03/07/2015

No prelo 1

Ao levantar-se da mesa, Joice apoiou-se na quina. Fechou os olhos com força e a tontura foi-se. Olhou para o lado para ver se ele reparara, mas ele estava absorto, aquela cena tão lugar comum de quem está ao lado perdido em distâncias pessoais. Deu quatro passos na direção da porta e virou-se para entrar no quarto.

Agarrou a maleta guardada debaixo da cama, pronta para caso necessário de fuga à meia noite. Pena afinal ser de dia, pensou. Deslizou os olhos pela cama, pelas venezianas semiabertas, pela luminosidade a escorrer pelas frestas. A brisa fazendo tremer a beirada da cortina branca. A colcha de flores cada vez mais miúdas. Em pouco tempo só restaria o branco.

Voltou à sala e olhou-o ainda uma vez. A expressão igual à de sempre, zombeteira no canto suspenso das sobrancelhas, a frase feita não seja boba, sente-se aqui ao meu lado, vamos, porque não pode dar-me o que quero e parar de fazer cena? Paira no espaço, essa coisa que se espalha pelo pescoço de Joice como grade. Pensa nas meias penduradas pelo fio. Nas plantas em volta das foices no quintal. No reflexo do espelho na claustrofobia do amanhecer. E a atmosfera densa abate-se do teto ao chão, madeira descascando verniz velho. Joice abriu a porta e saiu, antes que caísse sobre ela.

Susteve o último passo, ainda a ocupação com o outro. Mas o teto está no mesmo lugar, como ele à mesa, alheio, porque nada daquilo é dele. E Joice respira do fundo das vísceras e dentro da maleta os cadernos chacoalham como pedras do caminho. 

Uma a uma, meses depois, Joice retirou-as de dentro da maleta, as páginas parecendo pétalas desfolhadas e secas, pálidas e trêmulas no início da leitura, descarnadas em pouco tempo. É assim, o seu relato, entre o pálido, o trêmulo e o descarnado. E é a ela que este livro dá forma, na primeira pessoa. É ela, Joice, a mulher que escreve do fundo.

continua...






Imagem: Prensa de Gutenberg, o que legou a multiplicação.





02/06/2015

Dois apontamentos sobre Africa Africans

1) Tenho um amigo pintor, talentoso que só, com quem aprendo muitas coisas. Dia desses, disse-me que, considerando-se a ignorância, a mediocridade pode ser um grande avanço. Ontem mesmo, ofereceu-me mais uma afirmação: só há duas coisas pelas quais somos responsáveis, a atitude e a quantidade. A qualidade não nos pertence. Ora bem.

À entrada da exposição Africa Africans, que ocupa um espaço amplíssimo do Museu AfroBrasil, há uma sala de "artes primeiras". Esse é o termo que o curador Emanoel Araújo muito bem usou, numa forma de arrastá-las para longe dessa mania que temos de chamá-las de primitivas, e assim relegá-las a um confortável pano de fundo sem contornos atuais.

As "artes primeiras" são aquelas que, na minha prática pedagógica, por vezes intimidam, por vezes assustam, tem aqueles a quem repugnam, como que são repelidas pelo nosso senso "ocidental" de olhar o mundo. Deixar-se entrar nos domínios dessas "artes primeiras" é sair da ignorância. E, enquanto não se chega a outro lado, estaciona-se na mediocridade. Que é aquele estado em que começa a saber-se que o saber é infinito, incomensurável, plural, irrestrito, livre e dinâmico. E, assim que se começa a entrar nesse outro domínio, não há como: algo transforma e modifica a nossa atitude. E, assim, dá-se um passo adiante da mediocridade - e que passo!

Já a quantidade vem com o tempo, seu aliado. A seguir a essa sala das artes primeiras, começam as obras dos artistas contemporâneos. Prefiro assim, sem o epíteto "africanos", que eu não atino a saber qual relevo signifique. Basta-me o contemporâneo. Mesmo que me aflore uma dúvida se estaremos, mesmo, ocupando um mesmo tempo, ainda que variados espaços.

Passo pelas fotografias impressionantes de Alfred Weidinger, retratos de reis de olhos únicos. Ando devagar e sem rumo definido - um ar de caos muito particular que tem este museu, e que me encanta sempre, porque ser único e múltiplo ao mesmo tempo. Paro diante dos corpos que se interpenetram, um por dentro do outro, outro por fora do um, do daomeano Rémi Samuz. Não há ruídos, são muitas falas, neste seres sem rosto e nem carne. E elas são minhas. E suas.

