26/05/2017

Família

A minha tia Teresa fez a sua passagem ao outro lado da vida nesta terça feira. Recebo a notícia a tantas milhas de distância, e ainda assim é como se estivesse de braços dados com quem fala comigo ao telefone. Tão grande a memória que não respeita limites de espaço: faz-se assim, aqui no meu colo, em segundos que me fazem tropeçar em lágrimas com gosto de muitos anos atrás.

Procuro a Tité nos recantos dessas minhas memórias, para poder despedir-me dela nos tempos em que foi comigo, e que reconheço em mim. Vejo seus olhos a passar pelos meus, na sala maior da minha infância, um alento de compreensão a meio de uma explicação sofrida de matemática paterna. Vejo-a recostada no sofá forrado de flores inglesas, inspiração para todos os tecidos de todos os meus sofás na vida. Ouço a sua gargalhada, um cristal a rebentar de alegria, o seu grito estridente a chamar os tantos filhos - será na sua esteira que também eu me multipliquei por sete? Vejo-a a dobrar e a passar a ferro os guardanapos, espantada eu de, apesar de tantas bocas, ainda serem os guardanapos todos de pano e passados a ferro. Sorrio das suas tradições tão bem guardadas, lugares onde posso refugiar-me quando a realidade escapa. Esses caminhos que aqueles que nos precedem sulcam no chão da nossa vida são lugares seguros, é preciso dar graças por eles e inclinar-se em reverência profunda, porque nada disso foi fácil, não é nada fácil decidir o dia a dia, ser aquela que diz se os guardanapos são ou não são de pano, ou se as pessoas devem ser amadas apesar de tudo, apesar dos dias, apesar das limitações, apesar das idas e vindas. Se hoje somos, é porque outros foram antes de nós, e lançaram-se a fazer escolhas, tanto faz se sabendo ou não dos riscos que comportavam.

Quero despedir-me num passeio pela sua casa, lá onde o sofá se esvaziou. Paro à entrada da sala, a estante ao fundo, os livros escuros e solenes enfileirados nas suas prateleiras. O meu tio Fernando olha-me como se eu sempre tivesse estado ali, sentado em seu silêncio de alma. Abro a porta lateral do corredor, e olho para trás: o sofá está ali, intacto, o candeeiro apagado porque é de dia e o sol entra aos jorros pela janela. Do corredor estreito ao quarto do meu primo primeiro, o Luis companheiro de alegrias de sótão. Abro as suas duas gavetas embaixo da cama, passo os dedos pelos legos organizados por cores. A janela, a cama, e o Luis ocupado sem quase dar por mim, que o vejo nesse pedaço de infância. Talvez se tenha esquecido de mim, e eu dele, mas esse momento está pendurado na eternidade apesar dos nossos esquecimentos. A Joana chama-me, do quarto em frente, sentada na cama de vestido verde, o sorriso aberto e claro. 

Estou deitada em algum lugar desta casa quando a minha irmã anuncia a sua chegada, e volto a ela para despedir-me da minha tia. Tenho quase certeza de que também ela passeia por lá, a despedir-se, um por um, dos livros, dos quadros, das pequenas rugas que todos deixamos para trás e que esperamos alguém se lembre de alisar de vez em quando, para que estejamos sempre em tudo e em todos. 

Uma boa viagem, tia querida, um bom caminho, e que a recebam rostos amados do lado de lá, onde a festa já se anima com a alegria da sua chegada.

