28/04/2015

Um pouco de inutilidade

L. anda cansada. Caem-lhe as pálpebras por cima dos olhos ao tentar ler um parágrafo daquele livro que jura estar amando ler. A boca escancara-se em bocejo assim que se senta para assistir qualquer coisa em uma tela, e o corpo amalgama-se ao sofá com uma velocidade surpreendente. A culpa é tua, diz, esse documentário lento, em preto e branco... Andamos todos cansados, digo-lhe. E calo-me. Há pouco a dizer agora.

Eu ando cansada das notícias, internas e externas, e da sensação de incapacidade de realizar qualquer coisa que faça algum sentido. Que ponha fim a alguma dor. Vulcões no Chile e terremotos em Katmandu imobilizam-se dentro de uma gruta fechada - essas são palavras de L., não minhas. As minhas chegam na sequência: O que posso, e faço, é voltar-me para o legado das palavras. Às vezes as coisas inúteis são as que nos salvam da crueldade à solta pelo mundo. (Mas dizes que os vulcões são cruéis?! Não, L. Na verdade já estava falando de outras coisas. Acho que te perdeste entre os teus pensamentos e os meus. Sim, tens razão, somos um emaranhado e às vezes é difícil saber quem pensamos o que. Ou quando. Ou por que. Ou... L. por favor cala-te um pouco, deixa-me sozinha com o que penso. Sim, desculpa.)

Mas então eu falava das coisas inúteis. Como a toponímia. A toponímia é um ramo da onomástica, aquela ciência que a tudo dá nome, de mim a você, à sua rua, à maternidade onde você nasceu e ao cemitério onde será depositado. A toponímia dá nome a lugares, e estuda-lhes a origem e a evolução. Tem um pezinho na etimologia, e também se relaciona com a geografia, a história, a arqueologia. Essas coisas que se ligam a outras até se embrenharem a ponto de nunca mais se desvencilharem são muito entusiasmantes, L. 

Pois precisei hoje desta palavra (não me interrompas) para dar a um texto encomendado um ar mais culto e sério. Em vez de "o nome dos rios", fui à procura de algo mais exato. Pensei que topônimo seria já bastante preciso. Mas não. E isso porque a precisão é algo que nos foge dos dedos como água misturada a areia fina. É difícil ser preciso. É uma conquista conseguir ser preciso. Accurate, como dizem os ingleses, diz L. Sim, accurate.

Descubro uma sequência de nomes que com certeza vai povoar a minha noite. Hidrônimos. Limnônimos. Talassonônimos. Orônimos. Corônimos. Uns dão nomes aos rios, outros aos lagos, os terceiros aos mares e oceanos, os seguintes aos montes e outros relevos e os últimos às subdivisões administrativas e de estradas.

Levo para dentro de mim os limnônimos. Digo a palavra em voz alta, enquanto L. fecha os olhos para absorvê-la melhor. De limne, o lago, os nomes dos lagos. Esses lugares que decantam, essa atividade precisa quando as coisas do mundo param de cantar. Esses lugares a quem acudimos em busca de auxílio, porque dentro deles, e ao seu redor, vive o que há de mais antigo. O lugar para onde nos voltamos em busca de silêncio e quietude - as águas paradas do fundo do lago, que deixam de ser armadilha para serem suave contorno. Raramente as palavras que encontras são inúteis, diz L. de dentro de seus olhos fechados. Porque as coisas inúteis estão entre as mais úteis da nossa vida, respondo-lhe. E desejo-lhe boa noite, e eu também fecho os olhos e mergulho para dentro do sono.




08/04/2015

A verdade

Sabemos, todos nós, que a verdade é um bem a ser preservado e garantido. Que, em qualquer circunstância, e mesmo que doa, sempre a dor da verdade é melhor que a da mentira. Sabemos, mas nem sempre praticamos; raramente nos damos conta de que um tanto daquilo que fazemos, não só mas também em nosso papel de educadores, mais mente sobre a realidade do que a apresenta e encara tal qual ela é.

Lembrei-me disso hoje ao ler um parágrafo de The bad seed, um romance da década 50, de autoria de William March: “um botão de rosa de cera ou um pêssego de plástico parecem mais perfeitos, aproximam-se mais daquilo que a mente imagina ser um botão de rosa ou um pêssego, do que o imperfeito original a partir do qual foram modelados”.

A nossa tendência a querer transformar o mundo em um mar de rosas para as crianças, para que elas não se machuquem, onde as coisas não são o que realmente são, cresce a olhos vistos. Impacta-nos de maneiras para as quais ainda não estamos conscientes. Andamos sobre plásticos que imitam madeira, comemos sanduíches que imitam comida, ouvimos músicas eletrônicas que imitam instrumentos de verdade, vemos reproduções de obras de arte como se estivéssemos diante de originais, temos amigos virtuais como se fossem reais, e fazemos um esforço tremendo em parecermos fortes onde somos frágeis.

Um mundo “de verdade” é indispensável à criação de seres humanos sadios. Se são crianças que estão sob o nosso cuidado, o grau de responsabilidade aumenta. As nossas escolhas são as escolhas delas, porque nós somos a referência, e é a partir das janelas que abrimos que elas reconhecerão o mundo habitável. Ou não. Se o que oferecemos não é “verdade”, a vida terá grandes chances de ser uma mentira. E esses futuros adultos terão grandes chances de não reconhecer e distinguir a verdade da mentira. Terão grandes chances de não reconhecer perigos e armadilhas em pessoas, em situações, nas prateleiras dos supermercados, no boteco da esquina. Crianças que não vivenciaram a verdade poderão não reconhecer a mentira mais adiante. Sim, eu sei: você está pensando que essa coisa de verdade é muito relativo. Não é. Uma rosa de verdade não é uma rosa de cera. Um pêssego de plástico não é um pêssego de verdade. Não se faz com ele o que se faz com um pêssego real. Assim como não se faz com pessoas reais o que se faz com simulacros de pessoas num jogo qualquer de computador.

As crianças precisam de verdade. Precisam senti-la, quando pequenas, correndo por entre os seus dedos. Precisam reconhecer a madeira, o algodão, esses elementos que estão à nossa volta de forma natural, e que encontramos e reconhecemos facilmente, em suas várias manifestações. Essas são as coisas verdadeiras na primeira infância – aquelas que existem ao redor, e que podemos reconhecer no seu próprio processo. Um carrinho de madeira, uma boneca de pano.

Crianças pequenas não precisam de andadores que imitem o seu esforço em erguer-se, assumir a humana posição ereta e caminhar pela vida. Precisam da verdade de suas próprias pernas no movimento de profundo equilíbrio que é o andar. Elas vão cair, e vão se levantar, e vão voltar a cair, e joelho esfolado é aprendizado saudável. Crianças não precisam de uma alimentação artificial e cheia de produtos químicos, que além de maltratarem o seu ser físico em formação, lhe alteram a capacidade de perceberem o que é uma cenoura, uma batata, arroz, as beterrabas de verdade.

Parece bobagem? Mas não é. Já sabemos que é de pequenino que se torce o pepino. O aprendizado das escolhas de uma criança começa com aquilo que escolhemos para ela. Quanto mais consciência do que fazemos, e por que fazemos, melhor. O nosso conforto, a nossa “necessidade” não pode tranquilamente sobrepor-se àquilo que é fundamental à criança. A nossa “necessidade” de, recém-paridas, nos reintegrarmos à vida social não pode impactar a criança que acabou de chegar. O show de rock pode esperar para mais tarde, o sambão também, a saída à noite pra festa dos amigos idem. Às vezes, não paramos pra pensar. E às vezes as escolhas têm desdobramentos tristes.

Crianças que se habituam ao mundo virtual desde cedo vão perder a noção do que é relacionar-se com o mundo real. Aliás, com adultos é a mesma coisa. Aprenderão a deslizar seus dedinhos pelas telas dos tablets e dos smartphones antes de terem percebido a textura da areia da praia. É bom ter diversidade? As várias experiências? Certamente um pai ou uma mãe de um dependente químico lhe dirá que não: há experiências que é melhor não ter. E agora, se já teve, é preciso cuidar. É preciso refazer o caminho, passo a passo, redescobrindo o que é mesmo “de verdade” neste mundo. Rodear-se de coisas de verdade. De pessoas de verdade. De sentimentos de verdade. Tirar da frente e dos lados e de dentro tudo o que é mentira, como é mentira o caminho que as drogas oferecem de encontro de si mesmo. Como é mentira decidirmos que nosso filho de 16 ou 17 anos pode sair com o carro porque “ele dirige melhor do que eu!”, ou com ele tomar uma cerveja, e iniciá-lo nesse mundo em que se ganham forças, autonomia, coragem e graça com a ajuda de um ou dois copos.


“De verdade” é o mundo cheio de imperfeições. São amores que não reluzem como ouro, e é assim que nos fazem bem. São situações em que estamos frágeis e nos sentimos à deriva, e firmamos os pés dentro delas lidando com o medo que nos sobrevém. São empregos que desanimam um dia e outro, e nos satisfazem dessa forma. São escolhas erradas que precisam ser refeitas, e dói, e é bom, porque é na dor também que crescemos. São refeições salgadas, a carne que cozinhou demais... e quando nos levantamos da mesa estamos preenchidos. Porque houve mãos de verdade que cortaram as cebolas, houve olhares de verdade que se cruzaram risonhos ao perceber o desastre, houve o riso sincero que todo mal desarma, e que é de verdade, e por isso é bom, e nos faz crescer e ser pessoas melhores no encontro conosco mesmos e com o outro.

