29/08/2009

De pinhais e piqueniques

Há uma lembrança de criança que me fez rir uma destas tardes, quando imaginei que um piquenique com o frio que estava seria uma experiência bacana de fazer com as crianças, quem sabe me reeditam internamente e assim a minha mortalidade se vinga. Algumas olharam-me como se eu tivesse endoidecido de vez, porque já estava quase escuro, a tarde no fundo já ia longe, e afinal... “mãe, qual mesmo a graça de comer sopa num piquenique, você tá querendo é nos enrolar...”

Quando eu era menor, a minha avó adorava organizar piqueniques curiosos que se transformavam em motivos de preleções simpáticas sobre a história de Portugal. Um dos locais favoritos eram os pinhais que D. Dinis plantou em longes tempos medievais para deter o avanço das areias sobre a terra firme, perto de São Martinho; punham-nos às duas a declamar felizes da vida o “ai flores ai flores do verde pino si sabedes novas do meu amigo...”, provavelmente a mais conhecida cantiga do rei poeta. Estes pinheiros chamam-lhes por lá mansos, copa larga e acolhedora, não muito altos, transformados hoje em símbolo de Portugal. No verão, por causa deles, é uma profusão de colares de pinhões à venda em todas as feiras, pra pendurar ao pescoço e ir mordiscando rua afora.

Chegando então ao local escolhido, estendia-se a toalha xadrez, e do cesto saltavam as sandes (adaptação lusa do britânico sandwich), que tanto podiam ser de carne assada quanto de tomate e ovo cozido (combinação também very british), as tartes de galinha perfumadas com tomilho, os refrescos de limão quase sem açúcar porque fazia mal aos dentes e as trouxas d’ovos - não há como explicar, é uma espécie de delícia dos deuses feita de gemas, gemas e gemas, além de quantidades imensas de açúcar que, imagino eu, nessa combinação não se imaginava que fizesse nenhum mal à dentadura. As trouxas vinham de casa da prima Madalena, não sei eu muito bem filha afinal de quem - segredo guardado a sete chaves, daqueles feitos de sussurros que silenciam quando quem não deve saber chega.

Eram piqueniques de certa forma velozes: era preciso comer sem demora, porque as formigas logo nos atacavam, pequenas e vorazes. Meu pai invariavelmente irritava-se, sacudindo as formigas do seu pedaço de tarte, minha mãe abstraía a confusão tentando ouvir o som do mar ao longe, minha tia Isabel espantava energicamente as pobres esfomeadas das beiradas da toalha, e a minha avó encolhia os ombros e me arrastava à procura das primeiras bagas do fim do inverno. Íamos, está visto, em excursão, e ocupávamos um longo trecho dos pinhais, andando por metros e metros, porque à beira da estrada, todos concordávamos, não tinha a menor graça. Tia Alice, irmã de meu avô, acusava-nos de parecermos provincianos mas, além de ir, comia no mínimo umas quatro sandes; trazia a sua cadeirinha estofada, que nos ocupava um lugar num dos carros, e suspirava desde que chegava até irmos embora porque “nada nunca mais será como antes”. Meu avô, que já lhe conhecia a conversa, logo declarava que “se a Alice vai, eu fico”. Em outras ocasiões, quando Alice não ia, ele apoiava-se na língua: “tudo o que começa com a letra p sugere-me perdição – praia, parque e piquenique... portanto, não vou”. Essa gracinha parou quando uma de minhas tias, salvo erro a mais nova, lhe disse que era engraçado mesmo, porque pai também começava pela letra p...

Essa mania de piqueniques familiares ficou-se-me lá do lado de lá do mar. Quando me lembro, e penso que puxa vida, que pena que meus filhos não têm essa vivência intensa, sou acometida por um misto de preguiça absoluta de todo aquele movimento preparatório que não tenho com quem dividir e da certeza de que tia Alice tinha mesmo razão, e nada nunca mais vai ser como antes. Nada mais melancólico do que sucumbir a um sentimento assim. Por isso, mal ponho os pés em Lisboa, a primeira providência (não é novidade, levam-me logo lá!) é comprar um frango assado no senhor joão da aldeia, ali à praça central de Cascais, e correr com ele (o frango, é claro) para o Guincho, tratando de comê-lo às pressas para que o vento dos penhascos não me leve embora. E mesmo as coisas não sendo como antes, faço de conta que eu sou, e divirto-me seja de olhos fechados, seja abertos, exercitando uma imaginação tardia do que foi, do que poderia ter sido e do que não importa se será ou deixará de ser. O que fica mesmo é o cheiro característico dessa dobra de terra que assiste ao despejar-se do Tejo mar adentro – a memória olfativa, já bem nos alertou Proust, nunca nos trai.

27/08/2009

Se+cura

Espero que me permitam brincar um pouco com as palavras – talvez haja outros que, como eu, se aliviem do peso do mundo brincando com os nomes que demos às coisas, transformando-as, nesse ato, naquilo que elas são. Tenho imensa pena de meu dicionário etimológico não me ajudar em horas como esta. Quando não sei exatamente o que fazer com uma coisa, ponho-me a pensar sobre a origem da palavra que lhe demos na tentativa, às vezes ingrata, de a definir. Foi assim, hoje, com a palavra “segurança”. E como não comprei, na altura, o dicionário que me disseram ser o melhor (basicamente porque está esgotado e, quando se encontra em algum sebo, custa um dos olhos da cara), fico-me aqui com esse sucedâneo de etimologia que raramente me resolve qualquer dúvida. Hoje, como em outros dias, a frustração é a mesma. Nem me atrevo a oferecê-lo a alguém.

Resta-me, pois, apelar à memória. Lembro-me bem de que “segurança” tinha algo a ver com o “viver sem preocupações”. Confirmo, (salve google!), que essa é a acepção mais comum, conforme me ensinou alguma aula sobre Roma. Lembro-me também, porém, de que na altura levantou-se uma discussão que minha memória não registrou à exatidão, mas que estava ligada ao prefixo se unido à raiz cura. É da junção de ambas, se+cura, que deriva a palavra que hoje me atordoa. E também isso encontro, não sem algumas manobras radicais pela internet, que google é bom, mas não perfeito.

Reconfirmei que esse sufixo se normalmente dá, àquilo a que vai se juntar em latim, a sensação do “si mesmo”. Neste nosso caso, com essa cura ligada ao ato de “cuidar”, terminamos num inspirador, embora desnorteante, “cuidar de si mesmo”.

Se+cura. Uma sinapse a mais, e logo paro, ensimesmada com as possibilidades de relação entre as duas explicações. Sei por experiência própria que podemos até querer que a etimologia seja uma ciência exata, mas muitas vezes não é o queremos que acontece. Aliás, acho que raramente. “Viver sem preocupações” e “cuidar de si mesmo”.

Deixo cada um entregue às suas próprias conclusões, longe de mim chegar a qualquer uma que antes quero permanecer tranquila, mas não resisto ainda a juntar-lhe mais um prefixo, para dormir melhor. Lembro-me do nosso co, e assim obtenho algo maior, que tão bem vai se acomodar esta noite ao meu lado, tão persistente debaixo de meu travesseiro quanto o cheiro da lavanda que me ajuda nos sonhos.

A co-segurança que obtenho permite-nos (porque agora não sou só apenas eu, mas alguém junto, que co-o-que-quiser) um viver sem preocupações, cuidando de nós mesmos enquanto outros cuidam de si mesmos, enquanto aqueles cuidam também destes e estes daqueles primeiros. Uns cuidando dos outros sem a secura de um mundo sem prefixos, nem sufixos e nem amigos - como aqueles que vivem ao nosso redor, dispostos a atender telefones noturnos, acudir a sirenes disparadas, ouvir com carinho o desespero de quem se desespera e oferecer-lhe o que lhe parece possível, e levantar-se no outro dia com energia e ânimo para pensar-nos seres coletivos, em busca sempre daquilo que nos une. Obrigada a quem está acordado – mesmo que já tenha ido se deitar.

25/08/2009

De hoje à noite, e de aqui mesmo

Devo já estar sendo redundante (e com o uso do gerúndio tudo tende a piorar...), mas dificilmente poderia ir deitar-me sem registrar numas poucas linhas o quão incrível é a maneira como todas as coisas da vida se encaixam, se permitimos que o façam. Muitas vezes nem sequer estamos atentos, e por isso deixamos passar ao largo os fios que nos conectam umas coisas às outras. Mas em alguns momentos temos a sorte de estar focados, e é aí que podemos intuir por inteiro o que não é óbvio.

Hoje à noite, no meio de uma fala que nada tinha a ver com o que lhe veio na sequência, pus-me a pensar (porque era disso que se tratava) no poder quase insano do silêncio, das coisas criadas que jamais assumiriam qualquer forma não fosse ele, o silêncio. Pessoas que se movimentam através dele em conjunto, e por isso alcançam milagres de construções geométricas precisas. Era disso que tratava a fala. Eu pus-me a recordar momentos de silêncio tão importantes e potentes que chegam a doer-me na alma, tamanha é a força e a sabedoria que trazem em si. Coisas pequenas, estreitos segundos - e mundos cheios de força e verdade. Tendo a recuperá-los depois, quando estou sozinha e o silêncio de mim mesma se instala ao meu redor, e de novo, quando são de fato solenes, me atingem esses mundos como a brisa marítima em busca de uma tempestade. Suave, insistente e premonitoriamente.

O que se conectou a isso depois, noite adentro, foi a possibilidade de realizar o como movimentos que em silêncio se desenvolvem nos devolvem velhos conhecidos vestidos de novas roupas, novas cores, novos ares que se lhes pegaram enquanto estiveram ausentes de nós. Há muitos dias em que me alimento dessa matéria, até porque tenho a preciosa incumbência de olhar para seres que em silêncio alcançam novos lugares; mas, em uns mais do que em outros, essa tarefa me enche de algo que eu não sei explicar, mas que me completa e me alivia da tortura dos dias que não compreendo. Como se, num filme de auto-ajuda eficaz, eu me convencesse sozinha de que tudo tem, mesmo, um sentido. É assim que age o sentido da auto-ajuda.

Para que se entenda, é sempre bom dizer que faz anos que deixei de pensar que tudo deva ter um sentido, ou pelo menos que tal sentido me seja acessível. Ao longo do tempo, e não sem as dores que tal descoberta considera, tornou-se mais fácil escorregar pelos tobogãs que o destino nos instala no caminho, mais compreensível aceder ao deslizar pelas penínsulas, terras estreitas, das nossas próprias indecisões e culpas, palmilhar cada centímetro que nos leva para mais perto do centro, que tantas vezes dói. Sem pensar no sentido, e abrindo os braços na direção do vento que sopra, sinto-me estranhamente mais livre, e mais estranhamente ainda duplamente consciente.