2) Caminho pelas ruas desta cidade grande. A África está em todo lado. Dentro e fora do museu. Por dentro das pessoas. Por baixo delas. Em volta, acima e embaixo. Entrar no museu ajuda a ver a vida. Ajuda a perceber-se vida. A encantar-se com o poder de leitura, digestão, substanciação e alimento que um ser humano oferece a outro ser humano.

Caminho pelas ruas e vejo a África em cada pedaço de chão. Porque ela é, mais do que está. Assim como esses artistas, de lugares tão distantes quanto Gana ou Madagascar, me estão, nos lugares da alma que reservo com ardor àqueles que, saindo a passos largos da mediocridade, entram nesse lugar para onde gosto de olhar, e que se chama verdade humana.

São eles que nos afastam da mediocridade. São eles que nos agarram as mãos e nos transformam os horrores em sonhos. Porque os sonhos engravidam-se e essas mãos que se precisam surgem de onde menos se espera. Talvez seja para isso que a arte existe - porque nos torna mais humanos, como bem disse Antonio Candido, mas também porque nos torna menos medíocres, menos ignorantes e mais capazes de afeto.




Africa Africans
Museu Afro Brasil/Parque do Ibirapuera/Portão 10
Visitação até 30/8/2015 Patrocínio Companhia Paulista de Parcerias – CPP, Odebrecht, Itaú Realização Museu Afro Brasil, Governo do Estado de São Paulo – Secretaria da Cultura, Ministério da Cultura – Lei de Incentivo à Cultura

Imagens
Painel de Hector Sonon, do Benim, à entrada da exposição Africa Africans.
Rémi Samuz, do Benim
Bruce Clarke, da Inglaterra/África do Sul
Fotografias de Cândido Ribeiro







25/05/2015

Segunda feira

Plena manhã de segunda feira. Acordo com uma estranha e inquietante vontade de rotina. De que o dia se organize sem a minha particular intervenção. Que não precise exercitar essas dádivas que hoje me cansam só de lembrar, pensar no que é preciso fazer, quero-ou-não-quero, devo-ou-não-devo. Só uma coisa, e depois outra, e depois mais uma, cada uma com tempos e lugares e formas estabelecidas em algum tempo que não seja hoje. Uma rotina, por favor.

E eu não sei acordar desse jeito. Não sei dialogar com essa urgência. E parece-me melhor descobrir de onde vem, e quem sabe acalmar o espírito.

Pois rotina, na realidade, é muito o contrário do que pensamos.

Só há rotina quando algo é rompido - por isso seu ancestral linguístico é rupta - um caminho aberto à força. Não nos é natural a rotina, porque não nos é natural querer romper. (Começo a gostar do que encontro.) E o princípio da rotina exige que abramos caminhos à força, que nossos braços se ocupem em rumpere - em quebrar, em romper.

E lá estamos nós com o tal caminho aberto à força. E começamos a trilhá-lo uma e outra vez. Os franceses ocuparam-se em transformar aquela rupta em route, ou seja, rota. Em pouco tempo, de tanto trilhá-lo, porque deve ter sido mais fácil do que andar pelos lados intransitáveis, nova metamorfose: de route, routine - uma trilha batida, um curso costumeiro de ação. Agora, sim, a velha conhecida rotina.

Essa vontade que nos dá, muito repentinamente, de querermos uma rotina, é no fundo uma vontade enganosa. Parece que o que queremos é o encontro de um trilho, e de por ele seguir com ilusório conforto, sem precisar pensar muito a respeito. Mas não.

É outra coisa.

É querermos abrir caminhos novos com a força da nossa vontade. Esteja essa vontade nos braços, nos pés, nas mentes ou dentro do nosso coração. Algo em nós clama por rotina: algo em nós clama por transformação e possibilidade. 

E assim se começa uma segunda feira, descobrindo que por trás do que se quer há muito mais do que se pensa.

07/05/2015

Anatomia da metade

Tem gente com horror a metades. Metades de frutas. Metades de chocolates. Metades de pães na chapa. Se me pedem "me dá uma metade" a minha tendência é dar tudo. Ou não dar nada. Ninguém merece metades.

E nem eu. Por isso insisto em viver inteiros. Os inteiros me atraem. E as metades me espantam. Passei muitos anos sem saber que existiam aqueles que se conformam com metades. Esses, também me espantam.