01/04/2015

Mentiras e universidades

Cultura é o que nos resta depois de termos esquecido tudo quanto aprendemos.

Entre os muitos escritores e pensadores que o caminho da história esquece, há alguns que, de repente, voltam com força ao nosso pensamento. Ellen Key, a autora da frase que serve de inspiração a este texto, nasceu e viveu na Suécia, na segunda metade do século XIX. Feminista nos tempos em que era preciso ainda lutar por igualdade de sufrágio, Ellen tem importantes textos sobre educação, a liberdade pessoal e o desenvolvimento independente do indivíduo.

E por que Ellen Key a essa hora do dia? Porque a cada vez que se evidencia a falha colossal e coletiva dos nossos sistemas escolares eu corro a ler alguma coisa que me alivie. Dias como estes, em que lemos estarrecidos as notícias sobre a última festa do curso de Medicina da Unesp de Botucatu. As denúncias de abusos e arbitrariedades na recepção aos calouros viraram rotina, em tudo quanto é universidade. As apurações idem. E a defesa também.  

Desta vez, acusam-se os alunos do 6º ano de escolherem recepcionar seus novos colegas vestidos a la Ku Klux Klan. As fotos circulam, e os alunos defendem-se, dizendo que é um erro de interpretação e que não houve preconceito nem intenção de denegrir ninguém. No fundo, não importa muito o que digam, porque as fotos falam por si, contra fatos não há argumentos. A referência a certos personagens está ali, presente, tenha ela sido explicitada com todas as letras ou não, tenha havido ou não consciência por parte de quem usou as fantasias e segurou as tochas. Além do que, como nos ensina a análise do discurso, o fato de se recepcionarem novos integrantes de um curso com uma festa sob o tema "Carrasco" já devia ser suficiente. Tanto os fatos quanto a sua defesa, como se pudessem ser defensáveis, é de espantar. Um pedido de desculpas, geral e irrestrito, seria mais pertinente. Até porque erros fazem parte e o duro é quando não se reconhecem - e, sobretudo, reparam.

Agora, aqui para nós que nem na festa estávamos. Surpreendente mesmo é pensar que esses jovens passaram no mínimo 18 anos sentados em bancos escolares. Foram alfabetizados. Leram. Tiveram horas e horas de aulas de História. Produziram textos, e muito provavelmente algum sobre racismo, sobre preconceito, sobre violência. Prepararam-se para apresentar as suas ideias e justificá-las. Muitos deles possivelmente estudaram em escolas com a preocupação de formar "cidadãos críticos e atuantes". Passaram numa das mais difíceis seleções universitárias do país. Estudaram por já seis anos para se tornarem médicos, e é capaz que, em assustador pouco tempo, muitos de nós depositemos neles confiança, esperança e a própria vida.

Enquanto isso, a sua percepção de acolhimento e diversão é o reencenar um dos mais macabros momentos da história mundial. Não sabiam disso? Não conseguiram ver a similaridade entre as suas fantasias e aquela dos que perseguiam, queimavam e enforcavam negros americanos até há bem pouco tempo? Como assim?! É essa a capacidade que têm de olhar em volta, ler a realidade e propor movimento e interferência?

O trote repete-se ano a ano. Choram-se ano a ano os que morrem, lamentam-se ano a ano os que são assediados e violentados, repudiam-se ano a ano os estupros. E relativiza-se tudo, porque tudo isso são "excessos apenas". Os movimentos para conter essa onda que se aproxima da barbárie são mínimos. Porque atitudes enérgicas são impopulares, e de três opções, duas são mais fáceis: ou se culpam professores do ensino básico, famílias desestruturadas e esse longo etc. que pertence ao passado, ou se encolhem os ombros e se pensa que "no meu tempo também era assim e eu sobrevivi...". 

Uma universidade não é um lugar qualquer. "A história das universidades", diz Otto Maria Carpeaux em um de seus bonitos ensaios, "é a história espiritual das nações". Parece que nos esquecemos, absortos que estamos em decidir se universidades são lugares onde o conhecimento se transmite ou se pesquisa. Deixamos o barco à deriva, esquecendo-nos da responsabilidade que ultrapassa os nossos pequenos gabinetes. E o resultado, a cada trote, nos atropela.





Imagem: Alto-relevo de Hipócrates praticando a sua ciência
O Projeto Gutenberg tem algumas das obras de Ellen Key disponíveis, para quem se interessar. Acesse http://www.gutenberg.org/ebooks/author/502
O ensaio de Otto Maria Carpeaux chama-se "A ideia da universidade" e está disponível em 

27/03/2015

As coisas pequenas

São Paulo, esquina de avenidas, zona sul, pouco passa das seis.

Cansada que estou, dormito a cada farol vermelho. Dou graças que São Paulo seja esse caos de trânsito parado e semáforos de longa espera. Durmo a cada dez minutos, e aos poucos recupero as noites semi dormidas. 

Acordo com um toque leve no braço que esqueci pendurado na janela do carro, e uns olhos de vendedor de bala e chiclete a bordo de uma cadeira de rodas. Olha-me e diz pássaro na gaiola não canta e eu respondo não, lamenta. E nós dois rimos da súbita dramaturgia nascida do adesivo na lateral do meu carro. E ele diz é isso mesmo. E eu respondo verdade, quem está encarcerado não canta. E ele diz só dois cantaram. Eu pergunto quem? e desconfio entre parênteses que a origem seja bíblica e ele sorri e mesmo sem saber o que penso diz Pedro e Tiago. Eu não sei se já estou acordada, mas que fazer a não ser concordar e acrescentar eles cantavam da forma que se deve. E o homem de olhar manso diz sim, isto é, o Altíssimo. Agora tenho certeza de que já estou acordada, e pergunto-lhe você canta? E ele diz claro, ou você pensa que esta cadeira é minha prisão? Não digo nada porque que poderia eu dizer? e deixo que o sorriso desse nosso encontro escorra até o asfalto e ambos esboçemos uma forma específica de adeus. Se não fosse isso, mulher, não tinha lhe conhecido, e só depois a mão empurra a roda e só então ouço as buzinas, o sinal abriu, o fluxo não para, e eu fecho os olhos porque só pode ser São Paulo distribuindo bênçãos sobre esta cidade cheia de milagre ao rés do chão.

24/03/2015

蛋挞

Dan ta: é assim que se chamam, lá em Macau, os pastéis de nata. A capacidade expansionista portuguesa mantém-se firme naquilo que ensina os outros a comerem. Desde 1837, quando os pastéis foram inventados para garantir a subsistência dos clérigos do Mosteiro dos Jerônimos, é a mesma coisa. Talvez a maior diferença seja que, naquela época, o trânsito entre Lisboa e Belém ainda acontecia de barco, e agora vai-se de carro ou comboio. Ou bicicleta, como cada vez mais pessoas escolhem.

É difícil encontrar bons pastéis de nata (erroneamente chamados de Belém, que esses são só os que lá são feitos, em Belém) pelo Brasil. Difícil, mas não impossível: está aí a prova fotográfica, que só não consegue captar-lhes a temperatura (entre morno e quente), a textura (entre firme e desfazendo-se) e o paladar (na medida exata de açúcar). O problema é a capacidade calórica, ouvi ao meu lado. Realmente. Até porque não é possível comer só um.

Os pastéis de Belém, depois copiados por todo o planeta, estão no centro de uma dessas disputas monárquicas que nos servem de alento nestes momentos de estupidez política generalizada. Portugal, nem todos sabem, também teve uma guerra civil. Dentro dela estão os pastéis. Fechada a confeitaria que os inventou, venderam a receita a um brasileiro rico que por lá andava, talvez a festejar a independência do Brasil, talvez a ver em que daria o seu D. Pedro querer ser também, além de imperador do Brasil, rei de Portugal.

Parecendo complicado, é simples. Temos D. João VI e Carlota Joaquina de um lado. Do outro, alguns de seus filhos: Pedro, Miguel e Isabel. Sem saber muito bem o que fazer com esse Pedro que declarara a independência brasileira e com esse Miguel que pouco pulso parecia ter, D. João entrega a regência do trono a Isabel, que, entretanto, decide reger o trono em nome da filha de Pedro, que deveria a qualquer momento casar-se com Miguel. Morto D. João em 1826, D. Pedro (I por aqui, IV por Portugal) decide desconsiderar ter sido deserdado e considerado estrangeiro. Além de imperador do Brasil, teve ter lhe soado bem o título de Rei de Portugal. Isabel é-lhe fiel, mas Miguel decide outras coisas, alinhadas com um certo espírito revolucionário que desponta em terras lusas.

Enfim. Uns e outros, como nós simples e plebeus mortais, fartavam-se de pastéis de nata. E o mundo gira, e a fila anda, e como diria Camões, mudam-se as vontades, os tempos e a própria envergadura da mudança. Entre uma revolução e outra, seja em Macau, em Belém, ou à beira da rodovia Castello Branco, na Quinta do Marquês, a marcar o começo de uma noite recente, as marcas acompanham-nos, assim como a história. E mais não digo, que a vantagem da crônica é justamente poder parecer sem sentido.



