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14/05/2012

Exercício - no analista


Júlia precisa inventar-se, nos últimos tempos, várias vezes por dia. É o que diz a seu analista, nessa sessão que começa a meio de um dia de névoa que parece não se desfazer nem na água do rio que corre ao lado do prédio do consultório. Júlia levou consigo, para dentro do elevador, uma alma enevoada, com ela subiu os 6 andares nessa máquina lenta de ferro, e com ela entrou na sala estreita. Inventar-me olhos, pele, percepções do mundo que de repente não se referencia a si mesmo, diz ela. Porque abandono seguranças antigas e nesse de repente do mundo mudado, pergunto em volta onde o apoio do pé? Não sei se um começo de queda ou se um braço estendido agarrado à outra margem do abismo. Que momento é este? Não sei se corro no vazio, alimentando meus passos da esperança (a doce ilusão) de correr em terra firme, e estou prestes a cair e não sei, e de repente de novo cada vez mais longe dos galhos sobreviventes das árvores, aqueles estendidos desde a margem aos náufragos de passagem. Que momento é este?

E seus braços fazem os gestos dos galhos quando perguntam ao rio e seu rosto molhado de lágrimas é o próprio rio na passagem desse destino desconhecido. Júlia afasta o cachecol mas o frio diz-lhe que mantenha o casaco junto ao corpo. Não está frio, mas ainda assim Júlia sente frio.

E o analista intervém. Inventar no sentido que lhe confere a palavra raiz: criar a partir dos restos do que morreu. Mas Júlia diz, não reconheço com facilidade as mortes à minha volta; nem com facilidade lhes levo as velas de defunto, as ladainhas das carpideiras, o caixão, os olhos fechados, as mãos contritas unidas no centro do peito oco. Olho para dentro delas e devolvo-me um vazio, um não ser que não sei se alívio se tormento. Se não estão aqui, para onde foram, essas mortes? E um vazio de silêncio opaco estende-se entre o divã que é poltrona e a cadeira que é cadeira, onde o corpo vestido de cinza do analista a olha com compaixão.

Eu sei, diz Júlia antes de levantar-se e desistir da sessão e dizer que não sabe se voltará um dia, ou se essa noite será o seu último passado, eu sei: crio-me a partir dos restos do que morreu em mim, e nessa arqueologia da alma, vejo que outras coisas morrem, e quero correr com elas para a reciclagem, mas elas dizem-me que querem-se mortas e enterradas, e que eu obedeça o escorpião que me rege e lhes dê o que é da sua natureza. A morte. E o desenho dos seus dedos na maçaneta ainda está lá de manhã, quando o analista desce as escadas para comprar pão e leite. Quando voltar, dentro do elevador, sentirá a presença da névoa, e os menores cabelos da sua nuca se arrepiarão de frio. E a maçaneta devolverá o calor à sua mão, ao entrar na sala estreita e sentar-se na cadeira que é cadeira, vestida de cinza como ele próprio.

(Desenho de Ale Félix, que não tem nada a ver nem com a Júlia, nem com seu analista.)

15/09/2011

Anatomia

O melhor de tudo é quando alguém nos inspira. Quando alguém se insinua e nos provoca. Quando alguém nos seduz e incendeia.

O texto abaixo é fruto de uma inspirada provocação sedutora assim. Ganhei-a hoje pela manhã (a inspiração), resposta a uma que mandei, que nem se pretendia tanto. Veio na forma de um pequeno filme com música. Vi, ouvi – e troquei de pele, precisei criar palavras que me reconformassem. Se alguém quiser seguir o que me fez começar, ouça e leia em voz alta, com a melodia como referência. (E se depois quiser compartilhar o que sentiu, eu vou agradecer, e meu correspondente também, porque lá de longe ele cria ondas e sincronias onde parecem apenas existir corpos paralisados.)

De Ludovido Einaudi (considere a versão sem a repetição, comece a ler a partir do 3o acorde e use fones se tiver!)


Anatomia - ou das estruturas que compoem os seres vivos

a Palavra, salvação. reelaboração diária, no desenho das letras, no som das palavras, no embate, no gargalo estreito, no despedaço. através da alma, demoradas num dos ventríloquos, translúcidas diante dos olhos fechados. enclausuram-se e abrem espaço e quando se descolam outra vez, é o mundo radiante à minha volta.

a Palavra, proteção. a minha e a alheia. as que me vêm de longe e sobrevoam os mares, as que me vêm de perto sem sobrevoar nada e estão mais longe, inalcançáveis, inacessíveis. respiro, em alívio, pela Palavra viva entre nós, seja qual for. nada outra coisa importa. um som, um ah, um brotar de sentido por entre as coisas escondidas do corpo, aquilo que o ouvido ouve e o coração estremece. e torna sozinho.

a Palavra, mergulho. no levantar das próprias cinzas, a nova Palavra. montanhas e ilhas e minha vida em silêncio. o vento e os mares e as curvas ensurdecem-me, e eis que me devolvo à Palavra. entro pelos caminhos turvos das minhas veias, faço-me água dentro do sangue, transubstancio-me naquela que sou antes disto agora. sou um estado novo.

