09/03/2015

Filhos da primavera

Assim como nós, livros também nascem. São sonhados, curtidos, imaginados. Crescem resguardados dentro de um útero de palavras, como seres que se anunciam a si mesmos. E, um dia, saem de dentro. Ganham as prateleiras das livrarias, as mãos das pessoas, os olhos dos leitores. Este livro, que de forma muito especial nos fala de nascimentos, nasce com a boa estrela das almas generosas.

O gesto de cada mulher e de cada homem que aqui em "Filhos da Primavera" registram momentos tão íntimos e transformadores de suas vidas é uma oferta desprendida e amorosa, a todos nós que os lemos. É possível que eles mesmos não tenham ainda a percepção do quanto é importante esse seu gesto. De quanto a humanidade se nutre de coisas assim, que apenas desejam dizer ao outro que novas formas de nascer, de viver, de pensar são possíveis – e eles dizem: “Veja, se comigo foi possível, e hoje eu sou tão feliz por isso, porque não seria assim com você?”.

Meu filho mais velho, dos sete que tenho a honra de ter trazido à luz na minha própria casa, tem hoje 29 anos. Há quase três décadas, nascer de forma diferente, buscando maneiras que nos libertassem de um sistema em nada humanizador, não era moda entre nós. Não era assunto. Não era matéria de revista, ou jornal. Não se falava de técnicas de massagem, não havia videos, nem doulas, nem bolas, nem panos, nem banheiras facilmente adaptáveis a qualquer lugar. Justamente por isso, talvez no fundo fosse mais simples. Havia a casa, havia a confiança, havia a penumbra e o silêncio, e havia a certeza de receber um ser espiritual na terra de uma forma respeitosa e honesta.

Não ter muitas possibilidades de troca, não ter relatos como estes que aqui se oferecem, não ter exemplos ao lado para referenciar as escolhas, fez com que precisássemos encontrar alicerces internos para seguir adiante e dar à luz não só filhos, mas também ideias, posicionamentos, escolhas viscerais.

É essa visceralidade que assoma aqui e ali nas páginas que você está prestes a ler. A visceralidade transformada em vontade férrea e determinada, em encarar a própria verdade de frente. É lindo de ver o quanto um ser humano pode superar-se, adentrar-se, florir-se para dentro para renovar-se pra fora.

É preciso que construamos em nós a certeza inabalável de que somos responsáveis por nós mesmos. Que as nossas escolhas têm força no momento em que as assumimos e colocamos em marcha, e que a mantêm quando não esmorecemos e nos conectamos com a sua fonte geradora, que vive em nós, e não fora. Que para além de nascerem nossos filhos, nascemos nós outras, renascidas a cada parto. Cada vez mais generosas, mais afetuosas e mais compreensivas.


Ficha técnica
Filhos da primavera
Organizado por Camila Capacle Paiva, Celso Monari e Luiza Paim
Ilustrado por Itaiana Battoni
Contato https://www.facebook.com/filhosdaprimavera?ref=br_rs

02/03/2015

A morte que não é só tua

Penso em ti, Humberto. Nos teus 23 anos. Nos teus pais que te sonharam engenheiro. E não consigo dormir, Humberto, porque a tua morte, sendo única, carrega a voz silenciada de centenas de outras. 

Vejo o teu sorriso estampado na página do jornal. E me pergunto o porquê. Por que tantos Humbertos em tantas festas universitárias. Por que tanto excesso alcoólico, tanta busca desenfreada de perder-se a si mesmo, de diluir-se, tanta necessidade de dar à vida um a-mais que ela parece não ter, tanto subterfúgio de open bar para cada vez fechar-se mais na falta de sentido. 

Gosto de procurar os porquês das coisas, ainda que não os encontre. Ou ainda que o que encontre seja infinitamente pior do que imaginava. Ainda prefiro o travo amargo de me sentir traída pela vida ao vazio inexplicável da vida que não se mostra. E por isso fico cativa do teu rosto na tela do meu computador, Humberto, e tento ver por trás das lentes dos teus óculos escuros o que foi que te faltou, ou o que foi que te sobrou, ou o que foi que te doeu tanto (a falta, a ausência, o vazio?), que te levou para fora do limite da vida quando parecia que apenas o adentravas.