14/03/2015

15 de março de 1985

Ano passado, 2014, fiquei com uma estranha sensação durante as preparações para os eventos que marcaram o aniversário dos 50 anos do golpe militar. Causou-me estranheza comemorar (é isso que se faz em aniversários)  a ditadura. Não encontro palavra mais inadequada para juntar a ditadura. Como, comemorar o início de uma ditadura? Fiquei-me com um texto engasgado, que nunca saiu do rascunho.

Abre-se amanhã a possibilidade de comemorar o que realmente vale a pena, que são os 30 anos do fim da ditadura, e não o dia de seu começo. Estranho, no entanto, a falta de festa e de bandeiras preparando-se para invadir a rua nessa celebração da liberdade, numa reflexão coletiva visível que dê relevância ao que tem relevância, relembrando o que vale guardar na memória - entre as muitas coisas, aqueles que deram a sua vida e as suas ideias para estarmos onde estamos. Tomo café da manhã lendo o encarte infantil da Folha de São Paulo, que oferece uma linha do tempo com algumas fotos históricas e uns parcos comentários, vá lá. Incomodaria, talvez, lembrar que a atual presidente ergueu-se dramática e intensamente contra esse regime?

Seria até bem a propósito comemorar esta data nos tempos que correm, e onde vivemos momentos pra lá de obtusos, onde tomamos café lado a lado com aqueles que, por esquecimento ou ignorância histórica, pensam que seriam mais felizes sob ditadura. Talvez pensem que viveriam sobre ela, e estariam a salvo das suas arbitrariedades e atrocidades. Ledo engano. A maioria, em regimes totalitários, vive esmagada sob seus pés.

Aqueles com chances de benesses pessoais num regime ditatorial devem andar num certo silêncio, articulando-se na sombra. Vendo as movimentações nas ruas. Dizendo uma palavra aqui e outra ali. Aproveitando-se das sandices de ex-roqueiros e cia. Esse território sombrio em que agem, velado e vedado, arrepia. É preciso, mesmo, estar alerta. 

Trinta anos é uma porção de anos. Em Portugal, ao tempo das comemorações do trigésimo aniversário da Revolução dos Cravos, que por lá significou o fim de uma longa ditadura, houve também um ressurgimento daqueles que se lembravam, saudosistas e nostálgicos, sem os terem vivido, dos tempos áureos de Salazar. Estão todos lá, até hoje, porque é isso que o processo democrático garante, a voz de todos quando cada um sente necessário. Mas são minoria, porque em algum momento a memória reacende. Em algum momento as trevas voltam a apresentar-se como são. E talvez amanhã alguém retire, da prateleira de uma biblioteca qualquer, um exemplar de "Brasil: nunca mais". Folheando as suas páginas, deparando-se com os registros das torturas do regime, há de virar-se para o colega do lado e dizer: "Cara... isso, nunca mais!". E o amigo, erguendo os olhos do livro que ele mesmo escolheu, há de contar-lhe dessa mulher que um dia, lá longe na Espanha, disse "No pasarán". E eles não passarão.



13/03/2015

Ideias para reformar o Brasil

Tenho alguns amigos, bem intencionados e vivendo propostas de vida bem bacanas, que me dizem que gostariam de importar os políticos da Suécia (ou seus congêneres), porque lá tem tudo o que eles gostariam que tivesse aqui: um povo educado, políticos honestos, vidas civilizadas. Lixeiros com salários equivalentes a R$11.000, casados com veterinárias que ganham apenas um pouco mais do que isso. Mulheres parindo como deve ser, uma minúscula porcentagem de cesáreas. Motoristas que param para pedestres passarem. Ciclovias cheias de ciclistas, inclusive prefeitos e vereadores. Leis obedecidas. Ruas limpas. Enfim.

Logo penso na altíssima taxa de suicídio juvenil de lá, noticiada há anos atrás. Mas me informam que aqui as estatísticas não são confiáveis e que, aliás, há centenas de jovens negros que morrem diariamente nas favelas. Penso em desistir da conversa, e desisto mesmo, porque o rumo da prosa sei lá.

Não sei se esquecemos ou achamos melhor esquecer de onde veio e de onde ainda vem a riqueza do hemisfério norte. Que preço pagamos nós para que lá se viva como se vive. Penso nisso, além daquele óbvio ululante de não conseguirmos nunca limpar a nossa pele desse cheiro de colonizado que se impregnou até os fundilhos da alma.

Mas para isso um outro amigo tem a resposta. Para a minha incapacidade de perceber as coisas. Ele diz-me, quase todos os dias, que eu não posso perceber o que é isso, porque eu não sou brasileira. Eu não sou colonizada. Sou europeia. Agradeço-lhe a deferença, nem sempre atribuída a quem vem desse país limítrofe que é Portugal. Mesmo que me doa, leve e sutilmente, esse ser posta pra fora de. Essa situação de repente estranha de ter sorte e azar de não ser igual a. Essas ambiguidades me confundem os nervos. Mas vá lá. Ainda bem que são todos amigos.

E se for pensar bem, eu posso sentir bem o que é isso, isso de "não ser daqui". Como posso também perceber o outro lado, porque também "não sou de lá". Na verdade, não tenho nem pátria, nem mátria. Talvez culpa da falta de enraizamento que aqueles que se transferiram de país em país e em país reconhecerão quando digo. Nem sou daqui, nem sou de lá, e ao mesmo sou de ambos os lugares. 

Niangoran Bouah é um pensador da Costa do Marfim que deixou como legado, entre muitas outras coisas, um documentário-desabafo chamado "Abbandonez-Nous". Com extremas coerência, clareza, combatividade e coragem, de emocionar mesmo, ele advoga para o continente africano o espaço de trilhar seu próprio caminho. De encontrar as próprias respostas. De ser realmente deixado em paz, como única forma de reverter o estrago causado pelo colonialismo, pelo saque de séculos. O seu grito é um pedido em tom de ordem suprema: "abandone-nos", diz ele ao mundo europeu, a essa colonização que a todo custo quer se reproduzir, porque é da sua natureza, numa manobra perversa onde, a certo momento, o colonizado se sente duplamente inferior: pela colonização em si, e por invejar a situação do colonizador, que apenas está onde está porque ele mesmo, o colonizado, existe nesse posto de alter e auto-desvalorização. Essa "vida perfeita" é às nossas custas, e sequer seria a "nossa vida perfeita". A menos que nosso valores sejam os mesmos. E sinceramente, não podem ser. 

Todas as maravilhas desse outro que saqueou, roubou, adulterou, manipulou e transformou em um simulacro o mundo que encontrou, para Bouah, não têm valor. Para Bouah, o caminho é claro - chegar ao Paraíso, só através da Liberdade.




Foto de Isabela Morales 


09/03/2015

Filhos da primavera

Assim como nós, livros também nascem. São sonhados, curtidos, imaginados. Crescem resguardados dentro de um útero de palavras, como seres que se anunciam a si mesmos. E, um dia, saem de dentro. Ganham as prateleiras das livrarias, as mãos das pessoas, os olhos dos leitores. Este livro, que de forma muito especial nos fala de nascimentos, nasce com a boa estrela das almas generosas.

O gesto de cada mulher e de cada homem que aqui em "Filhos da Primavera" registram momentos tão íntimos e transformadores de suas vidas é uma oferta desprendida e amorosa, a todos nós que os lemos. É possível que eles mesmos não tenham ainda a percepção do quanto é importante esse seu gesto. De quanto a humanidade se nutre de coisas assim, que apenas desejam dizer ao outro que novas formas de nascer, de viver, de pensar são possíveis – e eles dizem: “Veja, se comigo foi possível, e hoje eu sou tão feliz por isso, porque não seria assim com você?”.

Meu filho mais velho, dos sete que tenho a honra de ter trazido à luz na minha própria casa, tem hoje 29 anos. Há quase três décadas, nascer de forma diferente, buscando maneiras que nos libertassem de um sistema em nada humanizador, não era moda entre nós. Não era assunto. Não era matéria de revista, ou jornal. Não se falava de técnicas de massagem, não havia videos, nem doulas, nem bolas, nem panos, nem banheiras facilmente adaptáveis a qualquer lugar. Justamente por isso, talvez no fundo fosse mais simples. Havia a casa, havia a confiança, havia a penumbra e o silêncio, e havia a certeza de receber um ser espiritual na terra de uma forma respeitosa e honesta.

Não ter muitas possibilidades de troca, não ter relatos como estes que aqui se oferecem, não ter exemplos ao lado para referenciar as escolhas, fez com que precisássemos encontrar alicerces internos para seguir adiante e dar à luz não só filhos, mas também ideias, posicionamentos, escolhas viscerais.

É essa visceralidade que assoma aqui e ali nas páginas que você está prestes a ler. A visceralidade transformada em vontade férrea e determinada, em encarar a própria verdade de frente. É lindo de ver o quanto um ser humano pode superar-se, adentrar-se, florir-se para dentro para renovar-se pra fora.

É preciso que construamos em nós a certeza inabalável de que somos responsáveis por nós mesmos. Que as nossas escolhas têm força no momento em que as assumimos e colocamos em marcha, e que a mantêm quando não esmorecemos e nos conectamos com a sua fonte geradora, que vive em nós, e não fora. Que para além de nascerem nossos filhos, nascemos nós outras, renascidas a cada parto. Cada vez mais generosas, mais afetuosas e mais compreensivas.


