15/08/2016

Atrás dos óculos

Atrás dos óculos, via a vitrine vazia. Um ponto, o caos, a vista embaçada. Atrás dos óculos, via as lágrimas como pérolas escuras. Escorrem-lhe pelo rosto vincado e laceram-lhe a pele, numa abertura lenta de ruínas incandescentes por onde se esgueira a memória.

Atrás dos óculos, via a fuga, com os olhos fechados até às comissuras dos lábios. Uma sentinela apagada no cimo do farol, a plena escuridão, o frio, o afogamento solitário.

Atrás dos óculos, via a vergonha de não ver o óbvio, de perder as lentes e não entender, de procurar e não ver o sorriso de hiena no lábio fino, a alma esgarçada sem conseguir se ver inteira por dentro. Tudo aos pedaços, aos bocados.

Atrás dos óculos, via um fio feito rio avolumado, as margens muitas que contêm nadas. Via o abismo de um si mesmo despreparado. Via as garras, o vento, a imundície da neve derretida à noite na calçada da cidade grande.

Ao sair, muniu-se de ouro. Jurou a si mesma, diante do espelho que lhe cortava as ruas, preencher-se com o mais puro e valioso ouro, juntando os buracos até se fazerem tela. Nem o que lhe roubaram faria falta. Muito melhor ser inteira pela segunda vez do que nunca ter se sabido pedaços.


13/08/2016

Auto-ajuda etimológica para consumistas


Hoje cedo, ainda alvorada, decidi passar os olhos pela internet. Deparei-me com um anúncio de um revival neo-pretensamente-hippie de kombi que a Volkswagen andaria tramando em seus escritórios, como uma nova ideia para atender a seus consumidores. 

Entre muitas heranças, os gregos deixaram-nos essa pequena palavra Idea. Literalmente, idea é forma, aparência, o "protótipo (proto: primeiro + typo: marca impressa) ideal".

É justamente um filósofo, na França do século XIX, que decide ocupar-se do mundo da ideia. Diz ele (ele é Destutt de Tracy) que a origem das ideias humanas são as percepções sensoriais do mundo externo. Napoleão chamou-o, e a seus seguidores, de "ideólogos". Desde então, temos entre nós essa beleza de palavra: ideologia. Marx, Engels, Eagleton, Lukács, Manheim, Thompson - são várias mãos cheias de filósofos e pensadores que se ocuparam dela desde então.

Neutra ou crítica, a ideologia está ligada à percepção que temos do mundo à nossa volta, e à forma como nos relacionamos com ambos, mundo e percepção. Sendo forma e aparência, o como e o que vemos do mundo depende dos nossos olhos e daquilo que lhes damos de alimento para saber distinguir uma coisa de outra. A partir do que ensinamos a nossos olhos (de como os educamos), eles dirão de que matéria, segundo a sua observação, se faz o mundo ao redor. Pode ser que consigam ver por detrás da mera aparência, pode ser que não. E quem diz olhos diz o resto, diz ouvidos, diz pele, diz nariz e diz língua. 

Isso mesmo, língua. Essa onde se anida a linguagem. Essa que estabelece uma ponte entre os sentidos mais básicos e os mais elaborados. As palavras que fazemos nascer da nossa língua, que ouvimos com os ouvidos e escrevemos com os dedos, entra mesmo é pelos poros, esse imenso véu sensível que nos recobre por todos os lados, sendo ao mesmo tempo nosso continente e nosso conteúdo. (Em tempo: os romanos tinham uma taxa, chamada linguarium, que se aplicava a quem falava demais.)

O regime alimentar de nossos olhos e ouvidos é muito conturbado. Porque aparência é tudo. Seja para persuadir, dissuadir ou sorrir placidamente entoando mantras - a aparência é tudo o que percebemos do mundo se não nos dispomos a ir além dela. Quanto menos nos dedicamos ao escrutínio do que pensamos ver, sentir, cheirar, ouvir - mais permitimos que a alienação entre em nosso íntimo. E veja: alienar-se é afastar-se de si mesmo, perder a estima, transferir algo para outro. Porque alius é o outro. 