Não serás tu o único responsável, ainda que o sejas na parte que te cabe. Porque eu mesma o sou, a cada vez que nada digo. A cada vez que baixo os olhos. A cada vez que desisto, porque parece mais fácil (mais cômodo) do que insistir. São responsáveis aqueles que te convidaram à festa, aqueles que contigo foram, aqueles que aplaudiram, um a um, os 25 copos de vodca que tomaste em pouco mais de uma hora. São responsáveis os que organizaram a festa, os que arrendaram a chácara, os que transportaram as garrafas, os que as produziram, os que as anunciaram, os que as guardaram, os que as pagaram, os que as serviram, os que delas se aproveitaram para lucrar umas moedas. Cada um com a sua cota de responsabilidade, somos todos, por ação ou omissão, responsáveis pela tua morte, que apenas anuncia, nesta rede de tv aberta que desligamos com um deslizar de pensamento, a epidemia devastadora que se abate sobre nós todos, e que me faz perguntar a que tipo de humanidade afinal pertencemos. Ainda que só a sintamos quando nos esfola a própria pele, esta é uma morte de nós todos. E é por isso, Humberto, que eu limitadamente choro a tua morte - porque poderias ser eu mesma, ou meu filho, meu aluno, meu vizinho, parente, conhecido, amigo, irmão. E assim, nessa proximidade que nos faz a todos irmãos, dói-me mais a tua partida, ainda que nunca tivesse te sabido aqui.

Apago a luz como se apagasse a vida, e junto-me a ti e aos teus, e não fecho os olhos nem durmo. Peço àqueles que te guiam, nessa passagem que fazes, que nos auxiliem a nós que ficamos a que percebamos dos limites os contornos, e deixemos de ignorar as curvas e as pedras do caminho, pintando-as com cores que não são delas. Por nós e pelos que fiquem de ti entre nós, e para que a tua morte não seja um vão a mais na nossa incapacidade de proteger o que precisa e merece ser protegido.

28/01/2015

Contas

Ora digamos que Paula, nesse dia em que chegou de viagem, encolheu o pensamento entre as duas palavras que encontrou escritas no espelho do banheiro: "renuncia, ou desiste".

Estranhou, ficou atônita mesmo, não fazia a menor ideia do que significavam, ou de quem ali as deixara. Os amigos a quem emprestara o apartamento de um quarto só, talvez. Mas seriam para ela? Essa necessidade imperiosa de escolha, pertencia-lhe?

Bateu-me à porta de casa. Sou a vizinha da frente. Meu trabalho consiste em resgatar palavras do limbo de seu não-significado - sou dicionarista, uma espécie de profissão de quem se rodeia de palavras o dia todo, e lhes descobre vida onde só vivem som e grafia. É uma tarefa de vida solitária, a minha, e gosto que me batam à porta de vez em quando.

Além de palavras, gosto também de guardar os tempos precisos. Tenho uma memória privilegiada: é raro esquecer-me de algo que vi, ouvi ou li. Não tenho pressa, na vida, e faço muito do que sou por escrito. Porque os tempos têm a natureza confusa e, se não se anotam as coisas, parecerá que x veio antes de y, quando na realidade quem primeiro chegou foi y. Por isso, para tudo, nestes tempos estranhos em que relógios não têm ponteiros e correm desenfreados e loucos para chegar à hora seguinte, é preciso guardar o tempo preciso.

Dava corda ao relógio da sala quando Paula bateu à porta. De leve, desse jeito envergonhado que ela tem com tudo o que é dela. Pediu-me ajuda. Contou-me do espelho de seu banheiro, e disse-me ter encontrado, entre a linha dos olhos e as comissuras dos lábios, essas palavras que lhe tomaram os olhos. Que diferença existe, perguntou, entre renunciar e desistir?