Quem procura metades, deixa outras metades abandonadas do lado de lá. Quem queira a vida do lado do inteiro, que venha e bata à porta: abrir-se-á automaticamente, será um susto talvez, mas é que inteiros querem-se inteiros e querem inteiros ao seu redor. Doam-se todos, ou não se doam nada. Abrem-se todos, ou não se abrem nada. É uma via de mão dupla, aliás - a doação precisa de dois lados, a abertura a mesma coisa. E deve ser assunto importante, porque de Pessoa a Gullar, e ainda Clarice e também Montenegro, cada um por inteiro e a seu próprio modo, disseram coisas sobre o assunto. 

Não há receitas para ser inteiro. Em compensação, há uma porção de desculpas para se ser metade. Voilá.

O pior talvez é quando a metade não é a do lado esquerdo ou direito, mas a metade de cima. A que boia à superfície, ponta de iceberg à espera do mergulho que constate a enormidade do que vive por baixo. A metade da superfície é coisa pouca, bobagem, veja bem. Tem quem se contente com ela, e mesmo sentindo no estômago a ânsia do mergulho, respira como ser educado para não ser inteiro, e carrega seus todos pedaços de um lado ao outro, de um mar ao outro, de uma mesa à outra. Pedaços são como farrapos, e farrapos são espécimes em estado de esgarçamento. Merecem nossa compreensão, mas raramente a nossa presença. O risco é de contágio.

Pior ainda são as metades que nos arranca a vida. As que perdemos pelo caminho e precisamos voltar, e recolher, tratar, cuidar, alimentar e fazer reviver. As que se furtaram às armadilhas e ficaram combalidas, como velhos voltados da guerra, alucinando nas madrugadas com medo das bombas prestes a explodir aos seus pés. Os pés dessas velhas metades precisam de afeto. De paciência, de ouvido, de afago. E de quem os ajude a andar sobre seus próprios passos, e reencontrar as partes que faltam, as metades tão importantes que as velhas senhoras em carruagens de ouro levaram à sua passagem prometendo o que jamais cumpririam.

Mas ainda as há piores. Há as metades que ficaram à espera. Ficar à espera, para uma metade, é um estado sombrio. Porque a metade que está à espera não sabe que a sua espera é inútil. Que aquilo que a outra metade alcançou, ela jamais alcançará. Essa metade torna-se invisível - e a tal ponto, ao fim de um tempo, que a metade visível se convence ela mesma de que a outra não existe. E, aí sim, é o fim. Porque as metades precisam da visita da luz do sol e do olhar do outro, que são na verdade a mesma coisa, parecendo serem coisas diferentes.

Com a passagem das horas, não há dia que não nasça. Não há semente que não cresça - a não ser aquelas caídas por engano em meio às pedras, e mesmo essas podem recuperar-se, se forem valiosas a ponto de valerem o tempo de voltar e recolhê-las. Porque as coisas inteiras, quando as suas metades se reencontram, espalham calor e conforto ao seu redor, e é de muito conforto e calor que os corações de todos nós precisam.


28/04/2015

Um pouco de inutilidade

L. anda cansada. Caem-lhe as pálpebras por cima dos olhos ao tentar ler um parágrafo daquele livro que jura estar amando ler. A boca escancara-se em bocejo assim que se senta para assistir qualquer coisa em uma tela, e o corpo amalgama-se ao sofá com uma velocidade surpreendente. A culpa é tua, diz, esse documentário lento, em preto e branco... Andamos todos cansados, digo-lhe. E calo-me. Há pouco a dizer agora.

Eu ando cansada das notícias, internas e externas, e da sensação de incapacidade de realizar qualquer coisa que faça algum sentido. Que ponha fim a alguma dor. Vulcões no Chile e terremotos em Katmandu imobilizam-se dentro de uma gruta fechada - essas são palavras de L., não minhas. As minhas chegam na sequência: O que posso, e faço, é voltar-me para o legado das palavras. Às vezes as coisas inúteis são as que nos salvam da crueldade à solta pelo mundo. (Mas dizes que os vulcões são cruéis?! Não, L. Na verdade já estava falando de outras coisas. Acho que te perdeste entre os teus pensamentos e os meus. Sim, tens razão, somos um emaranhado e às vezes é difícil saber quem pensamos o que. Ou quando. Ou por que. Ou... L. por favor cala-te um pouco, deixa-me sozinha com o que penso. Sim, desculpa.)

