30/07/2009

Do que não é lúcido

Há uns anos atrás, nem tantos se considerarmos a imensidão do oceano comparada a uma gota d’água (meu pai gostava de dizer isso, antes de tornar-se incapaz de falar), tive a sorte imensa de visitar muitos dos meus poetas favoritos. Alguns, foram-no apenas na altura, mas muitos deles vão permanecer nos meus lugares mais iluminados até o fim dos dias, creio.

Essas visitas não foram coincidências, porque eu realmente sentia a urgência do conhecimento, e de fato no espaço dos dois anos seguintes mais da metade deles morreu, o que me explica a tal da urgência. Todos eles eram já bastante velhos (o que me exime de qualquer responsabilidade), e para essas conversas eu lancei mão, aconselhada pela minha querida irmã, de uma máquina fotográfica.

Máquinas fotográficas produzem-me o mesmo efeito que os livros que carrego escondidos em sacolas para encontros desse tipo – envergonhados uns e outros, ficam-se onde estão, apenas espreitam para ver se têm a sorte de serem descobertos. Só nessas circunstâncias é que fazem a sua aparição, e pedem muito timidamente ora um clic, ora um autógrafo. Nenhum destes meus visitados percebeu a sua existência, e por isso eu não guardo nenhuma lembrança iconográfica desses dias tão cheios de sorte. (Para ser bem sincera, o único que me perguntou pela máquina, o caboverdiano Manuel Lopes, gostava muito de ser fotografado, e justamente nesse dia eu esqueci-me de levar a dita cuja.)

Em vários desses momentos me aborreci comigo mesma, “que disparate de falta de segurança em si própria, isto não tem graça nenhuma, tira lá a fotografia e põe-te a andar...”, mas depois fiquei na dúvida, talvez como consolo – será que eu devia mesmo lamentar a ausência desses registros? Passados os anos, fui chegando aos poucos à conclusão de que talvez tenha sido uma benção, dessas que nos acompanham vida afora e sobre as quais precisamos urgentemente recuperar a capacidade de admiração absoluta, para poder reconhecê-las quando acontecem, e não anos depois.

A imagem, parece-me hoje, poderia turvar-me a memória do real, fazer-me o que faz essa foto que tenho de mim pequena, no zoológico de Lisboa, olhando extasiada um imenso hipopótamo, algo que se parece remotamente com a primeira lembrança que (acho que) tenho da vida, mas uma lembrança de certa forma poluída pela imagem da polaroid do meu pai. Desta outra forma, só com o que me vem mal fecho os olhos, posso repetir a sensação de estar na mesma sala com a que (para mim) é a maior de todas as poetas, vendo-a (atônita) acender um cigarro atrás do outro ao longo de horas, muitas vezes deixando-o a arder sozinho no cinzeiro de prata, sentir-lhe dolorosamente a demência da senilidade instalada, conversar por isso com ela como se realmente eu fosse a sua sobrinha (e porque não?), vê-la esperar ansiosa pela mãe morta há mais de 40 anos. Foi enterrada passados poucos meses, e provavelmente nesse dia deva ter se alegrado com a (a)final chegada de sua mãe.

Mesmo assim, mesmo completamente fora do foco lúcido, continuou nessa tarde escrevendo à minha frente, com a mão livre do cigarro desenhando as letras no ar, como se tivesse uma tela diante de si e a colorisse com a escolha exata das suas palavras. Seu tema manteve-se o jardim e, do lugar onde se senta, ainda posso ver-lhe os olhos azuis opacos demorarem-se na glicínia em flor – “foi meu filho que a plantou, e ela cresceu tanto em um só ano”, ainda a escuto dizer. A flor da glicínia é azul como os seus olhos, ouço-me balbuciar e ela olha-me espantada, como se não me imaginasse capaz de o fazer. Não sei o que dizer, muito menos o que fazer, e devo estar com as mãos irrequietas – ela manda-me à cozinha, buscar-lhe um copo de água, mas primeiro me adverte a passar pela sala de jantar e reparar no magnífico azulejo que seu marido trouxe ontem à tardinha. O marido faz companhia à mãe há algum tempo. E eu vou à cozinha imaginando que bem poderia salvar-me deste roteiro insano o filho jornalista dessa poeta, a quem admiro também, inclusive pelos olhos. Não consigo focar meu próprio pensamento, lembro-me de ter pensado, tanto tempo à espera deste dia, e aqui estou feito uma tonta, sem conseguir eu também dizer coisa com coisa.

Volto e a minha irmã foi-se. Está no jardim, diz-me a empregada que entretanto apareceu,e logo atrás dela o filho outro, azulejista de profissão e com um passado e presente psiquiátricos que a sua agitação delata (eu dediquei tanto tempo a esta poeta que sei-lhe detalhes literariamente insignificantes como esse, lembro de ter-me ocorrido).

Pelo resto da tarde fico-me em silêncio a seu lado, vendo a tarde entardecer para além do Tejo que se vê à esquerda da janela de portada, linhas antigas desta casa secular. Ela diz algo aqui e ali, percebo as imagens que a escalam, que a engolem, que a atormentam e aprisionam em si mesma. O seu mundo é mais o delas que o nosso, e creio que tenta desesperadamente construir uma estrutura que mantenha os dois unidos, ainda que tão frágil e precariamente quanto o faria uma fina teia de aranha.