Ficha técnica
Filhos da primavera
Organizado por Camila Capacle Paiva, Celso Monari e Luiza Paim
Ilustrado por Itaiana Battoni
Contato https://www.facebook.com/filhosdaprimavera?ref=br_rs

02/03/2015

A morte que não é só tua

Penso em ti, Humberto. Nos teus 23 anos. Nos teus pais que te sonharam engenheiro. E não consigo dormir, Humberto, porque a tua morte, sendo única, carrega a voz silenciada de centenas de outras. 

Vejo o teu sorriso estampado na página do jornal. E me pergunto o porquê. Por que tantos Humbertos em tantas festas universitárias. Por que tanto excesso alcoólico, tanta busca desenfreada de perder-se a si mesmo, de diluir-se, tanta necessidade de dar à vida um a-mais que ela parece não ter, tanto subterfúgio de open bar para cada vez fechar-se mais na falta de sentido. 

Gosto de procurar os porquês das coisas, ainda que não os encontre. Ou ainda que o que encontre seja infinitamente pior do que imaginava. Ainda prefiro o travo amargo de me sentir traída pela vida ao vazio inexplicável da vida que não se mostra. E por isso fico cativa do teu rosto na tela do meu computador, Humberto, e tento ver por trás das lentes dos teus óculos escuros o que foi que te faltou, ou o que foi que te sobrou, ou o que foi que te doeu tanto (a falta, a ausência, o vazio?), que te levou para fora do limite da vida quando parecia que apenas o adentravas.

Não serás tu o único responsável, ainda que o sejas na parte que te cabe. Porque eu mesma o sou, a cada vez que nada digo. A cada vez que baixo os olhos. A cada vez que desisto, porque parece mais fácil (mais cômodo) do que insistir. São responsáveis aqueles que te convidaram à festa, aqueles que contigo foram, aqueles que aplaudiram, um a um, os 25 copos de vodca que tomaste em pouco mais de uma hora. São responsáveis os que organizaram a festa, os que arrendaram a chácara, os que transportaram as garrafas, os que as produziram, os que as anunciaram, os que as guardaram, os que as pagaram, os que as serviram, os que delas se aproveitaram para lucrar umas moedas. Cada um com a sua cota de responsabilidade, somos todos, por ação ou omissão, responsáveis pela tua morte, que apenas anuncia, nesta rede de tv aberta que desligamos com um deslizar de pensamento, a epidemia devastadora que se abate sobre nós todos, e que me faz perguntar a que tipo de humanidade afinal pertencemos. Ainda que só a sintamos quando nos esfola a própria pele, esta é uma morte de nós todos. E é por isso, Humberto, que eu limitadamente choro a tua morte - porque poderias ser eu mesma, ou meu filho, meu aluno, meu vizinho, parente, conhecido, amigo, irmão. E assim, nessa proximidade que nos faz a todos irmãos, dói-me mais a tua partida, ainda que nunca tivesse te sabido aqui.

Apago a luz como se apagasse a vida, e junto-me a ti e aos teus, e não fecho os olhos nem durmo. Peço àqueles que te guiam, nessa passagem que fazes, que nos auxiliem a nós que ficamos a que percebamos dos limites os contornos, e deixemos de ignorar as curvas e as pedras do caminho, pintando-as com cores que não são delas. Por nós e pelos que fiquem de ti entre nós, e para que a tua morte não seja um vão a mais na nossa incapacidade de proteger o que precisa e merece ser protegido.

28/01/2015

Contas

Ora digamos que Paula, nesse dia em que chegou de viagem, encolheu o pensamento entre as duas palavras que encontrou escritas no espelho do banheiro: "renuncia, ou desiste".

Estranhou, ficou atônita mesmo, não fazia a menor ideia do que significavam, ou de quem ali as deixara. Os amigos a quem emprestara o apartamento de um quarto só, talvez. Mas seriam para ela? Essa necessidade imperiosa de escolha, pertencia-lhe?

Bateu-me à porta de casa. Sou a vizinha da frente. Meu trabalho consiste em resgatar palavras do limbo de seu não-significado - sou dicionarista, uma espécie de profissão de quem se rodeia de palavras o dia todo, e lhes descobre vida onde só vivem som e grafia. É uma tarefa de vida solitária, a minha, e gosto que me batam à porta de vez em quando.

Além de palavras, gosto também de guardar os tempos precisos. Tenho uma memória privilegiada: é raro esquecer-me de algo que vi, ouvi ou li. Não tenho pressa, na vida, e faço muito do que sou por escrito. Porque os tempos têm a natureza confusa e, se não se anotam as coisas, parecerá que x veio antes de y, quando na realidade quem primeiro chegou foi y. Por isso, para tudo, nestes tempos estranhos em que relógios não têm ponteiros e correm desenfreados e loucos para chegar à hora seguinte, é preciso guardar o tempo preciso.

Dava corda ao relógio da sala quando Paula bateu à porta. De leve, desse jeito envergonhado que ela tem com tudo o que é dela. Pediu-me ajuda. Contou-me do espelho de seu banheiro, e disse-me ter encontrado, entre a linha dos olhos e as comissuras dos lábios, essas palavras que lhe tomaram os olhos. Que diferença existe, perguntou, entre renunciar e desistir?

Ergui a porta do departamento de latim que vive na minha mente. Ambas as palavras guardam o seu início na língua latina. Quer dizer: isso é o que nós achamos. Renúncia, lembrei-me e disse, é a retirada de uma palavra. Renuncio quando nego e repudio o que antes disse. Só renuncia, concluí diante dela, quem alguma vez disse. Renunciar nasce de dentro da palavra nuntiare, que significa informar, declarar, anunciar, todos eles verbos com tendência à objetividade, à ação, à declaração. Quando a nuntiare juntamos o prefixo re, somos levados para trás. Damos marcha a ré. Quem renuncia, dá marcha atrás a sua própria declaração. Isso às vezes é possível, outras é um perigo - há palavras que uma vez ditas, nunca, jamais, podem ser retiradas. Acontece assim às grandes, e incômodas, verdades. Talvez preferíssemos nunca tê-las visto, isto é, dito.

Já desistir parece-se com sua palavra mãe - desistere. De (que é fora) mais sistere (que é o ato de parar, de interromper), em nada repudia o antes dito. Quem desiste, interrompe desde fora um movimento que está. Quem repudia, imobiliza, estagna. Vários motivos podem levar um sujeito a desistir, até mesmo o estado de estupefacção, de sobressalto, de susto, de incompreensão, de estar atônita como vc está, disse-lhe baixinho. É uma interrupção de ação, mais do que uma ação em si, como é o ato de repudiar.

Paula ouviu-me de olhos fechados. Parecia passar, um a um, as pequenas e as grandes renúncias da sua vida. Uma a uma, as desistências. Parecia colocá-las lado a lado, pesando e medindo tudo o que já repudiara e tudo o que deixara estagnar-se. Deixei-a sozinha. Voltei-me para as minhas próprias coisas, e aos poucos os olhos foram-se-me enchendo de água. Renunciar às coisas do mundo e da alma, é das escolhas mais dolorosas e duras de toda uma vida. São elas que nos alteram, às vezes sem que o desejemos, a superfície da pele.

Imagem: Lila Marques


26/01/2015

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São três anos. Três anos descobrindo uma parte desta cidade que amo há trinta. Aprendi a amar São Paulo nas ruas do seu centro. Morei na Barão de Campinas. Amei, amei mais e mais ainda - meu primeiro filho nasceu na esquina com a Alameda Nothman, ali no lugar mais improvável para trazer em paz um filho ao mundo. 

Depois, Parelheiros - um começo único para o longo período de vida campesina, como diz nosso querido André. Ia e voltava do Butantã, do Pacaembu, de Higienópolis. Meu São Paulo era desse tamanho, e tanto gostava de um lado quanto do outro. Santo Amaro era lugar de passagem, mesmo com a Marina que morava por ali, assim como a Conceição, lá em Guarapiranga. Marina foi-se para São Chico, Conceição que voltas terá dado?, e nós já andávamos pelas terras quentes e pelos bons ares do interior paulista. Outros se foram para outros lados, parece que só o Claret resistiu paulistanamente.

Voltei, pouco e pouco, num processo de reapaixonamento que me ofereceu novas amizades, daquelas que são fortalezas no tempo e no espaço, dimensões que sequer existem - porque São Paulo abre-se em possibilidades que desafiam uma e outra dimensão, e descobrimos que não há tempo para nada, mas a vida é assim mesmo e bom é vivê-la.

De pouco em pouco, foi virando muito. Nesses três anos, aprendi a locomover-me por Santo Amaro. Não sei por que tanta resistência durante tantos anos. Sorrio por dentro quando acerto o nome da rua, e rio despregadamente se ainda por cima acerto o caminho de primeira. Encanto-me com as árvores. Com a sinuosidade das ruas. Com a mistura de casas. Com o tempo que cheira a velho. Com as avenidas que agora, em vez de rios, fluem e refluem carros. Com os lugares pequenos que só a vida de bairro tem. 

