06/02/2014

Insular, verbo feminino




Há palavras que dá gosto fazer passear por dentro da boca. Repare nesta, uma das minhas preferidas. Tão grande que precisa de um parágrafo só para ela.

Insular.

Gosto de pensá-la verbo, e de pensá-la em ação dentro da minha vida. Insulam-se as coisas à minha volta, agora que escrevo. Insulam-se os meus pensamentos: rodeio-os dessa substância chamada Palavra que, além de alimento, é aquilo que não me trai. Insulam-se os meus dias, e torno-me ilha.

Paro um instante, antes de prosseguir, para dizer a palavra em voz alta. Insular: sai-me por entre os dentes, sibilante como um braço de água virgem. Demoro-me nas vogais, para que o vento dessa água possa transportar-se para dentro das palavras escritas. Tenho cada vez mais a impressão de que as palavras nascem de dentro do vento. Tenho um amigo que ouve vozes-vento. Eu insulo vozes nascidas no vento.

As ilhas não são apenas palavras de género feminino: as ilhas são seres femininos. Veem-se ao longe antes de serem tidas de perto. Um assombro, estar-se embarcado durante dias e de repente, em meio ao espelho azul que é o mar, ver surgir a Ilha como que num encantamento. Todo mar é masculino, assim como toda ilha é feminina. 

As ilhas permanecem em meio a vagas e serenos, mares de todos os tipos lambem as suas praias, nuvens de espuma marítima alçam-se na direção dos penhascos mais altos das suas encostas. Nelas, abrem-se grutas secretas, onde só os primeiros olhos conseguem chegar e ver. Há ilhas lisas e calmas: toda a sua extensão se desdobra diante dos olhos sem cautela alguma. Há ilhas escarpadas, arredias, como cervos assustados ao ouvirem o tiro distante. Há ilhas que se dobram sobre si mesmas, reinventam-se a cada estação para não sucumbirem.

E há ilhas que se reconstroem, após a invasão das ondas. Choram as suas dores internas em lugares que ser algum conhece. Curam-se em silêncios de grito engolido. Há ilhas tenazes, persistentes, teimosas. O mar cobre-as inteiramente, quase parecem desaparecer. Mas os mares sempre, sempre refluem, mais dia menos dia. Vão-se em busca do seu tamanho, conscientes da ferida que é a sua natureza aquática. As ilhas reaparecem no lugar onde sempre estiveram. São novas, e são as mesmas.

Há ilhas cheias de remansos e lugares bons para os homens aportarem nas embarcações que usam como cavalos do mar. Baías e enseadas protegidas, o sol a pino a secar os corpos que nadam através das águas salgadas, do barco à praia. Estas são as ilhas lugares de acolhimento. Abrem-se sem conhecerem o que é o pudor. Permitem a entrada àquele que deseja entrar. As suas árvores, os seus arbustos, ainda que precisem de facas que os deitem ao chão, não sabem opor resistência que os homens não possam vencer. E por isso as ilhas são às vezes tomadas, às vezes saqueadas, às vezes roubadas, às vezes invadidas, às vezes magoadas.

Mas há um território inconquistável em cada ilha. A esse território, ninguém subjuga, permanece escondido e protegido e inviolável. Está por baixo dela, na escuridão do mar, espaço único onde ilha e mar são coisa única e se misturam e convivem como se fossem cada um sozinho o mesmo lugar do outro.

Gosto de pensar nesse lado de baixo das ilhas, braços de rocha a estenderem-se numerosos até o fim absoluto da terra. Imaginá-lo cheio de reentrâncias, por onde a água do mar caminha com delicadeza e suavidade, os dedos cuidadosos estendidos na direção dos lugares mais vulneráveis, e proibidos, e sensíveis. Pode haver tempestades à tona d'água: nesse lugar do embaixo, a vida corre em outro tempo, em outro mundo, de outras formas. 

Talvez seja esse o lado mais feminino da ilha: um lado que não é lado mas absoluto todo, um lado iridiscente, a luz própria de toda ilha a iluminar o mundo sem luz do fundo do mar. E o mar, então, azula-se em tons nunca vistos, um passeio do negro mais escuro aos cerúleos, aos cianos, aos marinhos, aos cobaltos, aos cárdeos, aos safiras mais faiscantes. Surgem seres vermelhos, pequenos camarões de grandes olhos, que sorriem para esse mar transfigurado. 

A ilha revela as cores do mar. Amalgama-se às suas pernas, ao seu tronco, a cada uma das partes sem nome que o mar não nos diz ter, para que achemos que ele é apenas uma massa compacta de água, e sal. Mas não: o mar, quando descoberto dentro da luz do lado escuro da ilha, cresce em tamanho e poder, e é verdadeiramente o mar que nasceu para ser. À ilha, basta-lhe insular.