Por perceber isso, tiro do meu bolso as folhas de poemas que trouxe na esperança de que os lesse, e decido lê-los eu mesma em voz alta. E sinto-me num templo, e falo cada vez mais baixo, e entro tanto naquilo que eu própria escrevo que demoro a perceber que ela saiu do lugar que ocupava e sentou-se ao meu lado no sofá de grandes flores estampadas. Ela não me diz nada, mas quis-me parecer que o azul de seus olhos estava menos opaco e que de alguma maneira eu lhe devolvi um fio da sua esfrangalhada teia, e transportei-me com ela a qualquer lugar que não é nem este, nem o outro, antes aquele da sua provável origem, feito de sons e de sensações tornadas Palavra.

Esse encontro transtornou-me aquela semana inteira, deixando-me imprestável para qualquer outra coisa, e eu demorei muito tempo a refazer-me desse contato com o outro lado do mundo. O outro lado do mundo de alguém que percebo dentro de mim, o outro lado de alguém que me falava como se eu mesma me falasse, portanto meu outro lado do outro lado de mim.

Não tenho grandes medos na vida, mas não há ser humano de verdade que não alimente ao menos algum receio. O de morrer louca, como já me previu uma cigana que lia mãos em Sevilha e me mostrou seriamente esta minha linha da vida que acaba numa forquilha em ambas as mãos, e que eu vejo à espreita, se olho a linha materna da minha família, é provavelmente o que eu me lembro de ter há mais tempo, ainda que com o passar dele eu tenha chegado à conclusão de que isso pode ser uma vantagem. Sobretudo se considerarmos a cada vez maior variedade de loucuras às quais podemos sucumbir. Pode ser que seja uma questão de administração adequada, e pouco mais.

Mas essa tarde com ela fez subir a maré desse medo, uma maré que quase me afoga e me inutiliza. Imaginar-se louca é uma coisa; ver-se, outra bem diferente. Naquela tarde, algo em mim ficou entre um estágio e outro, suficientemente lúcida para poder ver a inevitabilidade da falta de lucidez.

Por isso, e porque realmente em nada valeria a pena, fico feliz de não ter nenhuma fotografia desse encontro. Talvez não tenha sido assim, talvez tenha sido pior, e eu prefiro guardar, dela, a imagem que tenho dos seus olhos a meu lado, procurando em desespero a reentrada no mundo que eu ainda habito, e do qual ela se despede lentamente a contragosto.

Dos talismãs

Gosto muito de guardar coisas. Não necessariamente durante muito tempo, mas muitas delas, guardadas, descobri poderem transformar-se em talismãs de textos. Guardo-as às vezes longamente e um dia, de repente como hoje, despertam-me uma vontade imperiosa de escrever.

Foi exatamente isso que aconteceu, nesta manhã, com um bilhete pequeno, manuscrito, daqueles à toa aos quais quem escreve pode não ter prestado nenhuma atenção. Guardei-o, essencialmente, porque nele meu nome está escrito de uma maneira que me aquece e reconforta. Posso redesenhar dentro de mim todos os movimentos de alma que a sua primeira visão me descobriu. As suas linhas fluidas e imaginativas despertam-me tantas, mas tantas possibilidades, que se o soubesse quem o escreveu talvez tivesse usado uma olivetti antiga. Ou não... quem sabe!?

Tenho pena de não ter prestado atenção ao meu avô quando muito entusiasmado queria me contar sobre seus estudos de grafologia... Mesmo não entendendo o que significa esse traçado diferente das três letras do meu nome, fico-me nesse bilhete, e demoro-me, enamorada das linhas que o desenharam, reparando na forma distinta que assumem ao escreverem o resto do bilhete, mera formalidade sem traço de nada.

Essas pequenas coisas, quando tenho tempo, preenchem-no. Uma vez li numa biografia da Florence Nightingale que os devaneios infantis acompanharam-na por toda a vida. Certamente o que me aproxima desse bilhete está muito perto de um devaneio, embora o teor não seja infantil, e fico pensando se a solução para o atendimento médico da guerra da Crimeia, e os movimentos heróicos da primeira dentre todas as enfermeiras, terá sido filho ou neto de um devaneio. Agrada-me a ideia, porque assim quem sabe o meu devaneio pessoal, que nada tem eu sei de heróico, tenha também uma chance de se perfazer concreto.

Curto, este texto? É para se parecer com o bilhete.

28/07/2009

Dos amigos virtuais

Há dias atrás falei de Adbid, aquele marroquino dono de camelos que conheci brevemente via skype. Uma menção assim tão especial a um “conhecimento de fundo tão breve e fortuito” (as palavras não são minhas, e por isso as aspas em torno delas) deixou meu amigo João Pedro incomodado. O nome é fictício, que eu não quero expor ninguém, embora isso fosse difícil, porque o João Pedro entra naquela categoria pode ser que bizarra de amigos virtuais. Tenho poucos destes amigos (e na verdade resisto um pouco a chamá-los assim, contudo se não o fizer aqui certamente o João Pedro cortará relações comigo, mesmo que de qualquer forma a questão com ele seja outra), mas é interessante o que mantenho com eles. Não sei se de fato são quem dizem, chamam como dizem chamar-se, vivem onde dizem viver ou fazem o que declaram fazer. Podem ser qualquer coisa que queiram, e eu também posso imaginá-los da maneira que eu quiser, e ainda por cima imaginar-me e declarar-me a meu bel prazer. Não me parece que, de maneira simplista como alguns gostariam, sejam necessariamente pessoas solitárias, daquele tipo que não consegue manter amigos de carne e osso, relacionar-se com os outros presencialmente etc e tal. Eu faço parte deles, a bem da verdade, e não me considero assim um ser anti-social.