Estas segundas feiras musicais que se inventaram, e que aos poucos vão se transformando em nossas redondezas em momentos de troca e deleite com o prazer e a arte do outro, inauguram a semana com uma aura sensível de entrega e sorriso, no silêncio que demanda ouvir a vibração do outro. Não têm sido muitos os momentos em que podemos despir as almas dos temores e do julgamento alheio, e este abrir de portas é mais uma lufada de oxigênio pelo menos na minha vida, que tão agraciada tem sido, por tantas coisas e pessoas, nos últimos meses.

Vou deitar-me com a sensação de perenidade da imensa gratidão que sinto por estar onde estou, com quem estou e também com quem não estou. Tanto quanto dos silêncios, é dos vazios com que a vida nos presenteia que calçamos os nossos caminhos. Insisto em preenchê-los de palavras, porque me ajudam a achar a medida de quem sou e do que procuro. A sorte de ter quem me leia acompanha-me já há muitos dias, e chego à conclusão de que abrir os braços ao que vem tem sido a minha salvação.

Dos outros, nós próprios

Houve um tempo em que trabalhei vários meses como guia turística numa exposição em Lisboa. Estava a meu cargo um dos andares da Torre de Belém, seção da dita exposição dedicada a explorar e revelar o trabalho artístico das armas das navegações portuguesas. Caí nesse lugar por pura coincidência do destino, até hoje não atino muito bem por que, mas enfim.

Para a preparação desse trabalho, teve o grupo de guias uma formação bastante exaustiva (assim me pareceu aos 17 anos que tinha), mas durante esse tempo foi-me dado entender um pouco de espadas, pistolas, pederneiras e coisas do gênero, para poder entusiasmar quem visitasse meu andar. Vários cursos de história da arte, da guerra, da conquista, da especificidade da arte indumentária, da evolução e significado da simbologia bélica... Não que me lembre de muita coisa, pra ser bem sincera, mas ficou-me assim aquela sensação de que, se por um lado um tema se esgota com imensa dificuldade, por outro, tudo está inevitável e irremediavelmente ligado. Mesmo coisas que nos pareçam muito e muito distantes.

Éramos um grupo grande de guias, de várias partes do mundo onde se fala ou falou português – o Chico de Macau, a Fátima de Goa, o Pedro de Angola (embora seu sobrenome fosse França), o Nuno de Diu e a Ana, gigante amiga, que era de Lisboa mesmo. Deixaram boas lembranças e vários aprendizados. Eu era a mais nova de todos (na realidade, nem poderia muito bem lá estar, por não ter ainda 18 anos, mas enfim outra vez, o fato é que estava, mesmo com os sobressaltos que às vezes enfrentava). A exposição espalhou-se por Lisboa inteira, cada edifício escolhido dedicado a um especial assunto. Ter-me-ia agradado bastante ter ficado locada no Museu de Arte Antiga, prédio imenso cheio de horas e horas da minha infância, ou na Casa dos Bicos, onde ficou locado um ourives por quem me apaixonei perdidamente, assim como da capa vermelho furta-cor que usava pelas ruas da Baixa - mas fui pra Belém e sua Torre, junto a essas pessoas que citei ali em cima, e outras das quais a memória dos nomes me falha.

O fato é que conseguimos criar uma unidade e um sentimento de solidariedade íntima de tal intensidade que nos mudamos vários para a mesma casa, herança de família da amiga Ana, um apartamento imenso na Lapa lisboeta, estranhamente dividido, onde coubemos mais de 12, entre permanentes e visitantes eventuais. Número 22 da Rua Monte Olivete - saudosa, acabei de procurá-la no Google e achei-a, no mesmo lugar, mas com a direção de trânsito invertida; esses estranhamentos que acompanham toda revisitação poupam-nos da monotonia do tempo sem reinvenção. (Perdoem a cacofonia da rima que apareceu.)

Foram meses de equilíbrio, acho eu hoje saudável, entre estudo, trabalho, encontros, descobertas, noitadas e festas. Na altura, quis-me parecer que estas duas últimas imperavam, mas, no fundo, não. O estudo e o trabalho propiciaram que tudo realmente acontecesse; foram o pano de fundo, a base, a possibilidade concreta das outras realizações, mas as descobertas e os encontros foram certamente as coisas mais importantes e deve ser por isso que permanecem indeléveis na minha memória.

E assim espanto-me mais uma vez, e imagino que continuarei espantando-me por toda a vida, com o quanto chegamos a ser nós mesmos através do sermos inventores de outros, e permitirmos que, pela proximidade, os outros nos inventem e reinventem, corrigindo aquelas imperfeições que vamos criando, por não sermos tão fiéis aos nossos espelhos quanto lhes são os amigos que temos ao redor. Se acordamos a cada dia diferentes do que éramos no anterior, a mão de nossos amigos está sobre nós e dá-nos o alento e o consolo de que precisamos ao nos deitarmos na noite a seguir, e encararmos o amanhecer que por aí vem.

Terminei ontem de assistir Che, com Benício Del Toro no papel-título e o Rodrigo Santoro no papel de Raúl Castro. Fiquei muito tempo remoendo uma sensação qualquer ainda sem nome, tentando dar-lhe um sentido no meio de todas as minhas atuais interrogações. Há ocasiões em que só se percebem as coisas, não as nomeamos nem definimos, e por isso não podemos falar delas aos outros. Ainda não se encaixam em nosso puzzle interno. Sabemos que algo importante acabou de ser ouvido, visto, sentido – mas, contudo, escapa-nos o encaixe desse detalhe no todo, qual mesmo a geometria exata da sua transcendência.

Precisei dessa digressão ao passado, lembrando lugares e pessoas que me trouxeram até onde estou hoje, para perceber em que lugar me alimentou esse filme, agregando-o à minha carreta particular de experiências. A sensação de não sermos apenas nós, mas também e às vezes muito mais os outros, ficou-se aqui dentro de mim. A sensação de momentos da vida em que somos muito mais do que o nosso próprio tamanho, por causa dos outros ao nosso lado, sofrendo da mesma substância, porque também eles são do tamanho de outros, eu própria em sua carne amalgamada, e não apenas da própria e minguada medida.

Imagino que por causa dessa sensação eu tenha acordado com a vontade de divertir-me em fazer listas das pessoas que marcaram alguns dos anos da minha vida. Sorrio a cada lembrança que tanto me torna um eu. Os que morreram e os que desapareceram pelas estreitas vielas dos caminhos da vida; os que permanecem ainda que infrequentes; os que ressuscitaram e por isso mesmo se afastaram, pela impossibilidade da revisitação suave; os que me mantêm tanto quanto eu os mantenho, vivos e acordados – todos esses seres colam-se à minha volta, conferindo-me certeza e confiança nos passos que tenho de dar agora, e que não são nem mais difíceis nem mais tortuosos do que outros que já andei. Há outros hoje à minha volta, segredam-me eles de longe, outros que já se anteveem como garantia de que nunca nos é dado o podermos sentir solidão infinita.

Termino ainda sem título esta crônica, e lembro-me de repente das palavras que apresentaram um trabalho do passado, que se tornou mestrado e me abriu tantas janelas para novos mundos. É de lá que me aparecem de novo essas quatro simples palavras, que dizem o mesmo que estas duas laudas, e que carregam atrás de si todos aqueles que as inspiraram e todos aqueles que lhes permitem, às palavras, o revisitar da forma impressa.

20/08/2009

Das coisas que se vão

“Teve muita graça o Graça dar-me aulas de graça.” Minha mãe tinha um amigo professor, de nome António, que gostava muito de exemplificar de forma prática as possibilidades infinitas dos caminhos classificatórios da língua portuguesa. Gostava também de conversar comigo, e fazia-o sempre com interesse pelo que eu lhe respondia, o que não era a regra das minhas conversas com gente mais velha. Lembrei-me desse exemplo hoje de manhã. Demanda explicação: a frase é do poeta Mário Cesariny, e refere-se às aulas que o músico português Fernando Lopes-Graça lhe deu, num certo momento, de graça, movimento que ele considerou engraçado... Não sei se o António o usou para realmente me mostrar alguma questão gramatical, se para ter motivo de me apresentar o Cesariny. Desconfio, hoje, que o segundo motivo imperava. Faz todo o sentido.

Mário Cesariny não era poeta muito comum de ser lido na altura em que o António o usava, por demais libertário para caber nos estreitos bolsos salazaristas; um dia, ele (o António) não voltou mais, um daqueles desaparecimentos que eu sabia não serem comentáveis, mas devo-lhe o ter sido alfabetizada também através de formas abertas e livres de poesia. Os versos que meu avô me lia e me levava a decorar eram assinados pelos Grandes, como Camões; os que escrevia, obedeciam a rígidas e seguras regras formais, e eu sentia-lhe o sabor do saudável desespero de tentar encaixar seus sentimentos dentro das fôrmas que todos os modernismos já tinham quebrado na altura. A convivência infantil com ambas as possibilidades abriu-me caminhos inconscientes que eu gosto de perceber hoje, com maior clareza, e que inevitavelmente me cobrem de gratidão no mínimo literária, que ainda por cima pode extravasar o pensamento e realizar-se em palavras concretas.

Cesariny é também poeta favorito de outro Mário, este Soares, ex-presidente de Portugal. E, através de um artigo que acabei de ler deste último, antigo, descubro que aquele primeiro já não está entre nós. Volto à sensação de estranhamento que sinto quando leio que determinado poeta morreu, e não sei se é por primeiro achar estranho que estivesse de fato entre o mundo dos vivos, se o estranho é que ele possa passar-se a qualquer outra condição que não a de, simplesmente, poeta. A impressão que tenho é de que a poesia transcende as fronteiras entre os vivos e os mortos.

Mas talvez como tributo, súbita vontade de lembrar “como era mesmo aquele poema das verdades”, vou em busca do livro onde estão alguns dos poemas de Cesariny (só o tenho por aqui em coletâneas, é pena, seria bom tê-lo inteiro com o livro por ele próprio sonhado). Esse poema, de que eu sempre gostei particularmente, leva o título “Discurso do príncipe de Epanimondas, mancebo de grande futuro”. Quem se sentiu tentado a considerar o Cesariny ligado a qualquer surrealismo, acertou – ele é dos expoentes desse movimento em Portugal. Ou era, mesmo que ainda seja difícil falar dele no pretérito que se foi.

Os primeiros versos do tal poema são suficientes para me livrarem do que hoje me atropela:

Despe-te de verdades

das grandes primeiro que das pequenas

das tuas antes de quaisquer outras

abre uma cova e enterra-as

a teu lado

Para efeitos do que eu precisava resgatar internamente, basta-me este trecho. Através dele avanço em várias direções, e por todas elas chego com sentimentos distintos ao que me parece ser um mesmo lugar, o que me dá garantias de que seja realmente onde deva chegar.