Publicado originalmente em

30/01/2014

As mil palavras

Foi Confúcio quem disse, 470 anos antes de Cristo nascer, que uma imagem vale por mil palavras. Não consigo, em lugar algum, encontrar o contexto em que ele chegou a essa conclusão. Talvez quisesse alertar seus discípulos do silêncio que deveriam manter ao observar uma imagem, para que as suas mil palavras não atrapalhassem as do colega ao lado. Ou talvez o mestre chinês discorresse num dia ensolarado sobre a volatilidade da palavra falada, e da necessidade da sua contraparte-ação se tornar visível - algo assim como "promessas, só quando fatos". Ou talvez nada disso, e apenas seus olhos estivessem em contemplação profunda do entardecer de sua janela, e ele não conseguisse encontrar palavras que descrevessem o que via.

O fato é que essas suas palavras atravessaram os quilômetros e os séculos que nos separam da China e do ano 470. Estão aqui, vibrando diante de duas imagens que vejo, veiculadas no facebook. Fiquei tentando perceber que conjuntos de mais de mil palavras poderiam elas representar para quem as observasse.

Dentre todas as mil palavras pelas quais pode (ou não) valer a imagem aí ao lado, o recorte está estabelecido na diferença que existe entre o mundo emocional do homem e da mulher. O que só contribui para aprofundar o abismo sexista entre todos nós, superficializando o nosso entendimento sobre o masculino e o feminino. Concluí que, das duas, uma: ou o machismo nosso de todo dia é realmente implacável e impede o mundo masculino de sentir o seu ao-redor e o seu em-dentro, ou o mundo feminino tem a capacidade de integrar, em 24 horas, 18 vezes mais emoções do que o mundo masculino. A maioria dos comentários à imagem, no entanto (as tais mais de mil palavras pelas que a imagem deve valer) reportam o entendimento de que as mulheres são instáveis, complicadas e exageradas, e que os homens, em comparação, são poços de equilíbrio e equanimidade. Embora ambos coincidam no fim: dormem. Todos nos rimos, e vamos em frente. E a imagem fica, porque, já sabemos, vale mais do que mil palavras. Só que as palavras, os fotógrafos que me desculpem, são o reino do humano, e não só valem quanto pesam, mas ficam.

Porém, a imagem que mais me suscitou incômodos foi essa à sua esquerda. Que vale, realmente, por mais de mil palavras, que deveriam levar-nos à constatação do grau descivilizatório a que chegamos, nessa precoce, abusiva e incensada alcoolização de nós mesmos. Os comentários-mais-de-mil-palavras sobre a imagem riem-se, e tornam a rir-se. Não sei se de constrangimento ou iniquidade: os rsrsrs e os kkkk são dúbios demais para saber, mas eu fico-me com a impressão da inconsciência meio boçal pairando leve, solta e lisa.

No meio desses comentários, um chama a minha atenção: "Deve ser pros professores chegarem no 'grau', pra suportarem o 'rojão' que os espera!!!".

Com as aulas começadas esta semana, fico me perguntando qual o desastre maior. Se a imagem, se as palavras. Vejo os novos professores dos meus filhos, e nenhum deles me parece precisar "chegar em grau" algum, porque consigo reconhecer o brilho do entusiasmo de um ano que começa. Mesmo com as previsões mais terríveis e catastróficas que queiram fazer-se, ser professor é adquirir o "grau" no exercício da sua paixão, que é estar em sala de aula com as pequenas e grandes pessoas com quem irão conviver pelo menos ao longo de um ano. Com todos os desafios que isso comporta, e ainda bem, que sem desafios ninguém se torna o que vai se tornar. Vejo os funcionários das escolas, e a dedicação no abrilhantar, no limpar e no organizar os espaços, para que acolham e recebam essas pessoas especiais que vão ser a sua convivência diária. Vejo os novos colegas dos meus filhos, e o que sobressai é o brilho do reencontro com os amigos e a expectativa do que o ano reservará. Nenhum rojão, a não ser de festa por mais um ano começado.

O preconceito múltiplo dessas menos-de-mil-palavras atinge-nos como professores, como alunos, como pais, como educadores, mas principalmente como seres humanos. Ainda assim, e apesar disso, continuamos na efervescência volátil e aparentemente inócua dos rsrsrsrs e dos kkkkk. O que equivale a abdicar dessa capacidade nossa chamada pensar, e a forçar-nos a entrada num universo de falência dos valores que tanto queremos prezar, da solidariedade à inteireza, da honestidade ao respeito, da lisura à inteligência. 

Salve Confúcio, salve o novo ano, e salve todas as escolas que temos ao redor e dentro. E salve Millor Fernandes também, que completou o mestre acrescentando: vá dizer isso com uma imagem. 