a Palavra, reencontro. o sentido do estar, agora, sendo. as areias quebradas quando me recolhem.  passam por mim e sequer as sinto. sou a perspectiva do alto. as rochas de que sou feita são apesar do vento tempestade vulcão vivo dentro de mim, cercada. e quero fugir fugir fugir fugir nesse teclado piano, cada tecla uma nota, cada nota um som, cada som um tom a mais no meu dia eterno.

a Palavra, refúgio. as Palavras amplas, construídas no interior do oxigênio, pelas mãos que se abrem e abraçam o tejo o mar os açores a praia estendida um cravo a serra alhambra as vielas a lua um quarto de hotel o riso um parto uma avó em terço os livros os dedos uma morte - as eleições de uma vida reunida nas Palavras, ossos construtores, nas Palavras, sustentação de pé dentro do meu ser líquido indestrutível diante da tempestade. rocha em todas as línguas e formas que podem escrever-se as rochas as pedras  a beira da loucura à beira da paixão presa inconsolável da fonte que não se cala não se dá não se pede não se fecha não se dobra não se abala não renuncia nunca. a ser Palavra.

(O filme? Era este:


25/08/2011

Sem título, por opção


Há tempos que ando com vontade de escrever a respeito de uma palavra que me abalroou uns meses atrás – fiquei atônita olhando para ela, mal acreditando no que me fazia pensar. Chegou-me às mãos via os gregos e chama-se sphalmatos. Associada a perigo, aplica-se (ou aplicava-se) às situações de caída ou desgraça.  E isto a propósito de que? De duas coisas.

Uma, a crônica de Clarice Lispector que decidi reler um dia desses, uma das suas mais bonitas: “Estado de graça”. Deu-me a ideia, há alguns anos, de um daqueles exercícios que por mais que se repitam mais prazer dão: neste caso, ir ao encontro de palavras derivadas a partir de uma determinada raiz, descobrindo às vezes parentes e significados ímpares, num brainstorming linguístico que adquire maior sentido à medida que avança no espaço. Como o tal estado de graça, que os gregos readquiriam, para evitar a queda (ou a desgraça), somando à palavra o prefixo a, que tudo nega. Portanto , asphalmatos – aquilo que impede a queda ou a desgraça.

“Desgraça” faz parte do campo semântico que se abre com a palavra “graça”, um espaço de limites longínquos, cheio de sutilezas e encantos. Graça é aquilo que criança faz, e nos faz sorrir (mais do que rir); graça é aquele presentinho simpático que recebemos de quem menos esperávamos, e que nos provoca o “que graça!”. "Graça" oferece-nos palavras tão diferentes quanto gracioso e engraçado; gratidão e ingrato; agradecido e desgraçado. Estar em "estado de graça" é um pouco levitar do duro chão da existência, ser alçado àquelas alturas a que as paixões às vezes nos remetem (e das quais, quando caímos em desgraça, ganhamos um tombo proporcional ao grau anterior do estado oposto).

As coisas que são "de graça", contrariando todas as lógicas capitalistas, inclusive as bem intencionadas, são aquelas que não têm preço e que por isso mesmo nos deixam a alma naquele já dito estado de levitação. Aquelas coisas que chegam assim, do nada, sem que se esperasse ou previsse, e de repente se nos oferecem, leves, lisas e ternas. Um brinde da vida.

Pois os gregos sabiam disso. Usavam tanto asphalmatos que, por economia da língua, tornou-se asphaltos, acabando por batizar aquilo que, para dezenas de civilizações, dos próprios gregos aos sumérios, passando pelos assírios, pelos babilônios e pelos egípcios, serviu para impedir que as coisas caíssem (literalmente) e se desgraçassem. Noé usou asphaltos para calafetar sua (nossa) Arca. Literalmente, ainda em grego, está cunhado como “aquilo que evita a caída”.

Isso fez-me pensar, e num volteio repentino fiquei matutando se não nos estará faltando justamente aquilo que negamos tanto tempo – no plano concreto, palpável, o sempre-dito asfalto (assim, na grafia que conhecemos, sem o ph que o original grego oferece), aquilo que pode impedir que os nossos caminhos se desintegrem, se esboroem, criem buracos e levantem poeiras que nos intoxicam e nublam a visão clara do que está à nossa frente - ou às nossas costas. No plano das ideias e dos afetos, que foi para onde esta história me catapultou de fato, é como se nos escapasse o estado de graça, porque negamos, através do distanciamento, a nossa proximidade; porque perdemos a cordialidade; porque entendemos que a luta precede o entendimento e que a construção do nosso sentido parte da negação do sentido alheio, e não do seu caráter complementar.

