06/04/2010

Ser sozinho ou acompanhado?


Tenho às vezes a impressão de que uma vida quieta, calada e retirada faria a muitos mortais um imenso bem. Incluo-me nesse grupo, com a sensação de que há momentos em que me faria bem melhor do que o oposto estar-me sossegada numa espécie de espaço próprio solitário e vazio, estritamente delimitado e consequentemente protegido. Poupar-me-ia de alguns dissabores e pouparia os outros também dos pensamentos que me afligem e que, em vez de me desassossegarem a mim apenas, desdobram-se na direção dos que me ouvem. Nada disso é justo.
Mas é difícil, digo-me lúcida logo a seguir, porque provavelmente ficaria sem matéria. Lembro-me rapidamente de John Donne, de Hemingway como consequência, e se o segundo citou o primeiro, sinto-me no direito de citá-los a ambos: “Nenhum homem é uma ilha, sozinho em si mesmo; cada homem é parte do continente, parte do todo; se um seixo for levado pelo mar, a Europa fica menor, como se fosse um promontório, assim como se fosse uma parte de seus amigos ou mesmo sua; a morte de qualquer homem me diminui, porque eu sou parte da humanidade; por isso, nunca procures saber por quem os sinos dobram, eles dobram por ti”. Donne, poeta inglês do fim do século XV, escrevia isso na sua Meditação VII, e Hemingway pegou-lhe nas palavras literais em “Por quem os sinos dobram”. Thomas Merton, o padre católico que mergulhou na Ásia da primeira metade do século XX, usou a primeira frase para dar título a um de seus mais famosos livros: “No Man is an Island”. Deve haver mais e mais ramificações dessa noção tão básica, e eu deixo que todas elas me reconvençam lentamente. Meus pulmões dividem-se entre expirar e suspirar, e entretanto chega-me alguém à porta, pede-me um favor, pergunta-me alguma coisa; prova-me, com a exemplaridade simples do dois e dois são quatro, que tudo isso é verdade, e imediato, grotescamente imediato. O que me faz voltar a pensar que sim, que de fato a vida quieta e solitária viria a calhar, não fosse eu mesma autosabotar-me sempre nesse propósito, porque o convívio é como eu própria olhando para mim mesma, e eu gosto imensamente de vibrar na vibração alheia. É bom ter dúvidas, para tê-las dissipadas.
Sobre o que escreveria eu não fossem as ideias que me aparecem no meio de uma conversa, na hora de uma palestra, em meio a uma discussão que presencio? Há meses que decidi treinar-me em ausentar-me do que acontece ao lado cada vez que uma chispa de ideia me passa pela mente. Retraio o meu pensamento e uso o pouco que lembro do curso que fiz de leitura dinâmica para passar em revista todas as ideias que afloram num ápice. Enfio-as qual pérolas em um fio que consiga esticar diante dos olhos depois, ainda que nada tenha a ver com nada e esse fio dê origem a coisas tão díspares quanto polvos e solidão. Como por exemplo esta crônica, que nasceu de uma imagem que me veio um destes dias, em meio a uma discussão, de um ser grotesco com muitos braços inoperantes, daqueles que não atingem a sincronicidade mínima para se colocarem em movimento em direção a algum lugar pretendido. Dias depois consegui ver nessa imagem um polvo, nesse polvo a minha cozinha e nessa cozinha a salvação.

03/04/2010

Fotografia nova na parede da sala


Assim que me deram esta fotografia da baixa lisboeta, antevi as saudades que me provocaria assim que a colocasse na parede de casa. Vista de cima e a preto e branco, a cidade de Lisboa atinge-me muito mais fundo, porque contemplo-a em silêncio, não há nada visível da modernidade claustrofóbica que a atingiu, e eu posso beber da fonte que gosto, difícil de encontrar com os pés no chão. O quadriculado exato pombalino agrada-me mais assim, pelo contraste com os bairros castiços, à direita e à esquerda; Alfamas e Mourarias e Bairros Altos a atiçar o passado mourisco da cidade que tinha sete colinas, e as perdeu submersas em prédios todos iguais.