28/01/2014

Alheiras, Miranda do Douro e Oxóssi

Se há uma coisa que me espanta, é a maneira como as ideias se espalham e se reencontram no exercício do pensar. Agora à noite, um instante antes de tentar adormecer, pensei que escrever sobre alguma coisa haveria de fazer-me bem. Para aquietar o coração. Pus-me, por isso, a pensar em qualquer coisa que quisesse insinuar-se. A ideia de precisar escrever tornou-se imperiosa, e logo percebi que, sem escrever, não conseguiria mesmo dormir. Era de se esperar.

Mudei de lugar. Fui àquele onde a inspiração se tem notado mais presente nos últimos dias. Ando com a ideia de que a inspiração é também um fator regido pelas microgeografias de uma casa. E vem-me, sem querer, a imagem de um arco e uma flecha. Lembro-me da imagem aí ao lado, guardada há tanto tempo e à espera de ser precisa. É hoje que a uso: penso no orixá que se acabou de comemorar dia 20. Dia de Oxóssi. É ele que se aproxima quando se pinta, se escreve, se modela, se borda, se tece, se esculpe, se dança, se canta, se toca. Onde há arte, há a mão, o arco e a flecha de Oxóssi, qualidade divina da sustentação da vida. Oxóssi é o caçador arquetípico, aquele que se celebra ao redor da mesa, é a alegria, a independência. Expande-se e fortalece-se nas matas, nos ambientes virgens onde pode avançar sem constrangimentos. Os animais e as plantas são parte do seu ser, e neles a sua qualidade se reanima. Oxóssi aproxima-se de mim, invariavelmente, sob a luz de um novo aspecto do que já conheço. A partir da sua presença em mim, adquiro a capacidade de olhar com novos olhos esse terreno que se revirginou, e ressignificar a vida à minha volta. A flecha rápida e certeira de seu arco atinge-me a meio do corpo.

Essa nossa capacidade humana de ressignificar a vida é uma forma de encantamento. Ressignificamos sofrimentos e mágoas amparados na premissa de que tudo necessita transformar-se. E mesmo que muitas vezes esperemos a transformação do outro, os nossos passos fazem-nos inexoravelmente transformar a nós mesmos. Esse movimento de transformação aproxima Iansã de Oxóssi. E a alegria de Oxóssi alegra-se mais no encontro com a força direcionadora de Iansã - toda essa força criadora encontra no vento e nas tempestades de Iansã o lugar de seu direcionamento. É de se aproveitar.

Nessa minha intenção de observar os caminhos do meu pensamento sem interferir muito neles, nem sei bem como, de Oxóssi, cheguei às alheiras. Tá certo que um amigo querido publicou na internet uma fotografia saborosa de uma dupla de alheiras na brasa. Mas há algo mais.

Esse algo mais é justamente a capacidade ressignificadora. Alheiras são um tipo de enchido comum em Portugal. Parece-se com o chouriço português (que é mais uma linguiça do que um chouriço feito de sangue, lá em Portugal aliás chamado morcela), mas não é. A marca da sua nascença foi querer-se parecido com o parente. Ressignificou-se o alimento para que um povo pudesse permanecer vivo.

Da seguinte forma. Nos tempos em que os judeus precisavam converter-se ao cristianismo, uma das formas de conferir a verdade dessa conversão era aferir a existência ou não de chouriços nos fumeiros das casas dessas pessoas. Já se sabe que judeus não comem carne de porco, e que chouriços são feitos de carne de porco. Portanto, difícil um judeu comer um chouriço. E porque a fé de um povo não se remove por decreto, foi preciso ressignificar o dia a dia. Em algum momento, alguém teve a ideia de produzir um enchido que pudesse pendurar-se no fumeiro e que pudesse ser comido por quem não comia carne de porco. Nascia a alheira: um chouriço que não era chouriço, feito de carnes de frango, ou peru, ou codorna ou perdiz ou o que se encontrasse e não fosse ser chafurdante na lama. Estamos ao norte de Portugal, e muito especialmente numa região resistente, de onde brotou não só a alheira, mas também uma cidade chamada Miranda do Douro, berço da segunda língua oficial portuguesa.

(Aproveite para ressignificar o seu conceito sobre a Lusitânia: duvido, e muito, que você soubesse da existência de uma segunda língua oficial nesse país que tem menos habitantes que a cidade de São Paulo!)

Para ressignificarem a vida, e ressignificarem a sua relação com esse mundo-cão que tudo engole, os 15.000 falantes de mirandês realizaram uma série de proezas oficiais. Entre elas, a publicação de dois livros de Astérix em mirandês: uma espécie de afirmação contundente do caráter revolucionário de resistência desse pequeno grupo. Uma pequena ilha em meio à barbárie europeia. 

Existe também uma wikipedia em mirandês, a Biquipédia: http://mwl.wikipedia.org/wiki/P%C3%A1igina_Percipal, e existem placas bilingues por toda a cidade de Miranda. 

Quer um exemplo de mirandês? Segue um, mas com o aviso de que vale a pena surfar um pouco pela net e descobrir a quantidade de sites nessa língua. 