O João Pedro, por exemplo, escreve poesia e é o máximo que consigo saber realmente dele. Não vi fotos, nem quero, não sei seu msn nem skype nem nada que sugira que bate-papos informais possam surgir. Não lhe conheço orkut, facebook ou twitter. O nosso contato restringe-se aos emails que nos mandamos, depois de um pedido de leitura e opinião de poemas, numa lista de discussão sobre literatura marginal.

Mas o João Pedro ficou incomodado por ainda não ter sido motivo de uma crônica (enquanto que o fortuito do Abdib sim), numa súbita manifestação de ciúmes que eu só consigo mencionar aqui, no anonimato de um nome fictício, porque ao vivo e a cores e através de seu email pessoal seria o fim da nossa amizade. O João lê estas crônicas no blog, e por isso nem precisa sentir-se realmente mencionado, pode ser que nada disto seja de fato real, e assim não há ninguém para se chatear. Pode ser que ele nem seja ele, nem eu, eu mesma, e que afinal apenas estejamos todos resolvendo pendengas síndicas de outras encarnações nesta daqui, via virtual para economizar tempo e espaço.

Os amigos virtuais têm sobre os mortais comuns a vantagem de parecerem sempre prestar muito mais atenção em nós do que os segundos. A tudo respondem, sobre tudo opinam, e parecem felizes pelas mensagens que mandamos e ansiosos pelas que se seguirão. Para quem escreve, é um prato cheio. Tudo passa pelo campo da ficção, pela invenção de nós mesmos se nos der na telha, pela fabulação à qual estamos irremediavelmente – sorte nossa – votados, pela nossa condição humana. Um dos textos de que eu mais gosto do Antonio Cândido, aquele curto “sobre a necessidade da arte”, fala dessa fabulação, e do quanto ela é elemento constitutivo indispensável ao ser humano, do quanto (leitura minha, é possível que eu esteja fabulando as palavras do mestre...) é preciso que encontremos a fabulação no dia a dia, e a aceitemos tal qual é, para nos humanizarmos no sentido mais profundo. Esses amigos virtuais, podendo ser qualquer coisa, e nós para eles idem, permitem-nos uma invenção pessoal que transcende a franja do que a minha avó chamaria de “razoável”. No limite, pode gerar esquizofrenias e desajustes sérios, mas não mais sérios do que aqueles que as nossas relações sociais falsas e hipócritas geram há já bastante tempo.

O mundo virtual, aliás, auxilia-nos na exposição diária, e mesmo amigos que o são no dia a dia e com quem nos encontramos entra semana, sai semana, conseguem refugiar-se de si mesmos nos pequenos textos que a internet guarda e envia – percebo isso pela quantidade de mensagens que recebo sobre estes textos que escrevo, muitas delas revelando lados, cantos, arestas e sensações de muitos que vivem ao meu redor e que de repente se iluminam diferente através das suas mensagens. No sigilo que a escrita pessoal garante. São outros quando escrevem, mas um outros que os torna mais eles mesmos.

Outro amigo, este pouco virtual, bastante palpável e real, embora nos vejamos mais na caixa de entrada de mensagens do que de outras formas, diz-me às vezes, sucinto, simples, direto e seco como só ele sabe ser, que “pô, ana, nisso aí vc viajou na maionese, hein?”, para indicar-me isso mesmo, a viagem do pensamento além do considerável. Aperto a tecla do “enviar” neste momento com a impressão nada vaga de que ele voltará a usar esse lugar comum do qual tanto gosta (e abusa, já lhe disse isso!) como comentário a esta crônica.

27/07/2009

Clima

“Estranha toda esta chuva em julho” – por todos os lugares por onde passei neste mês, se houve algo que os uniu foi esse comentário pela boca de vários. Literalmente, falar do tempo - que é o que pessoas costumam fazer quando não têm muito o que se dizer umas às outras. Ou não querem: o clima é um bom aliado na tarefa de nos escondermos dos que estão em volta.

Eu sinto por vezes falta de conversas de verdade, e talvez essa falta seja no fundo de poder olhar para o outro dentro dos olhos, daquele jeito em que chegamos a ver refletida na pupila alheia a nossa própria imagem – e isso sem manobras discursivas, é algo para ser literal. É uma sensação e tanto, sobretudo se pensarmos que o mesmo acontece com o olho do outro, que se vê refletido em nossa pupila, permitindo um defloramento de alma cheio da única intenção de obedecer à vontade de conhecer o interlocutor. Por dentro e de verdade. Não é a mesma coisa que sustentar o olhar, veja bem, que essa é tarefa de quem está perdido em si mesmo e por isso precisa sustentar alguma coisa de seu quando olha o outro, para não ser invadido onde não quer. Essa história de pupila vem lá de dentro, de onde a razão apenas arranha para entrar.

No meio de toda esta chuva, é difícil achar as pupilas dos outros, e não consigo saber se a falta é minha ou das circunstâncias. Avançar para dentro dos outros é tarefa difícil, delicada, arriscada, com muitas chances de ser abortada quando se imagina já ter completado a missão.

