Hoje de manhã decidi arrumar papeis. Colocar em pastas o que pertence a projetos acabados - tão mas tão recém acabados que me olham espantados de que os queira guardar. Mas é preciso, inclusive para abrir espaço na minha mesa para os que já batem à porta, insistência mansa de algumas semanas. Descubro, a meio dessa lenta arrumação, atentamente lenta em tudo o que me ocupa inteira, que tenho um trânsito poderoso no meu céu: um marte em conjunção com mercúrio natal, coisa que, aprendo, só acontece de dois em dois anos, e que me trará a sensação de ter bebido dez xícaras de café. Céus! Já devo estar já na quinta, penso. E canso, só de imaginar o que trarão esses próximos vinte dias, tempo que dura o tal trânsito.
Por isso decido andar pelos campos, para quem sabe diminuir toda essa cafeína astral dentro de mim. Não é fuga, repito pra mim mesma, é vontade de procurar. Volto ao mesmo lugar de ontem, na expectativa de recuperar a impressão já passada, mas acontece como tantas vezes: o passado está lá, consigo quase senti-lo com as pontas dos dedos, de mãos dadas com o presente, mas eu não estou. Olho em volta, deito-me ao comprido na relva, como me recomendaria Caeiro, fecho e abro os olhos, mas nada: o mundo em mim mudou. Ouço a minha filha gritar, num entusiasmo que lhe é bem característico: "Caramba, um campo de cabelos de sereia!", mas é o seu grito de ontem, a sua reedição em meus ouvidos treinados em reeditarem os sons. Rio-me quase como me ri ontem ao ouvi-la, nesse êxtase que vê à sua volta, e vejo-a correr para cima e para baixo, flutuando leve por cima dessas hastes que lhe sorriem tentadoras. Mas ela está em casa, desenhando cabelos de sereia, e quem está aqui sou, mais a minha memória feita de tato e ouvido e gosto.
Volto para casa horas depois, fotografias a tiracolo, um atraso já presente do que é preciso fazer hoje. Olho a minha mesa, a pasta que deixei entreaberta para que o passado terminado respire seu último oxigênio. E de repente penso que o passado são conchas que se escondem dentro de si, estrelas do destino em forma côncava. Ele, o passado, sai por uma porta, trazendo atrás de si o futuro; eu permaneço de pé, mãos estendidas querendo esse presente impalpável que insiste em se tornar mais matéria quando já se foi. Como um corpo que crescesse de repente, num trapézio de rugas que aprendo a interpretar quando se faz noite, um corpo feito de hastes maleáveis de silêncio impenetrável, a que a minha filha deu o nome de sereias.