28/01/2013

Coisas que parecem iguais

Não sou espírita, como não sou muitas outras coisas que me interessam, e das quais me aproximo de vez em quando. É bom, por vezes, precisar de ajuda e recebê-la, pelos caminhos que for; tanto quanto oferecê-la a quem dela precisa. Nessas trocas, nem sempre iguais, nem sempre equivalentes, há momentos em que é preciso pedir socorro, atitude que se aprende a ter, acho que não se nasce sabendo. O socorro é pedido, e depois é ficar atento, porque ele vem, na forma que escolher. Ontem, por exemplo, a meio de uma palestra no centro espírita que tenho frequentado, soube que há uma grande diferença entre acreditar e ter fé. Mas grande mesmo.

Voltei para casa pensando nisso, o que normalmente, dentro desta minha estrutura imperfeita, resulta ser positivo. No fundo, acreditar não é difícil. Primeiro porque, como se diz, cada um acredita no que quer, o que não deve incorrer em grandes prejuízos para ninguém. Há quem acredite em vida extraterrestre, em reencarnação, em comunicação entre espécies, em gnomos e fadas. Escolhe-se no que se acredita. Seja da boca pra fora ou da boca pra dentro, acreditar não demanda muito mais do que observar e anuir, consentir, concordar. Quase que uma atividade passiva. Acreditar nos outros: fácil, desde que não criemos expectativas que eles não possam atender e nem imagens a que não possam corresponder. E, assim como se acredita, é fácil desacreditar. Fácil e rápido.

Já a fé é feita de material distinto. A fé implica em viver conforme aquilo em que se acredita.  É ação, a fé. Decisão. Compromisso. Pode-se acreditar, mas não ter fé. Pode-se acreditar, mas não se conduzir conforme aquilo em que se acredita. Pode-se ter fé na vida extraplanetária, mas não considerar, no corriqueiro dia a dia, que há gente diferente da gente pululando por essas galáxias afora, e agir consoante o que se considera, conduzindo os próprios passos a partir do que eles podem impactar essa vida na qual se acredita - e se tem fé. Pode-se ter fé na reencarnação, mas não se conduzir de acordo com os pressupostos (dizia o palestrante, que se apresentou apenas como Paulo) que a reencarnação considera - pode-se fazer aos outros o que não se gosta que façam a si, pode-se desprezar o preceito fundamental da fraternidade, aquele que nos une a todos e permite que sintamos as dores alheias como se fossem as nossas próprias, esquecendo de fazer o que estiver ao alcance para reduzi-las ou aplacá-las. Pode-se acreditar na comunicação entre as espécies (e o assunto está fresco porque terminei de ler o livro da Sheila Waligora, "Eu falo, tu falas, eles falam..."), mas viver sem que esse acreditar nos faça agir e viver considerando e evitando aquilo que as magoa, que as insulta, que as agride, que as diminui na sua condição de seres viventes. E nas formas mais simples: posso acreditar que meu cachorro me entende quando falo serena com ele, mas esqueço-me e dou-lhe um grito quando ele pula em cima de mim.

Claro que ter fé é mil vezes mais difícil, mas muito mais, do que acreditar. Talvez porque ter fé seja, antes de qualquer coisa, compromisso, e nós tenhamos tanta, mas tanta dificuldade de nos compromissarmos, de abdicarmos de nós mesmos em função de outro. A fé num outro que demanda olhar, admirar, acompanhar e ser-lhe presente. Para mim (porque não há como generalizar) a fé no outro, nesse outro em que acredito porque está bem diante de mim e existe, e palpita, e me reconhece, demanda ver-lhe a parcela luz, a parcela divina que antecede a sua própria existência. Demanda acreditar que antes de tudo é matéria de irradiação luminosa, e demanda agir consoante o que acredito. Por isso, não posso barrar-lhe caminhos, não posso empedrar sua estrada, não posso podar os seus galhos nem quebrar-lhe os seus membros. O que posso é estar aqui onde estou, que aqui me encontrará quando lhe for necessário.