Uma sede de modernidade faz com que o tempo ande, o que é bom, mas impede que o passado se demore, o que não é tão bom. Como não estou sempre nesta cidade, e como ela faz parte do meu passado, sinto-lhe mais a parte negativa do que passou, à espreita atrás da porta das remodelações. Segue-se a traça original do desenho dos prédios, porque o orgulho do passado majestoso sobrepõe-se a tudo neste país em crise, mas é uma traça que difere sutilmente daquilo que era. Pode ser que sejam os materiais que se usam, as novas técnicas de construção  etc e tal. O fato é que o Cais das Colunas já não é o que era, que pena, quando andava em obras eternas que motivavam piadas e mais piadas e que agora se calaram porque perderam o sentido. Ou o Cais do Sodré, limpo e cheio das máquinas que nos facilitam a vida ao vender bilhetes em tantas línguas, enquanto nos fazem perder o ritmo do tempo que era o nosso, e que talvez pudesse continuar a sê-lo e quem sabe não seria a crise doutro tamanho e dimensão.

Lisboa provoca-me sensações ambíguas, provavelmente porque viva muita viva dentro do passado que lhe construí na memória. E dificilmente alguma coisa iguala a memória.

Isso faz-me pensar na memória seletiva que  se criou em mim e que se esquece contumazmente daquilo que parece não valer a pena lembrar, ainda que valha. À minha volta, lembram-se de muitas formas de eu mesma que eu nem sei existentes em mim. Começo realmente a ficar preocupada, porque por todos os grupos e por todos os lugares a situação repete-se, o que denuncia uma cronicidade que talvez venha a se transformar em distúrbio, se é que já não o é efetivamente. Lembram-se de momentos invulgares, aventuras que parecem saídas de um volume de ficção, anedotas em que me vejo refletida como se fosse outra, basicamente porque não me lembro, mas imagino até que assim possa ter sido, já que outros se lembram com tanta fidelidade e estranhamento quando os olho, com o meu próprio estranhamento de que seja de mim que falam.

Lisboa, hoje na parede de casa, um cacilheiro à vista no pedaço de Tejo que o fotógrafo imortalizou, há de lembrar-se eternamente. Sigo o percurso das ruas que gosto de calcorrear com a ponta do meu dedo e, se fecho os olhos, vejo-me lá. Sinto a brisa do Tejo antes de chegar ao Terreiro do Paço, e viro à direira numa ruazinha onde sei que vou encontrar omeletes acompanhadas por montanhas de batatas fritas, como gostaria um Kit Carson que aqui aportasse anacronicamente. À distância, divirto-me em percursos que posso inventar. Não há barulho nem fumaça de carros, nem sombra das eternas obras que não acabam de remodelar uma e outra vez esta praça. Além de ser das maiores da Europa, é a mais emblemática porta de entrada desta cidade, e ainda esquizofrênica como nós todos - não sabe se se chama Terreiro do Paço ou Praça do Comércio, e responde aos dois apelos feliz da vida por poder ser duas enquanto é só uma.

Os elétricos, neste meu sonho fotográfico, são dos antigos e deslizam pelos seus trilhos, às vezes com um barulho de freios que dói nos ouvidos e que hoje, embora mal se ouvisse, seria chamado de poluição sonora. Atrás do chiado que não se ouve, escuto as asas das gaivotas que pousam na estátua de D. José I, indiferentes à azáfama citadina. As pedras desta praça testemunharam o fim último da ditadura - vem-me à memória, que já se sebe seletiva, um Salgueiro Maia a libertar Lisboa do último baluarte salazarista e, como estou longe, posso imaginá-lo sem perdas a cavalo pela Avenida Infante Dom Henrique, ferraduras num prenúncio de enterro do que já está morto mas se esqueceu de fechar os olhos. Mas também elas, as pedras, se permitem a indiferença aos carros que passam sem olhar para os lados, buzinas em riste contra os transeuntes que não têm por onde atravessar, e nem se perguntam se haverá razões.

Viro as costas da mão ao rio, e demoro o meu indicador na esquina do Martinho da Arcada. Decido levantar-me, já me doem os joelhos, para ir em busca do Livro do Desassossego, encontrar no poeta que não mora mais no café a paz que não encontro no meu reflexo no vidro da foto. Sei de antemão o infrutífera que será a minha busca, e por isso mesmo esse livro.

02/04/2010

Oliveiras

Encontrei uma oliveira, num destes dias, das mais velhas e antigas a que já prestei atenção. Tenho dado comigo com apreço mais do que o normal por tudo aquilo que é não obviamente velho. Sei que esta oliveira em questão é antiga pelo estado do seu tronco, retorcido e rasgado, em processo claro de duplicação, fato que às vezes acontece às oliveiras, que entretanto sobrevivem graças às suas tenazes raízes. As torções do tronco, que conectam as oliveiras ao eixo de rotação da terra, encaram tempos que mais parecem eternidades como se fosse o cotidiano do dia a dia. E a separação em si próprias conclui estes milagres chamados oliveiras.