Ergui a porta do departamento de latim que vive na minha mente. Ambas as palavras guardam o seu início na língua latina. Quer dizer: isso é o que nós achamos. Renúncia, lembrei-me e disse, é a retirada de uma palavra. Renuncio quando nego e repudio o que antes disse. Só renuncia, concluí diante dela, quem alguma vez disse. Renunciar nasce de dentro da palavra nuntiare, que significa informar, declarar, anunciar, todos eles verbos com tendência à objetividade, à ação, à declaração. Quando a nuntiare juntamos o prefixo re, somos levados para trás. Damos marcha a ré. Quem renuncia, dá marcha atrás a sua própria declaração. Isso às vezes é possível, outras é um perigo - há palavras que uma vez ditas, nunca, jamais, podem ser retiradas. Acontece assim às grandes, e incômodas, verdades. Talvez preferíssemos nunca tê-las visto, isto é, dito.

Já desistir parece-se com sua palavra mãe - desistere. De (que é fora) mais sistere (que é o ato de parar, de interromper), em nada repudia o antes dito. Quem desiste, interrompe desde fora um movimento que está. Quem repudia, imobiliza, estagna. Vários motivos podem levar um sujeito a desistir, até mesmo o estado de estupefacção, de sobressalto, de susto, de incompreensão, de estar atônita como vc está, disse-lhe baixinho. É uma interrupção de ação, mais do que uma ação em si, como é o ato de repudiar.

Paula ouviu-me de olhos fechados. Parecia passar, um a um, as pequenas e as grandes renúncias da sua vida. Uma a uma, as desistências. Parecia colocá-las lado a lado, pesando e medindo tudo o que já repudiara e tudo o que deixara estagnar-se. Deixei-a sozinha. Voltei-me para as minhas próprias coisas, e aos poucos os olhos foram-se-me enchendo de água. Renunciar às coisas do mundo e da alma, é das escolhas mais dolorosas e duras de toda uma vida. São elas que nos alteram, às vezes sem que o desejemos, a superfície da pele.

Imagem: Lila Marques


26/01/2015

461

São três anos. Três anos descobrindo uma parte desta cidade que amo há trinta. Aprendi a amar São Paulo nas ruas do seu centro. Morei na Barão de Campinas. Amei, amei mais e mais ainda - meu primeiro filho nasceu na esquina com a Alameda Nothman, ali no lugar mais improvável para trazer em paz um filho ao mundo. 

Depois, Parelheiros - um começo único para o longo período de vida campesina, como diz nosso querido André. Ia e voltava do Butantã, do Pacaembu, de Higienópolis. Meu São Paulo era desse tamanho, e tanto gostava de um lado quanto do outro. Santo Amaro era lugar de passagem, mesmo com a Marina que morava por ali, assim como a Conceição, lá em Guarapiranga. Marina foi-se para São Chico, Conceição que voltas terá dado?, e nós já andávamos pelas terras quentes e pelos bons ares do interior paulista. Outros se foram para outros lados, parece que só o Claret resistiu paulistanamente.

Voltei, pouco e pouco, num processo de reapaixonamento que me ofereceu novas amizades, daquelas que são fortalezas no tempo e no espaço, dimensões que sequer existem - porque São Paulo abre-se em possibilidades que desafiam uma e outra dimensão, e descobrimos que não há tempo para nada, mas a vida é assim mesmo e bom é vivê-la.

De pouco em pouco, foi virando muito. Nesses três anos, aprendi a locomover-me por Santo Amaro. Não sei por que tanta resistência durante tantos anos. Sorrio por dentro quando acerto o nome da rua, e rio despregadamente se ainda por cima acerto o caminho de primeira. Encanto-me com as árvores. Com a sinuosidade das ruas. Com a mistura de casas. Com o tempo que cheira a velho. Com as avenidas que agora, em vez de rios, fluem e refluem carros. Com os lugares pequenos que só a vida de bairro tem. 