E, em meio a tudo isso, ali enorme tantos anos, observo esse Borba Gato da Avenida Santo Amaro, que me parece o antepassado do playmobil, quem sabe a sua inspiração? Intriga-me tanto: repare nas pernas, na saia... é ou não é o homenzinho do brinquedo?! Agradeço quando o sinal fecha e eu posso olhá-lo sem ser de passagem. Júlio Guerra, que o projetou e executou no começo da década de 60, quis usar materiais diferentes daqueles que se usavam em cemitérios. Nada de bronze. Quis coisa que o povo reconhecesse. Usou trilhos de trem como sustentação para o barro, o gesso e o concreto. Revestiu esse gigante de pedras quebradas no quintal de sua casa da avenida João Dias, logo ali na frente. O resultado é essa descomunalidade de 13 metros de altura e 20 toneladas, marco absoluto (ainda que não unânime) de Santo Amaro. Nesse surto de amor por esse bairro que me acolheu tanto nos últimos tempos, só posso mesmo sorrir para o velho bandeirante ao passar. Não tanto por ele, homem bruto de história pouco clara como a de todos os brutos. Mas pela cidade que agreste e suja e confusa e superpovoada e injusta e congestionada abre os braços em todas as direções, e seja pela Bandeirantes, pela Castelo, pela Fernão Dias ou pela Imigrantes, a todos recebe com a mesma possibilidade caótica de riquezas sem par. Antes que seu dia acabe, parabéns, São Paulo!


18/01/2015

A Indonésia em nós


Leio estarrecida os comentários às notícias sobre o fuzilamento de Marco Archer ontem, na Indonésia, tão perto do atentado ao jornal do país que nos legou as palavras egalité, fraternité e liberté. Há uma quarta palavra que parece ter desaparecido do íntimo das pessoas, e que nasceu no mesmo lugar: solidarité.



Solidariedade é um algo inteiro, completo e interdependente. Ser solidário é reconhecer-se no outro, porque o outro é um ser humano igualzinho a você, cada um com as suas alegrias, as suas falhas, as suas fraquezas, as suas conquistas, as suas inconsistências. É saber que aquilo que o outro é, é também o que você mesmo é. Inteira, completa e interdependentemente. Não naquilo que me agrada e que eu mesmo faria, mas até mesmo naquilo que não compreendo. Ser solidário não é concordar, mas é no mínimo ter certeza, absoluta, de que o outro (todos os outros) tem tanto direito à vida quanto eu. Ponto.


Solidariedade demanda compaixão, que por sua vez demanda empatia, que por sua vez demanda pathos, que é basicamente o estado vivo de emoção... Tudo artigo escasso nestes dias em que nos vangloriamos de sermos racionais e objetivos, deixando de perceber o quanto somos manipulados da forma mais vil e estúpida. E não pense apenas nos grandes temas, porque o grande está no pequeno assim como o pequeno está no grande, já o Oriente e a física quântica nos ensinaram.


Não sei se a palavra solidariedade consta da Declaração dos Direitos Humanos, esse documento de uma civilização inteira desesperada por escapar à barbárie exposta com a abertura dos portões de Auschwitz. Se não consta, deveria - porque me parece ser uma boa parte do iceberg invisível das nossas relações. Muito embora a Declaração em si pareça ter sido soterrada pela entropia dominante. Entre em qualquer site de notícias, procure por aquelas que falam do fuzilamento, e mantenha a cabeça no lugar ao ler os comentários.

A bem da verdade, não chega a espantar, nesse nosso Mundo Novo de selfies. O mundo não se reduz mais àquilo que os meus olhos veem (o que já era um senhor problema): o mundo agora reduz-se a mim mesmo sob meu próprio olhar. Nada de "penso, logo existo". Agora é "Me vejo, logo existo". E nem preciso de ninguém, eu mesmo aperto o botão da minha foto, se quiser distância uso até um "pau de selfie" e me legitimo feliz da vida olhando para a imagem que eu mesmo crio e espalho. Os outros... que outros?!

Agora, me espanta. Espanta que a nossa capacidade de irreflexão e de ação automatizada cresça como cresce. Que se torne tão fácil acreditar nas próprias mentiras, e que nada em nós se abale ao repassá-las aos outros (ops... que outros?!). Espanta que a tragédia alheia, que jamais diminuiu a tragédia de ninguém, não se perceba como própria. Que o coração não se aperte ao pensar nesse homem fuzilado. Que nos tenhamos esquecido das atrocidades que essa mesma Indonésia perpetrou contra Timor Leste há tão, mas tão pouco tempo - e justifiquemos a sua ação abjeta apoiados em que "cada país tem as suas leis". Se cada país tem as suas leis, e se estamos à sua mercê, não há o porquê de Je suis charlie, não há o porquê de assinarmos abaixo-assinados com um click da nossa confortável poltrona, para que a violência de hoje na Nigéria tenha um fim. Batendo palmas para a pena de morte na Indonésia, batemos palmas para o fim civilizatório. Em vez de sentirmos, pensarmos e agirmos após refletir sobre ambos movimentos, mandamos um recado claro: sinta, pense e aja. Os outros?! Que outros?!

23/12/2014

Madrugada

Acordo com um vulcão dentro do peito. Ouço as erupções no escuro da madrugada, sinto o calor da lava a subir pelas laterais da cama. E ouço a voz de minha mãe, confundida com outras vozes que se fazem ouvir.

Ouço-a contar-me, como se estivesse ao meu lado e não no jardim da casa onde vive hoje em Fátima, dos 13 meses de atividade vulcânica que acompanhou da escadaria da casa de sua avó, casa açoriana construída em cima de uma rocha tão grande que em seu interior tinha uma gruta. Terras de basalto, casas de basalto, mar azul petróleo em volta: os Açores são meu pensamento em voo quando o mundo concreto craquela. Lá está a janela da casa dessa minha bisavó, transbordada sobre o mar. Lá estão os ensaios da banda da igreja. Lá estão as águas-vivas a dançar na beira da praia. Lá estão as terras vulcânicas, essa paisagem lunar que já criança me depositava silêncio na alma.

Minha mãe conta da mescla estranha de terror e fascínio que sentia, da rudimentar máquina fotográfica empenhada em registrar a evolução diária desse vulcão. Conta da espessa nuvem de cinzas, incessante, a soterrar casas, a tornar o ar irrespirável, pessoas evacuadas, um farol quase desaparecido, metros de terra escura ganhos ao mar. "Essas terras", dizia, "tornar-se-ão nas mais férteis da ilha. Talvez eu não chegue a ver esse dia, mas talvez teus filhos sim."

Talvez nem eles. A natureza é mais indomável do que pretende o nosso pensamento; segue o seu próprio e desconhecido tempo, e não há nada a fazer a não ser munir-se das armas serenas da espera.

É o gosto dessas armas que amanhece na minha boca. Mesmo serenas, são amargas. Penso nos Capelinhos como se a vida fossem, e enterro as mãos nessas cinzas ainda quentes. São estranhamente líquidas, sobem até à garganta e dizem-me que não as deixe transbordar: "Agarra-te a essa inconsistência de neblina que recobre a madrugada, e espera que de nós nasça o mais fértil dos caminhos. É da tua espera que nascem as coisas. É da tua espera que o futuro se alimenta. É da tua espera que as águas que te marejam a alma refluem e seguem seu caminho ao longo da linha da costa, até mergulharem no mar e te acenarem adeus antes da onda final. Deixa que a onda que as leva passe sobre ti: deixa a onda passar e acorda outra vez, até não ser mais necessário."

Imagem: vulcão dos Capelinhos, ilha do Faial, Açores, 1958.





01/12/2014

Temporada

Uma das coisas mais bacanas do inferno astral é a oportunidade absurdamente expandida de encerrar ciclos, preparar-se para o novo, resolver pendências, instigar mudanças, criar movimento. Eu gosto particularmente do meu, todo ano chego à mesma conclusão.

A vida não piora, no (meu) inferno astral. Muito pelo contrário. Com a sorte de ter nascido em dezembro, coincide a época de colocar a vida em perspectiva e olhar para os meses adiante com um olho nos meses que se passaram.

Semana passada, segredavam-me aquilo que todos sabemos de que "a César o que é de César". No sentido de que, se a César se dá mais do que César consegue, ou merece, levar e manter dentro de si, algo de menos se dá a Deus, que é o outro lado desse binômio bíblico. E como Deus está em tudo, e tudo está em Deus, e namastê-o-deus-em-mim-saúda-o-deus-em-ti, resulta que, se demais se dá a César, de menos se dará a esse pedaço nosso que é o todo e que é a nossa origem, vocação e verdadeira essência divina. Inferno astral é um momento privilegiado para se perceber se o que damos a César assiste realmente a César. E corrigir a rota, e dar a quem é de direito o que lhe pertence.

No estado de sensibilidade alterada, de uma capacidade perceptiva interna mais alimentada, como são essas semanas de inferno astral, as coisas que nos afetam, ou nos desafetam, tornam-se mais nítidas. Se os deixarmos, os insights farão visitas frequentes. Teremos presentes dos céus em forma de reencontros inesperados.

Nesta madrugada, escrevo porque está particularmente difícil adormecer. Tenho a impressão de ter o corpo cheio de estrelas, tremeluzindo através de cada poro. Fico encantada, e não durmo. Na escuridão do quarto, brilho. E me pergunto se este brilho em mim estará brilhando em outros também.