Durante ls seclos XV i XVI, Pertual fui ua poténcia mundial eiquenómica, social i cultural, custituindo-se l purmeiro i l mais duradouro ampério quelonial de amplitude global. Zde la cunquista de Ceuta an 1415 até a la cessaçon de la admenistraçon de Macau, an 1999. 

Sabendo-se que Pertual significa Portugal, não será difícil entender o que está escrito. E é lá, nessa região mirandesa, que nascem as tais alheiras, as mesmas que o amigo Claret celebra na sua publicação. De uma tacada só, ressignifica-se a língua que falamos, a comida que comemos, a história que sabemos e a vida que vivemos. 

Encerrar este dia cheio de demandas com tanta ressignificação faz-me olhar para a noite que se apresenta com outros olhos, e, mais além, o dia de amanhã, com outros também renovados olhos. E meu último pensamento do dia assume a forma  a força de um desejo: que, a cada dia, a energia irresistível do vento da mudança nos atinja, permitindo que ressignifiquemos eternamente a nossa permanência amorosa uns junto aos outros.

26/01/2014

Do México à Cantareira

Hoje, acordo na Mooca: como deixar passar em brancas nuvens os 460 anos da cidade de São Paulo? Primeiro, de véspera e em boa e especialíssima companhia, jantou-se um caprichado nachos y queso y chili. Preparação para a festa. Hoje, almoça-se um temperado falafel no Mercado da Cantareira. Tudo junto e misturado a esse calor insano a sol pleno. Fosse o Rei, diria quantas inumeráveis emoções.

De tudo um pouco, e quase sem se perceber. Tem pernambucano guardador de carros observando de dentro da sua camisa o povo que vai, o povo que vem. Abre-me uma vaga que vai logo logo estar na sombra. "Bem vestido porque é dia de aniversário", diz ele em seu sorriso de poucos dentes, quando lhe pergunto se não está assando de tanto calor dentro da camisa escura de manga comprida, abotoada até o pescoço. Os olhos miúdos quase se escondem por trás da pele curtida e grossa de anos de labuta sem fim nessa selva tão de pedra quanto o sertão. Tem dois argentinos parados na frente do Mercado, querendo saber de museus, e tem a Cida, maquiadora de Jundiaí, que decidiu mostrar-lhes São Paulo. Vem me perguntar se sei onde que tem museu: diz ela que tenho cara de quem gosta de arte, e ela quer agradar os novos amigos que fez no metrô com isso mesmo, arte. Gosto, digo-lhe, até quando não devo. E ela ri. Bonita vitrine do seu trabalho, elogio-lhe a maquiagem caprichada. A artista, afinal, é ela. E ela ri, agora sem jeito, piscando os olhos de cílios compridos.

Passeio pelo povo que dança ouvindo os Demônios da Garoa. A mais paulistana música no mais paulistano dos mercados. Vem a homenagem ao Wando, que gravou com eles. E o povo aplaude. Vem a homenagem ao Herbert Vianna, que gravou com eles. E o povo aplaude. E qualquer coisa que tocassem o povo aplaudiria, e riria, e dançaria pra cá e pra lá numa felicidade só, porque logo, não demora, virá o Trem das Onze tocando todo mundo embora. Tem a Sandra, ao meu lado, que não sossega, e só diz querer mesmo é um bebedouro, pra poder refrescar esse suor todo de tanto sambar. E ri. Aponta para o casal à nossa frente que dança desconjuntado: "aposta quanto que são gringos?". E ri. E ri de novo. Mesmo sorriso largo da senhora mulata mais adiante, sambando agarradinho a um sujeito tatuado que olha pra ela apaixonado, como se nada houvesse em volta dos dois. E quando seus olhos cruzam os meus, ela descobre-me uma fiada de dentes grandes desencontrados, cada um mais radiante que o outro nessa boca que logo corre pra beijar o parceiro. Todo mundo ri, e eu rio de volta, nessa cidade de concreto cheia de recantos de humanidade: parecemos todos velhos amigos que na saída marcarão encontro amanhã, mesmo horário, mesmo lugar, despedidas efusivas de quem conseguiu criar, contra qualquer expectativa, um minuto eterno de alegria feliz.

Percorro com o pensamento vestido de memória o dia preenchido nessa cidade estranha, onde me sinto tão em casa. Vejo as todas cores e as todas coisas, as ruas e as avenidas cortadas de um lado ao outro, um zootrópio inesperado ensinando cinema de animação, piscinas de sesc lotadas com corpos cada vez mais redondos, banheiros públicos encharcados de gente que quis ir pra rua nesse feriado tão mas tão paulistano: todas as lojas abertas, uma 25 de março que esqueceram de avisar pra fechar, sacolas de todos os dias mesmo em dia feriado. A cidade que não pára entra no seu 461º ano de vida fazendo juz à fama que tem. Só rindo, e voltando pra casa sem sentir os quilômetros espaçosos que passam por baixo do carro.