Mas então eu falava das coisas inúteis. Como a toponímia. A toponímia é um ramo da onomástica, aquela ciência que a tudo dá nome, de mim a você, à sua rua, à maternidade onde você nasceu e ao cemitério onde será depositado. A toponímia dá nome a lugares, e estuda-lhes a origem e a evolução. Tem um pezinho na etimologia, e também se relaciona com a geografia, a história, a arqueologia. Essas coisas que se ligam a outras até se embrenharem a ponto de nunca mais se desvencilharem são muito entusiasmantes, L. 

Pois precisei hoje desta palavra (não me interrompas) para dar a um texto encomendado um ar mais culto e sério. Em vez de "o nome dos rios", fui à procura de algo mais exato. Pensei que topônimo seria já bastante preciso. Mas não. E isso porque a precisão é algo que nos foge dos dedos como água misturada a areia fina. É difícil ser preciso. É uma conquista conseguir ser preciso. Accurate, como dizem os ingleses, diz L. Sim, accurate.

Descubro uma sequência de nomes que com certeza vai povoar a minha noite. Hidrônimos. Limnônimos. Talassonônimos. Orônimos. Corônimos. Uns dão nomes aos rios, outros aos lagos, os terceiros aos mares e oceanos, os seguintes aos montes e outros relevos e os últimos às subdivisões administrativas e de estradas.

Levo para dentro de mim os limnônimos. Digo a palavra em voz alta, enquanto L. fecha os olhos para absorvê-la melhor. De limne, o lago, os nomes dos lagos. Esses lugares que decantam, essa atividade precisa quando as coisas do mundo param de cantar. Esses lugares a quem acudimos em busca de auxílio, porque dentro deles, e ao seu redor, vive o que há de mais antigo. O lugar para onde nos voltamos em busca de silêncio e quietude - as águas paradas do fundo do lago, que deixam de ser armadilha para serem suave contorno. Raramente as palavras que encontras são inúteis, diz L. de dentro de seus olhos fechados. Porque as coisas inúteis estão entre as mais úteis da nossa vida, respondo-lhe. E desejo-lhe boa noite, e eu também fecho os olhos e mergulho para dentro do sono.




08/04/2015

A verdade

Sabemos, todos nós, que a verdade é um bem a ser preservado e garantido. Que, em qualquer circunstância, e mesmo que doa, sempre a dor da verdade é melhor que a da mentira. Sabemos, mas nem sempre praticamos; raramente nos damos conta de que um tanto daquilo que fazemos, não só mas também em nosso papel de educadores, mais mente sobre a realidade do que a apresenta e encara tal qual ela é.

Lembrei-me disso hoje ao ler um parágrafo de The bad seed, um romance da década 50, de autoria de William March: “um botão de rosa de cera ou um pêssego de plástico parecem mais perfeitos, aproximam-se mais daquilo que a mente imagina ser um botão de rosa ou um pêssego, do que o imperfeito original a partir do qual foram modelados”.

A nossa tendência a querer transformar o mundo em um mar de rosas para as crianças, para que elas não se machuquem, onde as coisas não são o que realmente são, cresce a olhos vistos. Impacta-nos de maneiras para as quais ainda não estamos conscientes. Andamos sobre plásticos que imitam madeira, comemos sanduíches que imitam comida, ouvimos músicas eletrônicas que imitam instrumentos de verdade, vemos reproduções de obras de arte como se estivéssemos diante de originais, temos amigos virtuais como se fossem reais, e fazemos um esforço tremendo em parecermos fortes onde somos frágeis.

Um mundo “de verdade” é indispensável à criação de seres humanos sadios. Se são crianças que estão sob o nosso cuidado, o grau de responsabilidade aumenta. As nossas escolhas são as escolhas delas, porque nós somos a referência, e é a partir das janelas que abrimos que elas reconhecerão o mundo habitável. Ou não. Se o que oferecemos não é “verdade”, a vida terá grandes chances de ser uma mentira. E esses futuros adultos terão grandes chances de não reconhecer e distinguir a verdade da mentira. Terão grandes chances de não reconhecer perigos e armadilhas em pessoas, em situações, nas prateleiras dos supermercados, no boteco da esquina. Crianças que não vivenciaram a verdade poderão não reconhecer a mentira mais adiante. Sim, eu sei: você está pensando que essa coisa de verdade é muito relativo. Não é. Uma rosa de verdade não é uma rosa de cera. Um pêssego de plástico não é um pêssego de verdade. Não se faz com ele o que se faz com um pêssego real. Assim como não se faz com pessoas reais o que se faz com simulacros de pessoas num jogo qualquer de computador.

