31/08/2015

Ser

No início, quando ainda nem sequer era o Verbo, pareciam muitos, e indistintos. Vestidos da mesma forma, sentados em carteiras iguais, ocupando salas idênticas. As horas pareciam as mesmas, as idas e as vindas idem, as saídas e as entradas repetições quase lineares.

Tentei aprender-lhes os nomes todos logo no primeiro dia. Frustrei-me, claro. A memória ainda não falha, mas tem limites. E afinal é disto que se trata: de limites que podemos galgar, atravessar qual areias de deserto, pedindo licença, com gentileza, para avançar mais um pouco, até começar a perceber uma espécie de trama fina de intimidade em processo de formação. Em pouco, pouquíssimo tempo. Não sei se haverá algo mais luminoso.

Tiramos os quês, as explicações, as palavras desnecessárias da escrita. Abriram-se os porões das propostas, e lá foram elas, acolhidas com destemor e abertura. Cada vez que acontece, eu me vejo nadando nas águas dos milagres humanos. Não tem coisa igual.

E bastou menos de um mês. Não para aprender os 360 nomes diferentes dessas pessoas novas que agora povoam a minha vida, nem de saber com certeza inabalável qual corresponde a quem. Mas bastou um mês para que a ilusão da aparência idêntica abrisse espaço para as diferenças e as peculiaridades - as grandes e pequenas coisas da identidade de cada um, esboçadas em gestos, em olhares, em tropeços aqui e ali, tudo quase invisível. Bastou um mês para que se estabelecesse, em meio a correrias de sala para sala e bons dias de sorriso aberto, um reconhecimento e um esteio de amizade e afeto. Daqueles que valem tudo na vida. Como, assim, não ser e se declarar feliz?


Foto: Giovani Ferreira






16/08/2015

Calma, vaca!

Sabe aqueles dias em que você chega à conclusão de que talvez a humanidade esteja perdida mesmo? Hoje é um desses.

Eu estranho, há anos, essa mania de energético. Cada vez parece mais impossível encarar a vida sem um estimulante qualquer. O paladar vai-se, e a noção das coisas junto. Assim, inocentemente, dentro de uma latinha charmosa.

Hoje dei de caras com o antídoto do Red Bull: a Relax Cow. Em vez de precisar de energia, e de se tornar um Touro Vermelho, você precisa relaxar e se acalmar? A salvação chegou: você toma uma Vaca Calma e tá tudo resolvido.

Eu sei que tenho amigos que se queixam de que penso demais, de que levo tudo ao pé da letra, de que às vezes faz parte deixar as coisas passarem. Pois eu parto do princípio de que, se está escrito, e é com letras, é para olhar para elas - e pensar. Essa faculdade tão fascinante que nos distingue dos outros animais, e nos permite fazer aquilo que Aristóteles resumiu numa frase que vou citar de cor: se você tem capacidade para fazer uma coisa, também tem capacidade para não a fazer. Depende é do que você pensa, e do que você decide depois de pensar nas coisas - mas, ó céus, como dói pensar! Como desacomoda, como incomoda, como fraciona, como nos desdobra diante dos olhos um mundo que preferimos não ver...

Para acalmar um Touro Vermelho, só uma Vaca Calma. E deixe pra lá todas as mensagens subliminares embutidas, das machistas às demais, aquelas que poderiam dizer-lhe que você é apenas um ser fácil e pateticamente manipulável.

Ou então preste atenção às linhas e às entrelinhas (faça um curso de Análise do Discurso se começar a se confundir), e faça escolhas a partir das suas conclusões. Os que prometem "esfriar a sua mente" em 296 mililitros de estupidez enlatada, prescindindo do seu esforço, da sua busca, da sua posição e do seu afeto, querem você assim: uma Vaca Calma que não incomode, que não dê trabalho, que se contente em seguir a boiada para onde ela for. Ainda que seja o matadouro.

03/08/2015

Presença e companhia

Ainda ontem me disseram que importante mesmo é cultivar o estado de presença. Gosto de observar a maneira como as palavras se dobram à vontade do freguês, rindo-se sorrateiras daquilo que nem vemos: que as maneiras de as usarmos altera, silenciosa e quietamente, a maneira como pensamos, como vemos o mundo, como nos oferecemos e recebemos o outro.
Estamos todos à procura de presenças – de estarmos presentes para nos sentirmos úteis, de querermos o outro presente para estarmos seguros, levantando a mão afoitos e quase que gritando “presente!” quando alguém duvida que não estejamos engajados. Queremos ser presentes na vida de nossos filhos, ensinar-lhes a importância de viver o presente, sabendo que o passado já foi e o futuro a Deus pertence.
Fui cavoucar a palavra, já tarde da noite. Presença deriva da palavra praesentia. Surgiu com a junção das palavras prae (à frente) e esse (estar, ser). Presença, portanto, é estar à frente. Ali adiante. Presença não é estar lado a lado. E nessa nossa obsessão moderna pela presença, pela busca incessante por estar presente nas coisas e nas pessoas, nem vemos que ficamos é distantes, separados por esse “à frente” que estabelece uma linha entre eu e o outro, feita de tempo e de espaço.
Talvez estejamos é necessitados de companhia. Em vez da miragem de uma mão estendida, dedos palpáveis e quentes ao seu lado. O que lhe parece?
Companhia também é uma palavra latina, e deriva de compania; está formada porcom (com) e panis (pão). Companhia é aquele estado em que as pessoas repartem o pão que têm. Imagino-as lado a lado, olhando-se nos olhos, agradecendo internamente por terem não só o que compartilhar, mas também o com quem. Não estão presentes, estão em companhia. Pode ser em silêncio, pode ser em conversa animada, diante de um por do sol ou dentro de um elevador apinhado. Quem seu pão coloca na mão alheia, e dela recebe o pão que lá existir, está em companhia, e nada mais é preciso.
Como dizia Einstein, só existem duas formas de viver a vida: ou você sabe que não existem milagres, ou você sabe que tudo é um milagre. Isso aprende-se, ensina-se, vive-se – sabe-se quando ainda se é criança, e desaprende-se com essas manias adultas de dar voltas às palavras para fugir ao que é essencial e deter-se no supérfluo.
Nunca é tarde para virar a esquina e decidir tudo ser diferente. Desistir do olhar vulgar que tudo cobre de tédio e insatisfação para vestir os olhos com a cor daquela pequenez que os enche de água agradecida. Talvez o milagre não esteja ainda nessa mudança de olhos – mas chegará, mais cedo ou mais tarde, porque as boas companhias chegam, por afinidade com esse seu novo olhar para a vida, e, de repente, você encontrará ao seu lado uma mão aberta cheia de pão. Aí, então, terá com quem compartilhar o seu pão sabendo que a sua mão e a do outro jamais estarão vazias.