E, em meio a tudo isso, ali enorme tantos anos, observo esse Borba Gato da Avenida Santo Amaro, que me parece o antepassado do playmobil, quem sabe a sua inspiração? Intriga-me tanto: repare nas pernas, na saia... é ou não é o homenzinho do brinquedo?! Agradeço quando o sinal fecha e eu posso olhá-lo sem ser de passagem. Júlio Guerra, que o projetou e executou no começo da década de 60, quis usar materiais diferentes daqueles que se usavam em cemitérios. Nada de bronze. Quis coisa que o povo reconhecesse. Usou trilhos de trem como sustentação para o barro, o gesso e o concreto. Revestiu esse gigante de pedras quebradas no quintal de sua casa da avenida João Dias, logo ali na frente. O resultado é essa descomunalidade de 13 metros de altura e 20 toneladas, marco absoluto (ainda que não unânime) de Santo Amaro. Nesse surto de amor por esse bairro que me acolheu tanto nos últimos tempos, só posso mesmo sorrir para o velho bandeirante ao passar. Não tanto por ele, homem bruto de história pouco clara como a de todos os brutos. Mas pela cidade que agreste e suja e confusa e superpovoada e injusta e congestionada abre os braços em todas as direções, e seja pela Bandeirantes, pela Castelo, pela Fernão Dias ou pela Imigrantes, a todos recebe com a mesma possibilidade caótica de riquezas sem par. Antes que seu dia acabe, parabéns, São Paulo!


18/01/2015

A Indonésia em nós


Leio estarrecida os comentários às notícias sobre o fuzilamento de Marco Archer ontem, na Indonésia, tão perto do atentado ao jornal do país que nos legou as palavras egalité, fraternité e liberté. Há uma quarta palavra que parece ter desaparecido do íntimo das pessoas, e que nasceu no mesmo lugar: solidarité.



Solidariedade é um algo inteiro, completo e interdependente. Ser solidário é reconhecer-se no outro, porque o outro é um ser humano igualzinho a você, cada um com as suas alegrias, as suas falhas, as suas fraquezas, as suas conquistas, as suas inconsistências. É saber que aquilo que o outro é, é também o que você mesmo é. Inteira, completa e interdependentemente. Não naquilo que me agrada e que eu mesmo faria, mas até mesmo naquilo que não compreendo. Ser solidário não é concordar, mas é no mínimo ter certeza, absoluta, de que o outro (todos os outros) tem tanto direito à vida quanto eu. Ponto.


Solidariedade demanda compaixão, que por sua vez demanda empatia, que por sua vez demanda pathos, que é basicamente o estado vivo de emoção... Tudo artigo escasso nestes dias em que nos vangloriamos de sermos racionais e objetivos, deixando de perceber o quanto somos manipulados da forma mais vil e estúpida. E não pense apenas nos grandes temas, porque o grande está no pequeno assim como o pequeno está no grande, já o Oriente e a física quântica nos ensinaram.


Não sei se a palavra solidariedade consta da Declaração dos Direitos Humanos, esse documento de uma civilização inteira desesperada por escapar à barbárie exposta com a abertura dos portões de Auschwitz. Se não consta, deveria - porque me parece ser uma boa parte do iceberg invisível das nossas relações. Muito embora a Declaração em si pareça ter sido soterrada pela entropia dominante. Entre em qualquer site de notícias, procure por aquelas que falam do fuzilamento, e mantenha a cabeça no lugar ao ler os comentários.

A bem da verdade, não chega a espantar, nesse nosso Mundo Novo de selfies. O mundo não se reduz mais àquilo que os meus olhos veem (o que já era um senhor problema): o mundo agora reduz-se a mim mesmo sob meu próprio olhar. Nada de "penso, logo existo". Agora é "Me vejo, logo existo". E nem preciso de ninguém, eu mesmo aperto o botão da minha foto, se quiser distância uso até um "pau de selfie" e me legitimo feliz da vida olhando para a imagem que eu mesmo crio e espalho. Os outros... que outros?!

