo-amor-de-deus) pela constatação de que, de fato, vê-se de nós o que projetamos ao nos assumirmos bairro - o nosso lado de fora, aquilo “que dizemos que queremos ser”, como alguém desabafava neste mesmo alobairro dias atrás, e não o que de fato somos, por dentro. Falta-nos, talvez, a comum-unidade trivial e vulgar que poderíamos ter se pudéssemos de fato olhar-nos com a pluralidade, a abertura, a verdade e a falta de dogmas que as coisas triviais e comuns demandam, se é que se quer que sejam verdadeiras. A menos que já saibamos qual é a unidade que queremos seja comum às pessoas que aqui chegam, e descartemos tudo aquilo que não se encaixe na nossa visão “comum”.

Conversar com quem saiu daqui ao longo dos últimos dez anos tem me deixado um travo amargo na boca, que por falta de melhor palavra traduzo como me disseram outro dia, a respeito desse assunto mesmo: "frustração", seja lá pelos motivos que for. Em outros momentos, ouvi de muitos a palavra “desilusão”,  sentimento quase que inexorável passado o período de tempo de encantamento pelo qual todos os que vimos para cá passamos. O que é normal, comum, trivial, dadas as nossas condições excepcionais de vida, assim como é normal, comum, trivial desiludir-nos, que ninguém merece mesmo viver iludido e a desilusão no fundo é a verdadeira salvação. O que não é normal é que as imagens da band não se pareçam conosco e que as deixemos passar irrefletidamente por nós mesmos.

06/04/2010

Ser sozinho ou acompanhado?


Tenho às vezes a impressão de que uma vida quieta, calada e retirada faria a muitos mortais um imenso bem. Incluo-me nesse grupo, com a sensação de que há momentos em que me faria bem melhor do que o oposto estar-me sossegada numa espécie de espaço próprio solitário e vazio, estritamente delimitado e consequentemente protegido. Poupar-me-ia de alguns dissabores e pouparia os outros também dos pensamentos que me afligem e que, em vez de me desassossegarem a mim apenas, desdobram-se na direção dos que me ouvem. Nada disso é justo.
Mas é difícil, digo-me lúcida logo a seguir, porque provavelmente ficaria sem matéria. Lembro-me rapidamente de John Donne, de Hemingway como consequência, e se o segundo citou o primeiro, sinto-me no direito de citá-los a ambos: “Nenhum homem é uma ilha, sozinho em si mesmo; cada homem é parte do continente, parte do todo; se um seixo for levado pelo mar, a Europa fica menor, como se fosse um promontório, assim como se fosse uma parte de seus amigos ou mesmo sua; a morte de qualquer homem me diminui, porque eu sou parte da humanidade; por isso, nunca procures saber por quem os sinos dobram, eles dobram por ti”. Donne, poeta inglês do fim do século XV, escrevia isso na sua Meditação VII, e Hemingway pegou-lhe nas palavras literais em “Por quem os sinos dobram”. Thomas Merton, o padre católico que mergulhou na Ásia da primeira metade do século XX, usou a primeira frase para dar título a um de seus mais famosos livros: “No Man is an Island”. Deve haver mais e mais ramificações dessa noção tão básica, e eu deixo que todas elas me reconvençam lentamente. Meus pulmões dividem-se entre expirar e suspirar, e entretanto chega-me alguém à porta, pede-me um favor, pergunta-me alguma coisa; prova-me, com a exemplaridade simples do dois e dois são quatro, que tudo isso é verdade, e imediato, grotescamente imediato. O que me faz voltar a pensar que sim, que de fato a vida quieta e solitária viria a calhar, não fosse eu mesma autosabotar-me sempre nesse propósito, porque o convívio é como eu própria olhando para mim mesma, e eu gosto imensamente de vibrar na vibração alheia. É bom ter dúvidas, para tê-las dissipadas.
Sobre o que escreveria eu não fossem as ideias que me aparecem no meio de uma conversa, na hora de uma palestra, em meio a uma discussão que presencio? Há meses que decidi treinar-me em ausentar-me do que acontece ao lado cada vez que uma chispa de ideia me passa pela mente. Retraio o meu pensamento e uso o pouco que lembro do curso que fiz de leitura dinâmica para passar em revista todas as ideias que afloram num ápice. Enfio-as qual pérolas em um fio que consiga esticar diante dos olhos depois, ainda que nada tenha a ver com nada e esse fio dê origem a coisas tão díspares quanto polvos e solidão. Como por exemplo esta crônica, que nasceu de uma imagem que me veio um destes dias, em meio a uma discussão, de um ser grotesco com muitos braços inoperantes, daqueles que não atingem a sincronicidade mínima para se colocarem em movimento em direção a algum lugar pretendido. Dias depois consegui ver nessa imagem um polvo, nesse polvo a minha cozinha e nessa cozinha a salvação.