Publicado originalmente no site http://paraentender.com.br/presenca-e-companhia/


12/07/2015

12.07


dentro do mar
anzol de pescador
na beira d'areia
coração rebrotou







06/07/2015

Manipulações, escrita e Dom Quixote

De todas as lições de escrita que recebi, aquela que me disse que o enredo e a trama vivem dentro da personagem, foi a que mais me modificou. Porque a vida imita a arte, e foi fácil ir registrando, em papéis aqui e ali: seja ficção, seja realidade, são as ações que determinam o caráter da personagem. As palavras que pronuncia, infelizmente, arriscam-se a ser ilusão bem (ou mal) tecida.

Aquilo que sabemos de cada personagem pode estar recheado de detalhes vívidos, que nos mostram quem e o que são, ou podemos receber apenas alguns traços gerais, um tanto abstratos, que nos sirvam para delinear um perfil - um perfil sem necessidade de interior. Como um saco vazio.

Tanto na vida quanto na ficção, é preciso criar uns e outros tipos, porque afinal não precisamos saber sobre todos tudo. É preciso, muitas vezes, que o seu Joaquim seja apenas o dono da padaria da esquina, que desconfiemos da sua nacionalidade portuguesa, e que saibamos que se levanta muito cedo para garantir o pão fresco à mesa do desjejum. Não afetará a nossa vida não saber nada além disso - mas certamente apenas esse conhecimento nos rouba a experiência do que é o seu Fernando, de fato e ao completo. Para fins de narrativa, não sendo seu Joaquim personagem relevante, nada a mais se faz necessário.

É isso que distingue personagens centrais de personagens secundárias. A questão é saber quem são umas e quem são as outras. E perceber que a maneira como as tratamos precisa, sim, ser diferente. Às ficcionais, nada acontece quando, ao fechar o romance, ainda temos algumas dúvidas. Quincas Borba, antes de ganhar um romance só seu, foi personagem secundária em outro romance machadiano. Nenhum problema até aqui - se o nosso domínio for a escrita. Se nosso campo for a realidade, pode iludir-nos a vida sermos conduzidos pela conversa vazia de quem se diz profundidade. 

As personagens secundárias precisam de poucos traços, porque a sua existência enquanto tipos nos basta - podemos chamá-las de planas, porque é aquilo: só têm perfil. As que têm relevância para a trama, ao contrário, demandam um preenchimento consistente, quente, pulsante, cheio de nuances psicológicas que nos permitam conhecê-las melhor do que a nós mesmos, ou quase. São as personagens redondas, cheias de conteúdos.

Sancho Pança e Dom Quixote podem ser nossos exemplos. Cervantes não escreveu apenas uma paródia humorosa aos romances de cavalaria medievais. Cervantes está atualíssimo, porque escreve uma paródia à importância que damos às coisas, às pessoas e àquilo que elas nos mostram de si mesmas.

Sancho Pança é a personagem da qual Quixote depende para estar encarnado. Raramente nos lembramos disso. Dom Quixote nos encanta: o sonhador, o visionário... Mas é Sancho quem lava, passa, cozinha e se preocupa com seriedade e constância das coisas "pequenas" da vida de seu amo. Amiúde não percebe a sua real importância, e mesmo exasperando-se com a testarudez de seu senhor, permanece junto a ele, fiel e amoroso como um cão perdigueiro. Conhecemos, de Sancho, não só o seu exterior baixo, gordinho e montado num burrico, mas também e sobretudo o seu interior - a sua bondade, a sua perspicácia um tanto tosca, a sua lealdade, a sua falta de senso de humor, a sua capacidade de enxergar as coisas da forma reta e lisa que são. Acreditamos em Sancho. E acreditamos porque a pena de Cervantes, lá nos idos do século XVII, nos faz acreditar. Acreditamos porque dele sabemos as coisas importantes que precisamos saber das pessoas nas quais acreditamos.

Também o que sabemos de Quixote é o que o autor espanhol escolhe oferecer-nos - e ele escolhe conduzir-nos engenhosamente a leitura e dar-nos apenas traços vagos de seu "herói". A visão descontrolada, as alucinações, a valentia questionável: não há traços internos reais onde possamos nos agarrar, porque tudo em Quixote é egocêntrico, desmesurado, ambíguo e abstrato. Somos jogados nos moinhos de vento e, embora não acreditemos, como Quixote, que combatamos monstros, aceitamos a sua megalomania. Não acreditamos em Quixote, até porque ele não nos dá nenhum motivo para isso, mas aceitamos, e gostamos da sua companhia, sentimos uma suave condescendência e solidariedade para com a sua "mansa" loucura, sem perceber o buraco para onde nos arrastam as alucinações mentirosas de quem se acredita acima da verdade do mundo.

Quixote é o império da ilusão. Nada do que diz e pensa é verdade, e pouco do que faz tem impacto real e duradouro sobre o mundo. Ainda assim, é a ele que voltamos os olhos e pensamos "ainda bem que existem sonhadores!". Porém, Quixote não é um sonhador, mas um ilusionista de si mesmo, um ser que de si pouco revela porque toda a sua parafernália delirante e entusiasmada é criação doentia de sua própria mente. Acredita ter o valor que não tem, ver o que não existe, lutar pelo que não tem validade. E nós aceitamos e meneamos a cabeça, entra século, sai século, granjeando a esse tipo de construção de pessoa (perdão, de personagem) o espaço e a importância que ela não tem. E, enquanto isso, os Sanchos permanecem sob luz secundária, elogiados de forma tímida pela sua dissolução no sonho alheio, ainda que nos incomode silenciosamente a sua dedicação canina e sua inamovível sensação de serem indispensáveis à manutenção da vida dos Quixotes. Por muito que saibam que Dulcineia não é dama e nem Rocinante maravilhoso alazão, é quase que uma condena que levem seus Quixotes a bom porto - ou seja, de volta ao lugar de onde saíram.




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03/07/2015

No prelo 1

Ao levantar-se da mesa, Joice apoiou-se na quina. Fechou os olhos com força e a tontura foi-se. Olhou para o lado para ver se ele reparara, mas ele estava absorto, aquela cena tão lugar comum de quem está ao lado perdido em distâncias pessoais. Deu quatro passos na direção da porta e virou-se para entrar no quarto.