Sei que sim, e por isso também me ponho a escrever. Porque talvez aqueles que originaram esse brilho, um pouco incautos porque não têm a sorte de estar em seu inferno astral, estejam desconcertados, e não saibam de onde vem esse sentimento que de tão plácido não permite o sono.

Pois bem: foram os abraços. Aqueles frequentes, aqueles deliciantes, aqueles reconhecedores, e os desconhecedores também, mas sobretudo, e muito, aqueles que quase ficam pelo caminho, com cara de tropeço desagradável, e de repente se retomam. De repente abrem-se os braços e os outros braços estão ali abertos também, num acolhimento mútuo que enche os olhos de lágrimas. E o que se sente faz-se carne, e logo a seguir estrela, e cá estou eu que não consigo dormir por causa de um abraço.

Porque, descobri às vésperas de entrar neste paradisíaco inferno astral, sou como estrela em busca de constelação, e em dia em que os constelamentos brotam como água de mina, eu só posso mesmo é querer ficar acordada e ver em mim, nítido como um girassol, o que fazem os outros quando se abrem, inteiros, a um abraço de corpo, alma e espírito.



Foto: Ana, de árvore ibirapuérica

22/11/2014

O que importa


Um dos desafios da escrita de ficção reside em encontrar o como revelar uma personagem aos olhos do leitor. Mais do que o que pensa e o que sente, o que dá força a uma personagem é o que ela faz, e como o faz. Detalhes da sua construção humana emergem dessas coisas ínfimas que pertencem à vida do dia a dia e que, de tão pequenas, parecem irrelevantes. Não são. São importantes e poderosas. E não apenas o que o narrador, ou o autor, revela desses detalhes, mas o recorte que faz de um conhecimento amplo daquilo que a personagem é, e que nasceu de um relacionamento profundo, duradouro e verdadeiro.

Talvez lhe pareça incomum, leitor, esse processo de conviver intimamente com uma personagem que, de antemão, é ficcional. Mas eu lhe garanto que, através do observar dessa relação, muito se aprende sobre a vida em si, porque a ficção e a vida coexistem no tempo e no espaço, e se olharmos bem de perto confundem-se ambas a todo instante.

Começa-se com o olhar capturado. Em algum momento a personagem nasce, assim como alguém aparece na vida. Não se sabe de onde, às vezes nem o porquê, mas o fato é que algo em nós fixa a sua atenção nessa existência, e a examina, procura-a, tentando percebê-la, absorvê-la internamente a partir do que se mostra. Melhor que não haja maiores influências do interior de quem observa, para que se observe o que de fato é, e não o produto do nosso desejo, mas o fato de deter o olhar aqui, e não ali, mostra uma preferência que pode ser tão orientada pela simpatia quanto pela antipatia. No caso da ficção, o que se observa é uma construção interna, sobre a qual se imagina poder ter algum tipo de "controle". Ledo engano. Tem-se o mesmo controle que se tem sobre as pessoas que andam conosco pela terra. Ou seja, nenhum.

Mas o fato é que se observa. E dessa observação surgem perguntas, porque com a observação do outro nasce a vontade irrefreável de aproximar-se para conhecê-lo mais. E porque a pergunta é o ponto de partida de todo diálogo, pergunta-se porque se quer saber - quem és tu, que apareceste na minha vida? O que te move? O que te emociona? O que procuras na vida? Quando esse querer saber é genuíno, as perguntas são profundas e urgentes. Quando não, o que surge desse desvio pouca valia terá para conhecer o que, de fato, nem se vê.

O mesmo acontece com a personagem que temos entre mãos. Sabemos-lhe talvez o nome, o lugar em que vive, as circunstâncias básicas que lhe marcam a vida. Conseguimos circunscrevê-la num certo momento histórico, numa certa corrente de ideias que sustentarão esta ou aquela ação, do ponto de vista do seu ideário. Mas aos poucos surgirão perguntas mais atentas ao passar dos seus dias. Desenvolveremos uma atenção àquilo que a torna humana como nós, e que encontrará eco em quem dela se aproxime. Assim, constrói-se uma teia de conhecimento ligada às pequenas coisas. O tempo torna-se mais lento. É preciso que se amplie em minutos, horas, dias. Para que haja espaço de ver, e porque é nas coisas "inúteis" que os grandes conflitos, as grandes demandas, os grandes traumas, os maiores desejos, as grandes procuras, se emancipam.

Na meia luz de fim de tarde, sentada no sofá da sua sala, ou recostada no travesseiro da cama, a personagem despe-se das suas artimanhas sociais, dos seus construtos mentais, das suas couraças, da suas fachadas. É ela mesma. Mesquinha, incapaz, sublime e vulnerável. Humana como nós.

Não precisarão esses detalhes aparecer no texto final. Poderão ser suprimidos, ao longo das várias versões que se escreverão, mas existirão, serão reais, e sem querer o escritor lançará mão disso que sabe, e saberá que é verdade o que escreve, e saberemos nós que o lemos. Revelam-se nas entrelinhas, esses detalhes, delineados por um narrador que sabe muito mais do que conta. Esse "saber mais" é poderoso aliado na construção de qualquer personagem. E, neste "saber mais", os mais simples e cotidianos pormenores são os que dão consistência a uma pessoa. É aqui, hoje, que para mim mais a ficção se veste de realidade.

Não sou eu quem diz isto, mas a narradora de "The last run away", último romance de Tracy Chevalier, que acabo de ler sentada numa cadeira de hospital enquanto me sinto cosendo um quilt em pleno Ohio. Gosto de acompanhar o percurso desta escritora, que chamou a minha atenção desde "Moça com brinco de pérola". A excelente pesquisa de cada um dos seus livros; a maneira incisiva como entretece realidade e ficção (aqui, a vida quaker e a luta abolicionista americanas); os detalhes que pressinto construídos e que são o alicerce de uma trama real; a dosagem eficaz dos níveis de tensão - fazem de cada livro uma aula.

Às vezes, a aula resume-se a uma frase. Como essa de que "são os pormenores cotidianos que dão consistência a uma pessoa". A maneira particular como se varre um quarto, o quadro que se escolheu pendurar na sala, a maneira como se afasta a cadeira para sentar-se à mesa do almoço, a forma como se escolhem produtos numa gôndola de mercado, o quanto se aprecia as folhas recém-varridas no quintal, o olhar que se dirige ao espelho numa noite especial. Sem pormenores cotidianos, as personagens, como as pessoas, enfraquecem. Sobretudo quando se pressente a fuga deliberada desses detalhes, justamente por se saberem reveladores.

O fascínio dessas personagens empobrecidas não dura muito, porque não se ancora em realidades palpáveis, e nem mesmo o mistério que as envolve, justamente por essa falta de relevo, as faz subsistir. O que provocam não dura, e aos poucos se esvairá da memória. Em algum momento, com tristeza e decepção, o leitor sente o incômodo daquele que não se entrega, e talvez cogite em deixar esse livro na mesinha de cabeceira e retirar outro da estante.

Para que nos arrebate, e nos conduza ao final da história com entusiasmo e consistência, a personagem precisa permitir acesso ao seu universo privado, um passo dentro dos seus recônditos secretos. Para que nos sintamos especiais e merecedores da sua confiança, afetados pelo seu passado, pelas suas dores, suas conquistas, seus planos. Precisa enriquecer-nos a vivência mútua com cheiros, cores, sabores, texturas do mundo em que vive.

Limitar o que dela transparece a um quadrante apenas, retira força e, sobretudo, retira motivo para a sua existência. Se (e quando) tudo foi dito, e o leitor tem a repentina sensação de que não há mais nada a se revelar, é urgente rever o texto, restaurar o prumo, perceber as fraquezas e caminhar para resolvê-las. E, sobretudo, ter a humildade necessária para reescrever o que precisa ser reescrito.


Imagem: Maíra Ventura

17/11/2014

Não é, e parece


1. Tome-se a palavra contente, aquela que Camões usa no canto V d'Os Lusíadas para descrever a cor do barrete que os marinheiros do Gama usavam: encarnado, cor contente. A cor de quem tem os pés sobre a terra.

Contente deriva de continere, via seu particípio passado. Resulta da junção de con + tenere, que basicamente poderíamos traduzir por segurar (ou agarrar) junto. "Estar contente" poderia então ser, pensa você desse seu lado da tela, segurar junto a si aquelas coisas que lhe fazem bem. Ou pessoas a quem você quer bem.

Sim, e não só. Continere carrega um sentido de restrição e de contenção. Agarrar (ou segurar) algo junto a si restringe o espaço de ambos: não poderás tu andar sem aquilo que decidiste conter, nem poderá o conteúdo andar mais sem ti. Ao mesmo tempo, como aquilo que tu seguras mantém-se junto a ti, é preciso que suspendas a respiração, fonte primária do desejo, e aguardes que continente e conteúdo estejam alinhados para poderes avançar/retroceder/parar. Ser contente é ter junto a si as pessoas e as coisas a quem se quer, e bem, e apropriar-se de suas restrições e contenções, percebendo a secreta felicidade que vive dentro delas.

2. Pense agora na tríade "feito, perfeito, defeito". Obviamente tudo tem a ver com as coisas que se fazem. O "feito" presente nos três é o mesmo facere que nos aparece também em satisfeito: só quem faz, na medida certa (satis), pode estar satisfeito.