03/04/2010

Fotografia nova na parede da sala


Assim que me deram esta fotografia da baixa lisboeta, antevi as saudades que me provocaria assim que a colocasse na parede de casa. Vista de cima e a preto e branco, a cidade de Lisboa atinge-me muito mais fundo, porque contemplo-a em silêncio, não há nada visível da modernidade claustrofóbica que a atingiu, e eu posso beber da fonte que gosto, difícil de encontrar com os pés no chão. O quadriculado exato pombalino agrada-me mais assim, pelo contraste com os bairros castiços, à direita e à esquerda; Alfamas e Mourarias e Bairros Altos a atiçar o passado mourisco da cidade que tinha sete colinas, e as perdeu submersas em prédios todos iguais.

Uma sede de modernidade faz com que o tempo ande, o que é bom, mas impede que o passado se demore, o que não é tão bom. Como não estou sempre nesta cidade, e como ela faz parte do meu passado, sinto-lhe mais a parte negativa do que passou, à espreita atrás da porta das remodelações. Segue-se a traça original do desenho dos prédios, porque o orgulho do passado majestoso sobrepõe-se a tudo neste país em crise, mas é uma traça que difere sutilmente daquilo que era. Pode ser que sejam os materiais que se usam, as novas técnicas de construção  etc e tal. O fato é que o Cais das Colunas já não é o que era, que pena, quando andava em obras eternas que motivavam piadas e mais piadas e que agora se calaram porque perderam o sentido. Ou o Cais do Sodré, limpo e cheio das máquinas que nos facilitam a vida ao vender bilhetes em tantas línguas, enquanto nos fazem perder o ritmo do tempo que era o nosso, e que talvez pudesse continuar a sê-lo e quem sabe não seria a crise doutro tamanho e dimensão.

Lisboa provoca-me sensações ambíguas, provavelmente porque viva muita viva dentro do passado que lhe construí na memória. E dificilmente alguma coisa iguala a memória.

Isso faz-me pensar na memória seletiva que  se criou em mim e que se esquece contumazmente daquilo que parece não valer a pena lembrar, ainda que valha. À minha volta, lembram-se de muitas formas de eu mesma que eu nem sei existentes em mim. Começo realmente a ficar preocupada, porque por todos os grupos e por todos os lugares a situação repete-se, o que denuncia uma cronicidade que talvez venha a se transformar em distúrbio, se é que já não o é efetivamente. Lembram-se de momentos invulgares, aventuras que parecem saídas de um volume de ficção, anedotas em que me vejo refletida como se fosse outra, basicamente porque não me lembro, mas imagino até que assim possa ter sido, já que outros se lembram com tanta fidelidade e estranhamento quando os olho, com o meu próprio estranhamento de que seja de mim que falam.

Lisboa, hoje na parede de casa, um cacilheiro à vista no pedaço de Tejo que o fotógrafo imortalizou, há de lembrar-se eternamente. Sigo o percurso das ruas que gosto de calcorrear com a ponta do meu dedo e, se fecho os olhos, vejo-me lá. Sinto a brisa do Tejo antes de chegar ao Terreiro do Paço, e viro à direira numa ruazinha onde sei que vou encontrar omeletes acompanhadas por montanhas de batatas fritas, como gostaria um Kit Carson que aqui aportasse anacronicamente. À distância, divirto-me em percursos que posso inventar. Não há barulho nem fumaça de carros, nem sombra das eternas obras que não acabam de remodelar uma e outra vez esta praça. Além de ser das maiores da Europa, é a mais emblemática porta de entrada desta cidade, e ainda esquizofrênica como nós todos - não sabe se se chama Terreiro do Paço ou Praça do Comércio, e responde aos dois apelos feliz da vida por poder ser duas enquanto é só uma.