Sinto falta, nestes últimos tempos, não só de conhecer as tantas diferentes pessoas que moram hoje à minha volta, e encontrá-las nas festas simples onde dinheiro não era moeda, mas também de re-conhecer aquelas que já estão aqui há muito – sem que a falta de tempo, de espaço, de disponibilidade ou de desprendimento nos impeçam de levitar, achar graça sobretudo em nós mesmos e ser gratos. Clarice, nos momentos da depressão que sucedeu o incêndio que quase a matou, queixava-se da solidão das coisas do mundo, e refugiou-se nessa solidão que ajudou a construir. Não gostaria que lhe repetíssemos esses passos.

29/07/2011

A crônica

Foi durante um almoço num dia desta semana. Um rapaz simpático chegou-se à minha mesa e perguntou-me por que o ritmo das minhas crônicas tinha diminuído; incomodava-o essa redução, porque ele gostava de abrir seu dia com uma passada por este blog, e sem novidades isso perdia o sentido.  Além de (meio sem jeito) lisonjeada, disse-lhe que era uma boa pergunta, e prometi-lhe uma resposta ainda por estes dias, porque não era óbvio e batia mais fundo do que ele podia imaginar. Não podia responder-lhe rápido como gostaria. Como com todas as encomendas, a responsabilidade parece-me bem maior, pode ser que o resultado desagrade, fique aquém do que se esperava... enfim: justificativas que digo, a quem me procura querendo escrever, que não é preciso (nem conveniente) oferecer.

Fui ver as estatísticas de leitura do blog. Instrumento interessante, mas aflitivo, sobretudo quando se consulta. Após um dia de muitas leituras, um outro em que quase ninguém entra. E quem entra? Será que leu? Ou foi por acaso, num zapping blogístico de quem não tem outras coisas a fazer? E se leu, aborreceu-se? Fez-lhe bem? Decidiu nunca mais voltar... ou virá todos os dias? E o comentário, que não escreveu? Foi porque não se atreveu? Ou porque não ficou com vontade de dizer nada? Ai...

Mas as minhas preocupações estatísticas hoje são com o que eu publico, e não com o que os outros leem. Frequência, quantidade, coisas muito mais objetivas de medir do que qualidade. E vejo que, de fato, em junho foram seis crônicas, em julho esta é a segunda... Tem razão o leitor de se chatear com o assunto, deve ser deprimente abrir-se o tal do blog, como se de livro se tratasse, e descobrir que as páginas a seguir à última que se leu estão em branco. Quase uma fraude.

Mas há um motivo, e eu explico. Depois de uma semana inteira em oficina de crônica, lendo, escrevendo, discutindo, comentando, rindo, respirando e mastigando crônicas, tornou-se mais fácil perceber a ausência que o ambiente crônico tem tido em mim. O tempo mudou de espaço e lugar desde que, de repente, se abriu uma ponte em direção a lonjuras narrativas. A crônica é breve, efêmera, rápida, quase inconsequente. As narrativas mais longas, que demandam reflexão e uma espécie particular de planejamento, são objetos que se organizam; os contos, os romances, reescrevem-se vezes sem conta, absorvem, abrem crateras na alma, subjugam o dia a dia, penetram pela vida toda como seres com ação e pensamento próprios e capacidade invasiva autônoma. Difícil (ao menos para mim) sair do fluxo da narração, tão ficcional como eu própria, e tornar-me leve, aérea, sutil como uma pluma a quase perder-se no espaço – e ser crônica, e ser 1ª pessoa.

Ainda por cima, a minha alma está mais aguda do que crônica – aliás, está empenhada num movimento exaustivo que a liberte das dores e dos desejos crônicos, e com certeira agudez caminhe e avance em direção ao que será. Essa alma menos crônica quer o que é profundo e interno, o que é longo e introspectivo, o que avança pelos terrenos da ficção a plenos pulmões, de formas que a crônica jamais poderia ser, hoje, aqui. 

Escrever assim, como vem acontecendo nas últimas semanas, causa-me uma inquietação interna que não sossega ao final de uma página – não: paro porque estou cansada e preciso dormir, comer, beber, atender aos compromissos alheios e com hora marcada, esses que vêm roubar-me à escrita e devolver-me ao mundo, depois de horas mergulhada num outro espaço, com outros seres e outras dores.

E sinto saudades, é claro que sinto, do descompromisso diário da crônica. Que não articula personagens, não elabora cenários, não estuda e inverte pontos de vista, focos narrativos. Ou de repente o faz, e ri-se por dentro, porque a crônica ainda por cima é rebelde e não aceita regras constrangedoras. Faz-se da minha fala breve e da reflexão curta, mas também da saudade longa que se sente das coisas que fugiram de nós sem que sequer as tocássemos, e não sabemos se somos felizes porque o toque quase se deu (e só isso já é tanto!), ou se porque sentimos saudade, e saudade é uma forma de felicidade. A crônica faz isso: suspende-nos dentro dela mesma, faz-nos girar em torno de uma indagação, e, a mim,  dá-me a liberdade de, se eu não quiser, não chegar a lugar algum. Ainda que seja à resposta da pergunta amável de um leitor atento.