Demanda certo clima.

Às vezes, encontramos olhos que não procurávamos, e recuamos assustados pela invasão inesperada. Outras, são os outros que fogem, pelas mesmas razões. É preciso uma sincronia profunda e uma empatia sincera, uma abertura interna que nos permita, através desse ponto luminoso no espaço da nossa anatomia, sermos um pouco do outro, sem barreiras e sem receios. É uma entrega poderosa, que se mantém durante semanas viva na memória e não admite preconceito.

Nestas férias, fiz-me de algumas pupilas, e hoje, numa espécie de cômputo geral do mês (gosto disso, das retrospectivas valorativas, deve ser um vício ou um engodo, quem sabe uma dobra de caráter), fico feliz com o resultado, e decido registrá-lo por escrito. Logo me imobilizo, porque, se penso muito, deixo de perceber o quão sutis foram esses encontros, quase mal dou por eles, precisei do cômputo geral para perceber de verdade. O quanto passou despercebido aquele, o quanto me incomodou aquele outro, ao qual fugi, covarde de mim mesma.

Fico imaginando de que maneiras estas trocas e estes encontros foram conscientes no outro – será que percebem o que eu percebo? Porque também é dessa matéria, esses encontros: o ser volátil e diáfana (venho há semanas querendo usar essa palavra com propriedade). Conversar sobre ela (matéria), a obrigaria a se desfazer no ar, e de tão incongruente desapareceria até da memória.

26/07/2009

Mistache malabona

Devo agradecer a meu avô e a seus estudos de esperanto essa expressão que a família inteira adotou, há décadas, para definir um estado de espírito que nos ataca e não tinha, até então, definição exata na nossa própria língua. Sei que meu avô me dizia que se tratava de “estar chateado, aborrecido, de baixo astral, algo deprimido”, mas convenhamos que dizer “Ai... mistache malabona” é muito mais claro e expressivo do que “estou um tanto deprimido...”. Se eu não tivesse acabado de descobrir que essa expressão na verdade não existe em esperanto (eu era mais feliz sem esses dicionários online...), continuaria esta crônica, sinceramente, menos estarrecida, mas vai assim mesmo, e passo a entender simplesmente que meu avô fez algumas adaptações suas ao esperanto que estudou. Considere que mistache malabona é mesmo estar assim meio chateado, seja lá em que língua for, e pra frente.

Eu nunca compreendi muito bem (e, que eu saiba, ninguém na família o fez) essa fascinação súbita mas duradoura do meu avô pelo esperanto. Comprou um curso de auto-aprendizagem, da Reader’s Digest salvo erro, tipo de compra que ele adorava fazer porque chegava pelo correio e não era preciso perder tempo em lojas, correndo ainda o risco de ganhar um prêmio em forma de livro ou disco, como as valsas completas de Strauss que motivaram minha avó a me ensinar a valsar pela sala de casa em manhãs de sol fresco.

Meu avô começou a estudar, afincada e organizadamente. De vez em quando, contava algum detalhe – cada vez sabia mais, julgo que tenha realmente aprendido a língua de fio a pavio, mas eu continuei sem entender a razão daquilo. Dizia-me que era porque um dia essa seria a língua universal, e ele queria poder comunicar-se com todos. Mas, primeiro (pensava eu em silêncio, para não lhe diminuir o entusiasmo), demoraria até que isso acontecesse, ele era o único na cidade inteira a aprender esperanto, ele sabia disso, o que faria com que demorasse, e eu tinha consciência do tamanho da juventude do meu avô; segundo, ele não era assim o tipo de pessoa interessada em conversar com os outros e conhecê-los mundo afora, nem sequer inglês ele tinha querido aprender!, e sempre me dizia que era melhor não brincar com os vizinhos e ficar em casa bem quietinha, que os outros era só para quando realmente preciso (acredite, eu obedecia, e por isso, se não tive vários heterônimos como Pessoa na sua infância, tive uma porção de amigos imaginados); e, terceiro, não havia ninguém que ele conhecesse que sequer estivesse pensando em aprender essa língua,com quem é que ele ia treinar conversação? (Se esta última ponderação parecer elaborada demais, é só esclarecer que eu tinha uma mãe que me dizia que a coisa mais importante para aprendermos outras línguas era cuidarmos da conversação.)

Pois meu avô aprendeu esperanto mesmo nunca tendo falado nessa língua com ninguém, e eu acho que ele se sentia melhor e mais inteiro por isso. Na mala de poemas e outros escritos que me ficou de herança em testamento quando se foi, e que eu guardo numa das prateleiras mais altas da biblioteca de casa, lugar das coisas com as quais eu ainda não descobri o que fazer, há vários poemas em esperanto (confesso que depois do dicionário online, eu começo a duvidar...), sem tradução, que um dia eu deverei reunir e levar a alguém que saiba essa língua dotada de esquecimento. Pelo menos vou poder entendê-los, quem sabe traduzi-los, e fazer com que o esperanto do meu avô, afinal, encontre ouvidos para ouvi-lo.

(Eu ia terminar aqui, mas acabei lembrando de outra das palavras de uso corrente na família. Não lhe sei a origem, só falta ser do esperanto do meu avô – embora, depois de descobrir que a que dá título a este texto não o é, passo a ter certeza de que esta segunda menos ainda o será! Meu pai usava-a bastante, quando queria referir-se a algo que era quase bom, mas estava longe de agradar. Algo que quisesse muito fazer-se, mas que nascia já sem os apetrechos necessários para valer a pena. Algo assim “fracativo”.)