Os elétricos, neste meu sonho fotográfico, são dos antigos e deslizam pelos seus trilhos, às vezes com um barulho de freios que dói nos ouvidos e que hoje, embora mal se ouvisse, seria chamado de poluição sonora. Atrás do chiado que não se ouve, escuto as asas das gaivotas que pousam na estátua de D. José I, indiferentes à azáfama citadina. As pedras desta praça testemunharam o fim último da ditadura - vem-me à memória, que já se sebe seletiva, um Salgueiro Maia a libertar Lisboa do último baluarte salazarista e, como estou longe, posso imaginá-lo sem perdas a cavalo pela Avenida Infante Dom Henrique, ferraduras num prenúncio de enterro do que já está morto mas se esqueceu de fechar os olhos. Mas também elas, as pedras, se permitem a indiferença aos carros que passam sem olhar para os lados, buzinas em riste contra os transeuntes que não têm por onde atravessar, e nem se perguntam se haverá razões.

Viro as costas da mão ao rio, e demoro o meu indicador na esquina do Martinho da Arcada. Decido levantar-me, já me doem os joelhos, para ir em busca do Livro do Desassossego, encontrar no poeta que não mora mais no café a paz que não encontro no meu reflexo no vidro da foto. Sei de antemão o infrutífera que será a minha busca, e por isso mesmo esse livro.

02/04/2010

Oliveiras

Encontrei uma oliveira, num destes dias, das mais velhas e antigas a que já prestei atenção. Tenho dado comigo com apreço mais do que o normal por tudo aquilo que é não obviamente velho. Sei que esta oliveira em questão é antiga pelo estado do seu tronco, retorcido e rasgado, em processo claro de duplicação, fato que às vezes acontece às oliveiras, que entretanto sobrevivem graças às suas tenazes raízes. As torções do tronco, que conectam as oliveiras ao eixo de rotação da terra, encaram tempos que mais parecem eternidades como se fosse o cotidiano do dia a dia. E a separação em si próprias conclui estes milagres chamados oliveiras.


As almas podem ser como as oliveiras quando se separam. Podem torcer-se sobre si próprias, desfazer-se por dentro sem queixar-se, rasgarem-se por fora quando já quase nada parece existir internamente, e assim separarem-se em duas metades, troncos abertos em chaga seca, ligados por raízes que quem vê de fora sequer desconfia.


Com um tempo feito de muitos tempos, distanciam-se estas duas partes uma da outra, mães de si próprias nessa dupla significação que só o passar dos anos dará sentido. Afastam-se, dirigem-se para o vazio do campo em volta, pressentem os metros que construirão e galgarão entre si nos dias que virão.


Almas que são oliveiras criam-se em silêncio. Ninguém dá por isso. Não há caminhantes que à sua sombra queiram refrescar-se, encostados aos seus troncos em mutação. Estão sozinhas num mundo que sabem não lhes pertencer. Toda a sua magia passa desapercebida, porque andam sem serem vistas à flor da terra.


Almas oliveiras dão frutos que sem cuidados são amargos. Precisam ser colhidas, com um afeto às vezes enérgico, feito de sacudidelas que lhes derrubem as azeitonas, e assim dão-se generosas e amplas. Almas oliveiras vivem ao lado das outras almas sobreiros ou azinheiras, solenes nos campos de trigo que a vida doura e o tempo ceifa. Aos sobreiros chagam-nos de tempos em tempos, e às azinheiras esqueceram-se de lhes pentearem os ramos, e nada lhes resta a não ser apresentarem-se assim, cabeças enlouquecidas embaixo do sol abrasador. Só as oliveiras se dividem a si próprias, numa dor inaudível que as faz atravessar milhares de anos, testemunhas do estrago e do milagre das coisas que são eternas.


As almas oliveiras que conheço não me dizem nada, a não ser quando encontro uma destas oliveiras árvores e logo me lembro daquelas, silenciosas nos nossos encontros. No seu âmago vivem as árvores, e talvez seja por isso que através delas lhes veja o interior lentamente a transformar-se em pó.