Foto: a Mooca, por Ilundi

24/01/2014

Nós, os seres cordiais

Descubro, agorinha cedo, que uma amiga querida está internada, lá do outro lado do mar. Sente-se sozinha, claro, passará o fim de semana ali mesmo, entre quatro paredes brancas, mas ainda assim me diz: "Ah, mas eu até prefiro ficar aqui, sou bem cuidada, não preciso cozinhar e as pessoas, no hospital, vêm me visitar. Semana que vem, em casa, vai ser bem diferente".

Da vontade que me deu de nadar todas essas milhas náuticas que nos separam para estar à porta da casa dela na segunda, e impedi-la de cozinhar e de ficar sozinha, fui-me rápida ao Sérgio Buarque de Hollanda. Ao seu cordial homem brasileiro. Aquele que age e reage pelo coração, passional, avesso a toda convenção ou formalismo social. A minha reação interna acho que nasce dessa cordialidade que transplantei lá das terras lusitanas para estas brasileiras, e que só fez crescer, regada e adubada prolixamente.

Exemplos há por todo lado, dessa cordialidade que nada tem de bondade, concórdia ou subserviência, como bem nos esclarece Buarque de Hollanda. O ser cordial não é bonzinho, não aperta as mãos de ninguém se a vontade é de esmurrar. O ser cordial esmurra quando seu coração diz esmurra. E beija quando o coração diz beija. E ama quando o coração diz ama. E odeia quando... e assim vai. Minha amiga, se aqui estivesse doente, internada ou não internada, seria visitada. Com arroubos efusivos de preocupação e desejos transformados em bombons e flores, teria a sua casa invadida por amigos e nem tanto, uma mão cheia de seres cordiais, com o coração batendo inflamado do lado de fora da pele. Poderia durar alguns dias. Ou mais. Ou nem tanto. Não se sabe, porque o coração tem razões que a razão desconhece, e assim fica difícil saber qual será a reação do próximo momento. Lá, de certa forma e pelo menos, ela tem a certeza de que ficará sozinha. Não serve de alento, minha amiga querida, mas serve para se ocupar filosofando - coisa que, já disse Caetano, parece fazer-se melhor nessa língua que você fala aí do que em outra. Sabe-se mais com o que se pode contar, porque a ação do outro está mais regida pela razão e menos pelo sentimento, e por isso oscila e se entrega menos. Há vantagens nisso, embora a minha cordialidade tenda ao querer esmurrar ao pensar assim.

Entre as vantagens, o próprio pensar. A dissecação do sentimento pela fria lente do pensar. A transformação do sentimento desordenado em sequência ordenada através da palavra. Seja escrita, seja falada: que a palavra possa nos salvar dos solavancos das relações abertas pelo tumulto do sentir cordial. Essa tranquilidade fria que emana dos seres que pensam, ainda que eles mesmos se digam atormentados pelo fluxo de pensamentos que precisam organizar: é o descordializar. 

Essas coisas que nascem do coração pertencem, diz Buarque de Hollanda, à esfera do íntimo, do familiar, do privado. O que me faz pensar no tanto que as redes sociais, esses lugares onde o público e o privado se misturam e confundem promíscuos, fazem sucesso entre nós, seres cordiais, e nos tomam horas e neurônios e sobretudo células coronárias: afundamos e emergimos de estados ora melancólicos, ora eufóricos a partir de indícios da importância que temos na vida dos outros: curtiu? não curtiu? comentou? não comentou? Uma gangorra de cordialidades mil, dificultando que pensemos na nossa própria e humana capacidade disso mesmo: pensar.

Salve o hospital com suas visitas, e salve a semana que vem sem presenças: que a vida, a todo momento, seja plena e cheia de tudo o que faz com que o coração fique onde o queria o Mestre: ao alto.


O Chico, filho do Sérgio, fala sobre o homem cordial aqui:
http://www.youtube.com/watch?v=xAVRGvoy2Sk

Foto de Clara Rocha - obrigada!

21/01/2014

O espaço brilhante

Decidi oferecer-me uma aula de fisiologia das membranas celulares. Porque às vezes é tão difícil entender o mundo de fora que o melhor é olhar para dentro. E como eu quero chegar às menores partes, aventuro-me por elas, as células. E porque pessoas, a seu modo, são como células. 

Há células, como há pessoas, que possuem paredes celulares. Nem todas, veja bem. Entenda-se por parede algo rígido, construído e assentado, o que nos dificulta aqueles dias em que células e pessoas desejam mudar de forma. Desconstruir paredes é trabalho árduo, e nem sempre vale a pena. Valendo ou não, meus olhos querem ver mais, e avançam para a próxima camada...