E esse alius, lamento informar, quer você. E, para conseguir, usará de todas as formas concebíveis, e não só, para tanto. Há de mascarar a realidade, que é uma forma delicada de se falar da mentira. Seduzirá, que é uma forma aliviada de falar de manipulação. Esconderá defeitos e iluminará qualidades, como se essas fossem melhores e mais importantes que aqueles, tentando convencê-lo de que as coisas são segundo as mostra. Aos poucos, tomará conta da sua consciência, alienando-a, e transferindo-a para si. E, um dia mais que o anterior, você acreditará de pés juntos em tudo o que isso -que-tomou-sua-consciência quiser que você acredite.

É isso que alius, o outro, faz. E é isso que você (e eu, e todos) faz também, porque você é o alius de seu vizinho. 

Entra em campo a consciência, ou a sua falta. A consciência de saber que é assim que agimos - porque somos seres humanos que a todo momento formamos ideias a partir daquilo que nossos sentidos percebem. E raramente percebemos as coisas tais quais elas são. E somos seres humanos muito dados à busca da dominação do outro - ser humano, espaço, recurso. Veja os livros de História - é exemplo atrás de exemplo, e não se ache tão diferente porque a sua raça é a mesma. Humana.

A consciência de ser/estar dominado ou dominar é enormemente importante em nossos dias (se é que não em todos). Porque embora possamos pensar em ideologia e estabelecer uma linha reta entre ela e formas de ilusão ou de consciência falsa, pelo meio do caminho vamos tropeçar nas relações de dominação que estabelecemos e que estabelecem conosco. E a linguagem tem um lugar de honra nesse caminho todo.

Quando a aparência tem maior peso que seu oposto complementar (a essência), ou quando, pior, entendemos que são iguaizinhos, trilhamos caminhos inseguros, perigosos e traiçoeiros, cada vez mais suscetíveis a quaisquer formas de manipulação que nos façam fazer coisas que talvez em sã consciência não fizéssemos. Por exemplo, consumir.

E era aqui que eu queria chegar, e se você chegou comigo eu já fico é satisfeita.

Consumir deriva do latim consumere, que é comer, gastar, desperdiçar. Forma-se a partir do sufixo com, que intensifica tudo o que vem depois; e de sumere, que é tomar. Tomar exageradamente. Ou seja: somos sempre exagerados quando consumimos. Sempre. O consumismo é sempre sempre sempre um desgaste, um desperdício.

Por isso, quando o mercado tenta vorazmente apoderar-se de tudo quanto é valor, que costumamos alojar em determinados lugares simbólicos, é preciso exercitar o constante movimento de transferir esses valores para outros lugares. Eu escolho transferi-los para lugares cada vez mais íntimos, e silenciosos, para ter menos trabalho logo mais, quando as longas garras do mercado quiserem se apoderar de mais um símbolo externo. Porque o mercado não para, e nem se satisfaz. Ele sempre vai querer mais e mais os seus sonhos, os seus valores, tudo aquilo em que você acredita e faz a vida ser, para você, a vida. Só que tudo isso é aparência, tão bem trabalhada e glamourizada que em pouco tempo você assumirá para si que sim: toda essa aparência deve estar relacionada à essência. Só que não. Basta ir ao supermercado e conferir que o catchup que você compra tem tudo, menos tomate. Basta checar qualquer móvel moderno e conferir que aquilo é feito de qualquer coisa, menos de madeira. Tudo "parece com", "assemelha-se a" e tem "as mesmas qualidades que". Realidades externas que supram as nossas carências internas: é claro que só pode dar errado!