26/07/2011

Ver (ou não) as caravelas


Contaram-me um destes dias que quando as primeiras caravelas chegaram à costa brasileira nem todos as perceberam na linha do horizonte; grande parte de quem já estava deste lado de cá percebeu apenas a nova e diferente ondulação das águas do grande Oceano. Daquele grupo que esperou, nas areias da praia, o primeiro desembarque, fariam parte aqueles que as descortinaram ao longe e por isso as foram receber, entre curiosos e temerosos. Ou não, que disso Caminha não nos dá notícia, e é a partir dele que recolho o longínquo acontecimento.

Aqueles que perceberam as velas e seus mastros não o fizeram por terem melhores olhos, mas maneiras particulares de verem “as formas invisíveis na distância imprecisa” – como escreve Pessoa que são os sonhos, aquilo que é sem ainda o ser. Aqueles que perceberam os ventos novos foram em sua direção, enquanto que os outros viram (apenas) no que conheciam um leve agitar-se. Mas, ao que consta, ninguém se incomodou com o que o outro via. E nem impediu que quem visse registrasse que o fazia, muito menos que disso falasse.

Os ventos acompanham-nos, vindos do mar que é o que nos separa e une – como todas as pessoas e coisas que não se limitam a apenas uma possibilidade, mas estão abertas a várias. “Bons ventos” trazem-nos alguém, “novos ventos” reacendem-nos o entusiasmo e a chama que nos mantém de pé. Vemos (e ouvimos e cheiramos e percebemos) o que é novo por um simples motivo: porque temos olhos e ouvidos e narinas e sentidos que nos permitem ver o que outros, às vezes, não veem nem ouvem nem cheiram nem percebem. Porque não podem.

A carta de Caminha é uma crônica de viagem que dá gosto ler – um precioso, aberto e humano relato do encontro dos navegadores com esses novos homens “pardos, todos nus”, que “traziam arcos com suas setas” e que assim que se “lhes fez sinal que pousassem os arcos, eles os pousaram”. Ao recebê-la, o rei de Portugal não teve dúvidas de que aquilo que lia era verdade – que aquelas pessoas e aqueles lugares, aquelas ervas e aquelas paisagens existiam e estavam agora a apenas umas letras de distância. A confiança regia a relação entre o rei e seu cronista. Ainda que lhe pedisse provas: uma pedra, um barrete de penas, outras evidências, todas elas a caminho, provavelmente junto com a própria carta de achamento.

Entre os que ouviram os relatos das grandes navegações, houve aqueles que viram (porque tinham sentidos para fazê-lo), e aqueles que se agarraram às certezas que tinham e não conseguiram ver, a não ser quando a evidência esteve ao alcance das suas mãos. Entre estes últimos, houve aqueles que encolheram os ombros e foram à sua vida, e aqueles que se levantaram indignados de que outros dissessem ver aquilo que eles não viam (ainda). Entre estes últimos, uns discutiram entre si acaloradamente durante um tempo, ocupando-se com novo assunto assim que ele chegou; outros, exigiram providências imediatas, espumando em segredo, saudosos dos bons tempos da abolida inquisição. Entre estes, uns sobreviveram, e vivem ainda entre nós. Outros, também - mas calam-se e esperam com sorrisos falsos pela melhor oportunidade de espalhar o seu medo do novo.

01/06/2011

A parte sem o todo

O que me fez pensar no livro foi o título: ”Por uma vida melhor”. Um título assim só diz algo a alguém que precise melhorar de vida. Crianças não costumam ter a sensação de “precisar melhorar de vida”, portanto depreendi que o destinatário fosse um adulto.

Foi sob essa perspectiva que li o primeiro capítulo, introdutório, de ponta a ponta, do tal livro aprovado pelo MEC, o gerador da acirrada celeuma de umas semanas atrás. Reconheci o que a realidade em volta mostra a quem olha para ela, assim como boa parte do que aprendi sobre os processos linguísticos ao longo dos anos. Coisas óbvias: que falar e escrever são atos diferentes; que a maneira como se fala ou escreve depende do destinatário; que toda linguagem é regida por regras, as quais formam as diversas gramáticas internas de uma mesma língua; que toda língua tem variantes, que variam de acordo com seus falantes; que a maneira de falar pode ser um poderoso instrumento de preconceito, inclusão ou exclusão social; que é preciso valorizar todas as formas de fala, entendendo-as como variantes e não como erros; e por aí vai. (Sírio Possenti, na matéria que escreveu a respeito da celeuma, diz que adjetivar de “errada” a fala de um grupo de pessoas seria como adjetivar de “errado” o bico de um tucano, baseado na proporcionalidade entre bico e corpo que rege a maioria dos pássaros.) No fundo, no fundo, só fala errado quem não consegue comunicar o que deseja comunicar, seja por que motivos for.