...que é um envoltório menos denso, mas que efetivamente dá suporte físico à célula. Imprescindível, tanto que todas as células a têm - e, assim, todas as pessoas também. Poderíamos dizer que é a pele, mas meus olhos estão voltados para outros lados. Não é a pele do corpo que me interessa, mas a da alma. Esse envoltório funciona como proteção contra agentes infecciosos. Indispensável, porque em todo lugar existem agentes que desestruturam, que inflamam, que adoecem. Há pessoas cujo envoltório é espesso demais, e veem perigo em todo canto, e há pessoas com esse manto tão diáfano que faz com que se envolvam onde não devem quase que todo dia. É um indício da necessidade de equilíbrio, única condição para que não se veja perigo e ofensa onde ela não existe.

Próxima camada. A que mais me interessa: a membrana plasmática. Quem consegue chegar à membrana plasmática do outro, conseguiu já atravessar uma ou duas grandes camadas de separação. Às vezes, esquecemo-nos disso. Chegamos a ela sem perceber que antes já fomos aceites como seres não infectantes, e já atravessamos paredes que mantêm o outro de pé. Ainda que imóvel, mas de pé. E já se sabe que a condição humana é a condição de estar de pé. Uma felicidade, chegar à membrana plasmática.

A membrana plasmática permite-nos duas coisas: proteção e seleção. Mais uma camada dessa paranoia biológica chamada proteção. Garante que o núcleo e todas as demais estruturas e órgãos vivam uma vida calma. Sem sustos nem sobressaltos. O que raramente acontece, mas enfim. E carrega em si ainda o poder de selecionar o que entra e o que sai. E como raios fazem as células para selecionar o que deve entrar e excluir o que deve sair?

Ora bem. Fazem uso de quatro recursos que, olhando bem, nós pessoas também fazemos.

Podemos desenvolver em nós a capacidade de absorver o que está ao nosso redor, como esses outros que vivem ao nosso redor. Discriminando mais ou menos, interferimos nessa capacidade. Ou aumenta, ou diminui, e são as microvilosidades que fazem esse trabalho. Absorvendo mais do que menos, permitimos um contato maior.

Desejando um contato maior, podemos também fazer crescer em nós reentrâncias e saliências, pequenos apoios para que as células, perdão pessoas, que estão em volta, consigam melhor do que pior fixar-se em nós, e assim podermos observar-nos melhor uns aos outros. Mais de perto. Com mais tempo e proximidade. O que leva, claro, à intimidade. As interdigitações (veja: dedos!) são nossas aliadas nessa criação de encontro - são elas essas reentrâncias e saliências que nos permitem enxergar o outro e dar-nos a enxergar.

A intimidade, e o encontro, geram fluidos. E da consistência, da fluidez e da existência de movimento nesses fluidos encarregam-se os cílios e os flagelos. Às vezes, é capaz que doa. Cílios e flagelos às vezes provocam dores. Porque o movimento gera dor, e desconforto, e é preciso passar por ele - no sentido de atravessá-lo e sair do outro lado. Esse outro lado, é essa consistência fluida e terna de elementos, que a intimidade gerou e a nossa disposição aberta alicerçou. Através de cílios e flagelos nasce uma nova estrutura, fantástica, revolucionária, curadora. Os plasmodesmos.

Que merecem um parágrafo só deles.

De repente, eis que essas membranas, perdão pessoas, de tão próximas e em contato, tão em conexão fluídica, promovem um pequeno milagre: as suas membranas, subitamente, se interrompem. Abrem-se espaços em tudo aquilo que mantém o um separado do outro. Acontece nas duas células/pessoas, e imagino que, se não ao mesmo tempo, em tempos muito muito próximos. E, como se abrem espaços, estabelecem-se pontes, porque o intuito de tudo isso era permitir que o que está em um permeie o outro e vice-versa. E ambos sejam mais porque se contêm. São as pontes protoplasmáticas. Esse momento em que os espaços se abrem, essas pontes se criam e as células, assim como as pessoas, têm livre trânsito umas por dentro das outras.

E aí tudo pode inflamar-se, porque há segurança. Tudo pode procurar-se, porque há encontro. Muito melhor do que quando, como células, nos fechamos ao mundo oferecido e nos voltamos para nossos buracos negros, para esses lados escuros da lua que escolhemos, porque não olhamos de frente e de olhos abertos, e não vemos a luz que vinha na nossa direção. 

Às paredes, galgá-las. Às membranas, atravessá-las. Às pontes, caminhá-las. E que juntos possamos ser mais do que menos.

09/01/2014

Liturgia das horas 2

Lia eu outro dia, num artigo sobre não sei bem o que, que o fotógrafo que não sai às ruas não tem assunto sobre o que fotografar. Acho que o mesmo, muitas vezes, se aplica à escrita. Depende do dia, porque depende da disposição interna, mas há dias em que os olhos estão mais abertos para as coisas que não se veem. Esses dias são a glória, e andar pelas ruas formigadas de gente do centro de São Paulo é quase uma dádiva. Hoje, foi um desses, regado a surpresas.