Agarrou a maleta guardada debaixo da cama, pronta para caso necessário de fuga à meia noite. Pena afinal ser de dia, pensou. Deslizou os olhos pela cama, pelas venezianas semiabertas, pela luminosidade a escorrer pelas frestas. A brisa fazendo tremer a beirada da cortina branca. A colcha de flores cada vez mais miúdas. Em pouco tempo só restaria o branco.

Voltou à sala e olhou-o ainda uma vez. A expressão igual à de sempre, zombeteira no canto suspenso das sobrancelhas, a frase feita não seja boba, sente-se aqui ao meu lado, vamos, porque não pode dar-me o que quero e parar de fazer cena? Paira no espaço, essa coisa que se espalha pelo pescoço de Joice como grade. Pensa nas meias penduradas pelo fio. Nas plantas em volta das foices no quintal. No reflexo do espelho na claustrofobia do amanhecer. E a atmosfera densa abate-se do teto ao chão, madeira descascando verniz velho. Joice abriu a porta e saiu, antes que caísse sobre ela.

Susteve o último passo, ainda a ocupação com o outro. Mas o teto está no mesmo lugar, como ele à mesa, alheio, porque nada daquilo é dele. E Joice respira do fundo das vísceras e dentro da maleta os cadernos chacoalham como pedras do caminho. 

Uma a uma, meses depois, Joice retirou-as de dentro da maleta, as páginas parecendo pétalas desfolhadas e secas, pálidas e trêmulas no início da leitura, descarnadas em pouco tempo. É assim, o seu relato, entre o pálido, o trêmulo e o descarnado. E é a ela que este livro dá forma, na primeira pessoa. É ela, Joice, a mulher que escreve do fundo.

continua...






Imagem: Prensa de Gutenberg, o que legou a multiplicação.





02/06/2015

Dois apontamentos sobre Africa Africans

1) Tenho um amigo pintor, talentoso que só, com quem aprendo muitas coisas. Dia desses, disse-me que, considerando-se a ignorância, a mediocridade pode ser um grande avanço. Ontem mesmo, ofereceu-me mais uma afirmação: só há duas coisas pelas quais somos responsáveis, a atitude e a quantidade. A qualidade não nos pertence. Ora bem.

À entrada da exposição Africa Africans, que ocupa um espaço amplíssimo do Museu AfroBrasil, há uma sala de "artes primeiras". Esse é o termo que o curador Emanoel Araújo muito bem usou, numa forma de arrastá-las para longe dessa mania que temos de chamá-las de primitivas, e assim relegá-las a um confortável pano de fundo sem contornos atuais.

As "artes primeiras" são aquelas que, na minha prática pedagógica, por vezes intimidam, por vezes assustam, tem aqueles a quem repugnam, como que são repelidas pelo nosso senso "ocidental" de olhar o mundo. Deixar-se entrar nos domínios dessas "artes primeiras" é sair da ignorância. E, enquanto não se chega a outro lado, estaciona-se na mediocridade. Que é aquele estado em que começa a saber-se que o saber é infinito, incomensurável, plural, irrestrito, livre e dinâmico. E, assim que se começa a entrar nesse outro domínio, não há como: algo transforma e modifica a nossa atitude. E, assim, dá-se um passo adiante da mediocridade - e que passo!

Já a quantidade vem com o tempo, seu aliado. A seguir a essa sala das artes primeiras, começam as obras dos artistas contemporâneos. Prefiro assim, sem o epíteto "africanos", que eu não atino a saber qual relevo signifique. Basta-me o contemporâneo. Mesmo que me aflore uma dúvida se estaremos, mesmo, ocupando um mesmo tempo, ainda que variados espaços.

Passo pelas fotografias impressionantes de Alfred Weidinger, retratos de reis de olhos únicos. Ando devagar e sem rumo definido - um ar de caos muito particular que tem este museu, e que me encanta sempre, porque ser único e múltiplo ao mesmo tempo. Paro diante dos corpos que se interpenetram, um por dentro do outro, outro por fora do um, do daomeano Rémi Samuz. Não há ruídos, são muitas falas, neste seres sem rosto e nem carne. E elas são minhas. E suas.

2) Caminho pelas ruas desta cidade grande. A África está em todo lado. Dentro e fora do museu. Por dentro das pessoas. Por baixo delas. Em volta, acima e embaixo. Entrar no museu ajuda a ver a vida. Ajuda a perceber-se vida. A encantar-se com o poder de leitura, digestão, substanciação e alimento que um ser humano oferece a outro ser humano.

Caminho pelas ruas e vejo a África em cada pedaço de chão. Porque ela é, mais do que está. Assim como esses artistas, de lugares tão distantes quanto Gana ou Madagascar, me estão, nos lugares da alma que reservo com ardor àqueles que, saindo a passos largos da mediocridade, entram nesse lugar para onde gosto de olhar, e que se chama verdade humana.

São eles que nos afastam da mediocridade. São eles que nos agarram as mãos e nos transformam os horrores em sonhos. Porque os sonhos engravidam-se e essas mãos que se precisam surgem de onde menos se espera. Talvez seja para isso que a arte existe - porque nos torna mais humanos, como bem disse Antonio Candido, mas também porque nos torna menos medíocres, menos ignorantes e mais capazes de afeto.




Africa Africans
Museu Afro Brasil/Parque do Ibirapuera/Portão 10
Visitação até 30/8/2015 Patrocínio Companhia Paulista de Parcerias – CPP, Odebrecht, Itaú Realização Museu Afro Brasil, Governo do Estado de São Paulo – Secretaria da Cultura, Ministério da Cultura – Lei de Incentivo à Cultura

Imagens
Painel de Hector Sonon, do Benim, à entrada da exposição Africa Africans.
Rémi Samuz, do Benim
Bruce Clarke, da Inglaterra/África do Sul
Fotografias de Cândido Ribeiro







25/05/2015

Segunda feira

Plena manhã de segunda feira. Acordo com uma estranha e inquietante vontade de rotina. De que o dia se organize sem a minha particular intervenção. Que não precise exercitar essas dádivas que hoje me cansam só de lembrar, pensar no que é preciso fazer, quero-ou-não-quero, devo-ou-não-devo. Só uma coisa, e depois outra, e depois mais uma, cada uma com tempos e lugares e formas estabelecidas em algum tempo que não seja hoje. Uma rotina, por favor.

E eu não sei acordar desse jeito. Não sei dialogar com essa urgência. E parece-me melhor descobrir de onde vem, e quem sabe acalmar o espírito.