“Por um mundo melhor” é, de fato, dirigido a um público mais velho, alunos da Educação de Jovens e Adultos, formada por pessoas que já de cara se encontram na linha de exclusão social pela falta de estudo e precisam, muito, imensamente, ver-se diante de um espelho que os reproduza como pessoas capazes e falantes de uma variedade linguística válida, respeitável e correta. Não por bondade, mas porque de fato o é, sendo apenas preciso o respeito ao onde e ao quando, como com qualquer outra variante. Estaríamos todos aliás perdidos se fosse diferente, porque todos estes “portugueses” que falamos e escrevemos não descendem diretamente das palavras de Ovídio ou Virgílio, mas dos soldados no máximo semi-alfabetizados que povoaram a península ibérica com seu “latim vulgar”. Capítulo corretíssimo, o do tal livro, cumprindo ainda a função (bastante conservadora) de instar o leitor a converter todo exemplo da variante “popular” para a escrita normatizada pela gramática padrão da língua – aquela dos pássaros cujo corpo e bico são proporcionais.  

Eu sei bem o que é recortar de um processo comunicativo uma de suas partes - e um livro é um processo comunicativo, assim como uma carta, um artigo, um bilhete, um romance, um poema, ainda que em graus funcionais diversos. Guardo emails de memória porque isso faz bem ao meu coração, ainda que eu inteira saiba que é um trecho, um recorte, uma parte que, a despeito das considerações barrocas de Gregório de Matos sobre o assunto, não corresponde ao todo. Mas isso não me incomoda, muito menos ao resto do mundo que sequer toma conhecimento do que guardo em mim e para mim.

Também sei de perto o que acontece com processos de comunicação interrompidos, truncados ou incompletos, aleijados pelo mesmo defeito da discussão livro-do-MEC: lê-se apenas uma vez, lê-se apenas uma parte, não se entende metade, não se pesquisa (porque não se pergunta), não se estabelece nenhum processo que pretenda entender quem escreve, e parte-se a galope para o julgamento do que se leu – e leu dessa forma alijada de compreensão.  Como diria meu pai: cru e quente. Quando ainda por cima o uso é ideológico (“livro ensina a falar errado como Lula”), eu chamaria as autoridades, nem que fosse por crime linguístico.

O assunto reacendeu-se aqui na minha escrita porque fui chamada a compartilhar o meu processo de criação enquanto escritora num congresso. De zilhões de pessoas bem mais qualificadas do que eu para isso (e não é falsa modéstia, mas a percepção clara da pouca experiência misturada a um certo pudor de descobrir diante dos outros o que até ontem entendia só meu), atrevi-me a aceitar a oferta e pus-me a trabalhar. De uma e outra forma, preciso perceber o que me provoca a sensação de criação, o que me faz de fato criar e o que se antepõe entre mim e o universo da criação. Não é fácil, porque afinal é o meu processo de humanização particular, deparo-me com situações internas que sei precisar resolver... Mas no processo descobri alguns “por ondes” que desconhecia e com os quais consigo relacionar-me saindo da sombra.

Hoje de manhã, o exercício foi partir da função da língua na minha vida. Ressuscitei Antonio Cândido da prateleira dos teóricos, naquele texto sublime em que ele diz que a arte é o que humaniza o ser humano. A linguagem sobrepõe-se em todos os meus mundos - pessoal, profissional, afetivo, social. Mais do que qualquer outra, a escrita é a minha maneira de relação com o outro, meu canal fluídico privilegiado no caminho que me conduz para fora de mim e em direção aos mundos alheios. É-me difícil ler alguma coisa sem olhar de todos os lados, é quase que automático – o que me preocupa, porque os processos automáticos se afastam muito rápido da arte. E é-me difícil o caráter fundamentalmente solitário da escrita. Mas assim que uma nota em forma de palavra me toca, me eleva, estou de volta ao domínio de onde não quero mais sair - o domínio da arte, talvez aquele de onde Drummond saía quando se ausentava do reino das palavras e voltava escrevendo. A palavra é o ser humano em que quero me tornar.

Como a palavra habita todos os instantes da minha vida, e assim faço para que seja, oferece-me bastante trabalho, e a todo instante estou (ou poderia estar) em atividade. Tento, nos últimos tempos, que todos esses momentos sejam intensos no sentido da potência estética que a palavra em mim quer alcançar e, também ultimamente, isso converte-se em dor e em desamparo, uma quase tortura por não saber sempre qual o caminho, e errar por estradas pouco ensolaradas, perder-me no labirinto de uma paisagem sem horizonte até encontrar a saída e perceber-me do outro lado de uma moeda que não tem lados (como se um Alberto Caeiro a correr as cortinas da sua janela, dizendo-se entre parênteses que no entanto ela não tem cortinas). A proteção do mundo dentro de uma redoma de ar.

Talvez o que mais me entusiasme seja perceber a capacidade criadora da palavra em todos, latente, como se a mais democrática de todas as formas. Chegamos ao outro através da linguagem, é nossa enquanto grupo e nossa enquanto indivíduos – e talvez por isso me doa nos ouvidos e nas entranhas dizer que alguém fale “errado”. O que seria dos Patativas do Assaré (e do mundo) se lhes dissessem (e eles acreditassem e se conformassem) que falam e escrevem  errado? Que seu bico avantajado e multicolorido não cabe no universo dos céus, porque desequilibra os corpos alheios, e por isso não podem voar nem chalrar à vontade?