As almas oliveiras sofrem com a distância que se autoimpoem. Não há o que as salve de si mesmas e do seu destino dividido. Sendo diferente, seriam elas próprias outras coisas, daquelas que menos ainda percebemos, por serem vulgares, comuns, cotidianas.


Gosto dos lados oliveira da minha alma, quando se desdobram e me dão a conhecer muitas outras possibilidades da mesma coisa, quando se ocupam daqueles que chegam depois de muito tempo ausentes, e encontram da minha alma um novo lado, que lhes dá novo alento, dizem, e assim continuam em frente, depois de um breve roçar de braços com leve aroma a passado. Os lados oliveira da minha alma permitem-se inspirar quando uma parte de mim já expira; com eles, vou enquanto volto, e saio ao mesmo tempo em que me aventuro pela porta de entrada. Às vezes quedo-me perplexa, mas dou graças a deus por tudo e por ser assim como é.


Penetro através dos lados oliveira da minha alma no que há de proibido em mim, lugares que impeço conscientemente que outros entrem - para que os lados oliveira da minha alma permaneçam vivos e não sejam impedidos de se dividirem sem que se perceba.


Gosto dos lados oliveira da minha alma, mesmo que lhes perceba o seu lado morte, mesmo que me doa por todos os lados a secura que se demandam para que existam. Gosto desses lados, e quando contemplo esta oliveira árvore diante de mim neste momento, ouço-lhe o murmúrio do desapego de si mesma e até do espaço e do tempo, porque ao abrir-se, ao fender-se, ao retorcer-se, abre a seus pés um abismo que nem o tempo nem o espaço farão diminuir, e as raízes tornarão perpétuo.

31/03/2010

Aos medos, comê-los

As Berlengas são umas ilhas minúsculas no horizonte da praia que me viu nascer e entrar no mar pela primeira vez. Em dias claros, veem-se com quase nitidez ao longe – estão distantes o suficiente para inspirarem sonhos suspensos em qualquer criança, mas não tanto que as milhas não se possam vencer em uma lancha de médio porte. Povoaram o meu imaginário durante muitos anos, enquanto não lhes pus os pés em cima, e continuaram a fazê-lo depois de as conhecer, por causa do forte que lá existe e da própria paisagem que ali parece ter se deslocado.

Minúsculas, em termos: uma delas chega a ser habitada, tem um farol e até uma fortaleza que hoje é roteiro turístico. Imagino que tenha uma importância biológica razoável, já que descubro que são reserva natural já há muitos anos, sem que eu o soubesse.

Lembrei-me delas porque pus-me hoje a cozinhar um polvo. Venci nestas últimas semanas o horror infantil que tinha a esse bicho cheio de ventosas e braços desarticulados entre si. E as Berlengas estão cheias deles, horrorizando-me com os seus movimentos sinuosos, esgueirando-se por entre as pedras e escondendo-se nas muitas cavernas que esse micro arquipélago tem. São pequenos e escuros, os polvos das Berlengas, e este que comprei, além de claro (provavelmente porque suas células não excretem mais o que antes o camuflava e escurecia), é razoavelmente grande – 1,5 kg, que é como manda a receita.

Meu horror foi vencido à força de garfo. Tive que comer, porque foi uma oferta e já se vê que oferta não se recusa, e como já tenho idade suficiente, não entrei em pânico nem em agonia, e até me dispus a apreciar o que todos me dizem, há anos sem conta, ser uma iguaria. Os que já se foram ficarão satisfeitos se me puderem ver agora, avental vestido, tesoura de corte em punho,a avançar em direção a esse cefalópode pronto a ser temperado e cozido e comido. Além de vencer o medo, aprendi a cozinhar o dito cujo, de uma dessas maneiras simples que tem a cozinha portuguesa, em que não são precisas medidas porque tudo é resumidamente “q.b.” (ou seja, quanto baste) ou “uma pitada”. Ainda bem que estou sozinha em casa, porque a minha intenção é preparar o jantar com carinho e dedicação, pensando nos convidados que aqui estarão logo mais, e desta vez preciso realmente de quietude e solidão absolutas, porque sei que mexo num medo ancestral que me vive dentro. Não sei o que Freud diria, mas acabar com ele desta forma parece bastante convincente. Fico pensando nos outros medos, nos dissabores da vida, e creio que tentarei fazer o mesmo com alguns deles: olhá-los de frente, mergulhá-los na água a ferver, passá-los pelas brasas de um carvão incandescente, espetar-lhes o garfo e mastigar até o fim cada uma das suas fibras rijas. Provavelmente resistirão, meus dentes se fartarão, mas, como a este polvo, quero inseri-los na minha própria carne, fazer-me de cada uma das suas moléculas.