Pois rotina, na realidade, é muito o contrário do que pensamos.

Só há rotina quando algo é rompido - por isso seu ancestral linguístico é rupta - um caminho aberto à força. Não nos é natural a rotina, porque não nos é natural querer romper. (Começo a gostar do que encontro.) E o princípio da rotina exige que abramos caminhos à força, que nossos braços se ocupem em rumpere - em quebrar, em romper.

E lá estamos nós com o tal caminho aberto à força. E começamos a trilhá-lo uma e outra vez. Os franceses ocuparam-se em transformar aquela rupta em route, ou seja, rota. Em pouco tempo, de tanto trilhá-lo, porque deve ter sido mais fácil do que andar pelos lados intransitáveis, nova metamorfose: de route, routine - uma trilha batida, um curso costumeiro de ação. Agora, sim, a velha conhecida rotina.

Essa vontade que nos dá, muito repentinamente, de querermos uma rotina, é no fundo uma vontade enganosa. Parece que o que queremos é o encontro de um trilho, e de por ele seguir com ilusório conforto, sem precisar pensar muito a respeito. Mas não.

É outra coisa.

É querermos abrir caminhos novos com a força da nossa vontade. Esteja essa vontade nos braços, nos pés, nas mentes ou dentro do nosso coração. Algo em nós clama por rotina: algo em nós clama por transformação e possibilidade. 

E assim se começa uma segunda feira, descobrindo que por trás do que se quer há muito mais do que se pensa.

07/05/2015

Anatomia da metade

Tem gente com horror a metades. Metades de frutas. Metades de chocolates. Metades de pães na chapa. Se me pedem "me dá uma metade" a minha tendência é dar tudo. Ou não dar nada. Ninguém merece metades.

E nem eu. Por isso insisto em viver inteiros. Os inteiros me atraem. E as metades me espantam. Passei muitos anos sem saber que existiam aqueles que se conformam com metades. Esses, também me espantam.

Quem procura metades, deixa outras metades abandonadas do lado de lá. Quem queira a vida do lado do inteiro, que venha e bata à porta: abrir-se-á automaticamente, será um susto talvez, mas é que inteiros querem-se inteiros e querem inteiros ao seu redor. Doam-se todos, ou não se doam nada. Abrem-se todos, ou não se abrem nada. É uma via de mão dupla, aliás - a doação precisa de dois lados, a abertura a mesma coisa. E deve ser assunto importante, porque de Pessoa a Gullar, e ainda Clarice e também Montenegro, cada um por inteiro e a seu próprio modo, disseram coisas sobre o assunto. 

Não há receitas para ser inteiro. Em compensação, há uma porção de desculpas para se ser metade. Voilá.

O pior talvez é quando a metade não é a do lado esquerdo ou direito, mas a metade de cima. A que boia à superfície, ponta de iceberg à espera do mergulho que constate a enormidade do que vive por baixo. A metade da superfície é coisa pouca, bobagem, veja bem. Tem quem se contente com ela, e mesmo sentindo no estômago a ânsia do mergulho, respira como ser educado para não ser inteiro, e carrega seus todos pedaços de um lado ao outro, de um mar ao outro, de uma mesa à outra. Pedaços são como farrapos, e farrapos são espécimes em estado de esgarçamento. Merecem nossa compreensão, mas raramente a nossa presença. O risco é de contágio.

Pior ainda são as metades que nos arranca a vida. As que perdemos pelo caminho e precisamos voltar, e recolher, tratar, cuidar, alimentar e fazer reviver. As que se furtaram às armadilhas e ficaram combalidas, como velhos voltados da guerra, alucinando nas madrugadas com medo das bombas prestes a explodir aos seus pés. Os pés dessas velhas metades precisam de afeto. De paciência, de ouvido, de afago. E de quem os ajude a andar sobre seus próprios passos, e reencontrar as partes que faltam, as metades tão importantes que as velhas senhoras em carruagens de ouro levaram à sua passagem prometendo o que jamais cumpririam.

Mas ainda as há piores. Há as metades que ficaram à espera. Ficar à espera, para uma metade, é um estado sombrio. Porque a metade que está à espera não sabe que a sua espera é inútil. Que aquilo que a outra metade alcançou, ela jamais alcançará. Essa metade torna-se invisível - e a tal ponto, ao fim de um tempo, que a metade visível se convence ela mesma de que a outra não existe. E, aí sim, é o fim. Porque as metades precisam da visita da luz do sol e do olhar do outro, que são na verdade a mesma coisa, parecendo serem coisas diferentes.

Com a passagem das horas, não há dia que não nasça. Não há semente que não cresça - a não ser aquelas caídas por engano em meio às pedras, e mesmo essas podem recuperar-se, se forem valiosas a ponto de valerem o tempo de voltar e recolhê-las. Porque as coisas inteiras, quando as suas metades se reencontram, espalham calor e conforto ao seu redor, e é de muito conforto e calor que os corações de todos nós precisam.


28/04/2015

Um pouco de inutilidade

L. anda cansada. Caem-lhe as pálpebras por cima dos olhos ao tentar ler um parágrafo daquele livro que jura estar amando ler. A boca escancara-se em bocejo assim que se senta para assistir qualquer coisa em uma tela, e o corpo amalgama-se ao sofá com uma velocidade surpreendente. A culpa é tua, diz, esse documentário lento, em preto e branco... Andamos todos cansados, digo-lhe. E calo-me. Há pouco a dizer agora.

Eu ando cansada das notícias, internas e externas, e da sensação de incapacidade de realizar qualquer coisa que faça algum sentido. Que ponha fim a alguma dor. Vulcões no Chile e terremotos em Katmandu imobilizam-se dentro de uma gruta fechada - essas são palavras de L., não minhas. As minhas chegam na sequência: O que posso, e faço, é voltar-me para o legado das palavras. Às vezes as coisas inúteis são as que nos salvam da crueldade à solta pelo mundo. (Mas dizes que os vulcões são cruéis?! Não, L. Na verdade já estava falando de outras coisas. Acho que te perdeste entre os teus pensamentos e os meus. Sim, tens razão, somos um emaranhado e às vezes é difícil saber quem pensamos o que. Ou quando. Ou por que. Ou... L. por favor cala-te um pouco, deixa-me sozinha com o que penso. Sim, desculpa.)