A liturgia das horas, que me acompanhou desde manhã e desde o post anterior, é a oração pública comunitária da igreja católica. Consiste numa série de orações para serem feitas ao longo do dia, um ritmo de oito momentos que Bento estabeleceu lá no século quinto da era cristã e se tornou um pilar na formação da cultura ocidental, ganhando o nome de "Regra de São Bento". Efetivamente, criou pausas estratégicas dentro da agitação mundana para que nos lembremos de que o mundo do espírito vive dentro da matéria. Assim sinto, ao menos: acho que não há nada mais espiritual do que a matéria encarnada, por dentro da qual e através da qual o espírito se fez tão presente que se tornou visível. As horas, e a sua passagem, parecem-me provas irrefutáveis.

Deve ter sido por isso que pouco antes do meio dia, muito mas muito por acaso, entrei na igreja do mosteiro de São Bento. A tempo do ofício da Hora Média: as doze horas, momento de agradecer a manhã que se teve, o almoço que logo chega e a tarde que antecederá a noite. Os monges vestidos de escuro contra o fundo também escuro da igreja, a penumbra e o suave canto gregoriano sobrepuseram-se à azáfama lá de fora. Silenciaram todas as perguntas. Fecharam os olhos. Diminuíram as batidas do coração. E eu deixei-me ficar, sem pensar em quase nada, até que as doze badaladas anunciaram o começo da tarde e me catapultaram de volta ao mundo mortal.

Foi bom ter tido a pausa de agradecer a manhã. Bom e mais do que apropriado, porque esta babilônia paulicéica que é São Paulo oferece motivos de agradecimento a cada esquina. É tanta variedade, tanta cor, tanto brilho, tanta diferença, tanta semelhança, tanto som, tanto movimento que seriam precisos oito pares de olhos para conseguir ver tudo. Como só tenho dois, dou testemunho da parcela do que vi.


Emerson é pernambucano, e por isso aguenta 7 horas seguidas de prestidigitação ao sol de rachar destes dias. É ele quem diz. E é cobra dentro da mochila, é ovo e pinto dentro do saco, é óculos que desaparece e reaparece na cabeça da moça bonita, é brincadeira com um, brincadeira com outro, malícia de um lado, ingenuidade de outro. A roda forma-se em torno desse homem ágil, alto, sorriso falhado. Um respiro em forma de roda no meio do mar de sacolas da 25 de março. Emerson pede um aplauso para Jesus Cristo, sem ele não somos nada, povo de deus!, e depois volta com a mesma brincadeira, misturando macumba com evangelismo e mágica com safadeza. A hora que pede uns trocados e se vira pra um dos lados com a sacolinha na mão, o outro lado desaparece no meio do povo. E Emerson ri, e diz "ê povo... se eu fosse precisar de vocês pra comer não tava aqui pegando sol! Eu quero é divertir vocês!". E logo aparece uma nota de cinco reais e ele corre pra pegar e graceja de novo: "ainda bem que tu não acreditou, negão!". Quando passa por mim, dou-lhe um punhado de moedas que tenho na bolsa e ele pisca um olho e diz: "menina, assim eu vou é ficar rico!. Eu pisco meio sem graça de volta, a roda inteira racha o bico, e eu não sei, mas vou embora com a impressão de que tenho um segredo guardado.

Victor é ator. E Tânia também. E a companhia que formaram faz tudo a mesma coisa: gente estátua parada nas esquinas. Victor é um anjo barroco, de sorriso beatífico que faz sorrir de volta. Dá vontade de ficar ali, sentadinha debaixo do guarda-sol dele, esperando a hora de subir pra casa, quer dizer, pro céu. 

Ponho uma moeda na caixinha, acho que já estou há tanto tempo ali, tirando fotos. Ele dá-me um papelzinho desses com mensagens genéricas sobre ser melhor e tranquilo na vida, esperar as agruras passarem e etc. Quando vai retirar o papel da caixinha, deixa um outro cair. Eu pego do chão e proponho-lhe uma troca com aquele que ele me estende. Ele sorri diferente e quase sem querer pisca-me um olho, aceitando a troca. Eu pisco-lhe outro de volta, e lá vou, certa agora de que tenho não um, mas dois segredos a mais na bagagem.