Agora, me espanta. Espanta que a nossa capacidade de irreflexão e de ação automatizada cresça como cresce. Que se torne tão fácil acreditar nas próprias mentiras, e que nada em nós se abale ao repassá-las aos outros (ops... que outros?!). Espanta que a tragédia alheia, que jamais diminuiu a tragédia de ninguém, não se perceba como própria. Que o coração não se aperte ao pensar nesse homem fuzilado. Que nos tenhamos esquecido das atrocidades que essa mesma Indonésia perpetrou contra Timor Leste há tão, mas tão pouco tempo - e justifiquemos a sua ação abjeta apoiados em que "cada país tem as suas leis". Se cada país tem as suas leis, e se estamos à sua mercê, não há o porquê de Je suis charlie, não há o porquê de assinarmos abaixo-assinados com um click da nossa confortável poltrona, para que a violência de hoje na Nigéria tenha um fim. Batendo palmas para a pena de morte na Indonésia, batemos palmas para o fim civilizatório. Em vez de sentirmos, pensarmos e agirmos após refletir sobre ambos movimentos, mandamos um recado claro: sinta, pense e aja. Os outros?! Que outros?!

23/12/2014

Madrugada

Acordo com um vulcão dentro do peito. Ouço as erupções no escuro da madrugada, sinto o calor da lava a subir pelas laterais da cama. E ouço a voz de minha mãe, confundida com outras vozes que se fazem ouvir.

Ouço-a contar-me, como se estivesse ao meu lado e não no jardim da casa onde vive hoje em Fátima, dos 13 meses de atividade vulcânica que acompanhou da escadaria da casa de sua avó, casa açoriana construída em cima de uma rocha tão grande que em seu interior tinha uma gruta. Terras de basalto, casas de basalto, mar azul petróleo em volta: os Açores são meu pensamento em voo quando o mundo concreto craquela. Lá está a janela da casa dessa minha bisavó, transbordada sobre o mar. Lá estão os ensaios da banda da igreja. Lá estão as águas-vivas a dançar na beira da praia. Lá estão as terras vulcânicas, essa paisagem lunar que já criança me depositava silêncio na alma.

Minha mãe conta da mescla estranha de terror e fascínio que sentia, da rudimentar máquina fotográfica empenhada em registrar a evolução diária desse vulcão. Conta da espessa nuvem de cinzas, incessante, a soterrar casas, a tornar o ar irrespirável, pessoas evacuadas, um farol quase desaparecido, metros de terra escura ganhos ao mar. "Essas terras", dizia, "tornar-se-ão nas mais férteis da ilha. Talvez eu não chegue a ver esse dia, mas talvez teus filhos sim."

Talvez nem eles. A natureza é mais indomável do que pretende o nosso pensamento; segue o seu próprio e desconhecido tempo, e não há nada a fazer a não ser munir-se das armas serenas da espera.

É o gosto dessas armas que amanhece na minha boca. Mesmo serenas, são amargas. Penso nos Capelinhos como se a vida fossem, e enterro as mãos nessas cinzas ainda quentes. São estranhamente líquidas, sobem até à garganta e dizem-me que não as deixe transbordar: "Agarra-te a essa inconsistência de neblina que recobre a madrugada, e espera que de nós nasça o mais fértil dos caminhos. É da tua espera que nascem as coisas. É da tua espera que o futuro se alimenta. É da tua espera que as águas que te marejam a alma refluem e seguem seu caminho ao longo da linha da costa, até mergulharem no mar e te acenarem adeus antes da onda final. Deixa que a onda que as leva passe sobre ti: deixa a onda passar e acorda outra vez, até não ser mais necessário."

Imagem: vulcão dos Capelinhos, ilha do Faial, Açores, 1958.





01/12/2014

Temporada

Uma das coisas mais bacanas do inferno astral é a oportunidade absurdamente expandida de encerrar ciclos, preparar-se para o novo, resolver pendências, instigar mudanças, criar movimento. Eu gosto particularmente do meu, todo ano chego à mesma conclusão.

A vida não piora, no (meu) inferno astral. Muito pelo contrário. Com a sorte de ter nascido em dezembro, coincide a época de colocar a vida em perspectiva e olhar para os meses adiante com um olho nos meses que se passaram.

Semana passada, segredavam-me aquilo que todos sabemos de que "a César o que é de César". No sentido de que, se a César se dá mais do que César consegue, ou merece, levar e manter dentro de si, algo de menos se dá a Deus, que é o outro lado desse binômio bíblico. E como Deus está em tudo, e tudo está em Deus, e namastê-o-deus-em-mim-saúda-o-deus-em-ti, resulta que, se demais se dá a César, de menos se dará a esse pedaço nosso que é o todo e que é a nossa origem, vocação e verdadeira essência divina. Inferno astral é um momento privilegiado para se perceber se o que damos a César assiste realmente a César. E corrigir a rota, e dar a quem é de direito o que lhe pertence.