Dá trabalho, e sobretudo uma quase-tristeza, esse exercício constante, não de desapego (até porque até ele já virou produto de mercado), mas de desilusão. Escolher o desiludir-se e criar em seu entorno cada vez mais luz de consciência. Nem é fácil nem indolor: conscire é ser mutuamente alerta, é saber (scire) intensa e completamente (com). Com consciência, você passa a ter de escolher com mais seriedade o que você faz, diz, ouve, compra, vende, acaricia, empresta, pega, recolhe, entrega e despacha. E dá uma preguiça danada, uma preguiça sempre alimentada pelo mercado, doidinho pra entrar na sua vida e lhe oferecer tudo o que, sendo aparência, vai lhe dar a sensação de ser perfeito. Mas não estará. Porque não há van que crie na sua vida um movimento de contra cultura, que se opunha por definição a tudo isso que, numa enorme ignomínia, os executivos da Volks andam pensando. O que vem a ser ignomínia?! A partir de in+nomen, vem a ser a perda e o fim de um bom nome: ou seja, nossa própria desgraça e vergonha.

22/07/2016

Con-cordar


Desde o dia em que te vi, Juraci
nunca mais tive alegria
Meu coração ficou daquele jeito
Dando pinote dentro do meu peito


Na época em que se falava latim, cor, o coração, era a sede do conhecimento humano. Tudo ali se resolvia e se firmava. Se batia no coração, era porque valia a pena. Se passava por dentro dele, era porque valia a pena. E tudo o que valia a pena se guardava do lado esquerdo do peito. As evidências são muitas, e as que vou apresentar são todas etimológicas (porque, veja: se a Palavra é o dom mais humano, muito divina deve ser toda significação que uma palavra possa ter tido no início dos tempos e em todo o seu transcorrer).

De cor (que era, portanto, coração) surgiu coraticum, coragem, a qualidade que mora no coração. E surgiu também cordatus, que é aquele que tem prudência. E ainda concordare, que são dois corações que estão juntos. Con-cordam.

Poderia você pensar que concordar fosse duas pessoas dizerem sim (ou não, se o caso for de discórdia) para uma coisa. Terem a mesma opinião. A mesma percepção. Concordarem em ir pela esquerda, ou pela direita, ou de mãos dadas, ou fingindo nem se conhecerem. Pois nada disso. Concordar é mais sério e mais profundo. Não vem da razão nem do pensamento. Vem do interior dessa cavidade maltratada que é esse nosso músculo único, de aspecto único, de capacidades únicas. Se o seu, aí dentro do peito dando pinote, está junto do coração da pessoa ao seu lado - é porque bate em sintonia com ele, é porque se reconhece na pele do outro rosto, é porque sem nenhum motivo explicável você sabe que aquilo que o o outro ao seu lado disser, você dirá também. Aquilo que o outro ao seu lado sentir, você sentirá também. Sem pensar nem estabelecer nada. E aí você con-corda com a pessoa ao seu lado, e ela vice-versa, os dois meio abobados pela vida de repente parecer tão perfeita.

Concordar não é concordar (sic) sobre coisas, ou situações, ou opiniões, ou roteiros, ou planos. Concordar é saber que seu coração está junto do coração do outro, e aquilo que você fizer ao coração do outro, fará também a seu próprio coração, porque eles estão juntos, e juntos semearão os campos do futuro. Quando seguem cada um para seu lado, não é que tenham tido ideias contrárias. É que seus corações avançaram por caminhos diferentes, e por isso dis-cordaram.

Agora você pensou poxa que pena? Pois não precisa. Porque nem todos os corações concordam, e aqueles que se "vestem de concórdia" estão apenas vestidos - nada são. Faltou-lhes abrir a porta do sangue, permitir-se todos os ventríloquos. Dessa forma, o melhor mesmo é que discordem. O quanto antes, para que os caminhos fiquem abertos e claros, ainda que distintos.

30/05/2016

Like Underwood

Cheguei atrasada a House of Cards. Não sou propriamente uma fanática por séries, mas de vez em quando calha de atravessar-me o caminho uma delas. Primeiro, foi Gregory House. E agora são as artimanhas de Frank Underwood.

Não é a situação política atual que me leva a escrever sobre Underwood. Ainda que pudesse, e quem acompanha uma e outro saberá do que falo. É a atração que exerce sobre as pessoas a falta de humanidade. Não à toa, é grande o sucesso.