(E eu ia terminar de novo, mas pus-me a rir com os dois xingamentos preferidos do meu pai, que estão aqui vindos do passado e ressoando nos meus ouvidos: estafermo e estupor. Nada de esperanto ou invenção de membro familiar, puro lusitanismo. E ainda é preciso imaginar-lhes o acento lisboeta, embora meu pai fosse coimbrão.)

Abdib

Provavelmente acontece com todo mundo. Às vezes meu skype quer apresentar-me a criaturas que me acenam sabe-se lá de onde com um pouco sedutor “Oi, adicione-me à sua lista de contatos!”. Normalmente ignoro-as a todas sem peso nenhum de consciência.

Uns dias atrás, no entanto, alguém de nome Abdib acenou-me com um “Sou marroquino, tenho oito camelos e gostaria de conversar com você”. Além de gostar bastante de Marrocos, dar de cara com alguém que quer conversar e que tem oito camelos (sobretudo os camelos) não foi assim um lugar comum, e deu-me vontade de saber quem era afinal esse sujeito.

Abdib realmente tem oito camelos, sua fonte de subsistência, e logo me alertou sobre a conversa dele ser séria e ter a única intenção de conhecer alguém que vivesse no Brasil. Disse-me morar a oeste do monte Atlas, e que a sua ocupação profissional é a de guiar turistas que querem aventurar-se pelo deserto, fazendo pequenos ou grandes passeios em camelo pelas areias saharianas. “Hum...”, pensei eu, “muito menos exótico do que esperava.” Mas, há anos de olho em Timbuktu, ao sul do Atlas e já em terras malinesas, logo me animo, ao olhar para o mapa da África que tenho atrás do computador: “Abdib, quanto se demora, de camelo, de onde você vive até Timbuktu?”. Ele ri-se, com o mesmo rsrsrs que nós usamos por aqui, viva a globalização linguística!, e diz-me que “muito tempo, mais de 45 dias, será melhor você ir de avião de Bamako até lá”. Pena, penso eu, de camelo seria com certeza mais divertido, mas realmente 45 imensos dias é tempo que eu definitivamente não consigo ver à minha disposição exploradora tão cedo.

Timbuktu faz parte do universo imaginário de qualquer pessoa que tenha pensado seriamente na vida dos povos do deserto. Ponto final da rota dos mercadores que viajavam desde o Nilo (pegue seu mapa múndi, a distância é impressionante e inóspita!), fervilhou de gente de grande parte do mundo não europeu durante séculos e séculos, basicamente até à chegada daquele. O sal e o ouro eram as grandes e mais bem sucedidas trocas, e a sua proximidade com o rio Níger deve também ter tido a sua influência para a sua fama. Quando eu era pequena, uma das minhas brincadeiras favoritas era desaparecer numa hipotética viagem de trem para Timbuktu, onde me esperava uma grande missão evangelizadora, para a qual eu trabalharia e na qual eu adquiriria a mesma doença que a minha tia Teresa, paludismo, só que numa mutação muito mais séria e letal, é claro. (Paludismo, descobri anos mais tarde, vem a ser o mesmo que malária, mas a doença da minha tia parecia-se mais com a sonoridade do primeiro.) De lá tão longe, voltava horas depois cansada e ansiosa por um banho, para tirar de cima toda a areia impregnada durante anos sob o sol escaldante do deserto e escapar ao frio congelante da noite. Minha avó devia rir, mas ajudava-me a manter a grande aventura até à hora do jantar, quando lamentava que só houvesse uma canja, um pouco de pão, e que o carneiro (iguaria que um dia ainda comerei deliciada em Timbuktu) tivesse acabado com os últimos viajantes que ela tinha abrigado. Eu sempre agradecia, humildemente, como devem fazer todos os viajantes que sejam acolhidos por uma tenda itinerante no meio do Sahara.

(Anos depois, quando me descobri às voltas com um mestrado que insistiu em se deter muito perto do mesmo Sahara, mas agora em Cabo Verde, passei meses sentindo o Sahel soprar inclemente desde o deserto, atravessando as águas atlânticas para atormentar essas ilhas com o seu calor sufocante. Sem nunca ter posto os pés no arquipélago, de tanto que o sonhei em forma tipográfica, consigo sentir-lhe a angústia dos meses de seca e a imensidão dos sonhos perdidos no mar aberto. Jorge Barbosa, o poeta, é um infatigável ajudante para quem, como nós comuns mortais, não pode viajar sempre que quer.)

Hoje, imagino eu, Timbuktu deve viver atrelada às lembranças de um passado glorioso, perdida em si mesma e com poucas chances de se libertar ou reabilitar. Lisboa dá-me um pouco a mesma sensação, com o seu apogeu quinhentista ainda vivo nas paredes reconstruídas de um Terreiro do Paço ou uma Casa dos Bicos. Minha arquitetura interna alerta-me – ao seguir por esta trilha, em breve sucumbirei à melancolia que o dia de chuva de hoje prenuncia desde que amanheceu. As cidades que me habitam, como um Ítalo Calvino que me assumisse, pedem que feche essa porta, para que não transbordem. É melhor saber um pouco mais do meu marroquino.

