Umas semanas atrás, ao abrir meu email, recebi algumas fotos, fotos antigas da cidade de Lisboa. Muitos chafarizes, pessoas apinhadas à sua volta numa época em que não existiam canos. Duas delas capturam-me, e sinto mover-se dentro de mim um sentimento que não consigo definir, mas me faz lembrar dos sonhos dos formandos da medicina. Um vendedor de castanhas, na sua bicicleta, olha-me intensamente do lado de lá, parecendo orgulhoso de ser fotografado e ao mesmo tempo dono de um segredo que não pode revelar. Descubro-lhe o nome, ao canto da foto: Tomé Fonseca. Logo me lembro da história que ouvi em pequena, do vendedor de castanhas de olhos azuis e pele cor de azeitona, que encantava as raparigas que frequentavam o Largo do Rato em fins do século XIX. Um dia, vendendo calmamente as suas castanhas no início do outono lisboeta, Tomé viu-se rodeado de um magote de homens. No seu português cantado, denunciando a origem a sul, Tomé quis defender-se, mas os homens eram muitos e chegaram armados de pedras e paus. As meninas que compravam castanhas fugiram em busca de suas mães, nenhuma delas sequer se virou para o defender. De nada valeu a Tomé explicar que nada sabia da menina Constança, nem sabia que tivesse sido encontrada morta na calçada da Estrela – era dele que ela comprava castanhas todos os dias, desde que começara o outono. Como não lhe tinham valido os avisos do pai de que se mantivesse longe do cigano das castanhas, agora era com eles. E nunca mais se viu o Tomé Fonseca, o cigano das castanhas.
Outra fotografia mostra uma varina descarregando o peixe de uma traineira, atracada, deduzo, ao Cais das Colunas, o mesmo que acabou de ser restaurado, dando fim às obras do Terreiro do Paço que se arrastaram desde que eu me conheço por gente. Varinas ainda as há, continuam vendendo o peixe do Mercado da Ribeira, ali mesmo ao lado do dito cais. Já não descem das traineiras atravessando a prancha estreita e comprida, num balanço na cadência dos passos descalços, alguidar de peixe à cabeça. Manobra arriscada, essa do desembarcar o peixe - varinas eram mulheres de respeito, usavam chinelas bordadas a fio de ouro e representam a cidade de Lisboa na sua melhor forma quinhentista. Hoje, cada uma em sua barraca, continuam aos berros a vender o seu peixe. Lançam elogios aos rapazes que passam e agradam, desatam aos palavrões gritados quando alguém as chateia e não estão quietas um segundo – “Ó menina! Venha cá ver este pargo, está a querer lançar-se dentro da sua panela!”
Eu não cresci em Lisboa, mas mercado de peixe é o que mais há por todo Portugal. Dia de feira de peixe é dia de cheiro de peixe por todo lado, tudo fresco e acabado de pescar, e as mesmas varinas, que em outras cidades são as mulheres do peixe e ponto, gritam da mesma maneira. Metade do baixo calão que aprendi na infância foi com elas, enquanto a minha avó se desesperava para que saíssemos logo dali, que a minha língua segundo ela já era afiada o suficiente. Acho que, secretamente, ela gostava que eu visse como o mundo é variado, sempre ao seu lado e de mão dada, não fosse eu querer perder-me dentro dele.
Descubro, com essas fotografias que me coloriram estes dias, o quanto tudo faz parte de cada um, ainda que pouco ou nada se conheça. Pelo poder que tem de despertar o que dorme, a imagem apodera-se das nossas lembranças e distorce-as, alimenta-as, espreme-as, enovela-se pelo meio delas e obriga a que se atualizem ou, na pior (ou melhor?!) das hipóteses, que se inventem a si mesmas. É só permitir que aconteça e abrir a cortina que nos divide em possíveis impossíveis e impossíveis possíveis.