Imagem: Antonieta Miranda


22/01/2013

Do simbólico

Dia desses,  fiquei com vontade de comprar lã para tricotar. Há tempos que uma vontade dessas não aparecia. Comprei. Gosto de tricô desde pequena. Vivi a infância cheia de peças por acabar, casacos e coletes e meias começados e nunca terminados - a vida tinha a peculiaridade de me perseguir com novos brilhos e insistências, desviando-me dos meus reais e bem intencionados propósitos. Minha avó, observadora, tentou inutilmente ensinar-me crochê, achando que talvez me fosse mais fácil e rápido, mas desde o começo desgostei-me com aquela pobre agulha solitária; mesmo que não chegasse ao fim da peça, preferia o par de agulhas conversando entre si através do fio em transformação. Eram bonitas, as peças de crochê que ela fazia e com as quais me tentava, mas no fundo também ela preferia tricotar casacos e mantas e xales para toda a sua grande família. Também ela ouvia o diálogo silencioso entre as agulhas, como se fossem pessoas construindo afetos, e o fio entre elas a matéria prima da troca.

Tenho agora um par de agulhas em mãos. Iguais, do mesmo tamanho e espessura, e do mesmo material e cor. Tenho também um fio, lã que quis macia ao toque, duas cores entrelaçadas que quase se escondem uma na outra, porque querem desejar-se, talvez, invisíveis. Não creio que vá desmanchar nada do que tecer com estas duas agulhas, mesmo que estranhamente me apeteça a paciência e a espera de uma Penélope que trocasse o tear pelo tricô, mas presto-lhes atenção: por serem da mesma grossura, oferecem-me um tecido harmonioso, sem falhas nem inconsistências. São congruentes, estas agulhas. Interpretam o fio que se lhes oferece, trabalham-no sem esforço mas com constância e firmeza; não o largam, nem o quebram; não o apertam, nem o deixam frouxo. Minha avó dizia-me que nem uma coisa nem outra fazem bem, um ponto firme e solto ao mesmo tempo é o que se quer no tricô e na vida.

E o fio estende-se, uma metamorfose tecida sob o movimento articulado das agulhas. Cresce em comprimento e largura, deixando-se entrelaçar nesse diálogo sem palavras que ouço tilintar entre os meus dedos. Minha avó tricotava à noite, assim como rezava após o almoço. Terço entre os dedos, parecia dormitar, mas meditava. Em um e outro momento, eu invariavelmente mergulhava ao seu lado num livro, atividade que preferia a qualquer outra. Mas de vez em quando levantava os olhos e observava-a, demorava-me nos movimentos de seus lábios e de seus dedos, como se soubesse que ambos momentos eram semelhantes e eu precisaria da lembrança mais tarde, para mergulhar dentro de mim mesma de uma ou outra forma.

Nesse universo palpável que nos rodeia, onde tudo é símbolo de realidades mais profundas e internas, que acessamos ou não dependendo do quanto olhamos para as coisas com olhos de ver, são-me oferecidas estas agulhas, este fio, este tecido terminado. São chaves, capacidades dormentes em minhas mãos. Uso a mesma estratégia de menina: levanto os olhos e observo, em silêncio. A peça pronta que, dias depois, seguro nas mãos, porque não sou mais criança e aprendi a terminar o que começo, é a resposta à pergunta que faço.




11/01/2013

Limpeza

Passei um bom tempo em Minas nesta mudança de ano, revisitando espaços e práticas e pessoas que não via há tempos. Em Figueira, onde as coisas mudam conforme a necessidade se apresenta, coisa muito saudável e rara, reconheci um pedaço de passado que reincorporei à minha vida. Em meio às mudanças e às novas determinações nesse lugar inusitado, algumas coisas mantêm-se como eram há 20 anos, e deram-me uma sensação reconfortante de "nem tudo mudou na vida".

Um exemplo. Em Figueira, assim como em outros lugares, fala-se de "harmonizar" os espaços e as coisas quando se quer dizer limpar e arrumar. São ações práticas, importantes e indispensáveis à vida humana sobre o planeta. Eu não tenho nada contra qualquer uma das três palavras, mas concordo que "limpeza" e "arrumação" soem mais entediantes do que "harmonização". Percebo que as pessoas sorriem com os olhos quando dizem "vamos harmonizar os banheiros" ou "acabei de harmonizar o armário das vassouras", e provavelmente a mudança de palavra ajude a perceber a tarefa também de uma nova forma, a abrir uma nova janela na superfície cotidiana da vida. Uma consciência mais consoante com o propósito geral de Figueira, que é, entre outras coisas, manter a consciência naquilo que se faz. 