Mas então eu falava das coisas inúteis. Como a toponímia. A toponímia é um ramo da onomástica, aquela ciência que a tudo dá nome, de mim a você, à sua rua, à maternidade onde você nasceu e ao cemitério onde será depositado. A toponímia dá nome a lugares, e estuda-lhes a origem e a evolução. Tem um pezinho na etimologia, e também se relaciona com a geografia, a história, a arqueologia. Essas coisas que se ligam a outras até se embrenharem a ponto de nunca mais se desvencilharem são muito entusiasmantes, L. 

Pois precisei hoje desta palavra (não me interrompas) para dar a um texto encomendado um ar mais culto e sério. Em vez de "o nome dos rios", fui à procura de algo mais exato. Pensei que topônimo seria já bastante preciso. Mas não. E isso porque a precisão é algo que nos foge dos dedos como água misturada a areia fina. É difícil ser preciso. É uma conquista conseguir ser preciso. Accurate, como dizem os ingleses, diz L. Sim, accurate.

Descubro uma sequência de nomes que com certeza vai povoar a minha noite. Hidrônimos. Limnônimos. Talassonônimos. Orônimos. Corônimos. Uns dão nomes aos rios, outros aos lagos, os terceiros aos mares e oceanos, os seguintes aos montes e outros relevos e os últimos às subdivisões administrativas e de estradas.

Levo para dentro de mim os limnônimos. Digo a palavra em voz alta, enquanto L. fecha os olhos para absorvê-la melhor. De limne, o lago, os nomes dos lagos. Esses lugares que decantam, essa atividade precisa quando as coisas do mundo param de cantar. Esses lugares a quem acudimos em busca de auxílio, porque dentro deles, e ao seu redor, vive o que há de mais antigo. O lugar para onde nos voltamos em busca de silêncio e quietude - as águas paradas do fundo do lago, que deixam de ser armadilha para serem suave contorno. Raramente as palavras que encontras são inúteis, diz L. de dentro de seus olhos fechados. Porque as coisas inúteis estão entre as mais úteis da nossa vida, respondo-lhe. E desejo-lhe boa noite, e eu também fecho os olhos e mergulho para dentro do sono.




08/04/2015

A verdade

Sabemos, todos nós, que a verdade é um bem a ser preservado e garantido. Que, em qualquer circunstância, e mesmo que doa, sempre a dor da verdade é melhor que a da mentira. Sabemos, mas nem sempre praticamos; raramente nos damos conta de que um tanto daquilo que fazemos, não só mas também em nosso papel de educadores, mais mente sobre a realidade do que a apresenta e encara tal qual ela é.

Lembrei-me disso hoje ao ler um parágrafo de The bad seed, um romance da década 50, de autoria de William March: “um botão de rosa de cera ou um pêssego de plástico parecem mais perfeitos, aproximam-se mais daquilo que a mente imagina ser um botão de rosa ou um pêssego, do que o imperfeito original a partir do qual foram modelados”.

A nossa tendência a querer transformar o mundo em um mar de rosas para as crianças, para que elas não se machuquem, onde as coisas não são o que realmente são, cresce a olhos vistos. Impacta-nos de maneiras para as quais ainda não estamos conscientes. Andamos sobre plásticos que imitam madeira, comemos sanduíches que imitam comida, ouvimos músicas eletrônicas que imitam instrumentos de verdade, vemos reproduções de obras de arte como se estivéssemos diante de originais, temos amigos virtuais como se fossem reais, e fazemos um esforço tremendo em parecermos fortes onde somos frágeis.

Um mundo “de verdade” é indispensável à criação de seres humanos sadios. Se são crianças que estão sob o nosso cuidado, o grau de responsabilidade aumenta. As nossas escolhas são as escolhas delas, porque nós somos a referência, e é a partir das janelas que abrimos que elas reconhecerão o mundo habitável. Ou não. Se o que oferecemos não é “verdade”, a vida terá grandes chances de ser uma mentira. E esses futuros adultos terão grandes chances de não reconhecer e distinguir a verdade da mentira. Terão grandes chances de não reconhecer perigos e armadilhas em pessoas, em situações, nas prateleiras dos supermercados, no boteco da esquina. Crianças que não vivenciaram a verdade poderão não reconhecer a mentira mais adiante. Sim, eu sei: você está pensando que essa coisa de verdade é muito relativo. Não é. Uma rosa de verdade não é uma rosa de cera. Um pêssego de plástico não é um pêssego de verdade. Não se faz com ele o que se faz com um pêssego real. Assim como não se faz com pessoas reais o que se faz com simulacros de pessoas num jogo qualquer de computador.

As crianças precisam de verdade. Precisam senti-la, quando pequenas, correndo por entre os seus dedos. Precisam reconhecer a madeira, o algodão, esses elementos que estão à nossa volta de forma natural, e que encontramos e reconhecemos facilmente, em suas várias manifestações. Essas são as coisas verdadeiras na primeira infância – aquelas que existem ao redor, e que podemos reconhecer no seu próprio processo. Um carrinho de madeira, uma boneca de pano.

Crianças pequenas não precisam de andadores que imitem o seu esforço em erguer-se, assumir a humana posição ereta e caminhar pela vida. Precisam da verdade de suas próprias pernas no movimento de profundo equilíbrio que é o andar. Elas vão cair, e vão se levantar, e vão voltar a cair, e joelho esfolado é aprendizado saudável. Crianças não precisam de uma alimentação artificial e cheia de produtos químicos, que além de maltratarem o seu ser físico em formação, lhe alteram a capacidade de perceberem o que é uma cenoura, uma batata, arroz, as beterrabas de verdade.

Parece bobagem? Mas não é. Já sabemos que é de pequenino que se torce o pepino. O aprendizado das escolhas de uma criança começa com aquilo que escolhemos para ela. Quanto mais consciência do que fazemos, e por que fazemos, melhor. O nosso conforto, a nossa “necessidade” não pode tranquilamente sobrepor-se àquilo que é fundamental à criança. A nossa “necessidade” de, recém-paridas, nos reintegrarmos à vida social não pode impactar a criança que acabou de chegar. O show de rock pode esperar para mais tarde, o sambão também, a saída à noite pra festa dos amigos idem. Às vezes, não paramos pra pensar. E às vezes as escolhas têm desdobramentos tristes.