Os convidados chegam e sentam-se. Polvo não é um prato comum, e eu espero que não sejam apenas atenciosos e se sirvam só para não me afligir. Mas não – repetem uma e outra vez, e assim, de vez, o meu medo aos polvos dissipa-se. Dividi-o com os meus amigos, contei-lhes o que se passa, e eles respondem ajudando-me nessa orgia atávica em que se mastigam todos os pavores temperados. Como já imaginava, dormi muito melhor esta noite, desacompanhada de pesadelos.

28/03/2010


Uma nesga de sol no Guincho

O Guincho é um dos lugares mais selvagens da costa de Lisboa. Já o foi mais, porque agora há muitos restaurantes, tradições de Cascais que mudaram de endereço – frangos assados com piripiri que se compravam lá e que agora se compram cá. Ainda assim, em dias como hoje, de vento, chuva e frio, no Guincho são as mesmas rajadas de antes que quase nos levantam do chão. Se viramos as costas à estrada, aos poucos carros que passam, e abstraímos os restaurantes instalados nos antigos fortes, são os elementos e mais nada a dizerem-nos uns da brevidade da vida, outros da sua inviabilidade. Que mais somos a não ser as folhas que o vento leva para longe das árvores?


No mar, algumas dezenas de surfistas arriscam-se junto às pedras. Lembram os barcos nos Açores, que atravessavam da Horta ao Pico com os motores desligados, a deixaram-se levar pelas vagas das águas que separam uma ilha da outra. Na volta, perto das pedras da ponta da Espalamaca, era um susto, um arrepio, seguidos das palmas aos grandes mestres navegantes que tripulavam as lanchas e as salvavam dos arrecifes e das escarpas.


O mar está hoje azul ao longe, cinzento aqui perto. As ondas rebentam nas pedras e molham-me os olhos. Sinto-lhes o gosto salgado e as pernas dobram-se-me – o gosto é diferente, é claro que sabe a sal e deve ser, já se sabe, das lágrimas de Portugal.


Dias depois, volto de bicicleta por esse mesmo caminho, agora ao sol. As vagas mantêm-se à direita. A subida não é íngreme, mas faz-me parar constantemente, para ver de perto as falésias. Gosto dessa palavra antiga, uma das pontas do que nos liga ao passado celta – falésias. Demoro-me muito tempo perto delas, porque me parecem ser feitas dessa palavra. Aquilo que sinto encostada a elas, em cima delas, olhando para elas, constrói-se exatamente com essas letras. Tudo o que sinto transforma-se em palavras sem que eu possa controlar. As ondas rebentam nas rochas íngremes, mil gotas de sal a molharem-me toda, num arrepio de mar gelado cujo destino é acordar-me. As pedras, enormes, impassíveis, testemunham o Tejo que se projeta em direção ao oceano.


Ao voltar tropeço nas plantas que sobrevivem nas rochas, provavelmente porque não o quero fazer, mas é preciso, já são horas de voltar para a realidade das pedras da estrada. Antes que o sol se ponha, corro até à entrada da Boca do Inferno, gruta desmoronada onde se chega por cima, e assisto mais uma vez ao espetáculo que maravilhou Aleister Crowley quando veio a Lisboa conhecer Pessoa – uma placa, hoje, assinala o dia de 1930 em que o mago inglês simulou aqui seu próprio suicídio. Uma outra atesta a coragem de alguém que perdeu a própria vida, há duas décadas, para salvar outros que estavam em cima destas rochas. Neste e em tantos outros promontórios, cabos e falésias país afora respira um povo que vive há séculos de frente para o mar. Assim que retomo os pedais da bicicleta, afasto-me sem pressa, querendo que este momento se mantenha presente, revendo mentalmente as palavras que agora, ao chegar, posso depositar no papel.