Hoje de manhã, "harmonizando" a casa, dispus-me a essa forma de presença. Limpei e arrumei, feliz da vida, retirando de pelo meio os empecilhos que podem atrapalhar o dia a dia. São coisas às vezes invisíveis, poluição mental transformada em cantos impenetráveis.

Atenta, vou pensando que há uma medida, nessa ação toda - não quero limpar a ponto de perder de dentro das coisas aquilo que são por causa do que passou por elas. Há os cheiros que é preciso preservar - que cheire a limpo, mas que não desapareça o cheiro adquirido com a vida. Há as pequenas manchas que se limpam, mas não de todo - como as rugas, são marcas do que viveu. Passo de um cômodo ao outro, e sou comedida em algumas ações, porque quero, muito, preservar a história.

Termino, e olho em volta. As coisas que ficaram, tal como ficaram (e que vou chamar logo mais de lembranças), olham-me de volta com um sorriso agradecido, porque não as tirei delas mesmas; um travesseiro deixou de ser um travesseiro, um copo deixou de ser um copo, até um cabo de vassoura deixou de ser um cabo de vassoura, porque há histórias marcadas em tudo, e reconheço-as pelas marcas, que às vezes são manchas, às vezes amassados, às vezes uma trinca por onde o passado chega e me atinge, inteiro e verdadeiro. As presenças alheias estão impressas até o mais fundo das coisas, que é onde vive o espírito com força e verdade. Por isso cuido das coisas, por isso as limpo mas sem as perder, por isso as olho e as afago, porque a vida pulsa dentro delas, assim como pulsa dentro de mim, que as limpo e acolho dentro das minhas mãos abertas e gratas.


Foto: Tai Ribeiro

05/01/2013

Novo ano

São as mãos da esposa que correm à lembrança do Pontes*. Lembra-as com todos os detalhes possíveis, o dorso de veias fortes, as palmas de sulcos profundos, a delicadeza dos dedos, a força do aperto. Conforme escreve, observo-o, absorvido pela ação da memória. Vejo-o balançar a cabeça de vez em quando, nesse esforço de se recordar de umas mãos quaisquer, desde que importantes. Outros lembram-se das mãos da mãe, das mãos do filho, até das mãos de Deus, aquelas que são invisíveis mas podem sentir-se. Por todos temo que seja excessiva a tarefa de lembrar-se; é um terreno sombrio, este da memória dentro de um presídio. 

Trago as mãos da esposa de Pontes para casa, dentro da pasta. Digito-as, a todas as suas letras, para mandá-las como presente a ela. Não me pertencem, estas mãos. E agora que é noite, e recolho as folhas para as ler outra vez, ao mesmo tempo em que percebo os avanços inegáveis na pontuação, vejo por entre as linhas de caligrafia harmoniosa e serena os sinais impronunciáveis  da dor da saudade e da ausência. Se entrecerro os olhos, quase consigo imaginar essas "mãos de dedos que se abrem e fecham como leques" descobrindo na tela do computador o quanto estão presentes dentro do marido preso. Imagino-a rodeada pelos oito gatos que são como filhos, e ao lado os dois filhos de fato dormindo no sofá, e os olhos que piscam porque já é tarde, e levantaram-se cedo, e estremecem eles também com a luz ofuscante da saudade. A mesma insônia que faz Pontes não dormir avança por entre as ruas da cidade escura até chegar às mãos da mulher que também não consegue adormecer.

Neste novo ano, Pontes anseia pela sua saída da prisão. O mesmo desejo e a mesma expectativa de muitos destes homens - ser este o ano da sua libertação, do regresso à vida da família. Não há nada, parece, que tenha mais importância na vida desses homens do que a mulher e os filhos que ficaram do lado de fora.

Brandão é diferente - cada vez que se aproxima o dia da saída, de alguma forma ele consegue uma punição de mais seis meses. É-lhe insuportável pensar em voltar a ser uma pessoa lá de fora. A cadeia, de certa forma, protege-o e oferece-lhe um lugar no mundo. Brandão conta piadas e alegra o ambiente assim que chega, às vezes atrasado e sempre bem humorado. Mas o olhar trai o seu receio, e quando conversamos e olho em seus olhos, ele desfaz o sorriso que usa como máscara.  E seus olhos ficam cinzas de tão tristes. Brandão conhece a mulher do Pontes, e enquanto ouve o companheiro ler o seu texto em voz alta, a meio de um silêncio respeitoso feito catedral, emociona-se e diz-lhe ao final:

- Caramba, Pontes, é assim mesmo, eu lembro das mãos dela, é que nem você fala, eu queria saber falar das minhas coisas bonito que nem você faz.

