Por pura falta de inspiração,
vontade e capacidade de me concentrar no que quer que seja, decido hoje de
manhã lavar a calçada – a entrada inteira de casa, na verdade, por onde
caminharam carrinhos e carrinhos desta terra roxa que Araraquara celebra e que
jamais desaparece das meias que a pisam. Claro que acho um desperdício de água,
mas logo vi que a vizinhança respirou aliviada. Ao menos alguém se alivia.
A maioria dos meus novos vizinhos
mora nesta rua há mais de 50 anos, o que já dá uma ideia da faixa etária dos
mesmos. São quietos e observadores, e aos poucos vou percebendo por onde
observam o movimento desta casa que parece não parar sossegada. Cumprimentam-me
educados na rua, quando lhes desejo bom dia, e olham com uma forma curiosa de interesse
para o monte de entulho que não some, as pilhas de tijolos que não diminuem, a
areia, a terra, a pedra... balançam a cabeça (antes era imperceptível, hoje
percebe-se claramente) mas não dizem nada. A mim, ao menos.
Assim que saí para a calçada
armada de mangueira, perto das 8h da manhã, uma vizinha logo abriu o portão do
lado esquerdo, outra atravessou a rua toda alegre e ainda uma outra espreitou
por cima do muro e logo veio também juntar-se à animada conversa. Parecia que
estavam à espera, cada qual atrás da sua vida. A animação tinha motivo: todas
estavam preocupadas de eu não ainda não ter lavado a calçada. Nem um dia sequer!
Dona S. era a mais exultante: “Mas que bom, Ana, assim eu posso lavar só a minha,
não preciso mais lavar a sua!”. E eu com os meus botões pensando na minha pouca
intenção de repetir o feito. Ela sorri piscando os olhos, querendo garantir que
eu sei exatamente do que ela está falando. Dona M., vizinha da frente, não diz
nada – e me dá a impressão de que no fundo critica o jeito todo franco de dona S., mas
jamais diria nada, porque afinal a calçada ficou lavadinha. Passados uns minutos
arrisca bem baixinho um “é, os paralelepípedos também podiam ganhar uma
aguinha, né mesmo?” mas eu juro que escolho e prefiro não a ouvir, e seja lá
por qual motivo ela não repete. Lavar a rua já é um pouco demais. Ainda assim,
volto meia hora depois de vassoura e pá e recolho o que caiu da caçamba que
levaram embora atulhada de entulho até a alma. Acordei com vontade de agradar a
vizinhança. E mesmo rindo da situação, volto com a pá cheia pra dentro de casa.
No fundo no fundo essa meia hora
de prosa devolveu-me uma espécie de pertencimento perdido – pertencimento a mim
mesma, que dificilmente me percebo sozinha, preciso do outro pra me cutucar e
dizer que eu sou de carne e osso, não só sangue escorrendo por dentro das veias. Pertencimento ainda que seja no reconhecer da minha capacidade
enquanto lavadora de calçadas. Volto para dentro com mais forças para sentar-me
ao computador e dar conta da tarefa diária, laudas que não avançam porque eu
não permito, petrificada diante das folhas que preciso ler para reescrever e
reescrever e reescrever. Sem parecer que avanço. Igualzinho à vida. Agora, alma
e calçada lavadas, ponho-me a caminho novamente, menos ocupada com as
curvas, as ribanceiras, os túneis, as tempestades todas que estão a caminho também.