As crianças precisam de verdade. Precisam senti-la, quando pequenas, correndo por entre os seus dedos. Precisam reconhecer a madeira, o algodão, esses elementos que estão à nossa volta de forma natural, e que encontramos e reconhecemos facilmente, em suas várias manifestações. Essas são as coisas verdadeiras na primeira infância – aquelas que existem ao redor, e que podemos reconhecer no seu próprio processo. Um carrinho de madeira, uma boneca de pano.

Crianças pequenas não precisam de andadores que imitem o seu esforço em erguer-se, assumir a humana posição ereta e caminhar pela vida. Precisam da verdade de suas próprias pernas no movimento de profundo equilíbrio que é o andar. Elas vão cair, e vão se levantar, e vão voltar a cair, e joelho esfolado é aprendizado saudável. Crianças não precisam de uma alimentação artificial e cheia de produtos químicos, que além de maltratarem o seu ser físico em formação, lhe alteram a capacidade de perceberem o que é uma cenoura, uma batata, arroz, as beterrabas de verdade.

Parece bobagem? Mas não é. Já sabemos que é de pequenino que se torce o pepino. O aprendizado das escolhas de uma criança começa com aquilo que escolhemos para ela. Quanto mais consciência do que fazemos, e por que fazemos, melhor. O nosso conforto, a nossa “necessidade” não pode tranquilamente sobrepor-se àquilo que é fundamental à criança. A nossa “necessidade” de, recém-paridas, nos reintegrarmos à vida social não pode impactar a criança que acabou de chegar. O show de rock pode esperar para mais tarde, o sambão também, a saída à noite pra festa dos amigos idem. Às vezes, não paramos pra pensar. E às vezes as escolhas têm desdobramentos tristes.

Crianças que se habituam ao mundo virtual desde cedo vão perder a noção do que é relacionar-se com o mundo real. Aliás, com adultos é a mesma coisa. Aprenderão a deslizar seus dedinhos pelas telas dos tablets e dos smartphones antes de terem percebido a textura da areia da praia. É bom ter diversidade? As várias experiências? Certamente um pai ou uma mãe de um dependente químico lhe dirá que não: há experiências que é melhor não ter. E agora, se já teve, é preciso cuidar. É preciso refazer o caminho, passo a passo, redescobrindo o que é mesmo “de verdade” neste mundo. Rodear-se de coisas de verdade. De pessoas de verdade. De sentimentos de verdade. Tirar da frente e dos lados e de dentro tudo o que é mentira, como é mentira o caminho que as drogas oferecem de encontro de si mesmo. Como é mentira decidirmos que nosso filho de 16 ou 17 anos pode sair com o carro porque “ele dirige melhor do que eu!”, ou com ele tomar uma cerveja, e iniciá-lo nesse mundo em que se ganham forças, autonomia, coragem e graça com a ajuda de um ou dois copos.


“De verdade” é o mundo cheio de imperfeições. São amores que não reluzem como ouro, e é assim que nos fazem bem. São situações em que estamos frágeis e nos sentimos à deriva, e firmamos os pés dentro delas lidando com o medo que nos sobrevém. São empregos que desanimam um dia e outro, e nos satisfazem dessa forma. São escolhas erradas que precisam ser refeitas, e dói, e é bom, porque é na dor também que crescemos. São refeições salgadas, a carne que cozinhou demais... e quando nos levantamos da mesa estamos preenchidos. Porque houve mãos de verdade que cortaram as cebolas, houve olhares de verdade que se cruzaram risonhos ao perceber o desastre, houve o riso sincero que todo mal desarma, e que é de verdade, e por isso é bom, e nos faz crescer e ser pessoas melhores no encontro conosco mesmos e com o outro.

01/04/2015

Mentiras e universidades

Cultura é o que nos resta depois de termos esquecido tudo quanto aprendemos.

Entre os muitos escritores e pensadores que o caminho da história esquece, há alguns que, de repente, voltam com força ao nosso pensamento. Ellen Key, a autora da frase que serve de inspiração a este texto, nasceu e viveu na Suécia, na segunda metade do século XIX. Feminista nos tempos em que era preciso ainda lutar por igualdade de sufrágio, Ellen tem importantes textos sobre educação, a liberdade pessoal e o desenvolvimento independente do indivíduo.