23/04/2017

Jorge e Ogum, em seu dia

Dos lugares em que a energia de Ogum, a divindade guerreira iorubana, se encontra em forma concentrada, os que mais gosto são os trilhos de trem. Não a sua aglomeração em estações, pura confusão urbana de chegadas e partidas, mas a sua extensão férrea nos campos, os trilhos que penetram as matas e a atravessam, imutáveis e diretos. Gosto de andar por esses trilhos, entrar sozinha no silêncio que me entrega de bandeja a capacidade a veneração, e avançar sem ruído, cadenciando os passos até quase sentir a marcha militar andando por entre eles. Ogum é um trilho, contundente e firme, agarrado ao seu lugar e àqueles que defende e protege. Nessa qualidade de trilho, ergue-se o Ogum silencioso e persistente, a espada em punho. Olho-o com respeito e admiração; dobro meu joelho, dobro o corpo todo, inclino-me até minha testa encostar a terra. É preciso muito para demover um trilho de seu lugar, assim como é preciso muito para demover Ogum de uma causa.

Diz uma antiga lenda que Ogum, mesmo quando a água é abundante, prefere banhar-se em sangue. Não por vingança ou sadismo, mas por encontrar dentro do sangue o seu veículo de expressão na Terra. na sua forma mais fluida e sutil. Ferro em nosso organismo, o sangue é o calor que nos move, a regulação que nos protege, o fogo que nos habita, o vermelho escuro que preenche o coração, nosso órgão-fogo, lugar de habitação de Ogum em nós.

Aguerrido, Ogum não perdoa ofensas. Não se desencoraja nem perde a força. Onde muitos já teriam baixado os braços e abandonado a luta, sentado à beira da estrada e se conformado com o desastre, Ogum continua de pé. Ogum é sincero e franco, puro ímpeto.

Ogum não dorme, não se esquece, não abandona, não vira as costas.  Enche-nos da energia do ferro estelar, cria em nós a força, o calor e a transcendência que nos percorre como sangue, preenche e inunda nosso coração e para nós transfere a capacidade de lutar contra a adversidade, contra a injustiça, contra a arbitrariedade, contra o descompasso que coloca em risco a própria humanidade.

Ogum, o ferro, é a enxada que tudo planta, a alavanca que tudo ergue, o machado que tudo derruba, a pá que tudo encontra, a picareta que tudo explode, a espada que tudo perfura e a faca que tudo corta. Suas ferramentas estão em nossas mãos - e a sua invocação eleva-nos até ele, até essas qualidades que são afinal nossas, muito humanas, em graus variáveis de manifestação.

E hoje é seu dia, na sua roupagem de Jorge. Mesmo tendo perdido o grau de Santo (Paulo VI, em 1960, achou que havia poucas evidências de sua existência real e muitas evidências de seu potencial revolucionário), Jorge, jovem soldado da Capadócia filho de mãe palestina, defensor dos cristãos perseguidos pelo imperador Diocleciano, está desde o século III por toda parte, inspirando arte, dando nome a cidades, castelos, ruas, comércios, igrejas. É Ganesh no panteão das religiões de base hinduísta, Odin entre os nórdicos, Marte para os romanos, Ares para os gregos.

Dê-lhe você o nome que desejar, hoje é dia de força guerreira, hoje é dia de forjar armaduras com a proteção do ferreiro maior, hoje é dia de recordar, com o coração em chamas, e reafirmar nossas vestes e nossa proteção. Dia de lembrar que é preciso pedir para ser atendido: pois então que se peça, e que o mundo se torne um lugar melhor para viver, onde todos possam comungar da força e da coragem de Ogum, que todos possam erguer-se da planície sorumbática de um dia igual ao outro, e perceber, ao seu redor e sobretudo dentro de si mesmos, a força quente do ferro que para nós escorre do Cosmos e grita, espada flamejante em punho: Ogunhê!

Eu andarei vestido com as roupas e as armas de Jorge
Para que meus inimigos tenham pés, mas não me alcancem.
Para que meus inimigos tenham mãos, mas não me peguem.
Para que meus inimigos tenham olhos, mas não me vejam. 
E nem em pensamentos eles possam me fazer mal.
Armas de fogo meu corpo não alcançarão. 
Facas e lanças se quebrem sem o meu corpo tocar. 
Cordas e correntes se arrebentem sem o o meu corpo amarrar.
Porque eu estou vestido com as roupas e as armas de Jorge.