Abdib mora num oásis (não consegui guardar-lhe o nome), e diz-me ser um tuaregue; por isso ainda hoje sente dificuldade em permanecer no mesmo lugar durante muito tempo. Seus filhos vão à escola, aprendem o Alcorão, e assim é preciso fixar-se em um lugar. Diz também que, graças ao misericordioso Alá, há bastante turismo na sua região, franceses e belgas, como sempre, mas também muitos japoneses, e por eles pode sair durante uma ou duas semanas com seus camelos, levando-os até à fronteira com a Argélia. Conta que, nesses dias, e assim que os estrangeiros param de falar e escutam o silêncio do deserto que se impõe imenso, ele se sente finalmente em paz, como nunca consegue sentir-se quando está no seu oásis, mesmo rodeado pelas pessoas a quem ele mais ama.

Termino a conversa com Abdib prometendo-lhe que sim, que assim que me decida à viagem sonhada ao Mali, hei de mandar-lhe um e-mail, para que quem sabe possamos nos conhecer também pessoalmente – a sua família e a minha, porque Abdib, além dos oito camelos, tem três mulheres e 15 filhos. Imagino que tanto ele quanto eu saibamos que esse e-mail dificilmente será escrito, e não porque eu não tenha intenção de voar até o Mali. Esses encontros que delimitam a solidão de cada um não podem refazer-se, sob risco de se perderem as verdades que só o são enquanto não nos aproximamos demais, enquanto podemos manter o anonimato dos nossos desejos. Seu oásis, seus camelos e as imagens desérticas que as suas palavras fizeram crescer em mim precisam delimitar-me por dentro; a sua confrontação palpável com a realidade dar-me-ia a exata medida do quanto não tenho mais nenhum braço de avó que compreenda, como o poeta, “que o sonho comanda a vida”.

De todos os nossos fogos

Nestas noites de frio, dá-me logo vontade de acender os três fogos que tenho sob o meu alcance. Nada que ajude muito a situação ambiental calamitosa do planeta, mas às vezes eu cedo à tentação, e desfruto desta situação privilegiada em que me encontro, senhora de três possibilidades ígneas.

Começo pelo fogo do fogão de lenha, que me cozinha por dentro, tanto que, às vezes, preciso quase entrar dentro dele para soprar as brasas que se acumulam nessa caverna escura que é sua câmara de queima. Arde lentamente, esquenta a água, cozinha o arroz e o feijão, assa a torta de banana dentro de seu forno, prepara os aromas que em pouco tempo enfeitam toda a casa. Às vezes deixa cair uma das suas madeiras em chamas, e o chão perto dele já está marcado, de tantas que caíram e demoraram a ser percebidas. Sempre se deixa acender, sem demora e sem resistências – esse é o fogo que domina o centro da minha casa, e junto a ele congregam-se os filhos meus e dos outros, seus amigos, os meus e os conhecidos de ambos. A bancada de madeira que o protege por trás pode apoiar hoje um copo de vinho, amanhã quem sabe um cotovelo, no meio de uma conversa a meia luz, nessas horas em que o melhor é manter uma penumbra protetora,l que nos proteja de nós mesmos, nossos desejos, nossas querências.

O fogo que acendo na lareira, junto à parede da sala que neste mês se tornou da cor das laranjas ao sol poente, abre-se ao mundo sem medos nem cinzas a esconder; as suas labaredas passeiam atrevidas pelos meus olhos, salamandras mutantes desejosas do inspirar de sonhos. As madeiras que se entrelaçam, para que o ar circule, misturam-se sem reservas, quase promíscuas no compartilhar de seu mútuo calor. O fogo da lareira acolhe tudo o que lhe lançam: papéis perdidos pela sala, feitos de anotações de jogos noturnos, números e contas em profusão alucinada; retalhinhos de papel de balas furtivas, das não permitidas; restos do jornal de domingo esquecido (ou guardado?) debaixo do sofá, dias atrás. Aglutina-se e resolve os impasses que possam trazer as diferentes substâncias, e no fim consome-as todas, transformando-as em sua própria substância.

Mas é lá fora, no frio da noite e na noite escura, que ardem as fogueiras. Essa, que acendo enquanto espero, traz-me a desacomodação do ter de sair lá fora, pra fugir da corrente de vento que enche os meus olhos de fumaça e levanta as cinzas de ontem, deixando-as todas a flutuar à minha volta, e eu sozinha perdida entre elas. As chamas elevam-se com mais voracidade, e são fáceis de alimentar: qualquer tamanho, qualquer forma, qualquer quantidade é bem vinda e acolhida. Posso vê-lo, a este fogo, confundindo-se com as estrelas, nessas pequenas fagulhas incandescentes que se levantam e alçam vôo por cima do círculo de pedras que determinei para esse arder. Dormir junto a esse fogo, com essas estrelas todas como teto, não é difícil, e aninhar-se e deixar-se levar pelo ruído sibilante, pelo marujar suave de tudo o que queima, consola e embala os mais poderosos sonhos. Quando acordo, invariavelmente ainda é noite, e mais uma vez percebo que esse fogo, como qualquer outro, apaga-se se não alimentado, nutrido, acarinhado e, sobretudo, percebido.