E por que Ellen Key a essa hora do dia? Porque a cada vez que se evidencia a falha colossal e coletiva dos nossos sistemas escolares eu corro a ler alguma coisa que me alivie. Dias como estes, em que lemos estarrecidos as notícias sobre a última festa do curso de Medicina da Unesp de Botucatu. As denúncias de abusos e arbitrariedades na recepção aos calouros viraram rotina, em tudo quanto é universidade. As apurações idem. E a defesa também.  

Desta vez, acusam-se os alunos do 6º ano de escolherem recepcionar seus novos colegas vestidos a la Ku Klux Klan. As fotos circulam, e os alunos defendem-se, dizendo que é um erro de interpretação e que não houve preconceito nem intenção de denegrir ninguém. No fundo, não importa muito o que digam, porque as fotos falam por si, contra fatos não há argumentos. A referência a certos personagens está ali, presente, tenha ela sido explicitada com todas as letras ou não, tenha havido ou não consciência por parte de quem usou as fantasias e segurou as tochas. Além do que, como nos ensina a análise do discurso, o fato de se recepcionarem novos integrantes de um curso com uma festa sob o tema "Carrasco" já devia ser suficiente. Tanto os fatos quanto a sua defesa, como se pudessem ser defensáveis, é de espantar. Um pedido de desculpas, geral e irrestrito, seria mais pertinente. Até porque erros fazem parte e o duro é quando não se reconhecem - e, sobretudo, reparam.

Agora, aqui para nós que nem na festa estávamos. Surpreendente mesmo é pensar que esses jovens passaram no mínimo 18 anos sentados em bancos escolares. Foram alfabetizados. Leram. Tiveram horas e horas de aulas de História. Produziram textos, e muito provavelmente algum sobre racismo, sobre preconceito, sobre violência. Prepararam-se para apresentar as suas ideias e justificá-las. Muitos deles possivelmente estudaram em escolas com a preocupação de formar "cidadãos críticos e atuantes". Passaram numa das mais difíceis seleções universitárias do país. Estudaram por já seis anos para se tornarem médicos, e é capaz que, em assustador pouco tempo, muitos de nós depositemos neles confiança, esperança e a própria vida.

Enquanto isso, a sua percepção de acolhimento e diversão é o reencenar um dos mais macabros momentos da história mundial. Não sabiam disso? Não conseguiram ver a similaridade entre as suas fantasias e aquela dos que perseguiam, queimavam e enforcavam negros americanos até há bem pouco tempo? Como assim?! É essa a capacidade que têm de olhar em volta, ler a realidade e propor movimento e interferência?

O trote repete-se ano a ano. Choram-se ano a ano os que morrem, lamentam-se ano a ano os que são assediados e violentados, repudiam-se ano a ano os estupros. E relativiza-se tudo, porque tudo isso são "excessos apenas". Os movimentos para conter essa onda que se aproxima da barbárie são mínimos. Porque atitudes enérgicas são impopulares, e de três opções, duas são mais fáceis: ou se culpam professores do ensino básico, famílias desestruturadas e esse longo etc. que pertence ao passado, ou se encolhem os ombros e se pensa que "no meu tempo também era assim e eu sobrevivi...". 

Uma universidade não é um lugar qualquer. "A história das universidades", diz Otto Maria Carpeaux em um de seus bonitos ensaios, "é a história espiritual das nações". Parece que nos esquecemos, absortos que estamos em decidir se universidades são lugares onde o conhecimento se transmite ou se pesquisa. Deixamos o barco à deriva, esquecendo-nos da responsabilidade que ultrapassa os nossos pequenos gabinetes. E o resultado, a cada trote, nos atropela.





Imagem: Alto-relevo de Hipócrates praticando a sua ciência
O Projeto Gutenberg tem algumas das obras de Ellen Key disponíveis, para quem se interessar. Acesse http://www.gutenberg.org/ebooks/author/502
O ensaio de Otto Maria Carpeaux chama-se "A ideia da universidade" e está disponível em 

27/03/2015

As coisas pequenas

São Paulo, esquina de avenidas, zona sul, pouco passa das seis.

Cansada que estou, dormito a cada farol vermelho. Dou graças que São Paulo seja esse caos de trânsito parado e semáforos de longa espera. Durmo a cada dez minutos, e aos poucos recupero as noites semi dormidas. 