No estado de sensibilidade alterada, de uma capacidade perceptiva interna mais alimentada, como são essas semanas de inferno astral, as coisas que nos afetam, ou nos desafetam, tornam-se mais nítidas. Se os deixarmos, os insights farão visitas frequentes. Teremos presentes dos céus em forma de reencontros inesperados.

Nesta madrugada, escrevo porque está particularmente difícil adormecer. Tenho a impressão de ter o corpo cheio de estrelas, tremeluzindo através de cada poro. Fico encantada, e não durmo. Na escuridão do quarto, brilho. E me pergunto se este brilho em mim estará brilhando em outros também.

Sei que sim, e por isso também me ponho a escrever. Porque talvez aqueles que originaram esse brilho, um pouco incautos porque não têm a sorte de estar em seu inferno astral, estejam desconcertados, e não saibam de onde vem esse sentimento que de tão plácido não permite o sono.

Pois bem: foram os abraços. Aqueles frequentes, aqueles deliciantes, aqueles reconhecedores, e os desconhecedores também, mas sobretudo, e muito, aqueles que quase ficam pelo caminho, com cara de tropeço desagradável, e de repente se retomam. De repente abrem-se os braços e os outros braços estão ali abertos também, num acolhimento mútuo que enche os olhos de lágrimas. E o que se sente faz-se carne, e logo a seguir estrela, e cá estou eu que não consigo dormir por causa de um abraço.

Porque, descobri às vésperas de entrar neste paradisíaco inferno astral, sou como estrela em busca de constelação, e em dia em que os constelamentos brotam como água de mina, eu só posso mesmo é querer ficar acordada e ver em mim, nítido como um girassol, o que fazem os outros quando se abrem, inteiros, a um abraço de corpo, alma e espírito.



Foto: Ana, de árvore ibirapuérica

22/11/2014

O que importa


Um dos desafios da escrita de ficção reside em encontrar o como revelar uma personagem aos olhos do leitor. Mais do que o que pensa e o que sente, o que dá força a uma personagem é o que ela faz, e como o faz. Detalhes da sua construção humana emergem dessas coisas ínfimas que pertencem à vida do dia a dia e que, de tão pequenas, parecem irrelevantes. Não são. São importantes e poderosas. E não apenas o que o narrador, ou o autor, revela desses detalhes, mas o recorte que faz de um conhecimento amplo daquilo que a personagem é, e que nasceu de um relacionamento profundo, duradouro e verdadeiro.

Talvez lhe pareça incomum, leitor, esse processo de conviver intimamente com uma personagem que, de antemão, é ficcional. Mas eu lhe garanto que, através do observar dessa relação, muito se aprende sobre a vida em si, porque a ficção e a vida coexistem no tempo e no espaço, e se olharmos bem de perto confundem-se ambas a todo instante.

Começa-se com o olhar capturado. Em algum momento a personagem nasce, assim como alguém aparece na vida. Não se sabe de onde, às vezes nem o porquê, mas o fato é que algo em nós fixa a sua atenção nessa existência, e a examina, procura-a, tentando percebê-la, absorvê-la internamente a partir do que se mostra. Melhor que não haja maiores influências do interior de quem observa, para que se observe o que de fato é, e não o produto do nosso desejo, mas o fato de deter o olhar aqui, e não ali, mostra uma preferência que pode ser tão orientada pela simpatia quanto pela antipatia. No caso da ficção, o que se observa é uma construção interna, sobre a qual se imagina poder ter algum tipo de "controle". Ledo engano. Tem-se o mesmo controle que se tem sobre as pessoas que andam conosco pela terra. Ou seja, nenhum.