Adivinha-se essa falta logo nos primeiros capítulos. Underwood cativa pelos comentários sarcásticos (mas altivos), pelo desprezo que sente por tudo o que é mesquinho (ainda que sejam, ou talvez especialmente, as necessidades alheias). Talvez em algum momento surja em nós a incompreensão de por que continuamos assistindo, mesmo reconhecendo a manipulação, a perversidade, o oportunismo, a deslealdade e o interesse próprio como único motor da ação. Porque temos tudo isto dentro de nós mesmos, já me dizem aqui os amigos com quem converso a respeito. E eu respeito muito essa posição meio psicanalítica, mas o que me intriga é essa forma sedutora com que o mal se apresenta. E como se reproduz e, pouco a pouco, se torna pouco menos que normal. A potência que tem essa sedução de se apropriar dos nossos sentimentos, dos nossos valores, da nossa própria moralidade.

Aos poucos, quase se tornam simpáticos, esses personagens. Toleramos o intolerável. Rimos do que não é risível. Vamos aceitando, quase quase justificando o injustificável. Diremos consternados que a política é assim mesmo (como subir sem pisar num pequeno alguém aqui e ali?), que as coisas, afinal, podem mesmo levar as pessoas a situações extremas.

A tolerância pode ser um atributo sanguinário. Expande-se como cera quente derramada em mármore. Ultrapassa fronteiras e limites, sem que doa, sem que se sinta, sem que aparentemente nada se altere. Quando a conta chega, é invariavelmente alta. Às vezes, sequer se consegue pagar.

Os Frank deste mundo são como ele: implacáveis. Não hesitam em descartar quem atrapalha seus planos, ou suas vontades. Não nutrem mágoas, a não ser quando lhes podem valer de algo. Não sentem dor, e por isso sequer vislumbram a que provocam. O que existe é apenas o que lhes interessa, justificável porque lhes interessa.  Os demais, à sua volta, são como nós, seus espectadores: enquanto estivermos sentados em nossas poltronas, deixando-nos seduzir, deixando-nos guiar, deixando-nos manipular pelos seus olhares profundos e suas falas programadas, seremos úteis às suas estatísticas de audiência. Quando não, é só descartar. Logo ali, na primeira esquina.

Mas hoje não há mais como. Porque nesse virar dessa primeira esquina há uma menina de 16 anos estuprada por 33 homens, e ali acima, no Piauí, outra, agora vandalizada por cinco, e por todos os recantos deste país, a cada quatro horas, mais uma. Riem-se esses homens, e com eles riem-se outros, e com estes outros tantos, e há os que apenas esboçam um sorriso constrangido, e aqueles que se calam e se refugiam em qualquer lugar distante dessa menina desacordada de sexo e alma sangrando, e aqueles que justificam e aqueles que encolhem os ombros e decidem que a responsabilidade não passa em seu quintal. Uns poucos (entre eles talvez você que chegou até aqui) erguem-se indignados e perplexos. São minoria - há homens demais conseguindo entrever, por entre os fatos, atenuantes para a barbárie.

O fato é que a nossa abstinência de pensamento próprio e autônomo chega para cobrar-nos a tal conta, e é alta. Essa forma utilitária e perversa de tratar o outro, e neste caso especialmente a mulher, está por todos os cantos, e é promovida, e aceite, por todos os lados. Seja no outdoor ou na propaganda da revista de moda, numa série inofensiva ou na grande bilheteria, na conversa do bar na sexta fim de tarde, na sua rodinha de amigos homens, na piada que chega pelo twitter e faz sorrir, ou numa corte ministerial formada apenas e totalmente por homens. Dirá você que nada disso tem realmente relação - e eu lhe digo que tem, porque o nosso coração e o nosso cérebro aceitam e se acostumam  rápido demais o que nos chega bem vendido, e mais rápido do que você percebe a sua boca repete a estupidez que seu ouvido acabou de escutar.

Essa conta, que todos pagamos hoje junto com essa menina, vem embrulhada em mil tons de cinza. Este tempo todo em que não pudemos ou não quisemos pensar a respeito, e este nosso silêncio histórico, esta nossa necessidade de sermos tolerantes até mesmo com a iniquidade, compactua com a ferida alheia. Passamos tempo demais observando, aceitando, envergando, querendo enxergar alguma valiosa virtude nos jogos sedutores da escuridão, e silenciando quando duvidamos dela. Esse silêncio obsequioso, que pretensamente diz respeitar o outro, dar-lhe a chance de defesa quando já se sabe de todo indefensável, compromete e fere de morte a todos nós.