Crianças que se habituam ao mundo virtual desde cedo vão perder a noção do que é relacionar-se com o mundo real. Aliás, com adultos é a mesma coisa. Aprenderão a deslizar seus dedinhos pelas telas dos tablets e dos smartphones antes de terem percebido a textura da areia da praia. É bom ter diversidade? As várias experiências? Certamente um pai ou uma mãe de um dependente químico lhe dirá que não: há experiências que é melhor não ter. E agora, se já teve, é preciso cuidar. É preciso refazer o caminho, passo a passo, redescobrindo o que é mesmo “de verdade” neste mundo. Rodear-se de coisas de verdade. De pessoas de verdade. De sentimentos de verdade. Tirar da frente e dos lados e de dentro tudo o que é mentira, como é mentira o caminho que as drogas oferecem de encontro de si mesmo. Como é mentira decidirmos que nosso filho de 16 ou 17 anos pode sair com o carro porque “ele dirige melhor do que eu!”, ou com ele tomar uma cerveja, e iniciá-lo nesse mundo em que se ganham forças, autonomia, coragem e graça com a ajuda de um ou dois copos.


“De verdade” é o mundo cheio de imperfeições. São amores que não reluzem como ouro, e é assim que nos fazem bem. São situações em que estamos frágeis e nos sentimos à deriva, e firmamos os pés dentro delas lidando com o medo que nos sobrevém. São empregos que desanimam um dia e outro, e nos satisfazem dessa forma. São escolhas erradas que precisam ser refeitas, e dói, e é bom, porque é na dor também que crescemos. São refeições salgadas, a carne que cozinhou demais... e quando nos levantamos da mesa estamos preenchidos. Porque houve mãos de verdade que cortaram as cebolas, houve olhares de verdade que se cruzaram risonhos ao perceber o desastre, houve o riso sincero que todo mal desarma, e que é de verdade, e por isso é bom, e nos faz crescer e ser pessoas melhores no encontro conosco mesmos e com o outro.

01/04/2015

Mentiras e universidades

Cultura é o que nos resta depois de termos esquecido tudo quanto aprendemos.

Entre os muitos escritores e pensadores que o caminho da história esquece, há alguns que, de repente, voltam com força ao nosso pensamento. Ellen Key, a autora da frase que serve de inspiração a este texto, nasceu e viveu na Suécia, na segunda metade do século XIX. Feminista nos tempos em que era preciso ainda lutar por igualdade de sufrágio, Ellen tem importantes textos sobre educação, a liberdade pessoal e o desenvolvimento independente do indivíduo.

E por que Ellen Key a essa hora do dia? Porque a cada vez que se evidencia a falha colossal e coletiva dos nossos sistemas escolares eu corro a ler alguma coisa que me alivie. Dias como estes, em que lemos estarrecidos as notícias sobre a última festa do curso de Medicina da Unesp de Botucatu. As denúncias de abusos e arbitrariedades na recepção aos calouros viraram rotina, em tudo quanto é universidade. As apurações idem. E a defesa também.  

Desta vez, acusam-se os alunos do 6º ano de escolherem recepcionar seus novos colegas vestidos a la Ku Klux Klan. As fotos circulam, e os alunos defendem-se, dizendo que é um erro de interpretação e que não houve preconceito nem intenção de denegrir ninguém. No fundo, não importa muito o que digam, porque as fotos falam por si, contra fatos não há argumentos. A referência a certos personagens está ali, presente, tenha ela sido explicitada com todas as letras ou não, tenha havido ou não consciência por parte de quem usou as fantasias e segurou as tochas. Além do que, como nos ensina a análise do discurso, o fato de se recepcionarem novos integrantes de um curso com uma festa sob o tema "Carrasco" já devia ser suficiente. Tanto os fatos quanto a sua defesa, como se pudessem ser defensáveis, é de espantar. Um pedido de desculpas, geral e irrestrito, seria mais pertinente. Até porque erros fazem parte e o duro é quando não se reconhecem - e, sobretudo, reparam.

Agora, aqui para nós que nem na festa estávamos. Surpreendente mesmo é pensar que esses jovens passaram no mínimo 18 anos sentados em bancos escolares. Foram alfabetizados. Leram. Tiveram horas e horas de aulas de História. Produziram textos, e muito provavelmente algum sobre racismo, sobre preconceito, sobre violência. Prepararam-se para apresentar as suas ideias e justificá-las. Muitos deles possivelmente estudaram em escolas com a preocupação de formar "cidadãos críticos e atuantes". Passaram numa das mais difíceis seleções universitárias do país. Estudaram por já seis anos para se tornarem médicos, e é capaz que, em assustador pouco tempo, muitos de nós depositemos neles confiança, esperança e a própria vida.

Enquanto isso, a sua percepção de acolhimento e diversão é o reencenar um dos mais macabros momentos da história mundial. Não sabiam disso? Não conseguiram ver a similaridade entre as suas fantasias e aquela dos que perseguiam, queimavam e enforcavam negros americanos até há bem pouco tempo? Como assim?! É essa a capacidade que têm de olhar em volta, ler a realidade e propor movimento e interferência?

O trote repete-se ano a ano. Choram-se ano a ano os que morrem, lamentam-se ano a ano os que são assediados e violentados, repudiam-se ano a ano os estupros. E relativiza-se tudo, porque tudo isso são "excessos apenas". Os movimentos para conter essa onda que se aproxima da barbárie são mínimos. Porque atitudes enérgicas são impopulares, e de três opções, duas são mais fáceis: ou se culpam professores do ensino básico, famílias desestruturadas e esse longo etc. que pertence ao passado, ou se encolhem os ombros e se pensa que "no meu tempo também era assim e eu sobrevivi...". 

Uma universidade não é um lugar qualquer. "A história das universidades", diz Otto Maria Carpeaux em um de seus bonitos ensaios, "é a história espiritual das nações". Parece que nos esquecemos, absortos que estamos em decidir se universidades são lugares onde o conhecimento se transmite ou se pesquisa. Deixamos o barco à deriva, esquecendo-nos da responsabilidade que ultrapassa os nossos pequenos gabinetes. E o resultado, a cada trote, nos atropela.





Imagem: Alto-relevo de Hipócrates praticando a sua ciência
O Projeto Gutenberg tem algumas das obras de Ellen Key disponíveis, para quem se interessar. Acesse http://www.gutenberg.org/ebooks/author/502
O ensaio de Otto Maria Carpeaux chama-se "A ideia da universidade" e está disponível em 

27/03/2015

As coisas pequenas

São Paulo, esquina de avenidas, zona sul, pouco passa das seis.

Cansada que estou, dormito a cada farol vermelho. Dou graças que São Paulo seja esse caos de trânsito parado e semáforos de longa espera. Durmo a cada dez minutos, e aos poucos recupero as noites semi dormidas. 