Mas o fato é que se observa. E dessa observação surgem perguntas, porque com a observação do outro nasce a vontade irrefreável de aproximar-se para conhecê-lo mais. E porque a pergunta é o ponto de partida de todo diálogo, pergunta-se porque se quer saber - quem és tu, que apareceste na minha vida? O que te move? O que te emociona? O que procuras na vida? Quando esse querer saber é genuíno, as perguntas são profundas e urgentes. Quando não, o que surge desse desvio pouca valia terá para conhecer o que, de fato, nem se vê.

O mesmo acontece com a personagem que temos entre mãos. Sabemos-lhe talvez o nome, o lugar em que vive, as circunstâncias básicas que lhe marcam a vida. Conseguimos circunscrevê-la num certo momento histórico, numa certa corrente de ideias que sustentarão esta ou aquela ação, do ponto de vista do seu ideário. Mas aos poucos surgirão perguntas mais atentas ao passar dos seus dias. Desenvolveremos uma atenção àquilo que a torna humana como nós, e que encontrará eco em quem dela se aproxime. Assim, constrói-se uma teia de conhecimento ligada às pequenas coisas. O tempo torna-se mais lento. É preciso que se amplie em minutos, horas, dias. Para que haja espaço de ver, e porque é nas coisas "inúteis" que os grandes conflitos, as grandes demandas, os grandes traumas, os maiores desejos, as grandes procuras, se emancipam.

Na meia luz de fim de tarde, sentada no sofá da sua sala, ou recostada no travesseiro da cama, a personagem despe-se das suas artimanhas sociais, dos seus construtos mentais, das suas couraças, da suas fachadas. É ela mesma. Mesquinha, incapaz, sublime e vulnerável. Humana como nós.

Não precisarão esses detalhes aparecer no texto final. Poderão ser suprimidos, ao longo das várias versões que se escreverão, mas existirão, serão reais, e sem querer o escritor lançará mão disso que sabe, e saberá que é verdade o que escreve, e saberemos nós que o lemos. Revelam-se nas entrelinhas, esses detalhes, delineados por um narrador que sabe muito mais do que conta. Esse "saber mais" é poderoso aliado na construção de qualquer personagem. E, neste "saber mais", os mais simples e cotidianos pormenores são os que dão consistência a uma pessoa. É aqui, hoje, que para mim mais a ficção se veste de realidade.

Não sou eu quem diz isto, mas a narradora de "The last run away", último romance de Tracy Chevalier, que acabo de ler sentada numa cadeira de hospital enquanto me sinto cosendo um quilt em pleno Ohio. Gosto de acompanhar o percurso desta escritora, que chamou a minha atenção desde "Moça com brinco de pérola". A excelente pesquisa de cada um dos seus livros; a maneira incisiva como entretece realidade e ficção (aqui, a vida quaker e a luta abolicionista americanas); os detalhes que pressinto construídos e que são o alicerce de uma trama real; a dosagem eficaz dos níveis de tensão - fazem de cada livro uma aula.

Às vezes, a aula resume-se a uma frase. Como essa de que "são os pormenores cotidianos que dão consistência a uma pessoa". A maneira particular como se varre um quarto, o quadro que se escolheu pendurar na sala, a maneira como se afasta a cadeira para sentar-se à mesa do almoço, a forma como se escolhem produtos numa gôndola de mercado, o quanto se aprecia as folhas recém-varridas no quintal, o olhar que se dirige ao espelho numa noite especial. Sem pormenores cotidianos, as personagens, como as pessoas, enfraquecem. Sobretudo quando se pressente a fuga deliberada desses detalhes, justamente por se saberem reveladores.

O fascínio dessas personagens empobrecidas não dura muito, porque não se ancora em realidades palpáveis, e nem mesmo o mistério que as envolve, justamente por essa falta de relevo, as faz subsistir. O que provocam não dura, e aos poucos se esvairá da memória. Em algum momento, com tristeza e decepção, o leitor sente o incômodo daquele que não se entrega, e talvez cogite em deixar esse livro na mesinha de cabeceira e retirar outro da estante.

Para que nos arrebate, e nos conduza ao final da história com entusiasmo e consistência, a personagem precisa permitir acesso ao seu universo privado, um passo dentro dos seus recônditos secretos. Para que nos sintamos especiais e merecedores da sua confiança, afetados pelo seu passado, pelas suas dores, suas conquistas, seus planos. Precisa enriquecer-nos a vivência mútua com cheiros, cores, sabores, texturas do mundo em que vive.