E enxuga os olhos com as costas da mão, e é preciso que o lembrem do texto que escreveu agorinha mesmo, quando todos sentiram a sua mesma emoção no gosto da caranguejada que gosta de preparar com a ajuda do pai. Estão todos emocionados, com a força e a verdade das lembranças próprias e alheias. E eu também. E quem mais estivesse aqui sentiria o mesmo, porque a empatia ainda é o nosso dom mais precioso, e sentir a dor alheia, solidarizar-se com ela pela lágrima que escorre ou pela mão que acolhe, é uma possibilidade preciosa de redenção e de humanidade.

A todos, um feliz ano novo, cheio de oportunidades de olhar e sentir o outro na sua dor e na sua alegria.


*Todos os nomes usados são fictícios. Já as histórias não - e podiam ser as minhas ou as suas.

20/12/2012

Eliazar


Seu Eliazar tem lugar marcado em nossos encontros: fundo da sala, numa das cadeiras ao centro, as pernas invariavelmente cruzadas. Bastante cabelo, quase todo branco, olhos vivos enevoados por trás das lentes grossas. Fala baixo e pouco. O que ele gosta é de escrever.

Sustentou mulher e filhos com a venda das músicas que compunha e com os bicos como carpinteiro, nessa ordem de importância. Trabalhava de dia e avançava pela noite em busca da medida certa entre melodia e palavra. O violão, não abandonou nunca, a carpintaria trocou-a por outra profissão, e a pequena cidade onde morava substituiu-a pela capital. Sempre que alguém novo aparece por perto, em pouco tempo ele se oferece para cantar as músicas que escreveu e viraram sucesso na voz de Jerry Adriani.

Seu Eliazar ocupa a mesma cela 23 há oito anos. Refaz-se todos os dias escrevendo e fazendo o bem sem olhar a quem, como gosta de dizer uma e outra vez. Como se pela palavra seu desejo se realizasse.

Trabalha na lavanderia montada dentro dos muros da prisão. Dois hotéis da cidade usam os serviços; é um sucesso. Qualquer trabalho, no presídio, é um sucesso: a cada três dias trabalhados, um dia de remissão de pena. Seu Eliazar nem pensa nisso: não sabe bem como enfrentará o mundo lá fora, o que ele quer é ocupar o tempo de hoje.

Recebe a visita da mulher muito de vez em quando. Escreve-lhe longas cartas, elaboradas e apaixonadas, como se a tivesse ao lado, disposta a ler as palavras difíceis que gosta de usar, e recebe de volta bilhetes curtos e apressados, notícias dos filhos e dos dois netos que entretanto chegaram. Um deles já foi trazido para conhecer o avô. O outro é ainda pequeno demais, diz a filha que o visitou uma vez e nem abraçá-lo conseguiu.

Se lhe perguntam qual o pior dia de sua vida, Seu Eliazar não titubeia: aquele em que decidiu entrar pra polícia. Achava bonito, usar farda. Ser respeitado. Ter um trabalho de horas certas, com progressão de carreira, possibilidades de futuro, dinheiro certo e garantido ao fim do mês. Passou sem dificuldades pelas provas e testes. Todos os lugares comuns desfilados.

No dia em que foi preso, a mulher apresentou-se diante do comandante responsável pelo presídio. Olhos inchados de tanto chorar, levantou-lhe um dedo e disse-lhe:

- O senhor veja o que vão fazer com ele aí dentro. Entreguei um homem pra corporação, os senhores desfaçam esse monstro que querem me devolver.

Tudo isto aos gritos, o que deixou Seu Eliazar com fama de bem casado no presídio. Seu Eliazar encolheu os ombros, e não conseguiu olhar-se no espelho. Ainda hoje se procura por trás das rugas que o aumentam em uma década de anos.