Per e de são dois prefixos que, como todos os demais, alteram o que vem depois. A vida está cheia de fatos/feitos que se agregam ao que já estava composto, parecendo terminado. De repente, eis que surge algo que se soma, que se agarra ao começo das coisas e as transforma até o seu âmago. São os prefixos, subvertendo a ordem estabelecida. Está tudo lá, mas não como antes: per junta-se a feito e temos agora algo que se faz, sim, mas de um modo completo, sem faltar nada. São essas as coisas perfeitas: as que se fazem até que nada falte, um fazer mais que si mesmo.

Enquanto isso, do outro lado da palavra, temos o prefixo de-. Aquilo que é "feito fora" - feito em queda, em falha, um desertar. Um defeito é um fazer desertado. As coisas defeituosas são as coisas abandonadas. Aquelas que se deixaram pelo caminho, feitas pela metade, feridas abertas na sua incompletude. Um defeito é um deserto.

3. Uma das vantagens do latim, como língua morta que é, é a sua estagnação. O latim não evolui. Não se modifica. O significado de suas frases e palavras não se altera, porque não há mais gente de sangue corrente que faça dele a expressão da sua alma. Por isso, podemos confiar que aquilo que diz hoje é o que dirá sempre; não há interpretações que variem no tempo. A outra vantagem é o poder que nos oferece de reconhecermos em nós essa presença arquetípica, sublime e forte da herança de outros - entrar nesse túmulo abandonado e examinar-lhe as ossadas, as fortes mandíbulas, o crânio redondo, as tíbias e os fêmures alongados e saber-se parte.

Desse cheiro de nenúfar que se desprende das coisas mortas reverberam palavras antigas, que mais ninguém pronuncia. Verba non mutant substantiam rerum, dizem. As palavras não mudam a substância das coisas. E mesmo o que por vezes não parece, é.

Imagem: Cemiterio dos Prazeres, em Lisboa, por Suzana Siqueira.

07/11/2014

Interesse

Esse homem ao lado acompanhou-me a semana toda. Heráclito de Éfeso. Alimento-me da sua proposição do mundo ser movimento e mudança constantes e fundamentar-se numa estrutura de contrários. Para ele, a origem de todas as coisas é a contradição, e o conflito é ajuste dessas forças contrapostas.

Há uma lei, entretanto, que rege esse movimento. Heráclito chama-a de Logos. Logos não só rege o devir do mundo, como "indica, dá signos", ainda que o homem "não saiba escutar nem falar". As aspas são palavras do próprio Heráclito. Ou seja: Logos dá-nos indícios do mundo tal qual se manifestará no futuro; Logos diz-nos, em forma de signos, o ser da mudança em nós e no mundo. Mas é preciso saber escutar e falar, o que significa saber usar a Palavra e usá-la.

Aprender a ler os signos de Logos é uma arte. Heráclito diz-nos, em outro fragmento, que é indispensável abrir e utilizar os sentidos: o mundo entra-nos pelos olhos, pelos ouvidos, pela pele, esse tecido extenso de composição tão sutil. É preciso aprender a ler os signos que nossos sentidos captam, porque só eles, em estado bruto, não bastam. É preciso lapidar.

Lapidar significa, aqui, fazê-los acompanhar do sentido da inteligência, e essa apóia-se numa atitude indagadora. É preciso pensar, e é preciso fazer(-se) perguntas. Se não, seremos seres encastelados na matéria imprecisa dos sentidos, onde o real é invisível. A pergunta, costumo eu dizer nos cursos de escrita, é o movimento propulsor do diálogo. Se a palavra afirmativa, enunciativa, dá nome ao mundo, e é objetiva e verdadeira, embora distante e fria, a pergunta é o primeiro movimento de Um em aproximação ao Outro. Pergunto, porque me interesso, e me interesso porque a vida parte do interesse.

Inter-esse é aquilo que "está entre". Para haver "entre" é preciso que haja dois e há de haver aquilo que os conecte, uma importância que um reconheça no outro: é entre dois ou mais que Cristo se manifesta. É entre dois ou mais que o céu se constela.

Interesse cultiva-se, e seu cultivo parte da intenção de aprender a ler os signos de Logos. Porque, a rigor, podemos passar várias existências surdos e mudos. Logos continuará e as águas dos rios continuarão passando por baixo de todas as pontes. É preciso que algo em nós se mova na direção do outro, esse interesse verdadeiro na verdade que ele carrega em si como ser divino que é, e esse interesse manifesta-se na importância que lhe conferimos, na ocupação que lhe dedicamos, para que a conexão que se anuncia seja real e verdadeira.

Mas o Outro desaparece debaixo de nosso olhar superficial e apressado. Somos indiferentes ao sofrer alheio, às percepções dos sentidos do Outro, desinteressamo-nos daquilo que vê e diz, porque o nosso Eu tem pressa, e tem suas próprias obrigações, compromissos, responsabilidades, interditos, exigências, territórios... e não descansa de si, e nem se detém, porque o mundo anda rápido e tudo é veloz e são tantas tarefas e não temos tempo não temos tempo não temos - e o que não temos afinal é a chance de perceber o Outro, partilhar do seu caminho e multiplicar o nosso. Somos só superfície, um mundo raso de pele sem tato pro Outro. Esse olhar de superfície, indiferente e desinteressado, é um rolo compressor em marcha lenta por cima da alma.

Eu me pergunto, e pergunto a Heráclito, qual será a força de contraposição. Qual será a força, de igual magnitude e poder, que se oporá a esse desmantelamento da humanidade em nós. E Heráclito responde com a sua frase mais famosa, aquela em que Platão se inspira para, na sua própria e particular leitura, dizer que "um homem não se banha duas vezes no mesmo rio".

"Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos" são as palavras proferidas por Heráclito. Embora uma parte do rio flua e mude (a água), há uma outra (o caudal, o leito), que se mantém relativamente permanente. 

É esse caudal, que guia o movimento da água, o Logos que tudo rege. Ao entrarmos num rio, entramos nele e não entramos, porque ele sempre muda nas águas que passam, apesar de ser sempre o mesmo. E nós mesmos, sob a regência de Logos, somos permanentes e mutáveis a cada instante. Quanto mais conseguirmos compreender os signos que Logos indica, mais conseguiremos compreender onde se manifesta a lei regente, e onde a constante mutação modifica. É nessa condição que precisamos parar, observar, pensar, indagar e mudar. Sem esse movimento, mudaremos porque forças externas nos impelem, e não por forças de nosso próprio caminhar evolutivo. 

Sem menosprezar o olhar do Outro, e mantendo o pensar do Outro em mim, pavimento o meu caminho. Nos embates entre, no interesse que se cultiva, no conflito que se estabelece e do qual não se foge, nasce uma nova possibilidade. Talvez possa ser a força de contraposição à diluição do vir a ser humano, essa força que se manifesta às vezes tão próxima, em tantas almas que se angustiam tanto que procuram a morte como refúgio. Talvez o que nelas tão cruamente chore, e chore em nós quando a parede do desinteresse e da indiferença nos atinge, seja o choro da humanidade que sofre, e que vive em cada um de nós. Cada movimento que Eu faço na direção do Outro aglutina-se em torno dos movimentos que o Outro faz, e soma e multiplica, e é dessa aritmética que nasce a força necessária de contraposição. E sempre, sempre vigiar a si mesmo e amar o outro.

04/11/2014

Panta rei


Tudo se move, exceto o próprio movimento. 
Heráclito

Decido, por estes dias, retirar-me da esfera facebookiana, desse campo impreciso de amizades também imprecisas, recortadas em pequenos quadros que não se constituem de fato e pele. Um mundo volátil, inconstante, traiçoeiro e sem memória. Deseja-se proximidade, obtém-se um simulacro.

E a minha alma anda cansada de simulacros. Por isso, restrinjo-lhe por ora a entrada nos domínios em que nada pode a não ser encolher-se aflita. Neste lugar sem existência, neste mundo virtual feito de nadas, vive uma força que aliena e manipula. Vejo seus efeitos. Vejo os que abdicam da capacidade de pensar formas livres e suas. Vejo outros que enveredam pela pré-concepção das coisas e assim as julgam. Vejo os que passam voando inconsistentes pelo que diz o outro. Vejo aqueles que clicam em botões sem pensarem no que o seu clique pode provocar no outro. Pensa-se pouco no outro, neste facebook de meu deus, talvez porque o outro seja uma entidade anônima e pulverizada entre dezenas de acessos e visualizações. E porque mais importante é expor diante do mundo, com palavras e imagens roubadas e carregadas, aquilo que se pensa que se pensa. Mesmo que nada se pense e só se aja por impulsão e estímulo externos. Aquilo que a máquina me sugere. Perdem-se capacidades humanas, na lida diária dessa rede sem peixes. Haverá algo de verdade essencial, que permeie as horas e subsista à passagem de um dia ao outro, neste mundo rápido dos bytes?

Séculos atrás, Íxion cometeu o equívoco terrível de tomar o simulacro por verdade. Rei dos Lápitas que habitaram a Tessália, Íxion foi o primeiro mortal a matar alguém da própria família, crime que o tornou impuro, tão grave que não houve quem quisesse purificá-lo. Ninguém podia tocá-lo, nem comer com ele nem sentar-se à mesma mesa e beber em sua companhia uma taça de vinho. Íxion enlouqueceu.