As almas podem ser como as oliveiras quando se separam. Podem torcer-se sobre si próprias, desfazer-se por dentro sem queixar-se, rasgarem-se por fora quando já quase nada parece existir internamente, e assim separarem-se em duas metades, troncos abertos em chaga seca, ligados por raízes que quem vê de fora sequer desconfia.


Com um tempo feito de muitos tempos, distanciam-se estas duas partes uma da outra, mães de si próprias nessa dupla significação que só o passar dos anos dará sentido. Afastam-se, dirigem-se para o vazio do campo em volta, pressentem os metros que construirão e galgarão entre si nos dias que virão.


Almas que são oliveiras criam-se em silêncio. Ninguém dá por isso. Não há caminhantes que à sua sombra queiram refrescar-se, encostados aos seus troncos em mutação. Estão sozinhas num mundo que sabem não lhes pertencer. Toda a sua magia passa desapercebida, porque andam sem serem vistas à flor da terra.


Almas oliveiras dão frutos que sem cuidados são amargos. Precisam ser colhidas, com um afeto às vezes enérgico, feito de sacudidelas que lhes derrubem as azeitonas, e assim dão-se generosas e amplas. Almas oliveiras vivem ao lado das outras almas sobreiros ou azinheiras, solenes nos campos de trigo que a vida doura e o tempo ceifa. Aos sobreiros chagam-nos de tempos em tempos, e às azinheiras esqueceram-se de lhes pentearem os ramos, e nada lhes resta a não ser apresentarem-se assim, cabeças enlouquecidas embaixo do sol abrasador. Só as oliveiras se dividem a si próprias, numa dor inaudível que as faz atravessar milhares de anos, testemunhas do estrago e do milagre das coisas que são eternas.


As almas oliveiras que conheço não me dizem nada, a não ser quando encontro uma destas oliveiras árvores e logo me lembro daquelas, silenciosas nos nossos encontros. No seu âmago vivem as árvores, e talvez seja por isso que através delas lhes veja o interior lentamente a transformar-se em pó.


As almas oliveiras sofrem com a distância que se autoimpoem. Não há o que as salve de si mesmas e do seu destino dividido. Sendo diferente, seriam elas próprias outras coisas, daquelas que menos ainda percebemos, por serem vulgares, comuns, cotidianas.


Gosto dos lados oliveira da minha alma, quando se desdobram e me dão a conhecer muitas outras possibilidades da mesma coisa, quando se ocupam daqueles que chegam depois de muito tempo ausentes, e encontram da minha alma um novo lado, que lhes dá novo alento, dizem, e assim continuam em frente, depois de um breve roçar de braços com leve aroma a passado. Os lados oliveira da minha alma permitem-se inspirar quando uma parte de mim já expira; com eles, vou enquanto volto, e saio ao mesmo tempo em que me aventuro pela porta de entrada. Às vezes quedo-me perplexa, mas dou graças a deus por tudo e por ser assim como é.


Penetro através dos lados oliveira da minha alma no que há de proibido em mim, lugares que impeço conscientemente que outros entrem - para que os lados oliveira da minha alma permaneçam vivos e não sejam impedidos de se dividirem sem que se perceba.


Gosto dos lados oliveira da minha alma, mesmo que lhes perceba o seu lado morte, mesmo que me doa por todos os lados a secura que se demandam para que existam. Gosto desses lados, e quando contemplo esta oliveira árvore diante de mim neste momento, ouço-lhe o murmúrio do desapego de si mesma e até do espaço e do tempo, porque ao abrir-se, ao fender-se, ao retorcer-se, abre a seus pés um abismo que nem o tempo nem o espaço farão diminuir, e as raízes tornarão perpétuo.

31/03/2010

Aos medos, comê-los

As Berlengas são umas ilhas minúsculas no horizonte da praia que me viu nascer e entrar no mar pela primeira vez. Em dias claros, veem-se com quase nitidez ao longe – estão distantes o suficiente para inspirarem sonhos suspensos em qualquer criança, mas não tanto que as milhas não se possam vencer em uma lancha de médio porte. Povoaram o meu imaginário durante muitos anos, enquanto não lhes pus os pés em cima, e continuaram a fazê-lo depois de as conhecer, por causa do forte que lá existe e da própria paisagem que ali parece ter se deslocado.

