À esquerda, o Sever, o Sorraia e o Almansor. À direita, o Erges, o Pônsul, o Ocreza, o Zêzere, o Alviela e o Maior. A lista é do 4º ano primário, creio, e era preciso decorá-la. Os afluentes do Tejo, em cada uma das suas margens. Lembro-me dos da direita, os mais torrenciais, os que descem das partes altas das montanhas a meio de Portugal. O Tejo, que é o maior rio ibérico, deságua aos pés de Lisboa. O forte de São Julião da Barra é o marco do encontro das águas: o Tejo derrama-se larga e tranquilamente, o Atlântico recebe-o abrindo-lhe as ondas suaves. Se fecho os olhos, sou capaz de ver a praia de Oeiras em frente ao forte, as gaivotas aos gritos acima de mim, as ondas a baterem nas rochas ao lado esquerdo.
Os rios desta minha península são como os sulcos desta folha de eritrina que tenho entre as mãos. As eritrinas explodem em cor quando florescem suas lanças, vermelhas como o Mar Vermelho a que os gregos chamavam eruthros. Ainda que já tenham se passado semanas do fim da sua floração, e agora só haja folhas, a presença das flores continua ao redor do espaço que ocuparam. Mas o meu olhar pousa na quase mas não simetria dos rios que navegam na folha, esses tranquilos Tejos verdes, o caos organizado dentro de limites construídos no cotidiano. Na passagem dos dias. Observo-a longamente, a essa folha; percebo-lhe o contorno justo, a ligação fraterna entre as moléculas e a profunda presença a olhos nus. A folha existe para existir. Como os rios.
Esta atenção à falta de simetria das coisas nasce no espelho que tenho diante de mim. No meu rosto paralisado do lado direito, um olho abre-se desmesurado, e decide não piscar. Ou quase. Fico me perguntando que quer ele tanto ver, que não me permite a pausa da escuridão das pálpebras fechadas.
Estou assimétrica, como a disposição dos afluentes do Tejo, como as nervuras das costas das folhas das eritrinas. Se havia algum equilíbrio entre os dois lados do meu rosto, desfez-se, como uma catedral gótica que decidisse abrir espaços dentro do seu equilíbrio. Como o oferecimento de um mundo a desbravar. É preciso, penso, encontrar formas de equilíbrio dinâmico, que disponham as forças do movimento e da paralisação onde cada uma cabe.
E por isso lembro dos afluentes do Tejo. Da dificuldade de ordená-los na lógica que se pedia, da vontade de repetir-lhes os nomes pelo prazer de o fazer, do dia em que mergulhei nas águas do Zêzere e as soube frias como nunca imaginei ao saborear-lhes o nome. Rios de água sinuando pelas planícies, mansos e férteis, deslizando suaves pelo meu pensamento. São sentimentos, penso, estas águas em busca de oceano onde desaguar, intercalando seu passeio pelas represas e pelas barragens que os homens insistem em fabricar.
Agora que a noite se aproxima, tenho uma paleta cada vez mais variada de novos símbolos. Imagens e palavras e fatos amalgamados ao longo de um dia. Aquilo que meu olho acostumado a si mesmo vê, difere daquilo que o outro, esse que se paralisa e insiste em permanecer-se aberto, me descobre. Como um paradoxo a céu aberto, a sua paralisia desaperta-me, afrouxa-me, alarga-me, desamarra-me, derrete-me, dissolve-me. Descubro que a simetria é uma espécie de invariância sobre transformações, movimentos ou trocas: esta assimetria que vejo ao observar-me ao espelho é uma porta para outro lado de mim mesma. Não posso exercer a força, assim como não podem os dois lados da folha de eritrina, variantes de uma mesma essência que não pode forçar-se a nada que não seja ela mesma. O que posso é observar o novo quadrante, esse poço escavado dentro do espelho.
Enquanto uma onda de solidão luminosa preenche o espaço ao meu redor, pergunto-me onde está o oceano em que tanto desejam desaguar as águas que se represam ao lado direito do meu rosto. São como rios, projetados para fluir, em pleno embate com o espaço fechado e mudo. Os nervos do meu rosto estão à espera.