30/03/2011

Vidros lavados

Começou com a súbita vontade que me atingiu hoje, de forma extemporânea e urgente, de limpar todas as janelas de casa. Há meses que isso não acontece – nem eu tenho essa gana sintomática, nem as mesmas são limpas. O motivo é simples, ou pelo menos a desculpa: as crianças ganharam de presente canetas de escrever em vidro, e estão todas as janelas decoradas (estavam, a bem da verdade, porque agora eu já passei por elas) com flores, fadas, borboletas, gnomos, estrelas e árvores com balanços.

Mas isso já tinha semanas e mais semanas, e o que sobrava de espaço estava tomado por teias de aranha e seus eloquentes resquícios, dedadas, marcas de bolas que se desviaram do rumo pretendido. Por isso, dispus-me a tornar todas as superfícies transparentes, desejando muito ser como a minha avó, que criava vidros imperceptíveis aos meus olhos de menina. Mas eu não sou a minha avó, e já percebo daqui, de onde estou, uns trechos embaçados.

Era já noite, quando esta vontade súbita chegou. Deixei as luzes de fora todas acesas, como se fosse dia de festa, para poder ver na contraluz os lugares em que, completamente livre de outras coisas, já vive essa minha urgente transparência.

Deixei as cortinas abertas. Gosto delas; muito, até – espécie de barreira que corta o olhar do outro e me oculta quando quero. Mas hoje deixei-as abertas, o respirar da Demétria sossegado vencendo os minutos noturnos. Cortinas diminuem a intensidade com que a luz de fora atinge o dentro, desbota as cores dos tecidos, corrói as duras madeiras de lei que fazem os móveis mais queridos desta casa. Gosto de cortinas, pela proteção, o acalanto, o ninho silencioso que criam ao redor nas noites frias.

Uns meses atrás, outra súbita urgência fez-me fazer as cortinas com que sonhei meses a fio, numa influência clara da coleção de catálogos Laura Ashley herdada. Umas, ganharam pequenas flores; devolvem-me à atmosfera da sala de uma austiniana Elizabeth em pleno Hampshire. Outras, severas, num vermelho escuro de sangue coagulado, lembram-me as da sala de Miss Marple - também ela tinha uma espaçosa janela de vidros grandes na sua sala, seu posto de observação, e também à atenta velhinha as cortinas diminuíam o tamanho da sala. A diferença é que isso era para ela um problema, e para mim é solução: tornam-na do meu tamanho, escurecem as luzes que acendo e recriam o éter de que gosto quando alguém abre o piano e toca.

Isso, na sala. Na cozinha não há cortinas – não porque se engordurem, ou sujem, mas porque as janelas olham em várias direções, e, assim, quem cozinha, descasca, tempera, lava ou seca pode olhar em volta, ver o verde que rodeia e apascenta os olhos nos intervalos da vida lá de fora. Foi pensado, tudo isso, quando nos debruçamos sob a planta desta casa. Porque, quando se cozinha, dá-se vida ao que cogita dentro, num santuário silencioso e solitário. Da cadeira da cozinha onde me sento agora, vigilante às janelas limpas e com o fogão apagado, vejo todas, de todos os lugares, e sinto-me rodeada por tudo o que já foi e tudo o que agora é, duas formas da mesma coisa, numa absurda e concreta diferença.

As janelas limpas e abertas, hoje, provocam um movimento inverso, de clareza e semelhança. Quero poder olhar para elas e através delas, ver a escuridão da noite lá fora, porque já apaguei as luzes e agora são só os reflexos azulados da noite a entrarem pelas pupilas da casa. Cheiram bem, as janelas – a limão, porque o pus na água com que as lavei, e um leve traço de álcool, para o brilho que quis perseguir mas tanto fugiu que desisti.

Não sei como estarão amanhã, mas espero que tanto elas quanto eu mantenhamos o cheiro a limpo e o jeito de quem não estranha o vento que bate, o sol que reflete, a luz que atravessa. Não corro as cortinas para impedir que os vidros fiquem sozinhos do lado de fora, entre elas e a noite que avança, sem poderem ver que eu os olho e os percebo. As estrelas que vejo no céu da minha cama brilham mais por detrás do brilho do vidro. Mas não são elas, percebo, mas o próprio vidro, que afinal consegui que brilhasse como brilhava sob as mãos da minha avó.

07/03/2011

História feita de emails

Passei horas hoje à tarde fazendo história: lendo e relendo mensagens enviadas e recebidas há anos, todas guardadinhas na minha caixa de emails. Para dias que despertam com uma aura de melancolia que não se apaga, mas ainda assim não oferecem riscos de tristeza, como esta segunda gorda de Carnaval encaminhando-se para o frio noturno, é um prato cheio.