Por entre os que me levam da fogueira à cama, tenho tempo para guardar, num recanto da minha mente consciente, que o melhor de tudo é poder manter acessos os fogos que escolhemos como legados, e que por isso se tornam responsabilidade nossa. É preciso ter certeza de que os mantemos aquecidos, prontos para entregar ao outro quando ele chegar. Muitas vezes é isso que esse outro procura – um fogão de lenha para o corpo, uma lareira para a alma, uma fogueira para o espírito.


Das pastas e das malas

Eu não gosto de fazer malas. Por muito que goste de viajar (e eu gosto), fazer malas é sempre um processo angustiante, como se a certeza de não levar o que deveria me atormentasse do começo ao fim, e a grande vontade fosse de não precisar carregar nada mesmo. Já desfazê-las, é uma delícia – voltam desorganizadas e cheias das pequenas bobagens que vou colecionando pelo caminho, porque lá no fundo sempre tenho a intenção de fazer um diário de viagem bem documentado, com todos os tickets de todos os museus e de todos os ônibus e trens que se usaram pra ir de um lugar ao outro, as contas de cada lugar onde comi, arrastando atrás de si as escolhas do cardápio do dia. Ficam um tempo por cima dos móveis, essas lembranças, todas juntinhas num montinho; depois, migram para alguma pasta que aparece do nada, que se junta a outras num outro monte, ao qual se agrega a poeira diária. Diáfana, ia eu acrescentar, mas é redundância sonora demais, e eu hoje acordei concreta, como devem acordar as pessoas que vão viajar e precisam organizar mil pequenos nadas que podem ser urgentes, mas estão longe de serem importantes.

Diário assim planejado eu só consegui concretizar uma vez, depois de uma viagem à Califórnia. Romaria de visita aos muitos parentes de minha mãe (todos emigrados dos Açores para terras americanas, desejosos e esperançosos da possibilidade de se tornarem sobrinhos do tio Sam), a lembrança mais persistente na minha memória ainda é o quase-tombo da minha mãe, desequilibrada na sua enorme mochila ao encarar uma imensa escada rolante no aeroporto – a escada era imensa provavelmente só naquela altura, mas a mochila continuaria hoje enorme, porque realmente era grande. A ajuda que tivemos de um senhor simpático e atencioso, muito simpático e atencioso mesmo, rende-nos até hoje umas tantas gargalhadas. Mas é estranho, convenhamos, que essa seja a primeira e quase única lembrança viva dessa viagem. É por coisas assim que é bom fazer esses diários, tudo fica mais justo.

Hoje estou sem pressa para viajar (os filhos ressentem-se desse meu estado algo letárgico...) e posso ir em busca do diário dessa viagem. Dentre as muitas coisas que parecem desnecessárias e eu guardo, encontra-se esse caderno. Só que é graças a ele que eu posso lembrar-me do museu de cera de São Francisco; do pôr do sol sobre a baía, que me deixou sem fala e sem fôlego; da máquina 2-em-1, de secar e lavar, da tia Francisca, que no espaço de tempo que me levou tomar banho e jantar, lavou toda a roupa de uma viagem pontuada pelo acampamento improvisado na casa de uns e de outros; da primeira vez de um Kentucky Fried Chicken, que até hoje não consigo recuperar em termos de paladar; e a surpresa por tantos homossexuais sentindo-se e agindo livres. Acho que eu tinha 13 ou 14 anos de idade na altura, e Portugal, mesmo democrático e incorporado às nações livres do mundo, não tinha me acostumado a essa sensação diferente.

Preciso recuperar as lembranças de outras viagens. Pensando nisso, e previdente com relação ao futuro que se aproxima ao virar da esquina desta viagem de hoje, lanço da mão da pilha desequilibrante de pastas na prateleira à qual não dediquei muita atenção na arrumação feita. São as pastas das viagens que me acompanham ao longo do ano, e que eu tento não se repitam e se descubram diferentes a cada visita. Não é fácil, porque só o fato de se guardarem em pastas etiquetadas faz com que se imobilizem no tempo, e me contagiem com esse sentimento que a duras penas suporto. A subversão é a melhor medida, e é por isso que, ao abrir a que se denomina a si mesma “Trovadorismo”, dou logo de cara com um poema do Ivan Junqueira... Pelo menos passo a pensar no que poderia eu mesmo estar pensando quando entendi que este poema do nosso contemporâneo e carioca Ivan tinha uma relação assim tão estreita-evidente-possível com algo saído da pena de um galaico-português Nuno Fernandes de Torneol, e isso atapeta a minha fuga do óbvio redundante e da mesmice de todo dia.

Por tudo isso, na viagem desta semana, decidi pôr no carro todas essas pastas-viagens. Ocupam quase metade do porta-malas, entre lembranças de vida e vidas de lembrança. Espero, nesta que suponho ser a última escapada destas férias, dar sentido a esses pequenos não sentidos das minhas pastas. Que, ao voltar, e ao abrir qualquer uma delas, possa encontrar de fato lá dentro o que a etiqueta externa me anuncia, sem ao mesmo tempo negar-me as surpresas. Que não se misturem mais, nas minhas pastas, a objetividade realista com o devaneio romântico, a austeridade parnasiana à audácia decadentista. Que ao abrir a pasta das “Alegrias” seja incontestavelmente alegre seu conteúdo, que a das “Expectativas”, além de se manter escassa e quase vazia, não me deixe a sensação ambígua do gosto amargo do boldo, que a das “Memórias” me alegre com mais de muitas, e que todas elas (alegrias, expectativas e memórias) possam traduzir-me neste semestre que já anuncia o fim do ano.