Minúsculas, em termos: uma delas chega a ser habitada, tem um farol e até uma fortaleza que hoje é roteiro turístico. Imagino que tenha uma importância biológica razoável, já que descubro que são reserva natural já há muitos anos, sem que eu o soubesse.

Lembrei-me delas porque pus-me hoje a cozinhar um polvo. Venci nestas últimas semanas o horror infantil que tinha a esse bicho cheio de ventosas e braços desarticulados entre si. E as Berlengas estão cheias deles, horrorizando-me com os seus movimentos sinuosos, esgueirando-se por entre as pedras e escondendo-se nas muitas cavernas que esse micro arquipélago tem. São pequenos e escuros, os polvos das Berlengas, e este que comprei, além de claro (provavelmente porque suas células não excretem mais o que antes o camuflava e escurecia), é razoavelmente grande – 1,5 kg, que é como manda a receita.

Meu horror foi vencido à força de garfo. Tive que comer, porque foi uma oferta e já se vê que oferta não se recusa, e como já tenho idade suficiente, não entrei em pânico nem em agonia, e até me dispus a apreciar o que todos me dizem, há anos sem conta, ser uma iguaria. Os que já se foram ficarão satisfeitos se me puderem ver agora, avental vestido, tesoura de corte em punho,a avançar em direção a esse cefalópode pronto a ser temperado e cozido e comido. Além de vencer o medo, aprendi a cozinhar o dito cujo, de uma dessas maneiras simples que tem a cozinha portuguesa, em que não são precisas medidas porque tudo é resumidamente “q.b.” (ou seja, quanto baste) ou “uma pitada”. Ainda bem que estou sozinha em casa, porque a minha intenção é preparar o jantar com carinho e dedicação, pensando nos convidados que aqui estarão logo mais, e desta vez preciso realmente de quietude e solidão absolutas, porque sei que mexo num medo ancestral que me vive dentro. Não sei o que Freud diria, mas acabar com ele desta forma parece bastante convincente. Fico pensando nos outros medos, nos dissabores da vida, e creio que tentarei fazer o mesmo com alguns deles: olhá-los de frente, mergulhá-los na água a ferver, passá-los pelas brasas de um carvão incandescente, espetar-lhes o garfo e mastigar até o fim cada uma das suas fibras rijas. Provavelmente resistirão, meus dentes se fartarão, mas, como a este polvo, quero inseri-los na minha própria carne, fazer-me de cada uma das suas moléculas.

Os convidados chegam e sentam-se. Polvo não é um prato comum, e eu espero que não sejam apenas atenciosos e se sirvam só para não me afligir. Mas não – repetem uma e outra vez, e assim, de vez, o meu medo aos polvos dissipa-se. Dividi-o com os meus amigos, contei-lhes o que se passa, e eles respondem ajudando-me nessa orgia atávica em que se mastigam todos os pavores temperados. Como já imaginava, dormi muito melhor esta noite, desacompanhada de pesadelos.

28/03/2010


Uma nesga de sol no Guincho

O Guincho é um dos lugares mais selvagens da costa de Lisboa. Já o foi mais, porque agora há muitos restaurantes, tradições de Cascais que mudaram de endereço – frangos assados com piripiri que se compravam lá e que agora se compram cá. Ainda assim, em dias como hoje, de vento, chuva e frio, no Guincho são as mesmas rajadas de antes que quase nos levantam do chão. Se viramos as costas à estrada, aos poucos carros que passam, e abstraímos os restaurantes instalados nos antigos fortes, são os elementos e mais nada a dizerem-nos uns da brevidade da vida, outros da sua inviabilidade. Que mais somos a não ser as folhas que o vento leva para longe das árvores?


No mar, algumas dezenas de surfistas arriscam-se junto às pedras. Lembram os barcos nos Açores, que atravessavam da Horta ao Pico com os motores desligados, a deixaram-se levar pelas vagas das águas que separam uma ilha da outra. Na volta, perto das pedras da ponta da Espalamaca, era um susto, um arrepio, seguidos das palmas aos grandes mestres navegantes que tripulavam as lanchas e as salvavam dos arrecifes e das escarpas.


O mar está hoje azul ao longe, cinzento aqui perto. As ondas rebentam nas pedras e molham-me os olhos. Sinto-lhes o gosto salgado e as pernas dobram-se-me – o gosto é diferente, é claro que sabe a sal e deve ser, já se sabe, das lágrimas de Portugal.