Seu Eliazar serviu durante anos como achou que devia, descobrindo mês a mês que o dinheiro garantido não fechava as contas. Montou uma pequena marcenaria nos fundos do quintal e decidiu ensinar os dois filhos homens. Não tinham gosto, preferiam a rua. Seu Eliazar inquietava-se, e a mulher também.

No dia em que prendeu o traficante, não havia trânsito, a temperatura era amena, todos de bom humor em casa, todos de bom humor na delegacia. Sentiu-se poderoso e cumpridor ao trazer o indivíduo algemado, entrando na delegacia pela porta da frente. A vingança não demorou: os filhos foram assaltados na rua, a mulher dormia assustada quando Seu Eliazar estava no turno da noite, acordava com pancadas na porta, a filha recebeu bilhetes com ameaças anônimas. Os olhos de Seu Eliazar injetavam-se de sangue com cada vez mais facilidade. Na delegacia, os colegas percebiam-lhe a cólera crescente, filha do medo. E sorriam entre si, “Eliazar agora que é um dos nossos”.

Seu Eliazar passou em casa na quinta feira em que foi preso, tarde da noite. A mulher dormia exausta, os dois filhos homens também, a filha ainda faltava. Sai pra procurá-la. Aflito. Encontra-a na esquina antes de casa. Não tem dúvidas: dois tiros deixam dois corpos de homem no chão, sem aviso e sem perguntas. A filha aos gritos de “o que você fez, pai?”, e as sirenes a seguir, e os gritos da vizinhança. Abuso no exercício do poder, disse-lhe o comandante ao dar-lhe voz de prisão. Dia de muito azar, disseram os vizinhos que todo dia viam alguém morrer. Perdeu a insígnia, a arma, a farda e a liberdade.

Anteontem, Seu Eliazar conta que vai ser libertado. Está como no dia em que chegou a casa e sentiu falta da filha. Aflito, não sabe como suportar os olhares dos de fora, a vida inteira pela frente com uma marca nas costas.  Escreve pouco nesse dia, levanta-se para ir ao banheiro, está mais calado que todos os demais. Dão-lhe palmadas nas costas, felicitando a liberdade ao virar do dia. Seu sorriso é todo amarelo, e diz que vai cantar o hino do presídio: Há verdades que a falsa comédia/lhe arranca o pseudo capuz/e a plateia sorri vendo a pedra/ser lançada na cena sem luz. Seus olhos lacrimejam enquanto canta, a voz num fio fino e baixo. Quando sai, despede-se com um olhar em volta, sabendo que já não estará no próximo encontro. Seu Eliazar retirou-se da vida nessa madrugada, um pulo na frente do medo desembestado, uma poça de sangue onde boiam seus últimos versos: necessito de um deserto/de um inferno/de um buraco aberto no centro do peito.

(Os versos em itálico são de autoria do poeta Atiloa da Ribeira. 
No mais, qualquer semelhança é absoluta coincidência. As personagens são ficcionais.)

11/12/2012

Presente de Natal antecipado

Já se sabe: dezembro é tempo de agradecer as dádivas do ano. Uma, em especial, é preciso que eu agradeça antes de dia 11. Dia de último encontro de escrita criativa com o grupo de 25 detentos do presídio militar Romão Gomes, minha estreia no sistema penitenciário de São Paulo. Um grupo diferenciado, composto por policiais condenados ou em vias de (ou não), em condições de prisão bastante diferenciadas também, se formos pensar no sistema penitenciário brasileiro.

À primeira vista, trabalhar com policiais presos causou-me um certo desconforto. Puro preconceito, que tratei de desmontar com a eficácia que me foi possível antes do primeiro encontro. Ainda assim, o preconceito lá ficou, o que me fez ficar mais surpresa que o normal pelo fato de, nestas poucas semanas, o grupo ter deixado de ser "o grupo do presídio" e ter passado a ser o André, o Cruz, o Iranei, o Bélido, o Adilson, o Julião, o Ricardo, o Gama, o Barra, o Ronaldo, o Figueira, o Santinho, o Gomes, o Prado, o Sidney, o Fabiano, o Lima, o Ailton, o Soares, o Paulino, o Samuel e o Di Lucia. Seus rostos me acompanham por onde quer que eu vá; fazem-me olhar para o mundo com vontade de ver por quem não pode fazê-lo. Se fecho os olhos, vejo-os dentro da sala em que trabalhamos, cada um sentado no seu lugar cativo, o que me ajuda a lembrar dos nomes e associá-los à fisionomia, e esta àquilo que tenho entre mãos, que são os seus sonhos e o seu íntimo em forma de palavras.