Limitar o que dela transparece a um quadrante apenas, retira força e, sobretudo, retira motivo para a sua existência. Se (e quando) tudo foi dito, e o leitor tem a repentina sensação de que não há mais nada a se revelar, é urgente rever o texto, restaurar o prumo, perceber as fraquezas e caminhar para resolvê-las. E, sobretudo, ter a humildade necessária para reescrever o que precisa ser reescrito.


Imagem: Maíra Ventura

17/11/2014

Não é, e parece


1. Tome-se a palavra contente, aquela que Camões usa no canto V d'Os Lusíadas para descrever a cor do barrete que os marinheiros do Gama usavam: encarnado, cor contente. A cor de quem tem os pés sobre a terra.

Contente deriva de continere, via seu particípio passado. Resulta da junção de con + tenere, que basicamente poderíamos traduzir por segurar (ou agarrar) junto. "Estar contente" poderia então ser, pensa você desse seu lado da tela, segurar junto a si aquelas coisas que lhe fazem bem. Ou pessoas a quem você quer bem.

Sim, e não só. Continere carrega um sentido de restrição e de contenção. Agarrar (ou segurar) algo junto a si restringe o espaço de ambos: não poderás tu andar sem aquilo que decidiste conter, nem poderá o conteúdo andar mais sem ti. Ao mesmo tempo, como aquilo que tu seguras mantém-se junto a ti, é preciso que suspendas a respiração, fonte primária do desejo, e aguardes que continente e conteúdo estejam alinhados para poderes avançar/retroceder/parar. Ser contente é ter junto a si as pessoas e as coisas a quem se quer, e bem, e apropriar-se de suas restrições e contenções, percebendo a secreta felicidade que vive dentro delas.

2. Pense agora na tríade "feito, perfeito, defeito". Obviamente tudo tem a ver com as coisas que se fazem. O "feito" presente nos três é o mesmo facere que nos aparece também em satisfeito: só quem faz, na medida certa (satis), pode estar satisfeito.

Per e de são dois prefixos que, como todos os demais, alteram o que vem depois. A vida está cheia de fatos/feitos que se agregam ao que já estava composto, parecendo terminado. De repente, eis que surge algo que se soma, que se agarra ao começo das coisas e as transforma até o seu âmago. São os prefixos, subvertendo a ordem estabelecida. Está tudo lá, mas não como antes: per junta-se a feito e temos agora algo que se faz, sim, mas de um modo completo, sem faltar nada. São essas as coisas perfeitas: as que se fazem até que nada falte, um fazer mais que si mesmo.

Enquanto isso, do outro lado da palavra, temos o prefixo de-. Aquilo que é "feito fora" - feito em queda, em falha, um desertar. Um defeito é um fazer desertado. As coisas defeituosas são as coisas abandonadas. Aquelas que se deixaram pelo caminho, feitas pela metade, feridas abertas na sua incompletude. Um defeito é um deserto.

3. Uma das vantagens do latim, como língua morta que é, é a sua estagnação. O latim não evolui. Não se modifica. O significado de suas frases e palavras não se altera, porque não há mais gente de sangue corrente que faça dele a expressão da sua alma. Por isso, podemos confiar que aquilo que diz hoje é o que dirá sempre; não há interpretações que variem no tempo. A outra vantagem é o poder que nos oferece de reconhecermos em nós essa presença arquetípica, sublime e forte da herança de outros - entrar nesse túmulo abandonado e examinar-lhe as ossadas, as fortes mandíbulas, o crânio redondo, as tíbias e os fêmures alongados e saber-se parte.

Desse cheiro de nenúfar que se desprende das coisas mortas reverberam palavras antigas, que mais ninguém pronuncia. Verba non mutant substantiam rerum, dizem. As palavras não mudam a substância das coisas. E mesmo o que por vezes não parece, é.

Imagem: Cemiterio dos Prazeres, em Lisboa, por Suzana Siqueira.