Dias depois, volto de bicicleta por esse mesmo caminho, agora ao sol. As vagas mantêm-se à direita. A subida não é íngreme, mas faz-me parar constantemente, para ver de perto as falésias. Gosto dessa palavra antiga, uma das pontas do que nos liga ao passado celta – falésias. Demoro-me muito tempo perto delas, porque me parecem ser feitas dessa palavra. Aquilo que sinto encostada a elas, em cima delas, olhando para elas, constrói-se exatamente com essas letras. Tudo o que sinto transforma-se em palavras sem que eu possa controlar. As ondas rebentam nas rochas íngremes, mil gotas de sal a molharem-me toda, num arrepio de mar gelado cujo destino é acordar-me. As pedras, enormes, impassíveis, testemunham o Tejo que se projeta em direção ao oceano.


Ao voltar tropeço nas plantas que sobrevivem nas rochas, provavelmente porque não o quero fazer, mas é preciso, já são horas de voltar para a realidade das pedras da estrada. Antes que o sol se ponha, corro até à entrada da Boca do Inferno, gruta desmoronada onde se chega por cima, e assisto mais uma vez ao espetáculo que maravilhou Aleister Crowley quando veio a Lisboa conhecer Pessoa – uma placa, hoje, assinala o dia de 1930 em que o mago inglês simulou aqui seu próprio suicídio. Uma outra atesta a coragem de alguém que perdeu a própria vida, há duas décadas, para salvar outros que estavam em cima destas rochas. Neste e em tantos outros promontórios, cabos e falésias país afora respira um povo que vive há séculos de frente para o mar. Assim que retomo os pedais da bicicleta, afasto-me sem pressa, querendo que este momento se mantenha presente, revendo mentalmente as palavras que agora, ao chegar, posso depositar no papel.

26/03/2010

Dia de chuva em Lisboa

Saio à rua para distrair-me, das assombrações que batem à porta. Faz frio e chove – uma chuva miudinha e persistente; a tentação de andar sem guarda chuva é grande, e eu não lhe resisto. Depois, vejo que péssima ideia, porque estou encharcada de um jeito sutil, miudinho tal qual esta chuva que cai e se entranha até aos ossos sem que eu perceba. Lisboa é assim: deixa-se andar, a sol ou a chuva, sem que se percebam de antemão os problemas. Depois, quando chegam, é praticamente sempre tarde – as caravelas já se foram, os heróis estão enterrados, deixaram-nos a sós com os seus despojos de vida. Museus abarrotados de coisas que já não são nossas, porque estamos longe de ser aqueles que fomos. Na verdade, foram outros que o foram; não passamos de cópias mal feitas daqueles que queríamos ter sido.

Vou até à estação e apanho o comboio. O Cais do Sodré continua no mesmo lugar e pela mesma calçada de sempre subo pela Rua do Alecrim acima. Passo os olhos pelo Camões, que lá continua também no mesmo lugar, mas mais limpo do que me lembro. O meu destino é o Chiado, onde me quero sentar para ver se, desdizendo a memória seletiva que cada vez mais percebo em mim, me lembro de como era.

Sento-me na mesma cadeira que Pessoa talvez tenha ocupado muitas vezes e deve ser a sua inspiração que me faz pensar em ir almoçar ao Martinho da Arcada, espécime raro de restaurante que sobrevive aos séculos, lá embaixo no Terreiro do Paço - mas lá começou a chover outra vez e eu fico-me por aqui.

Gosto de estar aqui, no Chiado, em missão contemplativa das horas a passar. Não sei por quanto tempo, Pessoa também não o sabia, e o que vejo difere bastante daquilo que ele via. Isso se olho pra fora, porque aqui dentro é diferente. Os que estão aqui sentados, nas mesmas cadeiras de palhinha e às mesmas mesas de mármore, parecem parados no tempo, porque a modernidade fica sentada lá fora, fotografando a estátua que fizeram em bronze, imortalizando algo que já não é mais e não passa de uma anedota que não vale a pena. A mania das glórias passadas é um dos passatempos preferidos dos lisboetas. E os turistas logo se encantam com a superfície, e esquecem-se de ir pelas vielas escuras e pelas calçadas sem fama.