Não sei de seus crimes, nem quero saber. O que me cabe está nestas horas em que somos todos seres humanos em busca da palavra exata, da construção precisa. Todos seres humanos lutando por entender-se, com dificuldade de perceber-se e urgência de perdoar-se. Prefiro olhá-los enquanto leem em voz alta o que escrevem, numa entonação que não consigo reproduzir, e que me emociona passadas horas. Como em todos os demais grupos de escrita, as dores aparecem por entre as linhas, as mais profundas esgueirando-se tenazes pelas letras que avançam seja qual for o assunto. Transmutam sofrimentos sem quase perceberem que o fazem, e eu tenho o privilégio de assistir e ser partícipe de tudo isso. Porque é fácil falar do quanto a palavra liberta a quem pensa ter a liberdade ao seu dispor; para quem sabe que liberdade é aquilo que corre nas ruas lá fora, libertar-se tem outro sentido.


26/11/2012

O sal da terra

Mais ou menos assim: chega-se a casa e abre-se o facebook. Querem-se notícias dos amigos que estão longe. Por que os amigos são o tesouro de cada dia que nasce. O sal da terra.

I. sente saudades de Goiás, e de uma Cora Coralina encostada às paredes gastas de sua casa. Lembro-me da crônica de uma viagem memorável e transcendente à cidade, e solidarizo-me com a saudade - mando-lhe o link, a ele que até já teceu comentários. Pode ser que lhe faça bem relê-la. A lembrança desse amigo lembra-me um jantar de polvo, anos atrás, o que me faz chegar até o congelador e retirar o prato cozinhado há algumas semanas, à espera de quem o degustasse surpreso, mas nem chegou perto. Penso nos polvos que me intimidaram bons anos e vejo este nessa lamentável situação de pedaço de gelo; a solução do medo de polvo foi, tempos atrás, cozinhá-lo e comê-lo - na companhia daquele amigo, o das saudades de Cora, que o mastigou comigo repetindo três vezes. Deu gosto, livrar-me de um medo atávico com companhia tão compreensiva. Hoje, nem preciso cozinhar, porque estava já tudo pronto: descongelo e como, digerindo cada um dos medos de hoje com os olhos postos na tela. Porque preciso dos meus amigos.

S. manda-me de presente a música que repentinamente compõe o céu que brilha lá fora, porque não dá mais, acabaram-se todas as expectativas irreais espalhadas à minha frente. É um alívio, entre uma garfada e outra, saber que o eclipse que por aí vem afetará todo mundo - é o amigo astrólogo que me tranquiliza, "não será só com você", diz ele... Também K. aparece, e mesmo rápida e fugaz, me diz numa imagem que olho com olhos simples - venha: o retorno também virá.

A seguir é M., que envia uma imagem da lagoa das Sete Cidades, nos Açores - essa mesma que ilustra esta crônica. Num instante, catapulta-me para o passado. Revejo-me dentro das águas do mar dos Açores, a janela aberta diante do azul esverdeado que não tem fim, o silêncio e o cinza das pedras da casa ao meu redor. Não há sensação de segurança (o que é isso?!), mas de pertencimento. De saber que é ali e naquele momento que eu sou aquilo que devo ser, e que aquele que respira, ao meu lado, está e é. A janela acompanha-me a vida inteira, é através dela que olho quando me perco, quando me perdem, quando o engano é maior que a realidade e o coração bate aflito em busca de um qualquer sentido.

Lá está meu avô, dentro da janela de passado que abro neste instante, e nós dois com os pés dentro da água azul da lagoa das Sete Cidades. Conta-me a história da princesa e do pastor, história de amor negado, história das lágrimas que ambos choraram, tantas e por tanto tempo, que preencheram a cratera do vulcão - um lado azul, da cor dos olhos da princesa;  o outro, verde, da cor das lágrimas dos olhos do pastor. 