Se vou pela porta da direita, logo encontro a desacomodação e o desarranjo. Preciso respirar de forma infinitamente profunda, contar até muito mais do que 10, encontrar o eixo que não ponha a perder os minutos. Se vou pela da esquerda, o Mário pesa mais do que eu própria, e as coisas ficam egoisticamente mais simples. Na desconstrução da verdade que ele pede, adquiro mais leveza e menos concretude; encontro mais e me torno menos distante; alimento-me do seu processo ainda que me pareça sofrido, e agradeço pela quantidade de livros armazenados dentro de mim, aos quais posso apelar para livrar-me dos meus pesadelos, sobretudo quando estes avançam pelo território alheio, e me oferecem ensanguentados os restos daquilo que eu quero inteiro. O certo parasitismo que me leva às releituras não me pesa; convivo com ele uns dias melhor, outros nem tanto.

Mas a lembrança do Mário, alinhada e aninhada junto à do António, envia-me à porta que não me é tão óbvia, não está nem à direita, nem à esquerda. É a porta que me abre a própria cova, e me introduz ao confronto com a incapacidade de dedicar-me ao trabalho de enxada que a cova necessita. Nem desacomoda nem liberta, antes me desnorteia e me reduz ao que realmente sou quando acho que sou menos ou mais. É a cova da própria medida, aquela do latifúndio do João Cabral, a parte que me cabe de mim mesma, quando imagino que possa oferecer-me naquilo que afinal não me pertence. Nessa cova posso enterrar não só as minhas verdades, mas também o alívio que me vem das palavras que os outros deixaram. Preciso parar de tremer quando o cobertor que escolho não serve para o tamanho do frio que me inventei. Retorno da cova e da porta, e estou mais leve por dentro e por fora – não tenho mais frio e nem mais cobertor. Deixei-os a ambos enterrados ao lado do Mário e do António.

17/08/2009

Das curvas da estrada

Cada vez que entro no carro e inicio uma viagem, fico pensando que essa história de que a menor distância entre dois pontos é uma reta pode até ser verdade em algum âmbito assim mais formal, mas ao volante eu não posso deixar de agradecer aos projetistas das estradas, por todas as curvas com que nos presenteiam, para que nos surpreendamos de vez em quando. Por muito rápido que chegássemos em qualquer lugar fosse nosso caminho feito de retas, eu ainda preferiria as sinuosidades das estradas menos percorridas, onde imagino que meu destino esteja à espera com muito mais interesse, porque pode brincar de esconder-se e rir-se quando me perco dele. Há viagens que ilustram o fato das curvas nos levarem muitas vezes, e de maneira mais rápida, ao destino que nos cabe.

Há curvas inesperadas, pelas quais não esperávamos, às quais emprestamos medidas erradas e, por isso, exageramos no acelerador. Quando temos alguém ao nosso lado que suavemente nos adverte (“olha lá aquela curva, pisa no freio aí senão já viu...”), menos mal. Mas às vezes estamos sem apoio dentro do carro, ou temos apoios que não se percebem como tal e se ausentam do auxílio ao volante, ou são talvez apoios daquele tipo ineficiente e vago, que ainda por cima depois solta um “bem que eu avisei...”.

A estrada pela qual segui ontem, feita de longos 400 quilômetros, alimentou-me com umas curvas que estou aqui agora tentando digerir. Quarenta anos e um dia depois de woodstock, passei horas ouvindo e conversando com uma das pessoas que me chega diretamente desse tempo e desse lugar - de tantas curvas, ambos quase parecem remotos. Abre-me um sorriso sem grades habitado pela simplicidade de cada uma das suas curvas, generosa e placidamente, possibilitando que eu não seja mera quadrada espectadora nesta conversa construída a dois. Alivia-me da carga de tantos dias de sorrisos cheios de amarras e sentidos vazios.

Ouço, durante horas, sobre os efeitos do sorriso sobre os esfíncteres todos, inclusive o que move o parto, assunto que, bem objetivamente, foi o motivo da viagem. Ina May é uma parteira americana a quem admiro pela capacidade de perseguir uma ideia obstinadamente e não deixá-la escapar e, ao mesmo tempo, manter a paciência e a tranquilidade necessárias às dores inevitáveis, próprias e dos outros, e às curvas agudamente dolorosas. Tudo é simples à sua volta, e para tudo a solução é simples, e começa pelo amor incondicional e irrestrito que lhe rege a vida. Descubro-me conversando com ela sobre coisas que nada têm a ver com os partos sobre os quais viemos falar, sentimentos e situações que também nascem e se desenvolvem, e rompem bolsas, e se apresentam de maneiras invulgares, e se estendem por horas, dias, meses, à revelia das soluções que lhes queiramos encontrar. Ela sorri e diz-me que faça o que acabei de dizer que devo: que me entregue, que não tente afastar a dor-garantia das curvas da estrada, que observe de longe e de perto, e que não me ausente de mim mesma, para não perder o próprio chão. Conselhos que cabem em todas as horas de um trabalho de parto bem acompanhado, assim como cabem num trabalho de vida bem arquitetado. Do alto dos seus muitos anos de vida, ouço-a dizer, com os olhos acordados e serenos, que essa curva em que acabei de me meter me trará paisagens com as quais sequer me arrisco a sonhar. A transparência da sua fala é produto da certeza de que tudo é feito da mesma matéria, e que partos ou vidas ou amores ou crianças ou aulas ou amigos ou vizinhos ou comidas – tudo a mesma substância interna, e em tudo devemos ser os mesmos. Diz-me, com duas palavras simples, que devo sonhar as paisagens que desejo, sem lhes construir ainda assim nenhuma expectativa, para que se concretizem enquanto desejos. É só disso que eu preciso para pavimentar a minha estrada.

Ponho-me a pensar na diferença intrínseca que existe entre desejos e expectativas, e descubro as mais óbvias: que enquanto aqueles se alimentam de sonhos, ao menor deslize sucumbem às expectativas que inadvertidamente construímos em torno deles, com extraordinária rapidez. Desejos habitam o mundo das ideias puras, dos sentimentos nobres; expectativas derrubam-nos dessas alturas celestes e sepultam-nos sob pedras duras e concretas, que se querem realizadas e cristalizadas na matéria.

Perdi alguns trechos de uma das palestras, porque logo me pus a fazer associações daquelas profundas, que fazemos quando conseguimos entrar numa espécie de estado de graça. Ina May fala do poder do sorriso que desfaz a aguda sensação de dor e aumenta a dilatação do colo uterino - essa receita eu sei há anos, mas esta mulher na minha frente, feita de suavidade e experiência, faz-me lembrar das coisas que tão facilmente esquecemos. Sorrir apesar de qualquer coisa é uma delas. Sorrir apesar do coração apertado. Sorrir apesar dos desejos que se vão tornando puro ar, antes de seu desaparecimento definitivo. Sorrir apesar das curvas apertadas, ou de um cenário tão monótono quanto uma reta que se afunda no horizonte.

As curvas da estrada que me trouxeram até o dia de hoje foram de certa forma tortuosas: nevoeiro, cerração, excessivos silêncios nos trechos mais perigosos, daqueles que assustam porque atrás deles há gritos em busca de libertação. Porém (concluo ao dirigir de volta, aproveitando o por do sol magnífico que permeia as águas dos dois rios que cruzo, e que me faz parar durante muito tempo), tivesse a minha vida sido uma reta, dificilmente teria descoberto o que adivinho como futuro. Com as curvas que encontrei e as tantas que conscientemente procurei, mantenho-me ao leme, aproveitando, aqui e ali, essas chances de um vento extra na vela, como este encontro deste domingo, feito do reconhecimento, da sinceridade e da cálida abertura que procuro a cada dia.

14/08/2009

De touros

Hoje já é dia 15 de agosto na minha cidade, Caldas da Rainha. Dia de aniversário, 524 anos salvo erro, dia de tourada e feira cigana. Lamento não saber se ambas continuarão como 30 anos atrás, para dar-lhes notícias atualizadas dos eventos, e desconfio que, pelo que vejo em outras passagens de tempo, devam ter mudado. Só que, como o que vive na memória, ensinou-me meu avô, está vivo de qualquer forma, posso dedicar-me a escavações aqui nas minhas gavetas internas, cheias de ligações entre si. (Por pura curiosidade, informo-me pela Gazeta das Caldas, e descubro que realmente as coisas mudaram: os ciganos transformaram-se em “expositores”, mais de 250 neste ano!, e nem sinal das touradas, resquícios medievais portugueses, nesta edição de hoje. É possível que, como outras coisas de épocas menos felizes que a nossa, tenham caído em desuso.)

Não é que alguém da minha família fosse assim um entusiasta de touradas – a ala mais à esquerda, olhava de soslaio (e de forma silenciosa, porque o perigo rondava) para essa atividade ligada à mancha latifundiária do centro de Portugal; a ala à direita, que mesmo escassa sobrevivia nessa minha família, tinha uns contornos estranhos, em que, se de um lado abominavam esse costume bárbaro e ridículo, típico de povos sem coração, divertiam-se absurdamente na caça aos patos bravos que depois ninguém comia, quando lhes era o tempo. A mim, honestamente, nem uma coisa e nem a outra, mas às vezes lá ia com meu pai às touradas. As convicções políticas de meu pai bem tentavam, mas era difícil resistir a um convite para qualquer coisa que juntasse pessoas e desembocasse num restaurante, num bar, numa adega ou numa tasca qualquer. Além disso, creio que a ele sempre agradou fazer oposição a todas as alas da família, e a tourada era o ataque perfeito e simultâneo a todas elas, que se irritavam bravamente mal ele anunciava que “vou com a Aninhas aos touros, não se ponham com coisas...”. Considerando que qualquer tourada é ao final festejada numa tasca, não há vencedores nem vencidos (a não ser os touros), lá íamos. 15 de agosto então, dia de legítima “tourada à portuguesa”- era fatal.

Explico esse “à portuguesa”: não sei se resultado do domínio filipino sobre terras lusitanas, o certo é que a rivalidade entre Portugal e Espanha se estendeu, célere, à tauromaquia - a arte do toureio, mais antiga do que Cristo, pra quem é virgem no assunto, com as devidas desculpas àqueles que passem mal só de ver associada a palavra arte a tal costume; eu compreendo, e sou-lhes solidária, mas é que o tema de hoje calhou-me ser este...

Touradas, na Espanha, são brutais, sangrentas, violentas (diria alguém português, é claro); mata-se o touro na arena – aliás, assiste-se à sua morte, lenta, agonizante e deprimente. Lançam-se chapéus aos céus quando o touro cai, vitória absoluta da sagacidade do homem sobre a natureza bruta do bicho. Aproxima-se de um transe coletivo - silêncio na arena, quase que se ouve o resfolegar do touro lá dos últimos lugares. Não há toureiro que não deseje a morte pelos cornos de um touro, e um deles, ao saber que seu rival morrera dessa forma, declarou que “até nessa hora ele me venceu”.