Acordo com um toque leve no braço que esqueci pendurado na janela do carro, e uns olhos de vendedor de bala e chiclete a bordo de uma cadeira de rodas. Olha-me e diz pássaro na gaiola não canta e eu respondo não, lamenta. E nós dois rimos da súbita dramaturgia nascida do adesivo na lateral do meu carro. E ele diz é isso mesmo. E eu respondo verdade, quem está encarcerado não canta. E ele diz só dois cantaram. Eu pergunto quem? e desconfio entre parênteses que a origem seja bíblica e ele sorri e mesmo sem saber o que penso diz Pedro e Tiago. Eu não sei se já estou acordada, mas que fazer a não ser concordar e acrescentar eles cantavam da forma que se deve. E o homem de olhar manso diz sim, isto é, o Altíssimo. Agora tenho certeza de que já estou acordada, e pergunto-lhe você canta? E ele diz claro, ou você pensa que esta cadeira é minha prisão? Não digo nada porque que poderia eu dizer? e deixo que o sorriso desse nosso encontro escorra até o asfalto e ambos esboçemos uma forma específica de adeus. Se não fosse isso, mulher, não tinha lhe conhecido, e só depois a mão empurra a roda e só então ouço as buzinas, o sinal abriu, o fluxo não para, e eu fecho os olhos porque só pode ser São Paulo distribuindo bênçãos sobre esta cidade cheia de milagre ao rés do chão.

24/03/2015

蛋挞

Dan ta: é assim que se chamam, lá em Macau, os pastéis de nata. A capacidade expansionista portuguesa mantém-se firme naquilo que ensina os outros a comerem. Desde 1837, quando os pastéis foram inventados para garantir a subsistência dos clérigos do Mosteiro dos Jerônimos, é a mesma coisa. Talvez a maior diferença seja que, naquela época, o trânsito entre Lisboa e Belém ainda acontecia de barco, e agora vai-se de carro ou comboio. Ou bicicleta, como cada vez mais pessoas escolhem.

É difícil encontrar bons pastéis de nata (erroneamente chamados de Belém, que esses são só os que lá são feitos, em Belém) pelo Brasil. Difícil, mas não impossível: está aí a prova fotográfica, que só não consegue captar-lhes a temperatura (entre morno e quente), a textura (entre firme e desfazendo-se) e o paladar (na medida exata de açúcar). O problema é a capacidade calórica, ouvi ao meu lado. Realmente. Até porque não é possível comer só um.

Os pastéis de Belém, depois copiados por todo o planeta, estão no centro de uma dessas disputas monárquicas que nos servem de alento nestes momentos de estupidez política generalizada. Portugal, nem todos sabem, também teve uma guerra civil. Dentro dela estão os pastéis. Fechada a confeitaria que os inventou, venderam a receita a um brasileiro rico que por lá andava, talvez a festejar a independência do Brasil, talvez a ver em que daria o seu D. Pedro querer ser também, além de imperador do Brasil, rei de Portugal.

Parecendo complicado, é simples. Temos D. João VI e Carlota Joaquina de um lado. Do outro, alguns de seus filhos: Pedro, Miguel e Isabel. Sem saber muito bem o que fazer com esse Pedro que declarara a independência brasileira e com esse Miguel que pouco pulso parecia ter, D. João entrega a regência do trono a Isabel, que, entretanto, decide reger o trono em nome da filha de Pedro, que deveria a qualquer momento casar-se com Miguel. Morto D. João em 1826, D. Pedro (I por aqui, IV por Portugal) decide desconsiderar ter sido deserdado e considerado estrangeiro. Além de imperador do Brasil, teve ter lhe soado bem o título de Rei de Portugal. Isabel é-lhe fiel, mas Miguel decide outras coisas, alinhadas com um certo espírito revolucionário que desponta em terras lusas.

Enfim. Uns e outros, como nós simples e plebeus mortais, fartavam-se de pastéis de nata. E o mundo gira, e a fila anda, e como diria Camões, mudam-se as vontades, os tempos e a própria envergadura da mudança. Entre uma revolução e outra, seja em Macau, em Belém, ou à beira da rodovia Castello Branco, na Quinta do Marquês, a marcar o começo de uma noite recente, as marcas acompanham-nos, assim como a história. E mais não digo, que a vantagem da crônica é justamente poder parecer sem sentido.