A luz vem daquela casinha... Tão pequena, a casa... Pelo menos assim, à distância. Bem sei que as coisas, à distância, parecem às vezes menores do que são quando chegamos perto.
Li um dia desses que a amizade engrandece o mundo. O contrário, aquilo que diminui, inferioriza e/ou degrada, recebe outros nomes. Mesmo assim, às vezes as coisas confundem-se, porque as aparências enganam e o que vemos do mundo, assim à primeira vista, é aquilo que o mundo, as pessoas, as coisas aparentam. E não o que são, lá pelo bem dentro de si mesmas. Não que se escondam - não se conhecem, e portanto não se reconhecem.
Tenho uma amiga, querida e de muitos anos, que sempre e toda vez me abre portas. Leio de uma sentada o ensaio sobre Lessing que ela citou de passagem, numa conversa à mesa do almoço, um desses momentos à toa que me acostumei a receber de braços bem abertos para não perder uma gota. É dele, do Lessing, essa percepção do engrandecimento do mundo que a amizade propicia. Diz ele (ou digo eu, e com a memória relativa desse ensaio que mais devorei do que li) que quando a amizade permeia uma relação, ela se expande e atinge o mundo, os outros, a vida, os espaços coletivos que nos ligam aos outros e eles a nós. Não há esterilidade, quando a amizade, talvez o sentimento que Lessing mais preze, se oferece não só como matéria de construção entre duas pessoas mas como sentido político expansivo e concretizador de um mundo que se torne mais humano. Quando a amizade é aparente (ou no entendimento de Lessing quando se limita a essa intimidade entre dois), e quando deixamos de prestar atenção aos sinais que nos instruem sobre a matéria do que nos rodeia e penetra, o mundo sofre pela insignificância que o atinge. A vida sofre porque é diminuída naquilo que a faz respirar.
É dessas aparências que enganam que lancei mão para escrever a fala que encabeça este texto. Escolho-a hoje, de dentro da adaptação de "Os três fios de ouro do cabelo do diabo", conto dos irmãos Grimm, que escrevi para os alunos do 8º ano B da Escola Waldorf Rudolf Steiner. Apresentaram-na no fim de semana passado.
O menino Empelicado, protagonista da peça, procura seu caminho em meio às árvores, à escuridão e à luz excessiva. Reflete que aquela luz pequena, que vê ao longe em meio à massa que o mundo por vezes aparenta, pode ser algo maior, porque à distância as coisas parecem menores do que são ao nos aproximarmos dela. O contrário acontece também, neste mundo de aparências. O que ao longe nos parece majestoso e pleno, é na proximidade a pequenez do que nunca se pretendeu relevante.
Se por um lado o que parecia pequeno, e na proximidade é imenso, nos enche o coração de esperança e regozijo (sentimentos que precisamos compartilhar com os amigos, e torná-los fala para que tomem sentido humano), o que parecia grande e se revela pequeno ensombrece o nosso dia. Como se depois de uma longa e difícil caminhada chegássemos a uma parede que nada tem atrás de si. Ainda que possamos sentir que por detrás existam cristais, e fontes, e riquezas incomparáveis, a parede é de fato impermeável e outra vez de fato não nos permite passagem. A parede não é a catedral que se anunciava.
Quando o menino Empelicado descobre a grandeza da luz que ao longe era pequena, essa constatação amalgama-se a seu ser sem alardes. Permite que continue a jornada. É a luz, e não seu tamanho, que cumpre a função devida, e o menino segue em frente.
O ensaio de Lessing é de autoria da sempre-presente-nos-últimos-tempos Hannah Arendt. "Homens em tempos sombrios", volume de que faz parte, é uma coleção de biografias de pensamento de uma série de personalidades. No estilo claro, preciso e vigoroso dessa pensadora sem paralelo, as aparências todas são iluminadas, perseguidas e desmanteladas. É um livro de evidências, com a profundidade que é preciso exercitarmos para escaparmos da superficialidade com que o mundo nos rodeia - o mundo das relações em superfície, das experiências em superfície, das opiniões em superfície, do amor em superfície. Parecerá um mergulho no passado, e numa forma de pensar e de agir que parecemos estar perdendo enquanto humanidade. Será preciso ler estes ensaios mais de uma vez, porque não é aparente a sua profundidade, mas verdade, e as coisas profundas em algum momento demandam empenho, esforço e vontade.
