Ao Fábio Cortés
Um dos alegados defeitos do meu
pai era dar mais atenção a seus amigos do que a sua família – nada que a mim
particularmente me ocupasse, gostava do trânsito frequente de pessoas que
(ainda) não conhecia. E ele me dizia, várias vezes e sem querer desculpar-se,
que os amigos eram seus mais preciosos tesouros, aqueles que podia escolher e
deixar de escolher. Meu pai era um bom
amigo, capaz de tirar seu casaco e congelar, contanto que seu amigo se
aquecesse. Algumas das suas dívidas derivam dessa qualidade chamada defeito.
Na formatura do nosso querido Fábio, ouvi dele
que ficava feliz por perceber que éramos amigos. Que transcendêramos a relação professora-aluno,
tutora-aluno, para nos equilibrarmos nesse terreno ensolarado e cheio de curvas
que é a amizade. Meus olhos devem ter brilhado nesse momento, tanto o quanto
agora se enchem de lágrimas, e ele certamente percebeu, porque me abraçou como
costumava, fazendo soar meus ossos numa demonstração de afeto linda, livre e
aberta, tal qual ele próprio. Agora que ele não mais ocupa o lugar físico que
ocupou ao nosso lado, rodeia-nos um imenso lago de memória brilhante onde não
podemos mergulhar porque nessas águas ainda não sabemos nadar. Fica uma imensa saudade
que não preencheremos a não ser com os olhos fechados, cheios da imagem desse
garoto-homem cheio de simpatia, um instante preso entre dois retalhos de
lembranças que nos chegam de repente e nos fazem parar o que fazemos para
retomar o fôlego e não nos afogarmos em lágrimas.
O Fábio tinha uma caligrafia
marcante, inconfundível entre todas as outras. Preferia o lápis preto, grosso,
a outros materiais e desenhava as suas letras com força e determinação, muitos riscos
para cada traço, numa inclinação avessa a catalogações. Olhava para seu caderno
e desgostava. E aquela letra rasgada, vitrine de inconformismo, chamava a minha
atenção e agradava-me.
Nem todos os lados do Fábio
viviam do lado de fora. A imensa vontade de acertar e conseguir ser aquilo que
queriam que ele fosse não estava à vista de todos, talvez pela sua inquieta
irreverência, tão veloz e rápida quanto o ouço agora recitar, com o seu acento
carioca, o poema que escolheu gravar há 5 anos.
Bia, sua mãe, soube apaziguar e
contemplar a vontade de Fábio com a qualidade da espera, quantas vezes com o
coração em sobressalto. Dizia-lhe eu esta manhã que foi uma sorte o Fábio ter
podido fazer todos os piercings que fez – apesar das críticas e dos narizes
torcidos alheios, ele galgou os degraus do ensino médio da Aitiara com suas
duas argolas pretas nos lábios com o mesmo sorriso com que gentilmente me pediu,
meses depois, que as guardasse antes de cada jogo de handebol no torneio interwaldorf
em São Paulo. Três anos depois, descobriu com seu trabalho de conclusão de
curso que o alargador de orelha era antigamente usado, entre alguns povos, para
aumentar o contato com o mundo dos espíritos. Eu disse-lhe que talvez tivesse
sido esse o motivo da sua vontade, ainda que sem saber, e ele sorriu e não
disse nada.
Já houve quem me dissesse que a
relação que se constrói com alunos deve ser distante, permeada por alguma forma
de autoridade que, feliz ou infelizmente, não brota nas terras em que meu
coração foi semeado. Que alunos e amigos são coisas diferentes. Ontem pela
manhã, ao sair do culto em intenção do Fábio, pensei na felicidade que tenho
nos amigos que me rodeiam, ainda que partam sem aviso.Que me escolheram e a quem
eu escolhi. Às vezes é uma felicidade doída, porque nos deixam saudosos sem
entender os porquês das partidas. Mas a felicidade é dessas coisas que
percebemos quando já se foram, ou quando antecipamos a sua vinda. A chegada do
Fábio à minha vida, com todos os amigos que chegaram com ele sob o codinome “alunos”,
abrilhanta o caminho da minha vida e ilumina o roteiro da minha existência.
Escolhem-me tanto quanto eu os escolho, e estaremos juntos sempre, por onde
quer que cada um decida misteriosamente passear os seus caminhos.