E Vanessa vende pedrarias. Entro na loja dela, 4º andar do prédio da esquina da Ladeira Porto Geral, indicação certeira do amigo Ivan. Espreito pela porta e só entro, mas só entro mesmo, por causa do sorriso que ela abre, uma boca cheia de dentes brancos que parecem doidos pra conversar. E vou perguntando, puxando assunto, tem cascalho de granada, tem conta de cristal, tem firma de vidro, tem conta de quartzo rosa, tem pedra disso, tem pedra daquilo... E ela vem atrás de mim, enquanto eu vou passando a mão pelas cestinhas de contas, um tilintar quase inaudível entre o céu e a algazarra lá de baixo. Vanessa vai me mostrando as coisas e de repente pára. Ah, eu vou te mostrar o que vale a pena mesmo. E lá de baixo tira umas caixinhas com outras contas, mais transparentes e mais brilhantes, mais pesadas e mais de verdade. Segredos. E eu sorrio e ela sorri, e ela pisca-me o olho e eu pisco de volta. No elevador pra descer solto uma gargalhada. Ninguém entende: eu tenho mais um segredo na bagagem.

Liturgia das horas I



 Meio dia no pátio do mosteiro, sol a pino. Joana, 22 anos, porta da igreja. Pede-me um trocado, digo-lhe que na saída. Sento-me ao lado dela, na calçada mãe de todos. Interrompe a conversa toda hora que alguém entra ou sai da igreja. 10 centavos moço 10 centavos moça. Só responde quem dá de cara com os meus olhos que hoje querem ver tudo. Enquanto estive ao seu lado, nem uma moeda. A maioria não olha. Na verdade, não vê. Joana faz parte da parcela invisível que alumbra as ruas da cidade. Joana quer voltar pra casa. Consegue 10 reais por dia. Quem mais dá são as mulheres, porque  têm mais coração que os homens. Mas ninguém olha, ela fala mais pra ela que pra mim ao seu lado. Joana quer juntar dinheiro pra voltar casa. São José dos Campos. Quero saber desde quando está em São Paulo. Na verdade, quero saber tantas coisas, tornadas tão inúteis nesses minutos fora do tempo perfeito das pessoas atarefadas. Dezoito anos. Levanto-me para comprar uma água. O rapaz da água grita sem parar: água pra hidratar, água pra hidratar, água pra hidratar, ajuda eu, moça, minha sogra mora mais eu. Trago duas garrafas e dou uma à Joana. Ela não sabe como agradecer, acho que ela nem sabe que existe agradecer. Fico me perguntando se alguém já terá lhe agradecido alguma coisa. Joana tem olhos claros, arredios até passarmos 10 minutos sentadas lado a lado. Cabelo curto mal cortado, dedos longos todos cortados, pés descalços da cor do asfalto. Ficamos em silêncio. Porque na realidade o silêncio diz-lhe mais, e a mim o silêncio corta-me menos. A mulher em frente, num balanço infinito, repete sem cessar "um emprego pelo amor de deus". Joana grita "tchau ana" quando já estou nas escadas do metrô. Viro-me e aceno. Ela faz um gesto de brinde com a garrafa de água já quase vazia - meus olhos enchem-se de lágrimas. É seu agradecimento sob o sol a pino. Grito-lhe de volta "se cuida, Joana". E o rapaz que desce ao meu lado me pergunta, já dentro do metrô: aquela lá é sua amiga? e eu respondo: sim, do peito. E fecho os olhos para que não me pergunte mais nada.


05/01/2014

As coisas simples

Alcaparras, limão e sal. Grelha e manteiga. O peixe, filés quase rosados. Ela gostava de coisas simples. Ele também. As coisas simples são as que permanecem. Comida simples que não se mascara, assumida na leveza direta de dois ou três sabores, uns dentro dos outros como pertencimentos e não encontros. Ela gostava de pertencimentos. De entradas e saídas sem precisar pensar em desocupação. As coisas simples e as coisas perfeitas. Comida inclusive.

Perdera a conta das vezes da receita. Mas lembrança não se gasta, ganha vida em baixo relevo na parede da memória. A parede da memória era a pele da sua vida. O órgão mais extenso. O de maior e inescapável memória.

Ele não soube. Não da pele, matéria virgem diante de si mesmo, mas das mãos na carícia dos limões antes de arrancá-los do pé; dos olhos entreabertos filtrando o verde das alcaparras contra-luz; dos dedos na lavagem escorregadia e fria dos filés, do deixá-los escorregar por entre os dedos e depois sossegá-los na tigela. Em cada ação, o pensamento tornado metáfora. Era ele, e não o mundo, no transcorrer do dia.

Ele não soube do tempo de repouso na mesa, dos minutos de rede no espiar das nuvens, a sua mesma pressa. Faltou-lhe saber do calor dos olhos no derretimento da manteiga. Da hora à porta. Do cabelo molhado a secar no sereno. Da lua, da noite. Dos braços apoiados na cerca primitiva de arame, o olhar nas estrelas em assombro espalhado. Do mundo todo preparado para recebê-lo, num compasso de antecipação. Podia ter sido um dia como tantos.

Mas não. Porque o tempo inaugura espaços próprios, diminui os vãos e alimenta o que circula abaixo da superfície do lugar comum da vida. E esse é o lugar tão pouco comum das coisas, ela pensou.

Isso foi momentos antes de se permitir o sonho. E amá-lo.