Acordo com um toque leve no braço que esqueci pendurado na janela do carro, e uns olhos de vendedor de bala e chiclete a bordo de uma cadeira de rodas. Olha-me e diz pássaro na gaiola não canta e eu respondo não, lamenta. E nós dois rimos da súbita dramaturgia nascida do adesivo na lateral do meu carro. E ele diz é isso mesmo. E eu respondo verdade, quem está encarcerado não canta. E ele diz só dois cantaram. Eu pergunto quem? e desconfio entre parênteses que a origem seja bíblica e ele sorri e mesmo sem saber o que penso diz Pedro e Tiago. Eu não sei se já estou acordada, mas que fazer a não ser concordar e acrescentar eles cantavam da forma que se deve. E o homem de olhar manso diz sim, isto é, o Altíssimo. Agora tenho certeza de que já estou acordada, e pergunto-lhe você canta? E ele diz claro, ou você pensa que esta cadeira é minha prisão? Não digo nada porque que poderia eu dizer? e deixo que o sorriso desse nosso encontro escorra até o asfalto e ambos esboçemos uma forma específica de adeus. Se não fosse isso, mulher, não tinha lhe conhecido, e só depois a mão empurra a roda e só então ouço as buzinas, o sinal abriu, o fluxo não para, e eu fecho os olhos porque só pode ser São Paulo distribuindo bênçãos sobre esta cidade cheia de milagre ao rés do chão.

24/03/2015

蛋挞

Dan ta: é assim que se chamam, lá em Macau, os pastéis de nata. A capacidade expansionista portuguesa mantém-se firme naquilo que ensina os outros a comerem. Desde 1837, quando os pastéis foram inventados para garantir a subsistência dos clérigos do Mosteiro dos Jerônimos, é a mesma coisa. Talvez a maior diferença seja que, naquela época, o trânsito entre Lisboa e Belém ainda acontecia de barco, e agora vai-se de carro ou comboio. Ou bicicleta, como cada vez mais pessoas escolhem.

É difícil encontrar bons pastéis de nata (erroneamente chamados de Belém, que esses são só os que lá são feitos, em Belém) pelo Brasil. Difícil, mas não impossível: está aí a prova fotográfica, que só não consegue captar-lhes a temperatura (entre morno e quente), a textura (entre firme e desfazendo-se) e o paladar (na medida exata de açúcar). O problema é a capacidade calórica, ouvi ao meu lado. Realmente. Até porque não é possível comer só um.

Os pastéis de Belém, depois copiados por todo o planeta, estão no centro de uma dessas disputas monárquicas que nos servem de alento nestes momentos de estupidez política generalizada. Portugal, nem todos sabem, também teve uma guerra civil. Dentro dela estão os pastéis. Fechada a confeitaria que os inventou, venderam a receita a um brasileiro rico que por lá andava, talvez a festejar a independência do Brasil, talvez a ver em que daria o seu D. Pedro querer ser também, além de imperador do Brasil, rei de Portugal.

Parecendo complicado, é simples. Temos D. João VI e Carlota Joaquina de um lado. Do outro, alguns de seus filhos: Pedro, Miguel e Isabel. Sem saber muito bem o que fazer com esse Pedro que declarara a independência brasileira e com esse Miguel que pouco pulso parecia ter, D. João entrega a regência do trono a Isabel, que, entretanto, decide reger o trono em nome da filha de Pedro, que deveria a qualquer momento casar-se com Miguel. Morto D. João em 1826, D. Pedro (I por aqui, IV por Portugal) decide desconsiderar ter sido deserdado e considerado estrangeiro. Além de imperador do Brasil, teve ter lhe soado bem o título de Rei de Portugal. Isabel é-lhe fiel, mas Miguel decide outras coisas, alinhadas com um certo espírito revolucionário que desponta em terras lusas.

Enfim. Uns e outros, como nós simples e plebeus mortais, fartavam-se de pastéis de nata. E o mundo gira, e a fila anda, e como diria Camões, mudam-se as vontades, os tempos e a própria envergadura da mudança. Entre uma revolução e outra, seja em Macau, em Belém, ou à beira da rodovia Castello Branco, na Quinta do Marquês, a marcar o começo de uma noite recente, as marcas acompanham-nos, assim como a história. E mais não digo, que a vantagem da crônica é justamente poder parecer sem sentido.



14/03/2015

15 de março de 1985

Ano passado, 2014, fiquei com uma estranha sensação durante as preparações para os eventos que marcaram o aniversário dos 50 anos do golpe militar. Causou-me estranheza comemorar (é isso que se faz em aniversários)  a ditadura. Não encontro palavra mais inadequada para juntar a ditadura. Como, comemorar o início de uma ditadura? Fiquei-me com um texto engasgado, que nunca saiu do rascunho.

Abre-se amanhã a possibilidade de comemorar o que realmente vale a pena, que são os 30 anos do fim da ditadura, e não o dia de seu começo. Estranho, no entanto, a falta de festa e de bandeiras preparando-se para invadir a rua nessa celebração da liberdade, numa reflexão coletiva visível que dê relevância ao que tem relevância, relembrando o que vale guardar na memória - entre as muitas coisas, aqueles que deram a sua vida e as suas ideias para estarmos onde estamos. Tomo café da manhã lendo o encarte infantil da Folha de São Paulo, que oferece uma linha do tempo com algumas fotos históricas e uns parcos comentários, vá lá. Incomodaria, talvez, lembrar que a atual presidente ergueu-se dramática e intensamente contra esse regime?

Seria até bem a propósito comemorar esta data nos tempos que correm, e onde vivemos momentos pra lá de obtusos, onde tomamos café lado a lado com aqueles que, por esquecimento ou ignorância histórica, pensam que seriam mais felizes sob ditadura. Talvez pensem que viveriam sobre ela, e estariam a salvo das suas arbitrariedades e atrocidades. Ledo engano. A maioria, em regimes totalitários, vive esmagada sob seus pés.

Aqueles com chances de benesses pessoais num regime ditatorial devem andar num certo silêncio, articulando-se na sombra. Vendo as movimentações nas ruas. Dizendo uma palavra aqui e outra ali. Aproveitando-se das sandices de ex-roqueiros e cia. Esse território sombrio em que agem, velado e vedado, arrepia. É preciso, mesmo, estar alerta. 