Ilustração para The imp of the perverse (O demônio da perversidade), conto de Edgar Allan Poe

14/03/2016

Coração em aberto


Coração aberto, sensibilidade à flor da pele, delicadeza e noção exata da preciosidade do amor: pré-requisitos do encantamento amoroso.

Tenho o livro de Vinícius dentro das mãos. É ele quem diz essas coisas sobre o amor, não eu. Maria Letícia encontra-me na escada onde me sentei. Colega de faculdade, está guardada naquele lugar vago que chamamos de lapso de memória. Estou sentada com o livro de Vinícius nas mãos, porque tenho uma aula a dar, e é sobre ele, e convém que me prepare.

Demoro a lembrar-me da Maria Letícia – o que tanto significa que possa demorar-me em sua pessoa, detendo-me e olhando-a atenta, quanto que tarda a lembrança a aflorar do subterrâneo da história. Não lhe digo, porque a magoaria.

O maior solitário é o que tem medo de amar, de ferir e ferir-se (...) Esse queima como uma lâmpada triste, cujo reflexo entristece também tudo em torno.

É a memória seletiva, essa que me salva das coisas que não têm por onde escapar desta vida para outro lugar qualquer. Às vezes, é vantagem. Não faço esforço para lembrar-me, porque nem sei que tenha do que lembrar-me. As pessoas aproximam-se (como Maria Letícia neste lance de escada) e, porque não tenho o que resgatar, nenhuma imagem anterior, nenhum comentário que a tenha eternizado dentro de mim (realmente não me lembro), posso olhá-la com olhos virgens, sem nenhuma desconstrução a fazer que me deixe mais honesta diante dessa que pode haver (terá) se transformado no correr dos anos. Fresca novidade, a Maria Letícia.

A maior solidão é a do ser que se ausenta, que se defende, que se fecha, que se recusa a participar da vida humana. A maior solidão é a do homem encerrado em si mesmo, no absoluto de si mesmo, o que não dá a quem pede o que ele pode dar de amor, de amizade, de socorro.

E ela sorri, enquanto acena (ela sobe o lance de escadas para alcançar-me) e grita de lá: “Te reconheci pelo livro!”. E lembra-me, ato contínuo e já ao meu lado, do seminário apresentado em Literatura Brasileira II, das frases que recortei desse mesmo livro que tenho dentro das mãos, e que ficaram dentro dela vibrando semanas a fio. “Comprei esse livro por tua causa”, diz mais baixo. “Ajudou-me a atravessar momentos difíceis”.

O amor exige a exposição ao sofrimento e um tipo especial de coragem.

Eu lia Vinícius um tanto à toa. Esperava o fim da aula de vôlei da minha filha, e o livro estava ali, pousado no banco, perdido, ao meu lado. Mergulhei nessa insensatez que o Poetinha propõe e foi de repente, eu que não me lembro da Maria Letícia, muito menos da Literatura Brasileira II. Sou engolida por essas palavras que julgava nunca ter lido. Sento-me no degrau mais alto da escada, para que o mundo fique longe e não se intrometa, Maria Letícia ao meu lado, e lemos uma à outra os trechos que, nesse exato momento (farei força por não esquecer nunca), aquecem as duas almas como se fossem gêmeas, e dissolvem esse sentimento insuportável de não pertencer. Como um voo rasante de pássaro, o sentido passa por nós, e se materializa adiante, e logo passa, e já somos só nós, outra vez, sentadas no degrau mais alto de todos, onde chegam finalmente os gritos das meninas do vôlei, como estilhaços de vidro quebrado contra o concreto.



(Os trechos em itálico são de “Para viver um grande amor”, de Vinícius de Moraes e poderiam ser bíblia para aqueles que não têm ideia do que seja, de verdade e com consistência e força, amar.)