24/03/2010

De Lisboa, uma destas noites

As Portas de Santo Antão, ao lado do Rossio, abrigam uma das mais antigas e populares casas de espetáculos de Lisboa, o Coliseu dos Recreios. A poucos passos lá está o teatro Dona Maria (com um incrivelmente bem representado Édipo Rei para o qual, por mais que apele, não consigo bilhetes...), edifício sério e nobre, tão pintado de fresco que até parece falso. O Coliseu abriu as portas na Lisboa de 1890 com a intenção de ser um espaço acessível ao povo, com preços baixos e espetáculos variados, que nessas décadas que nos separam da inauguração variaram de concertos, shows e óperas a apresentações circenses com elefantes e camelos. Bem em frente está o Politeama, o mais famoso teatro de revista em Lisboa (em cartaz, nova versão de A gaiola das loucas), e em volta mil e uma tasquinhas populares, cheias de bifanas e pregos e outros petiscos, a centenária “Ginginha sem rival” e outras portas, na maioria das vezes pequenas, que os lisboetas ocupam profusamente, seja lá que dia da semana for. Hoje, como em outros tempos, apesar de ser uma quarta feira, as ruas estão cheias de gente que vai ao teatro. Chegam mais cedo para petiscar alguma coisa, beber uns copos e encontrar os amigos, ruidosos e animados, a mandarem vir mais um jarro de vinho tinto da casa ou mais uma imperial, acompanhados de uns pastéis de bacalhau para enganar a fome. O importante é pedir a bebida primeiro, logo se há de ter tempo para o conduto, que é como o meu pai se referia à matéria mastigável. Em todas as tascas há sopa – e eu adoro as sopas desta cidade, e por muito que o resto me tente, fico-me com uma sopa juliana e logo a seguir uma sopa de couves temperada com hortelã, que é o segredo que lhe dá o cheiro que vem a voar, como num desenho animado, desde a cozinha pequena ao fundo do corredor que é esta tasca. Acabo a correr, porque já são horas.


O Coliseu está cheio, não há mais lugares e eu sorrio satisfeita por ter encontrado ainda alguns bilhetes para ver o espetáculo de hoje: Joan Baez ao vivo e a cores. Há muitos anos que não entro no Coliseu – exatos 27. Quem ocupava o palco naquele dia era Zeca Afonso. Cantava em público pela última vez, diante de uma plateia emocionada por sabê-lo de antemão perto do fim. A esclerose lateral amiotrófica que o consumia (mesma doença com que luta Stephen Hawking) evidenciava-se, mesmo para quem o via longe do palco, e levou-o 3 anos e bastante sofrimento depois. Começou, lembro-me, com um dos mais bonitos fados de Coimbra (“Do Choupal até à Lapa”) e aos poucos lá veio em direção ao Alentejo e levou-nos a todos às lágrimas com a Grândola Vila Morena que marcou o incrível ano de 1974.


O Coliseu de hoje está recuperado, obedecendo ao movimento que fez com que, nos últimos anos, Lisboa inteira pareça ter se preparado para uma festa. As galerias e os camarotes encontram-se remoçados e mais bonitos, tudo pintado; todos os bocais do grande candelabro, famoso à altura da inauguração, ostentam as lâmpadas que em outros tempos faltavam.


Assim que entra, Joan Baez canta logo uma das suas novas músicas, mas é impossível que se fique por aí, e logo chegam as que são eternas, as que todos queremos ouvir, mesmo que ela possa estar farta de as cantar. Vem um Joe Hill primeiro, Diamonds and Rust logo após, a seguir Forever Young... Com um papel na mão e um "Cantem comigo" no mais puro american english, oferece-nos a mesma Grândola do Zeca, e o Coliseu levanta-se em peso e canta tão alto que não a conseguimos ouvir. Alguém grita “25 de Abril sempre” e eu descubro que sou eu, e só por dentro, a adivinhar o que todos estão a gritar dentro de si próprios porque perdeu o sentido fazê-lo do lado de fora.


De onde estou, privilegiada que sou nestes dias de poder sentar-me em um camarote, vejo a plateia toda em pé, todos os camarotes cheios, consigo adivinhar todas as lágrimas. Joan conduz a música inteira (cantá-la inteira exigir-lhe-ia mais português do que tem), seguida de outras da mesma época, o Coliseu inteiro às portas dos tempos áureos de Woodstock. Ela ajuda, porque canta como cantava, toca como tocava, e não há nada entre ela e nós além das cordas do seu violão. À saída todas as idades se encontram à porta, cheias de sorrisos e de esperanças.


Amanhã com certeza o céu estará todo azul.