Mostrando postagens com marcador latim. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador latim. Mostrar todas as postagens

17/11/2014

Não é, e parece


1. Tome-se a palavra contente, aquela que Camões usa no canto V d'Os Lusíadas para descrever a cor do barrete que os marinheiros do Gama usavam: encarnado, cor contente. A cor de quem tem os pés sobre a terra.

Contente deriva de continere, via seu particípio passado. Resulta da junção de con + tenere, que basicamente poderíamos traduzir por segurar (ou agarrar) junto. "Estar contente" poderia então ser, pensa você desse seu lado da tela, segurar junto a si aquelas coisas que lhe fazem bem. Ou pessoas a quem você quer bem.

Sim, e não só. Continere carrega um sentido de restrição e de contenção. Agarrar (ou segurar) algo junto a si restringe o espaço de ambos: não poderás tu andar sem aquilo que decidiste conter, nem poderá o conteúdo andar mais sem ti. Ao mesmo tempo, como aquilo que tu seguras mantém-se junto a ti, é preciso que suspendas a respiração, fonte primária do desejo, e aguardes que continente e conteúdo estejam alinhados para poderes avançar/retroceder/parar. Ser contente é ter junto a si as pessoas e as coisas a quem se quer, e bem, e apropriar-se de suas restrições e contenções, percebendo a secreta felicidade que vive dentro delas.

2. Pense agora na tríade "feito, perfeito, defeito". Obviamente tudo tem a ver com as coisas que se fazem. O "feito" presente nos três é o mesmo facere que nos aparece também em satisfeito: só quem faz, na medida certa (satis), pode estar satisfeito.

Per e de são dois prefixos que, como todos os demais, alteram o que vem depois. A vida está cheia de fatos/feitos que se agregam ao que já estava composto, parecendo terminado. De repente, eis que surge algo que se soma, que se agarra ao começo das coisas e as transforma até o seu âmago. São os prefixos, subvertendo a ordem estabelecida. Está tudo lá, mas não como antes: per junta-se a feito e temos agora algo que se faz, sim, mas de um modo completo, sem faltar nada. São essas as coisas perfeitas: as que se fazem até que nada falte, um fazer mais que si mesmo.

Enquanto isso, do outro lado da palavra, temos o prefixo de-. Aquilo que é "feito fora" - feito em queda, em falha, um desertar. Um defeito é um fazer desertado. As coisas defeituosas são as coisas abandonadas. Aquelas que se deixaram pelo caminho, feitas pela metade, feridas abertas na sua incompletude. Um defeito é um deserto.

3. Uma das vantagens do latim, como língua morta que é, é a sua estagnação. O latim não evolui. Não se modifica. O significado de suas frases e palavras não se altera, porque não há mais gente de sangue corrente que faça dele a expressão da sua alma. Por isso, podemos confiar que aquilo que diz hoje é o que dirá sempre; não há interpretações que variem no tempo. A outra vantagem é o poder que nos oferece de reconhecermos em nós essa presença arquetípica, sublime e forte da herança de outros - entrar nesse túmulo abandonado e examinar-lhe as ossadas, as fortes mandíbulas, o crânio redondo, as tíbias e os fêmures alongados e saber-se parte.

Desse cheiro de nenúfar que se desprende das coisas mortas reverberam palavras antigas, que mais ninguém pronuncia. Verba non mutant substantiam rerum, dizem. As palavras não mudam a substância das coisas. E mesmo o que por vezes não parece, é.

Imagem: Cemiterio dos Prazeres, em Lisboa, por Suzana Siqueira.