A tourada à portuguesa mantém uns ritos entre o teatral e o circense. Boa parte dela é a cavalo, imperam cores, bandeiras, plumas, mastros pra cima e pra baixo, uma sensação de desfile bizarro de vestuário do século XVIII, estilo Luís XV. O touro lá sofre com as agulhadas, com a maldita capa vermelha que aos poucos lhe vai tingindo os olhos, até levá-lo ao delírio que o faz perder a cabeça e a vida. A morte consuma-se do lado de fora. O touro sai da arena andando, às vezes trôpego, junto com o gado manso que lá entra para arrastá-lo consigo.

Conta-se em Portugal com um elemento desconhecido em terras de Leão e Castela, que são os forcados: grupo de oito homens de peito aberto, nada de lanças, espadas, armas ou capas, para eles o touro é “à unha”. Entram na arena, apenas eles, comandados pelo seu cabo, que avança destacado, aos gritos, chamando nomes feios ao touro, provocando-o e chamando-o para o embate. Casaco bordado da cor que Camões dizia ser contente, e o verde que completa a bandeira nos barretes das cabeças. Numa dança ensaiada e repetida entra século sai século, o condutor agarra o touro pelos cornos, manobra perigosa em que vários já perderam a vida, o último agarra-lhe o rabo e ambos rodam; a multidão ora emudece, ora se entusiasma, pasma e sobressalta-se em uníssono quando os demais se agarram cada qual à sua porção de touro, e aos poucos o dominam, o fazem parar e o derrubam no chão, finalmente vencido. Os espectadores em roda chegam ao delírio, porque é esse o momento que todos aguardavam - um banquete estranho em que se serve a valentia e a coragem desses homens, vestidos como os camponeses daquelas mesmas terras onde se criam os touros e se matam os homens de fome.

Essas diferenças entre touradas portuguesas e espanholas provocavam-me na verdade pouco interesse. O máximo que eu conseguia absorver da Espanha toureira estava nos livros do Lorca, que eu insistia em decorar quando lhe estudei a vida e a morte, e até hoje cá estão, entre estas gavetas que de repente abri. A minha inquietação só fazia era crescer com aquele toureiro magro e esquálido - moreno de verde luna andando devagar e garboso, como queria o poeta espanhol enviado à morte por Franco, mas ainda assim esquálido, agarrado à capa vermelha de um lado pro outro, o pobre do touro tonto já de tantas voltas, um arrastar-se em comum inútil e infeliz. A demora da espada, fincada enfim entre os olhos na Espanha, ou da bandarilha espetada no lombo em Portugal, afundava-me em oceanos de desespero interno, pelas coisas que eu não suporto e se arrastam, se consomem, se indefinem.

A experiência tauromáquica deixou-me um travo amargo que infelizmente recupero sempre que a minha vida se depara com um touro diante de mim que não posso enfrentar, porque não sou seu toureiro, a capa está em mãos alheias, e estas se divertem lançando-a de um lado ao outro, e ao final eu já não sei se sou espectador se o próprio touro, tão rapidamente me lanço à arena e me desejo perfurada até o fim. Mas nem um e nem outro. Logo me levanto e coloco meu barrete, e junto com o cabo que mantenho à minha esquerda, sigo em direção ao touro que me olha fixamente, olhos despertos na valentia que impede que as voltas indignas da arena se materializem pelo caminho.

13/08/2009

Do preparo das viagens

Uma das maiores diversões que tenho quando planejo uma viagem, mesmo que seja curta como será a do próximo domingo, pensando em termos de quilometragem (o que não quer dizer rigorosamente nada, mas tudo bem), é pensar-lhe a trilha sonora. Sentei-me agora mesmo aqui diante do computador, pensando em pensar em algo que me afaste um pouco do dia de hoje, dos movimentos internos todos que precisei acomodar dentro de mim, alguns tendendo ao doloroso. Decidi preparar, assim, a tal da trilha da viagem do próximo domingo.

De repente, enquanto começava a preparar essa base, espécie de pavimentação de ajuda ao transporte de um espaço físico a outro, fiquei matutando no que será que ando à procura quando gravo esses cd’s.

Não cheguei ainda a nenhuma conclusão, porque mesmo antes de partir, já fui: ao escolher esta ou aquela música já estou logo imersa no ritmo nervoso do motor do meu carro. Fiquei-me só nas sensações de permitir que dentro do automóvel possa se instalar, faixa a faixa, como numa mesa de banquete, toda a variedade de emoções que o dia possa me reservar, e quem sabe um tanto daquelas que apareçam assim de repente, sem pedido de reserva antecipado. Talvez seja isso que deseje prever, como se numa bola de cristal sonora. Tenho vários planos, penso, embora um se sobreponha, e deve ser por isso que este cd de domingo está nascendo tão eclético, tão variado. Através dele, vou poder imaginar-me dirigindo pelas estreitas ruas do sul da França, perceber o calor do Mali que faz a todos dançar para espantá-lo de dentro (e que provavelmente me fará abrir as janelas todas do carro), voltar a Salvador nessa voz que canta um Caymmi que nunca me disse muito, mas hoje diz por que quero reeditar-me. Escolho incluir a mesma música de uma outra viagem, que dificilmente acontecerá de novo – só que, ouvi-la, consegue inacreditavelmente trazê-la de volta, e isso me deixa feliz, mesmo sem estar dentro daquele carro e com poucas chances de voltar a estar naquelas mesmas condições. Apenas gravando o tal do cd, estou sentindo o mesmo que senti, e, como foi bom, é bom.

Há outras diversões, quando o assunto é viagem. Itinerário e outras praticidades não surtem tanto o mesmo efeito, ainda não acho graça em procurar o melhor caminho nesse botãozinho aqui do google em que se lê “mapas”, tão prático que chega a doer. Coisas menos óbvias ajudam a instalar o clima que pode transformar uns quilometrozinhos numa viagem intergaláctica, e eu com certeza é a essas coisas que prefiro. São essas preparações, difíceis até de explicar, que fazem com que viagens sejam descansos, paradas, amplas inspirações de novos ares e forças, momentos de descoberta de que tudo é muito mais do que vivemos e pensamos, que quase nada se reduz ao que vemos, menos ainda ao que acreditamos possível.

Viagens podem realmente ser viagens, e a pena é não conseguirmos a entrega incondicional a todas elas, de alma e corpo, podendo levar quem quisermos junto, porque a realidade nos limita e espreme, e nos deixa assim estes sujeitos inconsoláveis, presos aos predicados fechados que sempre, ou quase, terminam num ponto.

Espero, neste domingo, e nos demais que de mim se aproximem, encontrar dentro do meu carro, nas horas solitárias que me seguirão ao longo dos quilômetros, tudo o que imagino dentro de cada uma destas músicas, e que gravo agora com os olhos postos no dia de amanhã.

12/08/2009

Da luz, por vias travessas

Há muitos anos atrás, eu era pequena e os campos de trigo do norte do meu país eram mais altos do que eu. Isso encantava-me. Entrava por aquelas imensidões e a impressão era de ser teletransportada, acedendo a outras dimensões do mesmo lugar de forma instantânea. Nunca tive grandes dificuldades para imaginar coisas assim, mas alguns cenários (os trigais, no caso) propiciaram-me essa vivência repetidamente. Dependendo da hora, tinha a luz do sol como minha aliada, incidindo nas hastes flexíveis de um jeito dourado que as impregnava e quase as fazia cantar.

Tempos depois, visitando os mesmos trigais, desfez-se o encanto. Continuavam da mesma altura, e eu elevava-me sobre eles, vendo o horizonte que antes me era negado. Outros prazeres me aguardavam entre o trigo, que antes nem imaginava, mas uns não suplantaram o outro, mais alto e poderoso do que eu.

Esconder-me em meio aos trigos é a primeira fuga de que me lembro. Ouvia chamarem-me, mas a sensação dourada de estar deitada ao sol entre o trigo maduro, serpenteando ao vento como meu embalo, impedia-me de realmente ouvir, e demorava horas para ser encontrada, porque não havia mesmo como achar-me no meio de todas as hastes, no chão, barriga pra cima, olhos pregados nas nuvens que passeavam no céu azul, entrecerrando as pálpebras para perceber a luz filtrada até chegar ao vermelho angustiante que me fazia fechá-los com força.

Uns dias atrás, tivemos por aqui a sorte de ouvir uma palestra sobre luz. Do quanto se pode perceber (d)as coisas através da incidência da luz nelas, e não através delas mesmas. Gostei dessa possibilidade - mesmo que seja uma leitura enviesada de uma palestra que trouxe muito mais do que isso, perdoem-me os que lá estavam e talvez não se lembrem dessa parte, mas é que num certo ponto eu parei de ouvir e fiquei conjeturando outras coisas. De repente, dei comigo descobrindo que aquilo que desperta o meu lembrar-me dos trigais, é muito mais a luz do que o trigo em si.

De uma coisa a outra, logo estava dialogando comigo mesma, uma parte tentando convencer a outra de que isso está muito próximo da possibilidade de perceber os lugares, as horas, as situações, as pessoas, através do que lhes é menos óbvio. Exatamente!, argumentava uma parte de mim, enquanto a outra se dividia entre ouvir a palestra e essa sua irmã falante, é como a luz que passeia pelas janelas acabadas de lavar, manhã cedo, na dúvida entre o refletir-se a si mesma ou às folhas nas quais incide. Quantas vezes queremos coisas como essas, nem sabemos se refletidas se reflexos, pedestres dos nossos olhos alheios aos movimentos da vontade. E não as alcançamos, porque são feitas de luz. E a luz não se permite o fechar-se por entre os dedos das nossas mãos.

Outro dia de manhã, ainda pensando nessas coisas que são sem o serem, voltando de bicicleta para casa, descobri que, mesmo quando não venta, o vento existe. É só entrar num pasto pelos caminhos sulcados pelo gado, e prestar atenção ao vento que o deslocamento provoca, brincando de perceber o seu atrito melodioso ora num ouvido, ora noutro. (É preciso ficar virando a cabeça de um lado para o outro para sentir isso, o que não deixa de ser um bom exercício também de equilíbrio, porque os caminhos das vacas são um tanto estreitos, do tamanho das suas patas.) Parando, e tendo sorte de não haver vento autônomo, fica ainda mais nítida a sensação, porque é como se o mundo de repente estivesse ali para ser visto e só precisasse de que a bicicleta parasse. O ar não se move, só se ouve o farfalhar das folhas, como gostava de dizer um professor de quem não me lembro o nome quando falava de etimologia e escolhia sempre exemplos aliterativos como esse (era um dom). As coisas param e parece até que nunca se moveram. Não existem, mas ainda assim, um instante, um lapso de tempo, um estreito segundo, nos leva à certeza de que sim: ainda que digam que não, que não se vejam ainda (ou não se vejam mais), essas coisas existem. Por causa da luz que manifestam.