E as crianças suspiram aliviadas porque parece que, afinal, vamos mesmo partir!

21/07/2009

Das sopas

Hoje de manhã levantei-me com a perspectiva de fazer duas sopas para alimentar as pessoas que convidei para jantar em casa à noite. Esses dias vêm encontrar-me invariavelmente animada e cheia de energia – cozinhar para os outros provoca-me essa comichão de prever e antecipar os encontros, de curtir cada instante dentro da cozinha que, em outros dias, daqueles cotidianos, desanima só da gente passar perto da porta. Quando há coisas especiais a fazer, a vida enfeita-se de outros tons!

São boas oportunidades, essas dos convites, também para limpar, varrer, lavar e arrumar a casa – e a família, embora às vezes lance um suspiro coletivo quando aviso que “a propósito, convidei algumas pessoas para almoçar/jantar/lanchar...”, alegra-se com essa ventania de arrumação que, de repente, me sacode. No fundo, no fundo, sei que todos gostam desse movimento, e gostam das pessoas chegando e das conversas acontecendo. Mas faz parte da encenação com a qual também nos divertimos.

Assim foi nesta manhã: as sopas fumegando no fogão de lenha, a cozinha naquela temperatura morna que chama todos pra perto, as maçãs assadas aproveitando o calor do forno. Como o fogão de casa tem serpentina por onde circula, esquentando-se, a água, os lavadores de louça de plantão têm ainda mais essa alegria: água quente pra lavar a louça, que mesmo em dias de comilança coletiva não deixa de ser deles. Ou às vezes, para bem da verdade, até deixa, porque há convidados simpáticos que em duplas assumem a tarefa, aproveitando o momento para uma conversa especial a dois.

Uma das sopas baseou-se numa engenharia necessária a quem faz listas de compras detalhadas e as esquece em casa, tendo depois de lembrar-se de cada coisa e saber que provavelmente esquecerá a metade. Desenterrei mais uma das receitas da minha bisavó (sua sopa de peixe) e descobri que, dos vários ingredientes, faltavam-me apenas quatro – porque a lista, de fato, ficara em casa. No meio da azáfama de cortar cebolas, tirar as espinhas aos peixes e cortar bem miudinhos os coentros, passa-me pela cabeça que mesmo não estando na receita, um vidrinho de leite de coco viria bem a calhar... Passa-me pela cabeça porque dentro do armário ele acenou-me entusiasmado, desejoso de mergulhar naquele caldo aromático que assomava da panela grande. Lá foi, e o resultado confirmou as suspeitas de que faria sentido. Essa imprevisibilidade das receitas, que precisam dialogar com as sensações que vão sendo despertadas pelo que se faz, é uma benção do ato de cozinhar, e vale pra refletir sobre outras coisas - se não, nem falaria disso aqui!

A escolha da panela também obedece a movimentos da alma. Quem me conhece sabe que o souvenir máximo é uma panela – o que mais trazer de Morretes, que uma panela de cozinhar barreado? O que mais das areias de Itaúnas, que uma outra de barro legitimamente capixaba? Da casa da vizinha que se mudou pra outros mundos, e decidiu antes fazer aquela venda de suas pequenas e grandes coisas que não caberão na mala, o que escolher parta manter a sua presença em casa? E dos confins de Minas, onde um senhor nos mostra no torno a sua arte de fazer panelas? Ora pois, diriam meus conterrâneos: panelas! Quando escolho uma delas, evoco esses momentos e eles enfileiram-se todos diante de mim; ao escolher, sei que escolho aquelas magias pequeninas das coisas que ficam na memória porque significam. Um prazer a mais!

Prometi um caldo verde a um dos convidados, e junto à panela da sopa de peixe, com mexilhões a boiar escarlates, vem aninhar-se uma menor (a do senhor de Minas), com as batatas já cozidas amassadas ao garfo, como recomenda minha mãe ao telefone (ela também saboreando o jantar a milhas de distância, lá onde caldo verde é prato do dia a dia). A couve responsável pelo verde do caldo virá depois, facilitada pela mais recente aquisição em terras cariocas – um legítimo cortador de couve de feira comprado ali perto da Barata Ribeiro.

Viagens não são viagens sem sua contra parte gastronômica – comer por onde se anda, sobretudo se é o que as pessoas do lugar usam para se alimentar, é engolir a cultura do lugar, como queria Oswald de Andrade fazer com o mundo da cultura alheia, antes de incorporá-lo deglutido ao nosso tupiniquim. É claro que demanda atenção e intenção, porque senão é como comer qualquer coisa em qualquer lugar. As sopas de hoje à noite levarão para dentro das pessoas a quem quero bem todas as alegrias e lembranças que esta manhã de cozinha fez assomar em minha alma. As montanhas de Minas e as praias do Espírito Santo estarão em momentos dentro de todas elas, ainda que não o saibam. As minhas intenções de leveza, de alegria, de encontros que se repitam e imprimam tatuagens coloridas nas almas de todos nós, também farão parte, em poucas horas, da corrente sanguínea que regue cada uma das células destes meus amigos.

Com este pensamento, deixo esta crônica por aqui – há ainda outras coisas que lembrei de fazer... Palitos de pão, frito no azeite bem quente, já experimentaram?! Acompanhamento fantástico para qualquer sopa, desde que quente!

Bom apetite a todos, neste dia 21 de julho!