Assim, fui passear pelo passado da comunicação virtual, à procura de pequenas pérolas que a frequentaram e se deixaram guardar – um novo projeto em curso. Como caixa de Pandora, levanta-se de tudo à minha aproximação, e é preciso que me mantenha alerta e vigilante, para que afinal a tristeza não se agregue ao dia cinzento e me derrube da precária rede em que vim cair.

Poderia compor uma história de vida com fragmentos de emails; as frequências e as infrequências, o que não deveria ter sido escrito (mas foi e, pior, enviado), o que deixou de ser lido e que agora dói nos olhos por não ter tido a resposta que merecia, e agora é tarde, tanto que arde, como queria o coelho da Alice.

Há de tudo pelo caminho, pedras e plumas, sonhos compartilhados, planos vários, uns concluídos, outros abandonados. Convites bem humorados, feitos e recebidos: uns respondidos, outros desconsiderados. Pedidos de ajuda, tentativas de conquista. Sugestões de leitura, indicação de remédio para mil e uma ocasiões. Opiniões sinceras e amigas ao lado das farpas que quase encaminho para a lixeira, mas cuidado: o que não vale hoje, valerá amanhã quem sabe, e por isso a minha lixeira não guarda quase nada, porque tudo eu devo ter merecido, acho até que o que chegou por engano.

Entre os bem antigos, com data de outras décadas, encontro o aroma de quem já se foi; não fossem dois ou três emails trocados e guardados, nada teria ficado que me fizesse chorar, e o choro não me entristece, antes revigora e ilumina todos os que estão ao meu lado.

Ainda assim, volto rápido ao passado mais próximo, porque eu já sei de que cor está hoje a minha alma. Retomo caminhos abandonados. Mas não sei quem abandonou quem - e se fui eu, será que volto? O dia não está para dúvidas, nem meu coração para retomadas sem motivo, mantenho-me no registro histórico e nada preciso mudar do presente quase pretérito ainda não futuro.

Descubro coisas minhas que esqueci, textos que imaginava para sempre perdidos. Uns, até, que nem lembrava ter escrito, e pelos quais me alegro (imensamente!) ter sido a única destinatária. Não valem a leitura alheia.

Pesquiso por nome: comprovo que a memória é fraca, e espanto-me com a quantidade de coisas que nos dizemos e depois esquecemos. A quantidade de perguntas sem resposta. As respostas a perguntas que sequer foram feitas. E um espaço aberto, imenso, gigantesco, feito do mais puro esquecimento. Uns silêncios diferentes daqueles que se deixaram tão somente de dizer: aqueles que foram criados para que do outro lado se mastigue pelos ouvidos um “não vou dizer” que nunca se dirá. E por isso sem resposta. Esse espaço abre-se como chaga, e esse eu não tenho intenção de suportar.

Dirijo-me ao setor das alegrias, das risadas, do humor rosa e negro, das mensagens sem sentido defendendo as causas mais indefensáveis, os sofistas de plantão, os hábeis argumentadores, as ofertas de produtos e serviços.

Entre toda essa teia, há presenças que se mantêm por anos; há os que me frequentaram durante um tempo e depois se afastaram – uns de repente, outros mansos e lentamente. Sinto saudades e falta de alguns – ou do tempo em que estavam, aquele hoje irrecuperável. Ainda assim, porque estou diante deles e a cor é a mesma, porque o amarelado do tempo não marca as telas dos computadores, posso imaginar que está tudo ainda vivo, e forte, e pulsante e entusiasmante. Um dos milagres da virtualidade, quem sabe. 

24/02/2011

Distorções ideológicas


Tive um professor querido de História, muitos anos atrás, que me explicou de forma exemplar o que é ideologia. Ideologia, dizia ele, é o seguinte: você passa muitos e muitos anos (por exemplo) odiando ler, repudiando tudo o que seja matéria impressa; num certo momento, percebe a importância da leitura, e passa entusiasmado ao estatuto de leitor contumaz. Porém, o mundo lá fora, que tudo observa, permanece com o você antigo, aquele que não gostava de ler, e por mais que você diga, prove, leia!, nada convence ninguém de que você mudou, que as coisas mudaram, que agora não só você reconhece o valor e o prazer de ler, mas lê o dia inteiro. Ideologia é isso: a permanência de uma determinada forma de pensar a respeito de uma realidade que,entretanto, já mudou e não é a mesma. Hoje eu sei que ele se apoiou nas reflexões de Marilena Chauí, mas na altura essa explicação me cativou.

O pensamento ideológico tem uma missão importante, ainda que inconsciente: convencer o resto do mundo que a mudança não aconteceu. O pensamento ideológico sai às ruas enérgico para comprovar, constatar, convencer e provar o que lhe parece óbvio: você não lê e não gosta de ler. Os fins, aqui, justificam os meios, e por isso a liberdade é irrestrita para camuflar, distorcer, omitir ou corroer fatos e informações. Vale tudo, porque há uma missão em jogo, há uma luta em campo que não é racional, mas absolutamente passional. O ser humano tem problemas com a desacomodação e a mudança – por isso, mais fácil garantir que nada mudou e que podemos continuar reclamando, eternamente, das mesmas coisas. Ainda que não existam mais. A sorte é que, como agora você gosta e lê, sabe disso e não se incomoda tanto. Até entende, quem sabe se magnânimo...