Devia ser um dia daqueles de pensamentos aleatórios, como se alguém apertasse a tecla do meu cérebro que faz com que os pensamentos não sigam a ordem que a lógica lhes quis dar. Pedalando outra vez, lembrei-me da lua cheia deste mês e da sensação de dormir aliviada quando ela se foi, tanta é a dificuldade de lidar com o terreno das emoções em dias de céu noturno tão claro. Emoções por encontros que nos imobilizam porque riem e choram ao mesmo tempo; porque aparecem carregados de passados e presentes mesclados a um Eric Clapton que canta alheio à plateia, longe e perto à mesma mesa, trazendo-nos noutro tempo, na companhia de quem já se foi; porque de repente o passado de alguém vem colar-se ao nosso lado, e insiste persuasivo que o carreguemos junto e assim tornemos mais leve e fácil o encargo de levá-lo adiante pelos próximos tempos, que provavelmente serão os mais duros, e não está no script da vida esquecer algumas coisas. Porque estão cheias de luz.

Saint-Exupéry vem-me à baila no meio de tudo isso, mas agora eu sei o motivo - aquela raposa que se dedica à responsabilidade por aquilo que cativa. Essa raposa às vezes nos acossa, e seus olhos são feitos de luz e brilham. Olhamo-la de lado, fazemos de conta que não é da nossa conta, mas não podemos nada a não ser a fidelidade e os dedos cruzados para conseguir cada tarefa encomendada por nós mesmos. Muitas vezes dependemos da luz com que iluminamos as coisas e da luz com que os outros nos iluminam. Ou da luz com que as coisas estão iluminadas, e à qual talvez devamos prestar mais atenção do que às coisas exatas precisas travadas em si. Talvez eu deva permitir que a minha memória se liberte dos trigais e se remodele sob a sua luz, para que também agora, com os passados próximos, eu possa deslocar-me das coisas e parar-me apenas na luz que as fazem brilhar.


11/08/2009

Do primário

Devo ter sonhado esta noite com a Sra. D. Esperança. Soava aos meus ouvidos infantilusos mais ou menos assim: Sôdona Esp'rança, por isso acho melhor mudar-lhe a grafia, para que nos entendamos todos em termos de sonoridades linguísticas. Sôdona Esp'rança foi minha professora do 1º ao 4º ano primário, na escola que foi também a de meu pai, e que leva o nome de um importante ceramista português: Rafael Bordalo Pinheiro. Vale a pena conhecer-lhe o “Zé Povinho”, figura adotada pela minha cidade (onde o tal Bordalo Pinheiro viveu e trabalhou durante anos) como sua expressão máxima, o que explica várias coisas a respeito dela e de seus habitantes. Googlem!, como diria meu amigo João Pedro.

Senti-me afortunada durante esses quatro anos, graças à professora da outra sala. Eram as duas multiseriadas: a da Sôdona Esp'rança, estava eu no 2º ano, dividia a sala ao meio com o 4º, a quem ela se dedicava quando nos mandava, a nós do 2º, fazer alguma coisa em silêncio e quietude, e vice versa. Sôdona Maria José, uma velha bem velha vestida de preto por toda a eternidade, era um terror de antipatia e mau humor. Assim, tendo por base essa comparação infeliz, eu me achava uma pessoa imensamente sortuda. E todos os meus colegas acenavam a cabeça aquiescendo quando esse era o tema.

Os métodos da Sôdona Esp'rança incluíam algumas coisas já abolidas na altura em outras partes do mundo, como a palmatória. Evoluída, no caso dela, que já tinha assumido um ar de régua de madeira. Mas doía do mesmo jeito. E eu era a sua escolha preferida, semana sim e semana também.

Qualquer coisa era motivo para ser chamada ao estrado – o pódio onde Sôdona se instalava em sua mesa, ao lado do quadro negro. Ora era não saber alguma coisa que devia, ora saber algo que não devia, ora a incapacidade de fechar a boca quando ela entendia que a (minha!) conversa tinha acabado. Esse era o maior dos meus pecados, a conversa, e acho que atualmente pago por ele, talvez perdoada dos juros, várias vezes por semana.

Eu fazia de tudo para escapar ao castigo, que realmente doía e deixava minha mão vermelha, às vezes arroxeada, dependendo da ira de Sôdona Esp'rança. Porém, também me elevava em importância, porque eu aguentava e nunca me viram chorar ao ser palmatoada. Minha mãe não sabia de metade – da vez em que percebeu a minha mão quase roxa, ia lhe dando uma coisa e invadiu a escola tão irritada, mas tão irritada, que eu decidi nunca mais lhe revelar o dia da palmatória, pelo escândalo que ela não precisava e nem eu.

Acho que, no fundo, eu julgava merecer tudo aquilo. No dia em que me pegaram saindo da janela do quarto das hóstias, por exemplo. Explico: anexo à escola, ou algo assim, funcionava algo ligado à igreja. (Nunca saber muito bem a origem de nada e andar um pouco acima das nuvens de segunda a segunda era também motivo de palmatória.) Uma das atividades desse anexo, de qualquer forma, era a feitura de hóstias, que gerava uma série de folhas todas furadas, redondinhas, como o que sobra quando se cunham moedas. Sobravam aquelas folhas e, acredite, eu acho que eram jogadas fora. Talvez tivessem outro fim, vai ver, mas eu jurava que eram jogadas fora. O que não tem a menor importância, porque a questão não eram as folhas, mas o apetite de todos por hóstias.

Com dois amigos, descobrimos um dia que a janelinha do topo da parede do quarto onde se faziam as tais das hóstias, ficava presa só no trinco, sem trancar. A janela era bem estreita, eu o era também, a menor e mais magra de todos, e lá fui a escolhida para a tarefa de escalar a parede. Entrei sem dificuldade, agarrei numa porção de folhas e dobrei-as bem dobradas para caberem no bolso do casaco. Escalei a janela de volta. Posso imaginar-me o sorriso de felicidade e triunfo, transmutado em pânico e apreensão quando vi que quem me esperava do outro lado, em vez de meus amigos, era o padre Viegas - e a Sôdona Espr'ança. Meus amigos? Evaporados, covardes que foram de me deixarem sozinha com a autoria, gestação e execução da ideia das hóstias. Esse foi um dos dias das minhas mãos arroxeadas, porque a aventura me rendeu palmatória dupla, esquerda e direita. E ainda por cima perdi as folhas furadinhas das hóstias.

É estranho, por histórias como essa que de tantas dariam um livro, que eu guarde boas lembranças de Sôdona Esp'rança. Já morreu, por isso sinto-me desobrigada de muita coisa, mas no fundo eu gostava dela. Desconfio que tenha a ver com a correção que fazia às redações semanais – sinceras , atentas e transparentes de um respeito que me alimentava. Ela orgulhava-se (disse-me a minha avó já eu estava longe desses dias) de ter sido ela a me alfabetizar, vivia contando casos da nossa vida em comum. Lembro-me de lhe ter ouvido um dia, em que a fui visitar já estava ela doente e já era eu mãe de vários, que nunca entendera como é que uma cabeça como a minha conseguia escrever coisas como as que escrevia.

Demorei a perceber a importância do brilho que iluminava os olhos da Sôdona Espr'ança quando me devolvia o caderno de redação, corrigido. Era uma mulher austera, de cabelo imenso e arredondado, alourado escuro, parecendo duplicar-lhe o diâmetro da cabeça, e nunca me dizia nada que eu pudesse entender como elogio. Mas seus olhos brilhavam, e por eles eu me alegro de ter guardado dois ou três desses cadernos, para poder agora olhar pra eles com outros olhos, que são hoje mais meus do que eram antes.

Por vias travessas, talvez sendo gentil com o passado e suas marcas, eu posso acreditar que Sôdona Espr'ança, com seus métodos um tanto brutais e secos, tenha me marcado o suficiente para me ajudar a encontrar o estuário da minha melancolia. Na maioria das vezes em que escrevo, é através dele que nado, é dele que luto por sair, demorando-me em braçadas que funcionam na minha vida como lufadas de oxigênio puro.

De um dia após o outro

Sabe aquela música? Aquela que começa com Hay dias que no sé lo que me pasa...? Quando é assim, durmo muito menos do que o normal, e acordo com uma disposição muito maior do que o costume. Esses dias espreitam-me e às vezes preocupam-me, fazem o mesmo com quem vive ao meu lado, porque são daquele tipo que deixa as redondezas exauridas e, a mim, inevitavelmente insatisfeita. Em dias como esses, o mundo parece muito pequeno e o tempo muito curto.

Por outro lado, é muito nítido ser desses dias que me nascem as ideias que depois se tornam meu alimento durante meses. Mas é um processo cansativo, e frustrante, e hoje eu não estou disposta a passar por todo ele com a sensação de que, por mais que ande, que dirija, que pense, que faça, que procure - não chego lá.

Por isso, cá me vou à escrita, veia de alívio, quem sabe as ideias me escorrem pela ponta dos dedos e retornam com a serenidade com que me proponho a, de vez em quando, viver. O primeiro problema que se apresenta é decidir se quem me galopa são os cavalos do verso, se os da prosa. Todo ano alguém precisa ouvir-me falar sobre a diferença entre prosa e poesia. Gosto desse assunto, que é daqueles aparentemente banais e essencialmente fundamentais. Daqueles que parecem resolver-se em dois minutos, mas não o fazem. É como aquelas pessoas que, de repente, se iluminam sob diferentes luzes: nem as notávamos e, num segundo, porque lhes vimos o que não lhes tínhamos visto, invadem-nos pelos sentidos e encantam-nos longo tempo. Pensávamos que eram simples, diretas, rasas até, e um dia revolvem-nos por dentro e dizem-nos com todas as letras que o mundo não é, mesmo, tal qual o imaginamos. Antes algo como aquilo que dizem existir entre o céu e a terra.

Nada melhor, para perceber o quanto a diferença entre prosa e poesia não se resolve num instante e pode ser tudo menos banal, do que ter algo a dizer que tanto num quanto noutro enquadramento se desencaixa. Talvez porque existam horas que demandem espaços abertos para o ser verdadeiro, nada de quadros ou caixas que prendam ou limitem, absurdo técnico costurado com as agulhas e as linhas da razão. O que precisa ser dito não cabe perfeito nem numa, nem noutra forma. Como os sentimentos que não se sabe por onde extravasar, e que se ficam nessa consumação que dura o dia todo, semanas até, se quisermos ser honestos conosco mesmos, à espreita por trás de cada árvore, por entre as folhas que decidimos tirar do gramado para clarear a própria superfície. Mas o vento que sopra em volta das casas é indomável, e as folhas voltam para onde estavam mal lhes viramos as costas, nós próprios nos virando e descobrindo que o vento nos trocou o lugar das coisas, e de nós mesmos, sem nem percebermos.