O menino Empelicado, na sua saga em busca dos três fios do cabelo do diabo, prova definitiva de que necessita para fazer jus ao seu próprio destino (e do qual não se foge ainda que se tente), atravessa os umbrais das aparências. Um a um, em cores e panos e luzes e sombras, os umbrais revelam-se e são atravessados. As figuras em cena, protagonistas da própria história, enchem-me os olhos de lágrimas, porque também elas atravessam as aparências. Talvez nem o saibam, mas estão ali à nossa frente, inteiras e reais, e em nenhum outro lugar ao mesmo tempo. São, em vez de esperar. Avançam por dentro do texto e do espaço, em direção à profundidade que só o tempo e o trabalho árduo em si mesmos são capazes de realizar. É admirável, penso.
Estes seres em cena, chamam-se a si mesmos não só "colegas", mas também "amigos". Estão lado a lado nessa jornada de descoberta dos seus destinos. Não é só entre si que compartilham a alegria de estarem vivos muito mais do que as mazelas das suas superfícies - é com todos nós, que os ouvimos e vemos, às suas verdades aliviadas do corpo aparente. Além da esmagadora superficialidade da vida que vivemos fora de nossos corpos, o mundo caminha, através da ação que empreendemos e é assim, creio, que a humanidade se reconstrói.
Se por um lado o que parecia pequeno, e na proximidade é imenso, nos enche o coração de esperança e regozijo (sentimentos que precisamos compartilhar com os amigos, e torná-los fala para que tomem sentido humano), o que parecia grande e se revela pequeno ensombrece o nosso dia. Como se depois de uma longa e difícil caminhada chegássemos a uma parede que nada tem atrás de si. Ainda que possamos sentir que por detrás existam cristais, e fontes, e riquezas incomparáveis, a parede é de fato impermeável e outra vez de fato não nos permite passagem. A parede não é a catedral que se anunciava.
Quando o menino Empelicado descobre a grandeza da luz que ao longe era pequena, essa constatação amalgama-se a seu ser sem alardes. Permite que continue a jornada. É a luz, e não seu tamanho, que cumpre a função devida, e o menino segue em frente.
O ensaio de Lessing é de autoria da sempre-presente-nos-últimos-tempos Hannah Arendt. "Homens em tempos sombrios", volume de que faz parte, é uma coleção de biografias de pensamento de uma série de personalidades. No estilo claro, preciso e vigoroso dessa pensadora sem paralelo, as aparências todas são iluminadas, perseguidas e desmanteladas. É um livro de evidências, com a profundidade que é preciso exercitarmos para escaparmos da superficialidade com que o mundo nos rodeia - o mundo das relações em superfície, das experiências em superfície, das opiniões em superfície, do amor em superfície. Parecerá um mergulho no passado, e numa forma de pensar e de agir que parecemos estar perdendo enquanto humanidade. Será preciso ler estes ensaios mais de uma vez, porque não é aparente a sua profundidade, mas verdade, e as coisas profundas em algum momento demandam empenho, esforço e vontade.
O menino Empelicado, na sua saga em busca dos três fios do cabelo do diabo, prova definitiva de que necessita para fazer jus ao seu próprio destino (e do qual não se foge ainda que se tente), atravessa os umbrais das aparências. Um a um, em cores e panos e luzes e sombras, os umbrais revelam-se e são atravessados. As figuras em cena, protagonistas da própria história, enchem-me os olhos de lágrimas, porque também elas atravessam as aparências. Talvez nem o saibam, mas estão ali à nossa frente, inteiras e reais, e em nenhum outro lugar ao mesmo tempo. São, em vez de esperar. Avançam por dentro do texto e do espaço, em direção à profundidade que só o tempo e o trabalho árduo em si mesmos são capazes de realizar. É admirável, penso.
Estes seres em cena, chamam-se a si mesmos não só "colegas", mas também "amigos". Estão lado a lado nessa jornada de descoberta dos seus destinos. Não é só entre si que compartilham a alegria de estarem vivos muito mais do que as mazelas das suas superfícies - é com todos nós, que os ouvimos e vemos, às suas verdades aliviadas do corpo aparente. Além da esmagadora superficialidade da vida que vivemos fora de nossos corpos, o mundo caminha, através da ação que empreendemos e é assim, creio, que a humanidade se reconstrói.