“Allá donde están los molinos del
Quijote”: foi assim que ele se apresentou na roda em que estávamos, quando lhe
perguntaram de onde vinha. E isso foi o bastante. O namoro, o meu primeiro,
durou poucos dias; sequer me lembro do nome dele, nem consigo ver-lhe o rosto ao fechar os olhos. Só essa frase. Poucos dias, mas intensos;
um acampamento, tudo novidades, a frequência diária. Quando o visitei, semanas
depois, fugindo à vigilância paterna, nas suas terras de La Mancha, recebeu-me
com aceitunas e queso manchego, que fomos comer debaixo das pás dos moinhos escolhidos
como corpo da sua referência. A paisagem plana e lisa à nossa volta, como os
sentimentos que amainavam. Inesquecível.
Cervantes acompanhou-me, de lá pra
cá, aqui e ali; sofri com as Novelas Ejemplares na escola, pouco disposta a
essas leituras na altura, querendo respirar só Lorca, só Rubén Darío, só
Neruda. Não as li direito até hoje e, nesse meio tempo, Cervantes foi cedendo
espaço a Camões.
“O homem de La Mancha” voltou
anos atrás, quando Marco Antonio me pediu que revisasse a peça que seus alunos,
entre eles meu filho mais velho, encenariam. Cervantes a la Broadway, numa apresentação
bonita e simples na Casa das Meninas, em Botucatu, sob a batuta de Kim Marques.
Hoje, precisando identificar um momento pessoal de revelação de personagens, escolho
esse, achando que seja aleatoriamente e ao acaso. Não é.
Quem faz curso de letras
inevitavelmente descobre em algum momento que as personagens da narrativa se
dividem básica e simplesmente em personagens planas e redondas. Lembro de ter
gostado demais dessa definição geométrica, metáfora perfeita para o que é
preciso lembrar da história. Foi o ano de descoberta de Barthes, dos
estruturalistas, das teorias da narratologia, de um Forster que dizia “Como posso saber o que eu penso, até um
escutar o que eu digo?”, e isso fazia
tanto sentido. O mesmo Forster que apelidou as personagens de Homo fictus, seres ficcionais no âmago de qualquer narrativa, e propôs a sua divisão nesses dois
tipos, flat e round no original. Como qualquer teoria é dada às suas falhas, nem
sempre consigo que as personagens que leio ou escrevo se encaixem com tanta
perfeição em um ou outro lugar, mas há (lembro) exemplos lapidares, como o
corajoso e bondoso Peri (plana) ou o denso e surpreendente Dom Casmurro
(redonda). Personagens planas tendem ao tipo, à caricatura, à densidade nenhuma,
às atitudes previsíveis, ao caminho reto e sem surpresas. Personagens redondas
(ou personagens que se arredondam) são densas, imprevisíveis, nunca se sabe o
que dirão, o que farão, o seu caminho é feito de transformação, e mantêm-nos
num suspense que nos faz soltar ahs e ohs conforme a sua descoberta avança.
Porque as personagens redondas precisam ser descobertas, conquistadas, não se
oferecem de cara como as planas, que podem revelar-se numa frase apenas, que
nos diz tudo e nos faz sentir que estamos satisfeitos.
Dos anos de faculdade até agora
não se tornou mais fácil acoplar as ideias estruturalistas à minha prática. Não
é que não goste; gosto, mas não me afino. Só isso. Por isso olho para esta minha escolha, Dom
Quixote à minha esquerda, Sancho Panza à minha direita, e reluto em
encaixotá-los em algum lado. Tendo a achar o Quixote até previsível – lembro-me
de que, embora risse, porque não há como não rir, me cansavam as estripulias da
Triste Figura, que começam a ficar previsíveis - mas sei que é geralmente
considerada uma personagem redonda. E tendo a achar que Sancho é o mais
imprevisível, na sua paciente e persistente decisão de acompanhar seu amo em
todas as batalhas enlouquecidas – embora eu saiba que é por vezes exemplo de personagem
que tende ao plano. Ambos parecem-me planas, às vezes. E ambos parecem-me
redondas, logo depois. Porque há densidade e conteúdo em ambas, detalhes ricos
que se descobrem aos poucos, a humanidade inesgotável de Sancho, a intrepidez
alucinada de Quixote. No que preciso escrever, decido, direi que ambos são
tipos alinhavados de dentro para fora, para que não seja óbvio e para que a
identificação seja lenta e interna, e vou abster-me da geometria.
E, como se gostasse no minuto em que me decido por esse
caminho, Sancho de repente ganha luminosidade, ao lado de um Quixote que cavalga a sombra da própria estampa. O Sancho que acompanha e vela e cuida da
loucura alheia, esquecendo-se de si próprio a cada instante. Tão idealista quanto
o cavaleiro, largando a vida no campo para ser o que a tradição lhe dizia que poderia ser: um escudeiro servindo a seu senhor. Carrega escudo, remédios, comida - e sobretudo equilíbrio.
Gordo, analfabeto e pragmático, faz-nos rir ao longo do romance, num riso que
espelha identificação das nossas mazelas humanidades cotidianas. Come demais,
vomita, é mal criado - mas é ele quem cura as feridas, quem cozinha, quem leva
e traz recados, quem vê rebanhos onde o outro vê exércitos, moinhos onde se
levantam gigantes. As longas conversas entre os dois, pelos campos de La Mancha,
são provavelmente os pontos altos do romance, talvez onde se torne mais claro o
quanto um jamais sobreviveria sem o outro, o quanto um se realiza e se permite
porque o outro está ao lado, vigilante ou louco.
São raras, mas há pessoas que
medem o horizonte com os olhos do impossível e agem sabendo que o mundo
pode acabar na próxima esquina, como se conscientes e mergulhados nos dias que se sucedem um ao outro. Como se amalgamassem sonhos quixotescos - irrealizáveis e
fadados à derrota, mantendo-os vivos e pulsantes dentro de si mesmos, numa
coragem que inspira e fascina – à ação impressa com pulso e decisão no
cotidiano alheio, às vezes cinza, às vezes pleno de brilho. Pessoas que sonham ao
estender a mão. Pessoas que estendem a mão e fazem sonhar uma vida melhor, ainda
que seja impossível e tudo diga que não. Pessoas quase personagens, um risco no meio da vida, ao qual (escrevem-me lá de Porto Alegre) devemos nos dedicar, mas com cuidado, e sobretudo ao escrever.