O verso!, penso comigo mesma enquanto olho o papel cheio de traços - é nele que encontrarei socorro... Mas não: também ele revolve ainda mais tudo o que sinto, ainda por cima permite que me ausente de mim mesma e divague pelos ares, e definitivamente esse não é o caminho, porque o que se quer é uma âncora, sei-o bem. As palavras não se permitem tranquilas, o objeto faz-se presente em demasia, obriga a dizer adeus à essência do que realmente se sente, que nada tem a ver, claro, com ele objeto. São contornos a mais em partes tão líquidas do próprio ser.

E tento a prosa. (Esta, aliás, é a sua tentativa.) Mas as arestas das linhas não interrompidas pelas cesuras dos silêncios poéticos tornam-me os sentimentos mais duros do que consigo aguentar. Doem-me como facas que me atravessassem aos poucos e devagar, como personagens bestas de Drummond, e logo volto ao verso, em desabalada e entristecida corrida. Por ele, ao menos, esvazia-se o leito deste rio em que se não estiver atenta me afogo. Mas quando me volto e olho para trás, não reconheço o por onde andei, e assim também me perco, também não consigo refazer o percurso.

Escrever demanda retomar caminhos e procurar a forma exata. Quanto mais se escreve, vivo eu dizendo por aí, melhor se escreve – e é um fato. Mas as coisas estagnadas assim ficam mais evidentes, as nossas estagnações internas com elas, e tudo isso dói.

A substância da língua divide-me em dois braços, um construído de versos, o outro de prosa. Lembro-me dos graus da poesia tal como os queria Pessoa, e tento projetar-me num dos mais elevados, deixando a modéstia de lado, pra ver se é ali que me libero. Mas soa falso, sou eu pensando em vez de sentindo.

Insisto em querer libertar-me sozinha, resisto às prateleiras à minha volta, escavo com vontade só o lado de dentro, relembro a memória e limo as suas falhas e os seus vazios. É uma sorte que o dia se acabe, e que com a sua luz mortiça se presentifiquem as necessidades da manhã, que se aproxima e promete. Amanhã, imagino talvez, saberei lo que me pasa, sem que precise por favor nem abrir o meu Neruda e nem apagar o sol.

09/08/2009

São Paulo, ontem

São Paulo, a cidade, tem a capacidade de despertar-me tudo o que de mais rápido vive em mim. Quando estou na disposição correta (e ontem estava), isso diverte-me imensamente, porque consigo quase que ver-me de fora, manipular-me até, transgredindo o que seria o meu normal, vendo o que acontece nessa inversão da ordem que me diz do que faria fosse eu outro. Parece estranho ao pensar nisso pela primeira vez, mas demora-se pouco para perceber o tamanho da recompensa.

Ontem, por exemplo, precisei ir a São Paulo para algo que tinha que fazer apenas às 18h. Ainda assim, decidi sair cedo, de manhãzinha, porque pensando na ida e oferecendo carona, logo me apareceram duas, que precisavam ir cedo, e cheguei à conclusão de que seria interessante sermos companhia uns dos outros. E lá fomos – meus planos, de um vácuo vazio, apenas possibilidades que deliberadamente deixei por conta da carta com que o tarot me perseguiu nas últimas semanas: a roda da fortuna. Portanto: nada de planos, porque não me pertencem. Quando essa demanda se amalgama à própria percepção e acompanha o ritmo natural do dia, é ótimo; quando não, é um pesadelo.

Dias como esse, de tão intensos e completos, parecem vários, e tanta foi a explosão de sensações e tantas as impressões que se acotovelaram à minha superfície, forçando a entrada avassaladora e descontroladamente, que até dirigindo eu precisei dar um jeito de rascunhar algumas coisas, porque iam escapar-se de mim com certeza, com tal velocidade me chegavam, de todos os lados. (Sim, é claro que é perigoso, não aconselho ninguém a seguir-me a ideia de rascunhar coisas em plena marginal, imagino que seja proibido e comporte até uma multa, mas exemplifica bem, e a rigor, o estilo de urgência que me ataca de vez em quando, e ontem em especial.)

Essas inspirações, que não marcam hora e são como aquelas visitas que chegam quando você está de saída e atrasado, atingem-me no centro do peito e alteram-me a respiração de uma maneira caótica. Escrever resolve o que poderia ser esse primeiro problema – mas é na verdade a absoluta solução, e eu sei disso mesmo que de fora pareça outra coisa. Ontem não teve mesmo nada de problema, antes uma agitação de caráter sublime, que fiquei observando em mim mesma, encantada com o que me acontece de vez em quando, graças a vai-saber-o-que.

E cá estou, São Paulo luminosa e ensolarada. Deixo minhas caronas simpáticas e confiantes na minha capacidade de direção, e vou em busca da amizade que há tempos não encontro. Entrego-me absoluta em suas mãos: que me leve onde queira, faça comigo o que deseje, alimente-me ou alimente-se de mim, que pra mim tanto faz, a felicidade do encontro já é tudo e não preciso de mais nada. Graças a essa possibilidade aberta com que acordei, e que consigo examinar agora, tudo é um todo completo, que chega para me dizer tantas coisas que eu quase me perco, atônita com a sintonia à minha volta.

Pra começar (e terminar, senão isto fica longo demais), entre várias opções, decidem-me pela da exposição de Sophie Calle. Sim, lembro-me de ver seu nome em meio aos tantos da FLIP deste ano, mas não sei nada dela, estou afastada de tantas coisas. Descubro que essa criatura francesa, ícone da arte contemporânea (“arte de amplo espectro”, leio na introdução ao folheto que me entregam), tem por caminho a exposição da sua própria vida, nua, crua e de dentes e ossos abertos; custa-me fechar a boca, de tanto que me percebo. Desta vez, nesta exposição/instalação que aliás fica no SESC Pompéia até o dia 7 de setembro e vale a pena ser visitada, o objeto do seu trabalho parte de um email de rompimento amoroso que recebeu de um homem, o seu próprio amor. De cara, antes mesmo de entrar, mal ponho os pés no Sesc e vejo lá embaixo (a exposição é num dos galpões inferiores) o título da exposição (“Cuide de você”), sei que algo de significativo se abriga ali, ainda que não saiba do que se trata. Não são exatamente as palavras, nem me dizem tanto, mas talvez o cuidado gráfico, a disposição de banners ao vento que chama a minha atenção, que se desatina e nem realiza o recital de cítara no salão principal deste Sesc com recordações de tantos anos. Ou talvez não seja nada disso, e apenas a intuição antecipando-me a vida.

O tal email, que a destinatária deixa sem resposta, foi enviado a mais de 100 mulheres, cada uma de um quadrante da vida, para que a analisem a partir da sua própria percepção e ocupação profissional. Nada de pedir ajudas, ou de compartilhar a dor; o intuito é perceber como os outros perceberiam (creio eu que ainda assim isso é um compartilhar, mas vamos lá...). A exposição destacou algumas destas contribuições à dor de Sophie, numa estranha e complexa espécie de terapia auto-coletiva mediática: uma jurista, uma encarcerada, uma papagaia, algumas atrizes, dançarinas, uma especialista em direitos da mulher, outra em boas maneiras, uma tradutora de linguagem sms, uma etnometodologista (?), uma intérprete do talmude, uma headhunter, uma mestre em ikebana...

Cada uma, uma percepção e recepção; cada uma, espaços possíveis de uma resposta que nunca acontecerá, num processo em que não se vislumbram as linhas divisórias da ficção e da realidade, provavelmente (penso eu) porque toda realidade seja uma ficção de cada um à sua maneira. Sei que não gosto de me pensar realidade, e realizo-me na ficcionalização cotidiana de mim mesma como manobra de pura e banal sobrevivência - e deve ser por isso que a minha boca não quer fechar-se. Não tanto pelo que leio, pelo que vejo, pelo que ouço – mas antes por causa do próprio conceito, pela descoberta de que inventaram nomes para as coisas que faço cada vez que acordo (e compreenda-se que eu acordo várias vezes ao longo do mesmo dia).

Descubro depois que a passagem dessa Sophie por Paraty aconteceu pela mesa redonda da qual participou, e na qual estava também o autor do tal email, também escritor. Terá a exposição despudorada da dor tornado mais fácil o seu filtrar e a sua despoluição? Terá a exposição permitido a dor das pequenas torturas que nos impomos, e que nos são vitais, sem que as rechacemos e nos abstenhamos dos seus ensinamentos?

Às vezes, penso comigo mesma, sinto-me realmente intoxicada. Como esse Tietê aqui ao meu lado, passando por essa cidade cheia de surpresas rápidas, instantâneas, tão dessa modernidade em que não importam mais os quinze minutos de fama, mas cada cinco da própria vida. E nós perdendo tantos deles, brincando de kart pelas ruas sem pneus de proteção, expostos sob a ilusão do capacete em nossas cabeças, achando que tudo é sério, muito sério, e demanda os meses de espera que o passado mais tarde condena.

07/08/2009

Chuva, avós e amor

Perguntaram-me outro dia, por email, porque guardo tantas lembranças de meu avô. Na verdade, as lembranças que mais guardo são as da minha avó, mas ele vem-lhe atrelado, e posso explicar por que. Um acontecimento de uma noite de tempestade pode dar um pouco essa medida. Para eles talvez não tenha sido feliz, porque afinal tratou-se de um acidente de carro, mas eu lembro-me com aquela espécie de ternura que comove a mais empedernida das pedras.

Foi graças a uma das consultas noturnas de meu avô, num inverno molhado como todos os da minha infância. Uma espécie de tempo como este que não nos largou durante o mês de julho, em que chove, chove e chove, e o único alento é que certamente um dia deixará de chover. Lá, na minha infância, todos os invernos eram assim, com o agravante de que o frio era maior.

Nesse dia, o frio estava cortante e a chuva alfinetante. Lá tocou o telefone, não deveria ser cedo porque já tínhamos jantado. Minha avó anotou o endereço na caderneta, e meu avô bem tentou fingir-se de dormido, que eu percebi pelo canto do olho, abandonando a leitura de um dos livros do Enid Blyton que me acompanharam a infância tanto quanto a chuva.

Mas o dever chama, e encolhendo os ombros, talvez pensando que ainda bem que era longe, daria tempo do mau humor se dissipar, arrastou-se em direção à porta de entrada. Minha avó estava curiosamente animada naquela noite, e lançou um “Ó João... e se nós também fôssemos?”. Eu achei a melhor das ideias, aquele frio, aquela chuva, aquela escuridão, e nós no 2 cavalos do meu avô, chacoalhando como natas a caminho da manteiga. Contente com a indicação aceite, pus casaco, botas e luvas e lá fomos.