Zeus, num dia de humor generoso, olhando-o lá de cima de seu trono, apiedou-se, e convidou-o ao banquete dos deuses, evento que o redimiria. Íxion, entre uma taça de vinho e outra, encantou-se por Hera, esposa de Zeus, e logo a assediou. Zeus, ainda no mesmo humor generoso e farto, decidiu ensinar-lhe algo: criou uma cópia fiel de Hera, um simulacro de sua esposa feito de nuvem, e para que não houvessem dúvidas deu-lhe o nome de Nefele. Nefele, a nuvem. Íxion, que sequer percebeu diferença, possuiu e engravidou Nefele, e dela nasceram os centauros, à exceção de Quíron e Folo, que têm origem diversa e diversos são dos centauros comuns. Íxion, de volta à terra, gabou-se da conquista e relação com Hera, o que pôs fim ao bom humor de Zeus, que o amarrou a uma roda em chamas e o jogou no rio Hades, num castigo que durará toda a eternidade.

Os frutos de Íxion e Nefele assolam a terra, seres que não sabem se animais são, se humanos. Tendem ora a um lado, ora a outro, prisioneiros do simulacro que lhes deu origem. Esses frutos cavalgam sobre as nossas vidas. Nublam-nos o discernimento, o reconhecimento da nossa verdade mais interna. Conduzem-nos por caminhos confusos, onde a sombra, o nevoeiro, a noite escura se instalam com facilidade.

Quem nos lega da longínqua Grécia a lenda de Íxion é Píndaro, no século V a.C. Foi Píndaro quem disse "Homem, torna-te no que és" e foi Píndaro quem inventou a bússola. É na direção desse norte que a bússola de Píndaro indica que a minha alma se dirige e o meu espírito se move. Na direção do reconhecimento da essência e da recusa de todo simulacro que se identifique. Quero a vida feita de matéria, lugar onde o espírito mais visível se torna. Quero a vida feita de palpabilidade, de encontros plenos e sob um sol que os ilumine, nutra e faça brilhar. Que sejam recíprocos, e nos aliviem das trevas que se abatem, sem dó nem sossego, sobre cada um de nossos dias.


13/10/2014

Para escrever, escrever


É comum pensarmos que quem muito lê, bem escreve. Grande ilusão: escreve bem quem muito escreve. Escreverá melhor quem dominar um repertório vocabular amplo (adquirido também mas não só através da leitura), e escreverá melhor quem tiver acesso a um cada vez maior número de formas de se usar a língua escrita. Escreverá melhor quem se dedicar a observar a maneira como a linguagem escrita está presente em nosso dia, caminhando na direção de um olhar crítico e avisado.

Mas para escrever bem o que é preciso, mesmo, é escrever. Muito. Com técnica, disciplina, dedicação e tempo. Eu sei, quase desanima. Mas não é tão grande o drama quanto parece.

Há dois momentos fundamentais no processo da escrita. Valem para tudo, do poema que se dedica à namorada à tese de doutoramento em física quântica. Podem estudar-se todas as técnicas e demais gavetas que guardam e fecham a produção textual. Sem o momento do desdobrar criativo e sem o momento da reflexão atenta sobre o escrito, muito pouco se faz.

Temos em comum, todos nós seres alfabetizados, um processo de aquisição de código calcado sobretudo nos interditos. No que não se pode fazer. Não se pode escrever errado, não se pode escrever sem usar maiúscula no começo de frase, não se pode escrever sem sentido, não se pode escrever com s quando é com z (e vice-versa), não se pode usar ponto quando é vírgula, não se pode escrever mentiras, nem bobagens, nem palavrões, nem coisas sem princípio, meio e fim. Um nunca acabar de nãos.

Escrever é processo. De encontro do si mesmo. Da própria e irrepetível voz. Podemos (e devemos) escrever como escrevia Camões, ou Drummond, ou Clarice... e nessa procura do como um outro Eu se faz palavra, tatearmos por entre essa selva de letras, em busca da nossa própria voz. Infelizmente, não se dá à escrita o tempo de que ela precisa. Para encontrarmos essa voz própria e única é preciso lapidação, observação, compartilhamento. E é preciso permitir que a palavra viva em estado de liberdade, deixando-a que se escreva errado, que não tenha sentido, que não corra atrás da letra certa, que diga mentiras e bobagens e comece do meio para chegar ao princípio. A palavra que não se diverte não se torna canção.

Antes de mais nada, são precisos espaço e tempo para poder plasmar no papel as palavras tal qual saídas de nossas mãos. Sem censor interno que fique à procura do erro. Sem desvio do caudal criativo porque é preciso saber se aqui precisa de dois pontos porque é trecho enumerativo. Isso são assuntos para depois. Nesse momento do criativo, são precisas asas. Que voem alto, sem limites no céu. Que experimentem no silêncio e no ruído, dentro e fora de salas, debaixo de árvores e em pleno sol, com companhias que escrevam a seu lado e em solitário isolamento. No meu vocabulário, isto ainda não é escrever. Isto não tem nome. Isto é penetrar no reino das palavras - onde as palavras vivem, como os poemas, em estado de dicionário, segreda Drummond. É construir a capacidade de ouvi-las dentro de si, na direção que queiram. Aprender a ouvir palavras é uma arte que precisa praticar-se quando se quer escrever.

Como em toda arte, é preciso matéria. Preciso de argila para uma escultura, de tintas para uma pintura, de sons para uma sinfonia. Para escrever, preciso de palavras. E não de quaisquer palavras: daquelas que vivem em silêncio e que, de repente, porque me atento, as ouço e escrevo. Uma folha cheia de palavras: agora sim, com matéria concreta nas mãos, posso escrever. Agora, com esse papel cheio das palavras que busquei (ou me buscaram?), posso olhá-las. Pensá-las. Refleti-las. Corrigi-las. Dar-lhes pontos e vírgulas e parágrafos, para que respirem. Experimentá-las assim, nessa ordem, depois diferente. E depois daquele outro jeito. E fazer escolhas, sem pensar ainda por que, só atenção ao que o som diz. Palavra escrita é som preso em linhas, que precisa da nossa voz para se fazer verdade.

A reflexão atenta sobre a escrita é feita de escolhas. Ao lermos com atenção um trecho de Saramago, ficamos cara a cara com as suas escolhas. Gostamos, ou não - tanto faz. O importante é perceber as opções tomadas, deixá-las ressoar dentro de nós. Aprendemos pelas suas mãos, no uso que faz das palavras e dos espaços silenciosos entre elas. Da mesma forma, encaramos o texto próprio. Aquela junção de palavras que ouvimos e a que demos forma. Agora lapidamos - na maioria das vezes, retiramos mais de metade de todas elas, como um Michelangelo que encontrasse finalmente seu Davi dentro do pedaço enorme de mármore. Na arte de escrever, menos é sempre mais. Quanto mais se retira mais se ganha. Como, então, retirar de onde nada se tem? Como imaginar que um texto nasça do nada, por arte de mágica, e encante pela sua profundidade?

Não, não: é preciso ter escrito para poder escrever.

A base da boa escrita está guardada dentro das várias versões que se faz de um texto, sem considerar que a última hoje seja a definitiva de amanhã. É bom guardar por uns dias, e retomar o texto. Lê-lo em voz alta, para sentir a música que tem (ou não) na retaguarda. Cuidá-lo como a um filho. Não se pode ter pressa para criar um texto.

A boa notícia é que esse é um processo que se aprende; começa a ser trilhado e, com o tempo e a prática, ganha rapidez, ainda quando é só pensamento. Começa-se a escrever enquanto se pensa, e a pensar enquanto se escreve. Adquire-se fluência, tranquilidade, agilidade.

Na prática de alguns esportes, existe uma forma de treino específica - o sparring. Com o mínimo de regras e de arranjos informais, e evitando o número de lesões, o sparring é uma forma de colocar teorias aprendidas em prática. O sparring partner, ou parceiro de treino, é contratado não como adversário, mas como um meio de aperfeiçoar a técnica. Também na escrita um partner sparring é algo de imenso valor. Alguém que, com recursos técnicos e experiência prática, auxilia o praticante a esmerar-se no aperfeiçoamento técnico e formal dessa arte. Um sparring partner da escrita lê e comenta, sugere e corrige, apoia e fundamenta.

A escola é um terreno propício para a atividade do writing sparring. O professor, com um domínio esmerado da arte da escrita, é o parceiro ideal e privilegiado de seus alunos. Lê e comenta, sugere e corrige, apoia e fundamenta. Vê crescer, diante de seus olhos, as capacidades discursivas, poéticas, narrativas e o longo etcetera que cabe no domínio da palavra.

Para isso, no entanto, é preciso que se prepare; é preciso que ele mesmo trilhe com antecedência os caminhos que quer ver seus alunos trilharem; é preciso que se aventure. O domínio da arte está ligado inexoravelmente à sua prática, e o professor que não pratica (ou seja, que não escreve, e reescreve, e busca ele mesmo a sua voz) não conseguirá ser esse parceiro que orienta, nutre e estimula. E precisa, ele próprio, de um parceiro.

Ao longo do tempo, chegarão desafios que se guardarão insatisfeitos e incompletos por dentro de cadernos. Há de chegar o seu dia. Como chegarão os nossos, se nos mantivermos atentos à sua espera, confiantes na sua chegada e gratos pela sua existência.