Estamos na pequena estrada que divide uma lagoa da outra, a estreita faixa de terra que separa as cores do amor. Os olhos do meu avô refletem o azul da água; num instante, que quase não percebo mas aceito, agarra-me a mão e me leva ao outro lado, onde é o verde que se reflete na bondade das suas retinas. Não há mais nada, só a mudança de rumo, o verde e a bondade. Não é preciso mais nada.


22/11/2012

Tempo de sagitário

Começa a época de Sagitário, o arqueiro. Quíron, o centauro que o representa, espreita do céu, feliz com o retorno da sua figura metade gente, metade cavalo. E eu, em pleno inferno astral, decido nova investida numa tentativa obviamente sagitariana:  ir além do que já se sabe.

Entre outras coisas (são várias janelas abertas aqui na minha frente), procuro explicações para o que vem a ser esse tal de inferno astral, e por que apoquenta tanta gente. Leio que, assim como cada casa astral representa uma esfera da vida, também cada mês do ano se dedica a uma esfera da vida, acompanhando a progressão da carta. Assim, a décima segunda casa do mapa astral corresponde aos 30 dias de inferno astral - e como essa é a casa que representa os sacrifícios e doações que se devem fazer aos outros, sem esperar por recompensa, esse é o momento do ano em que, idealmente, devemos sair de nós mesmos e olhar para o que vemos, num exercício de saudável e necessário desapego. Se não conseguimos esse distanciamento, sofremos. Se conseguimos, o inferno não é tão infernal assim.

Gosto destes 30 dias, embora na maioria das vezes se apresentem instáveis, inquietos e insatisfeitos. A instabilidade e a inquietude pela proximidade de mais um ano, considerando que pouco se sabe sobre o que virá. E a insatisfação porque talvez os planos e projetos e ideais do começo do ano que acaba não se tenham plasmado o tanto ou o como se gostaria. Difícil, portanto. Fui desenvolvendo umas estratégias que, acho eu, ajudam a passar por essa tormenta.

Encontro, por entre papéis que decido arrumar (bom momento para se livrar da quinquilharia acumulada em doze meses), uma espécie de carta de intenções para o ano que começava há 365 dias. Rio-me, de tantas coisas que queria, e rio-me de novo porque, afinal de contas, acho que até consegui um bom tanto delas. As que não aconteceram, penso, melhor mesmo que não tenham se realizado. Soa otimista? É sagitariano. 

Encontro cartas que escrevi encerrando outros infernos astrais, balanços que me fazem bem a cada fim de ano, e que devo ter guardado com essa intenção mesmo: lembrar-me de que foi bom e repetir o feito. São agradecimentos, na sua maioria, de coração sincero e aberto. Fico feliz de ter tido a coragem de ter escrito boa parte deles. E começo a fazer os deste ano que termina, e que tanto sacolejou e desarrumou a vida. Coisas de 2012, leio aqui - um ano de desacomodação. Bom saber que não foi só comigo.

Preciso agradecer todo o tempo que pude dedicar a esta tarefa que me faz mais gente: escrever. De longe, a ocupação mais proveitosa do ano. Tanto a que dediquei a minha própria escrita quanto à alheia, tantos foram os momentos de oficinas que aconteceram. Revisito de olhos fechados os momentos ricos e prenhes de palavras, ao longo de todos e cada um dos meses do ano. As lágrimas que vi tantas vezes, das abertas às escondidas, aquelas que só soube porque depois me contaram, por escrito. A emoção de ver descobrir o princípio da voz pessoal em forma escrita, aquele brilho de olhos de quem se lê e pensa: "Ó! Esse sou eu escrevendo!". E, por outro lado, o ser confrontada com os meus vácuos, as minhas tantas obviedades, as abstrações tão simples que vivo querendo fazer caber num advérbio que nada diz de fato.

Preciso agradecer pela paciência com que fui cercada e cuidada. Pelo amor que se esgueirou por entre os dias. Pelo espaço aberto. Pela vida aberta. Pelo tempo aberto. Pela espera do que fica em aberto.

Preciso agradecer por todas as estradas que se palmilharam, os tantos quilômetros andados e voados, nessa atividade tão tão tão sagitariana que é andar de um lado para o outro e sempre achar que ainda não se chegou (porque de fato não se chegou, veja bem). Viagens, contatos e diversidade: quer melhor?!