Os caminhos do pensamento ideológico são muitos, e todos estamos à sua mercê. O email que circula há algum tempo pela internet, com uma redação de uma aluna da UFRJ, pretensa ganhadora de um prêmio concedido pela UNESCO entre outros 50000 estudantes, é uma prova fantástica deste assunto. Ora vejam:

O email em questão conta que Clarice-alguma-coisa, aluna do último ano do curso de Direito da UFRJ, ganhou um prêmio concedido pela UNESCO, pela sua redação sobre o fim da pobreza e da desigualdade. Segue-se o email com o texto na íntegra, e ao final solicita-se que se encaminhe adiante, e assim “aos poucos vamos acordar este Brasil!”

Convém saber que o texto da estudante não ganhou o concurso, mas foi selecionado, com outros 100 textos, para integrar uma publicação da Folha Dirigida em parceria com a UNESCO (ou vice-versa, para não me acusarem de distorção!). Foram 42.000 estudantes, e todos eles brasileiros universitários, porque o concurso, que dá a impressão de ser mundial, aconteceu apenas no Brasil. A publicação tem a data de 2006-2007, e está disponível no site http://unesdoc.unesco.org/images/0015/001576/157625m.pdf.

A intenção da UNESCO não foi destacar o bom uso da língua, a clareza na exposição das ideias, a articulação equilibrada, a coesão trabalhada. Talvez, se fosse, a estudante de 26 anos tivesse uma nota razoável, apesar de não ser um texto exemplar e de, dependendo do ponto de vista, ter as qualidades necessárias a uma prova de ingresso à universidade e não as que se presumem necessárias a uma já-quase advogada.

A intenção foi justamente dar relevância a boas ideias que combatam e a pobreza e a desigualdade, conforme reza o título da publicação, e não a habilidade para “construir belas frases com palavras simples”, como elogia anonimamente quem coloca o texto em circulação. É claro que vemos e percebemos da realidade aquilo que a nossa percepção e história pessoal informa; é claro que a pluralidade de opiniões é a garantia da nossa democracia. Mas choca-me que a UNESCO consiga entender representativas da realidade brasileira as ideias expressas pela estudante, por muito irrepreensível (e não é) que seja seu texto. Se ainda penso que é uma aluna de último ano de Direito, mais me espanta e incomoda. E quando vejo que é aluna de uma universidade federal, pior ainda.

"Abundância de falta de solidariedade" e "exagero de falta de caráter" (para não passar do primeiro parágrafo) são expressões fortes demais para caracterizar um país onde precisamos de muitos e muitos dedos de muitas mãos para contar exemplos justamente do contrário. Eu sei (e por isso aquela introdução no início deste texto) que dificilmente se constrói um discurso ideologicamente livre, mas há limites, e uma estudante de último ano de Direito deveria ter construído, ao longo do seu tempo de estudo, a capacidade de olhar em volta com os olhos abertos. Seu texto está repleto de lugares comuns e chavões como aqueles que ouvimos repetidamente, que elegem o Tiririca como exemplo acabado do congresso que acaba de ser eleito, ignorando os tantos e tantos deputados capazes e honestos que povoam a Câmara. Joga-se o bebê, a água do banho e a própria bacia. Bastante fácil levantar bandeira por revoluções e reformas estruturais, sem perceber as que estão em curso, e que permitiram, inclusive, que a autora do texto chegasse a seu último ano de um curso de Direito do calibre do curso da UFRJ, "vítima" dos investimentos fantásticos que o Governo Federal fez nos últimos 8 anos no ensino superior público.

O texto de Clarice tem, no entanto, um aspecto positivo, e a sua circulação irrestrita e distorcida pela internet idem: são bons exemplos do que é preciso fazer com textos lidos no ambiente virtual. Por um lado, desconfiar, a partir do exercício do pensamento crítico e da análise da realidade, da veracidade dos fatos que veiculam, confrontá-los e confirmá-los buscando outras fontes; por outro, descobrir a imensa riqueza democrática que esse mesmo espaço virtual carrega em si, acessível por caminhos que lhe são próprios e peculiares e que precisam ser aprendidos e explorados nos últimos anos da educação básica, justamente porque são isso mesmo: básicos. As nossas salas de aula estão repletas de alunos que usam a internet e o universo virtual diariamente, de forma limitada mas muito intensa. Faltam-lhes recursos que lhes permitam dominar as ferramentas de pesquisa, faltam-lhes capacidades para poderem encontrar, nessa gigantesca caixa de Pandora, aquilo que necessitam e aquilo que ainda nem sabem que existe. Quem sabe possamos contribuir para que as próximas gerações de alunos da UFRJ consigam desenvolver textos mais articulados, maduros, reflexivos, inteligentes e bem escritos. O lucro será de todos.