As horas de espera na salinha da casa do doente foram a parte menos divertida, porque a luz era pouca e não havia nada para fazer; às vezes os doentes do meu avô tinham crianças em casa, o que era animado, mas não neste caso.

Na volta, a chuva piorara bastante e os relâmpagos assustavam. Meu avô detestava dirigir com chuva forte. Aliás, dirigir não era o maior dos atributos do meu avô, embora o tenha feito até o dia em que morreu, aos 86 anos de idade. A cidade inteira (e não se trata de uma cidade pequena, para os padrões portugueses ao menos) conhecia o citroen vermelho do meu avô, basicamente porque já era o único daquele tipo a existir na cidade. Assim que o viam virando a esquina, os demais motoristas abandonavam a corrente noção de que um “pare” signifique que o sujeito vá de fato parar, ou que uma via preferencial seja entendida como tal por todos os mortais. Aparecia meu avô sacolejando na rotatória da Praça da Rainha, obviamente tendo de parar antes de entrar: quem parava eram todos os demais, dentro da rotatória inclusive, para o deixarem passar, livremente e sem dar por isso, em direção ao cemitério e à visita diária a minha avó. Na Praça da Fruta, a mesma coisa: “Lá vem o Dr. João!”, e logo paravam todos, prontamente. Eu, quando pequena, achava aquilo a maior consideração, embora sumisse quase que para debaixo do banco de vergonha. Já mãe de dois filhos, e acompanhando-o nessas visitas à minha avó já morta, admirava-me com aquela compreensão que fazia com que a cidade inteira, novos e velhos, nascidos lá e enraizados também, entendesse que as leis de trânsito não se faziam para aquele senhor de olhos cinza.

Mas enfim. Nessa noite da chuva, meu avô decidiu passar o volante à minha avó. Decisão sábia, que ela dirigia muito mais cautelosamente do que ele. Parece que a chuva a atrapalhou, e meu avô nervoso, dando indicações que pouco ajudavam, devia obter o mesmo efeito. Eu, no banco de trás, mais calada que um rato, não fossem as sobras serem minhas.

A visão quase nula, e muitos carros em direção contrária. Uma guinada transportou-nos a todos para a berma (adoro essa palavra, sinônimo de acostamento, que não uso há séculos!) e o carro resvalou, quase virando.

Minha avó tinha um problema cardíaco sério, que lhe rendia cuidados constantes por parte de todos; cuidados curiosos, como o de manter uma jarrinha de água com uísque ao lado da cama, para tomar um copinho todas as noites antes de dormir, medida que dizia meu avô ser boa para o coração. (Decidindo cuidar do meu por conta própria, fazia o mesmo de vez em quando, mas acho que nunca ninguém deu por isso.) O susto do meu avô, que poderia ter se transformado em cólera, eu já tinha visto disso e fiquei preocupada, colérico que era, metamorfoseou-se repentinamente num gesto que lhe abriu os braços protetores, fazendo-o lançar-se sobre a minha avó para a afastar do perigo que viesse. Foi tão rápido, e ficaram tão perto um do outro, que os olhos tiveram que fazer um beijo acontecer, tendo-me como única testemunha.

Há pessoas que se sentem desconfortáveis em manifestar (publicamente, pelo menos) o seu carinho e o seu amor, e meus avós estavam dentro desse rol de pessoas. Nesse dia, de um sutil e meigo que quase se perde no meio de toda a chuva, o amor dos dois tornou-se muito palpável, e porque não o era no dia a dia, gravou-se na minha memória, e tornou-me fácil compreender anos depois as saudades absurdas do meu avô, depois que a minha avó morreu.

Lembrei-me de tudo isto hoje, quando fui acordada no meio da madrugada por um telefonema de longe, que me trouxe de volta a voz do amor da minha vida. Agora que o dia amanhece, e eu percebo o quanto os dias se arrastam sem ele a meu lado, percebo-lhe a qualidade simples, inteira e sólida daquele instante de uma noite de chuva e acidente. Com todas as alegrias, dificuldades e promessas que trazem consigo as coisas simples, inteiras e sólidas, porque nunca são, é claro, apenas isso.

04/08/2009

Do latim

A etimologia sempre me interessou. Não necessariamente, ou logo de início, como ciência exata (que não é mesmo) ou como curiosidade histórica, mas mais como oceano de possibilidades e conexões misteriosas e ocultas entre nós e os que estiveram por aqui antes. A própria substância autônoma das palavras, ainda naquele estado de dicionário que lhes acusou Bandeira. Presenças e ausências alfabéticas que criam essas possibilidades de existências além dos nossos olhos.

Descobrir que “confraternizar” tinha uma ligação tão íntima com o perceber no outro um nosso irmão, e por isso é que meros encontros são momentos de alegria e regozijo nos braços da fraternidade, acompanhou-me assim que o latim entrou na minha vida. “Frater meus, alter ego” (meu irmão, outro eu) foi um bom tempo a missiva que circulava entre eu e meus fraternos amigos da altura.

Na verdade, um pouco depois. O latim apareceu-me antes, com uma das minhas tias, a que gostava das línguas mortas e até se parecia já naquele tempo com alguma delas. Aconteceu na voz de um belga morto em 1978, Jacques Brel. Tinha ele musicado a primeira declinação latina (Rosa rosa rosam/Rosae rosae rosa/Rosae rosae rosas/Rosarum rosis rosis
, numa letra da música sem coincidência exata com a declinação clássica), chamando-lhe, por entre isso que era o refrão, de “tango dos que farão a França de amanhã”.

Queria a minha tia introduzir-me dessa forma a todos os casos declinados da língua de Roma, mas eu fiquei-me durante anos na música de Brel, e ela acabou por se frustrar e, segundo disse, “ficas abandonada à própria sorte”. É bom saber que nessa altura nem estava eu ainda alfabetizada, como é que ia me interessar por decorar obscuras declinações latinas sem melodia anexa?

Anos depois, tive a sorte (jamais diria isso naquele tempo, mas enfim...) de ter aulas de latim por algumas das escolas por onde passei do 5º ao 8º ano. Foram vários professores, todos eles homens, creio eu, mas um deles, que aliás era padre, é o que guardei na memória, provavelmente por ser o mais bem humorado e por, ainda por cima, saber “de fato” latim: falava latim. Imagino que por causa dele eu tenha passado por todas essas experiências, frustrantes na sua maioria porque aprender que foi bom, nada - e até hoje goste de latim. Na faculdade nem cheguei a me sentir perseguida pelo querido professor Alceu, que literalmente caçava os alunos pelos corredores e por várias vezes me (nos!) deixou em imensas e quilométricas recuperações de traduções, que eu fazia livremente pelo que me parecia soar, sem grande paciência para descobrir-lhes o caso (e, coincidentemente, o significado) exato. Chegava perto, mas Alceu queria as coisas exatas, e explicadas.

Numa dessas recuperações (isto não vem nada ao caso, foge ao plano inicial desta crônica, que é outro, mas lá vai), decidimos marcar a tal da recuperação na casa dele, talvez já ele estivesse farto das tais das recuperações no campus da faculdade. E lá fui eu, e mais alguém de quem agora não me lembro, porque a figura até que terminou rápido e logo se foi, puro alívio. Eu rabisquei algumas coisas e levantei-me. Fui ficando, que a biblioteca do professor Alceu era respeitável. Encontrei tudo o que devia traduzir no original, em edições antigas; nada que me ajudasse na tarefa em mãos, mas eram livros com aquele tipo de cheiro que traz tudo menos livrarias: traz mãos e toques antigos, horas noturnas sob mesas pouco iluminadas, cigarros acesos e mentes pensando, sussurros ao pensar numa possibilidade, saboreada do único jeito possível - em voz alta. Quando dei por mim, o Alceu estava sentado na sua poltrona, muito feliz de que alguém mexesse naquelas prateleiras. Conversamos tempos e tempos, e quando fui embora já estava de noite, e eu preocupada com as crianças, o jantar, a casa... Quando lá cheguei, descobri que a prova tinha vindo comigo, e esqueci-me dela. Alceu nunca me perguntou por ela, e aquele foi afinal meu último semestre de latim.

A digressão vale-me agora a sensação de que é disso que a vida é feita e é por isso que vale a pena, independente, o Pessoa que me perdoe, do tamanho passível das almas.

Tudo isto para chegar ao que me prendeu hoje, e que na verdade até (reparo agora) tem a ver com esta história do Alceu. A diferença imensa entre as palavras “partilhar” e “compartilhar”. Debato-me com elas há meses, tentando perceber-lhes no meu dia a dia onde mesmo é que se encontram e onde é que enfrentam caminhos distintos.

Senão, vejam.

Não são forças opostas, parece-me a mim, antes energias manifestas de coisas bem distintas. Uma envolve o outro, objeto do partilhamento, na sua dimensão ausente, sem dele nada requerer, um pouco como se ele apenas existisse como as estrelas do céu que não imaginamos nos estejam atentas, apenas nós a elas; é um impulso de dentro pra fora, e o dentro é auto-suficiente; não há nada no fora que se queira ter de volta.

As três ínfimas letras que se juntam ao “partilhar” acomodam esse outro ao nosso lado, confortavelmente (ou não) instalado na poltrona defronte da janela aberta, ouvindo o eco dos silêncios da vida. Incorporam uma outra explicação do mundo, uma outra porta aberta, por onde esse outro se expressa e por isso nos transforma, por isso nos deixa passíveis de sermos um eu melhorado e mais inteiro, por conter aquele outro que até então expectava (se é que tal palavra existe; meu corretor ortográfico aqui diz que não mas eu não vou ao dicionário porque a palavra me agrada quer ele diga que exista, quer não).

Compartilhar implica movimento, disponibilidade, entrega, admiração, encantamento, liberdade, aceitação. Uma forma especial de fluir que se parece com o movimento da água. Invisível, sutil, permeada pelo silêncio do que se move no subsolo, quase sem forma. Compartilhar expande o que se quer na direção do que se descobre.

A energia desse “partilhar-com” abriu-se na minha vida através destas crônicas, atingindo-me em cheio dentro de um movimento que pretendia apenas e tão somente partilhar. Partilho deste lado, um tanto a medo confesso, porque a exposição acontece. E quando menos espero, e no momento exato em que preciso, ouço ou leio alguém que me retorna, que me norteia, que me traz o parâmetro que sozinha não posso ser, e o meu ser inteiro se abre em asas que me transcendem e me movem na direção que não é minha apenas. Recebo esse compartilhar como recebo outros tesouros: com os dedos trêmulos e com os olhos em brilhos de satisfação de ler e reler, e sempre me deixar surpreender pelos milagres que não podemos nunca deixar escapar por entre os dedos.