Mas preciso, mais que nada, agradecer pelos encontros, os que se desenharam além e os que foram surpresas que não vi chegando, e se instalaram. Também pelos desencontros, que ajudam a posicionar a vida no seu quadrante exato, e mesmo que doa, que arda, que queime, é bom que assim seja, porque depois da convalescença descobrem-se novas inteirezas, novas áreas conquistadas dessa floresta que todos somos. Nessa hora, olha-se para trás e vê-se um caminho percorrido - os ziguezagues não são mais tempo perdido, mas um desenho cheio de riquezas; as linhas retas deixaram atrás de si a monotonia; as curvas preencheram-se de remansos. E o espaço que brilha à frente é o horizonte infindo, à espreita das flechas que serão lançadas ao longo dos próximos 12 meses. Planos? É bom fazê-los agora, nestes 30 dias que servem de revisitação, mas também de projeção consciente.



21/11/2012

De viés

Sabe quando a vida se apresenta oblíqua? Numa diagonal em relação à maioria do que costumam ser os seus fios? É assim o dia de hoje: de viés.

Um dos arcanos maiores do tarot, o Sol, representa a felicidade, a integridade, a autoconfiança. É uma carta que brilha, mas há um alerta: tudo aquilo que brilha traz consigo o prenúncio da queima. As cartas do tarot carregam em si a dualidade que comporta e nutre a vida. Porque tudo é várias coisas ao mesmo tempo, tudo tem pelo menos duas faces, fato que nos confunde as mais das vezes. Sobretudo quando se decide confiar mais na construção de pensamento do que nos fatos em si. As evidências: é delas que preciso para conseguir que o tempo de fato se encaixe no tempo em que a minha alma estacionou. Tudo ao contrário dessa direção oblíqua, enviesada.

Viés vem, via o francês biais, do latim bifax, que significa justamente duas faces. O campo da estatística, em todas as suas vertentes, apropriou-se da palavra e às vezes a substitui por outra expressão: erro sistemático. Aproxima-se da interpretação que a psicologia lhe dá, quando fala de "viés cognitivo": a tendência ao erro sistemático baseada em fatores cognitivos e não em evidências. Essa maneira de criar mecanismos de ação e de julgamento chama-se heurística - palavra que vem do mesmo lugar de onde vem aquela palavrinha simpática que Arquimedes usou quando descobriu como medir o volume de um objeto irregular usando água: eureka! Ou seja, a heurística é uma forma de descobrir, de achar, uma maneira de se aproximar de soluções possíveis, até ideais, ainda que não necessariamente as melhores. Parece um paradoxo, mas não é: a heurística não leva em consideração todas as variáveis que incidirão na prática, e por isso pode chegar a soluções ideais que, no momento da ação, não são mesmo as melhores.

Um dos nossos mecanismos de achar soluções é o uso de estereótipos, esses atalhos que usamos para entender mais simplesmente o nosso ao redor e nos posicionarmos diante dele. Às vezes, induz ao erro; às vezes, não. O nosso dia a dia usa estereótipos o tempo inteiro. Errarmos ou não depende em muito da nossa capacidade de observação das evidências que nos cercam, e da nossa flexibilidade com relação às categorias que vamos criando internamente ao longo da vida, e que dirigem e norteiam boa parte dos nossos julgamentos e posicionamentos.

Estive imersa durante alguns dias numa realidade que no mínimo só posso chamar de paralela. Daquelas situações em que se olha em volta e se pensa "caramba, afinal a utopia é bem possível". Volto alinhavada dessa energia, querendo que meu pensamento seja tudo, menos divergente. Manter-me focada, diz-se. Mas de repente encontro-me encravada com variáveis mais duras e densas. E como me esqueci de rearmar as defesas que neste mundo transversal ainda me ajudam a manter a cabeça à tona da água, como não estava preparada, o sol, que é também mas não só felicidade, integridade e alegria, cegou-me. Porque me distraí e esqueci de olhar as evidências à minha volta.

Por isso escrevo. Como uma forma de enviesar a dor, torcendo para que esse não seja o meu particular e arraigado erro sistemático. Torcendo para amanhã voltar a ler o que escrevi e perceber que esta qualquer coisa encravada sumiu-se nas letras impressas, por entre as linhas que não li porque não previ a falta de olhos, de olfatos, de sensores para o que se materializa tão evidente e a mente em seus projetos sequer vislumbra.



Foto: Suzana Siqueira