Acabei de ler aqui num blog a palavra com a qual me vou deitar: “vigiai” – está tudo aqui, diante de nós, e somos nós quem dizemos sim ou não. Sermos solitariamente partilhados ou em graça dividida com-partilhados.

Da origem da escrita

Meu avô, além de ser médico, escrevia. Entre uma consulta e outra, entre um e outro receituário, riscava no caderno que guardava no bolso esquerdo umas quantas linhas, sobre as quais se debruçava nos longos serões perto da lareira, pleno inverno.

Muitas vezes interrompia-se o serão. Lá saía meu avô, a cavalo, precisando correr para acudir ao parto que lhe doava, no final, aqueles dois versos de inexplicável beleza com que nos brindava assim que raiava o sol, no dia seguinte. À mesa do café da manhã, já pronto para sair de novo, repetia-os uma vez e outra, parecendo saborear, junto com a bolacha e o copo de leite quente, cada som, cada palavra.

Minha avó, ao fogão, respondia pelo lado prático: “O leite, João!”, “A hora, João!” “O hospital, João!”. E ouvia sorrindo entre dentes, satisfeita de que a vida assumisse, assim sem querer, um brilho mais límpido, mais transcendente.

Meu avô escrevia crônicas também. Um dia, publicaram-lhe uma. A revista circulou pela família como relíquia, e meu avô, tão feliz, gostava de ler-se uma e outra vez.

As primeiras letras que eu quis decifrar foram as que ele escreveu. E as primeiras que eu escrevi, escritora mirim querendo ser grande, imensa, como os sons das palavras de meu avô, foi a ele a quem mostrei. Olhou-me sério, e embora me dissesse nada entender, eu entendi que tudo ele compreendera. Mas não podia dizer, porque não podia quebrar o segredo das minhas palavras. Sorri-lhe agradecida, cúmplice, e nunca mais parei de escrever.

Meu avô tinha um grande amigo, grande escritor também. Todos os anos o encontrava, porque eram da mesma turma de curso de Medicina, de um tempo que prezava a reunião anual, o confraternizar como irmãos de fato. Uma vez acompanhei meu avô. A esse escritor, vi-o ao longe – quando ele se aproximou, suspendi a respiração, apertei-lhe a mão e, surpresa, constatei que era quente, como a de um mortal comum. Fez-me sentar ao seu lado, e presenteou-me com um de seus livros – eu, pequena do tamanho de pouco mais de 10 anos, pouco entendia do que ele escrevia, numa letra miúda em página inteira, mas na prateleira por cima da minha mesa de trabalho, lá está, luzidio, o volume dos “Diários”, dia sim dia não inspirando as minhas próprias palavras.

Minha avó, enquanto isso, dava-me livros, poemas, receitas, notícias... e muitas outras coisas, mas que eu quase não via, porque não eram escritas. A sua caligrafia miúda, inclinada, desenhada, preenchia meus cadernos com exercícios de escrita que ela corrigia, depois, com paciência e respeito de quem tinha por marido um poeta. Sua caligrafia serviu-me de modelo para subverter, quando a idade o pediu, a caligráfica medida.

Há vários livros em minha estante que acusam a oferta – “Para minha neta, no seu 13o aniversário” ou “A minha neta, em mais um Natal” ou ainda “Do avô querido, ao término de mais um ano escolar”. Guardo-os como testemunhas de um outro tempo, mesmo que já não os leia porque outras leituras agora me aguardam. Mas assim que adoeço, que preciso deitar-me, que a saudade de ser pequena e cuidada sacode a minha alma, é a eles a quem recorro: sinto-lhes o cheiro, releio-lhes as rugas, volto a ser aquela que fui e que permitiu ser a que sou.

Numa dessas ocasiões de oferta, o mal-estar instalou-se entre meus avós. Na hora do almoço, chegada eu da escola, molhada em dia de chuva e longa caminhada, chegado meu avô do consultório, sacolejando em seu vermelho citroen dois cavalos, lá estava um embrulho na mesa, de laço amarelo, papel encerado de uma cor só. Meu avô de olhos brilhantes e minha avó já desconfiada.

- Sim, está bem, João, mas antes vamos sentar e almoçar.

Ninguém discutiu a norma, e lá nos sentamos os três à grande mesa órfã dos muitos filhos destes avós. Imensa nesses dias, parecia encolher-se na Páscoa, ou no aniversário festivo da minha avó, dia 15 de Agosto, dia também de tourada, para horror da pobre senhora a quem horrorizava essa trágica tradição. Mas agora lá estávamos os três – e o pacotinho embrulhado, piscando o tempo todo, entre uma garfada de purê de batatas e um pedaço de frango. O garfo interrompia o caminho do prato à boca e lá se ouvia minha avó:

- Ande, menina, coma.

Meu avô olhava de rabo de olho, e pedia um pouco mais disto, um pouco mais daquilo. Resmungava contra a dieta que ele próprio se impusera, cuidando do coração e do colesterol – ...”ah, que saudades do pernil, lembra Ofélia?” ou “Ih, que vontade de um bifinho empanado...” – e o tempo da refeição se passava sem que o frango grelhado e o purê de batatas recebessem qualquer elogio.

Ninguém tomava café, por isso foi só a pera cozida da sobremesa (“maldita dieta!”) e logo o passar rápido de mão à procura da ponta da fita para desembrulhar o que eu já sabia, claro, só podia ser um livro. Assim que o abri, vi logo que era uma edição para gente da minha idade – “O clube da Karla”, numa capa vistosa e com desenhos que, se não primavam pelo bom gosto, certamente chamavam a atenção e despertavam o interesse de uma menina de mais de 10 e menos de 13 anos.

Minha avó, assim que passou os olhos pela capa, leu o título e viu os tais desenhos, não se conteve:

- Ó João, mas... tu leste? Folheaste? É sobre...? Eu não estou a gostar disto...

- Ora, Ofélia, olha lá o título da coleção: “Mestres infanto-juvenis” – o que é que eu preciso ler?

Minha avó arregalava os olhos: - João, parece que não sabes o mundo como está, cheio de malandragem, a levar as crianças para os piores caminhos?

E meu avô encolhia os ombros e sentava-se em sua cadeira, disposto a desfrutar a sua sesta cotidiana. E eu tentando ler o livro, pôr-lhe as mãos de novo – mas quem disse que minha avó o largava?!

O telefone tocou. Minha avó, telefonista de plantão daquele que fora o primeiro médico rural a instalar-se na região, caneta a postos, disposta a anotar o endereço do chamado. O suspiro de meu avô fez-se ouvir assim que deu com os olhos no papel – lugar longe, de acesso difícil de terra e cascalho, ainda mais nesses dias de chuva e frio...

- Ofélia, eu vou a cavalo. E a menina, se quiser, que venha também.

A contra-gosto, e sem meu livro novo, lá fui, no fundo feliz porque não era sempre que podia acompanhá-lo nessas visitas.

O lombo do Trovão era tão grande que servia aos dois, avô e neta. Na minha imaginação ele corria ligeiro, saltava pontes e cercas caídas, galopava com as crinas ao vento pelos campos afora, e até mesmo uma lua cheia iluminava as curvas e escondia o depois delas, embora fosse dia claro. Mas na realidade ele pouco galopava, muito menos saltava, limitando-se a um trote muitas vezes incômodo, mas seguro, e a uma paciência sem fim para longas esperas à porta do doente.

Seu Custódio estava de cama, com um aspecto sofrido, mas nunca soube que doença o atacava. Sei que meu avô, com sua maleta na mão, entrou pela porta estreita da casinha e lá ficou duas, três, quatro horas, saindo suado e cansado e deixando seu Custódio aliviado e devedor (“Pagar, senhor Custódio? O senhor há de pagar-me lá por volta do Natal, com um de seus perus!”). O caminho de volta, mais silencioso e mais escuro, via as sombras da noite aproximarem-se. Anoitecia cedo, naquela época do ano, e o vale onde se encontrava a casinha do senhor Custódio era tão fundo, mas tão fundo, que certamente anoitecia lá antes do que em qualquer outro lugar do mundo. Cães latiam aqui e ali, e as luzes do poente iluminavam o céu. O ombro do meu avô deixava-me às vezes ver a estrada adiante, conforme o trote do Trovão permitia. Mas a paisagem a ambos os lados era suficiente para encher-me os olhos. A cada casinha, perguntava-me quem a habitaria, e muitas vezes o descobria, porque à janela lá assomava a senhora Vicenta, a senhora Elisa, a menina Maria, que o meu avô cumprimentava com um aceno de cabeça, um gesto de uma das mãos ou um “boa tarde!” às que lhe acenavam.

Meu avô era conhecido de todos – e não é força de expressão. Como único médico do lugar durante anos, e mesmo depois da chegada de outros, único que ainda fazia visitas na região rural onde só se chegava a cavalo, a qualquer hora do dia ou da noite, era querido pelos tantos que já ajudara: mulheres em trabalho de parto, homens com crise de gota, crianças com difteria.

Ao chegar a casa, entrando pelo amplo portão recém pintado de azul, encontramos minha avó à porta, feliz e sorridente. Foi conosco até à baia do Trovão, ajudou a tirar-lhe os arreios e ficou encostada às madeiras fortes da armação do estábulo enquanto meu avô passava uma rápida escova pelos flancos do animal. Água fresca à vontade e uma braçada de feno, que eu fui buscar, e lá voltamos para casa, quase já noite escura.

A porta da cozinha estava entreaberta, e um cheiro de bolo de laranja fugia pela fresta, vindo encontrar-nos a meio do caminho. Assim que chegamos e abrimos a porta, minha avó foi até à sala e de lá voltou com uma mão atrás das costas e um sorriso nos lábios. Chegou perto de mim, esfregou-me a cabeça como sempre fazia com a mão à vista e apresentou a outra, dentro dela o “Clube da Karla”. Tranquila e segura, disse-me que certamente eu ia gostar, e que era uma pena que fizessem capas tão feias para livros interessantes. Agarrei-me ao livro e a um pedaço de bolo de laranja e comecei ali mesmo a mergulhar no clube dessa menina, apaixonada como eu por livros e que, parecia, também tinha uma avó atenta e carinhosa.

Meu avô adorou a novidade do bolo, embora reclamasse que “Mas sem cobertura?! Ora mas que chatice...”. Afundada no sofá verde da sala, vi-o ir buscar o seu livro de poemas e sentar-se em sua cadeira favorita. Minha avó já tinha sua leitura entre mãos, que eu reparei ser também de poesia. O silêncio instalou-se, permeando mais um fim de dia, que se mantém intacto, e vem à tona quando o mundo vem buscar-me e não me encontra pronta.