Trinta anos é uma porção de anos. Em Portugal, ao tempo das comemorações do trigésimo aniversário da Revolução dos Cravos, que por lá significou o fim de uma longa ditadura, houve também um ressurgimento daqueles que se lembravam, saudosistas e nostálgicos, sem os terem vivido, dos tempos áureos de Salazar. Estão todos lá, até hoje, porque é isso que o processo democrático garante, a voz de todos quando cada um sente necessário. Mas são minoria, porque em algum momento a memória reacende. Em algum momento as trevas voltam a apresentar-se como são. E talvez amanhã alguém retire, da prateleira de uma biblioteca qualquer, um exemplar de "Brasil: nunca mais". Folheando as suas páginas, deparando-se com os registros das torturas do regime, há de virar-se para o colega do lado e dizer: "Cara... isso, nunca mais!". E o amigo, erguendo os olhos do livro que ele mesmo escolheu, há de contar-lhe dessa mulher que um dia, lá longe na Espanha, disse "No pasarán". E eles não passarão.



13/03/2015

Ideias para reformar o Brasil

Tenho alguns amigos, bem intencionados e vivendo propostas de vida bem bacanas, que me dizem que gostariam de importar os políticos da Suécia (ou seus congêneres), porque lá tem tudo o que eles gostariam que tivesse aqui: um povo educado, políticos honestos, vidas civilizadas. Lixeiros com salários equivalentes a R$11.000, casados com veterinárias que ganham apenas um pouco mais do que isso. Mulheres parindo como deve ser, uma minúscula porcentagem de cesáreas. Motoristas que param para pedestres passarem. Ciclovias cheias de ciclistas, inclusive prefeitos e vereadores. Leis obedecidas. Ruas limpas. Enfim.

Logo penso na altíssima taxa de suicídio juvenil de lá, noticiada há anos atrás. Mas me informam que aqui as estatísticas não são confiáveis e que, aliás, há centenas de jovens negros que morrem diariamente nas favelas. Penso em desistir da conversa, e desisto mesmo, porque o rumo da prosa sei lá.

Não sei se esquecemos ou achamos melhor esquecer de onde veio e de onde ainda vem a riqueza do hemisfério norte. Que preço pagamos nós para que lá se viva como se vive. Penso nisso, além daquele óbvio ululante de não conseguirmos nunca limpar a nossa pele desse cheiro de colonizado que se impregnou até os fundilhos da alma.

Mas para isso um outro amigo tem a resposta. Para a minha incapacidade de perceber as coisas. Ele diz-me, quase todos os dias, que eu não posso perceber o que é isso, porque eu não sou brasileira. Eu não sou colonizada. Sou europeia. Agradeço-lhe a deferença, nem sempre atribuída a quem vem desse país limítrofe que é Portugal. Mesmo que me doa, leve e sutilmente, esse ser posta pra fora de. Essa situação de repente estranha de ter sorte e azar de não ser igual a. Essas ambiguidades me confundem os nervos. Mas vá lá. Ainda bem que são todos amigos.

E se for pensar bem, eu posso sentir bem o que é isso, isso de "não ser daqui". Como posso também perceber o outro lado, porque também "não sou de lá". Na verdade, não tenho nem pátria, nem mátria. Talvez culpa da falta de enraizamento que aqueles que se transferiram de país em país e em país reconhecerão quando digo. Nem sou daqui, nem sou de lá, e ao mesmo sou de ambos os lugares. 

Niangoran Bouah é um pensador da Costa do Marfim que deixou como legado, entre muitas outras coisas, um documentário-desabafo chamado "Abbandonez-Nous". Com extremas coerência, clareza, combatividade e coragem, de emocionar mesmo, ele advoga para o continente africano o espaço de trilhar seu próprio caminho. De encontrar as próprias respostas. De ser realmente deixado em paz, como única forma de reverter o estrago causado pelo colonialismo, pelo saque de séculos. O seu grito é um pedido em tom de ordem suprema: "abandone-nos", diz ele ao mundo europeu, a essa colonização que a todo custo quer se reproduzir, porque é da sua natureza, numa manobra perversa onde, a certo momento, o colonizado se sente duplamente inferior: pela colonização em si, e por invejar a situação do colonizador, que apenas está onde está porque ele mesmo, o colonizado, existe nesse posto de alter e auto-desvalorização. Essa "vida perfeita" é às nossas custas, e sequer seria a "nossa vida perfeita". A menos que nosso valores sejam os mesmos. E sinceramente, não podem ser. 

Todas as maravilhas desse outro que saqueou, roubou, adulterou, manipulou e transformou em um simulacro o mundo que encontrou, para Bouah, não têm valor. Para Bouah, o caminho é claro - chegar ao Paraíso, só através da Liberdade.




Foto de Isabela Morales 


09/03/2015

Filhos da primavera

Assim como nós, livros também nascem. São sonhados, curtidos, imaginados. Crescem resguardados dentro de um útero de palavras, como seres que se anunciam a si mesmos. E, um dia, saem de dentro. Ganham as prateleiras das livrarias, as mãos das pessoas, os olhos dos leitores. Este livro, que de forma muito especial nos fala de nascimentos, nasce com a boa estrela das almas generosas.

O gesto de cada mulher e de cada homem que aqui em "Filhos da Primavera" registram momentos tão íntimos e transformadores de suas vidas é uma oferta desprendida e amorosa, a todos nós que os lemos. É possível que eles mesmos não tenham ainda a percepção do quanto é importante esse seu gesto. De quanto a humanidade se nutre de coisas assim, que apenas desejam dizer ao outro que novas formas de nascer, de viver, de pensar são possíveis – e eles dizem: “Veja, se comigo foi possível, e hoje eu sou tão feliz por isso, porque não seria assim com você?”.

Meu filho mais velho, dos sete que tenho a honra de ter trazido à luz na minha própria casa, tem hoje 29 anos. Há quase três décadas, nascer de forma diferente, buscando maneiras que nos libertassem de um sistema em nada humanizador, não era moda entre nós. Não era assunto. Não era matéria de revista, ou jornal. Não se falava de técnicas de massagem, não havia videos, nem doulas, nem bolas, nem panos, nem banheiras facilmente adaptáveis a qualquer lugar. Justamente por isso, talvez no fundo fosse mais simples. Havia a casa, havia a confiança, havia a penumbra e o silêncio, e havia a certeza de receber um ser espiritual na terra de uma forma respeitosa e honesta.

Não ter muitas possibilidades de troca, não ter relatos como estes que aqui se oferecem, não ter exemplos ao lado para referenciar as escolhas, fez com que precisássemos encontrar alicerces internos para seguir adiante e dar à luz não só filhos, mas também ideias, posicionamentos, escolhas viscerais.

É essa visceralidade que assoma aqui e ali nas páginas que você está prestes a ler. A visceralidade transformada em vontade férrea e determinada, em encarar a própria verdade de frente. É lindo de ver o quanto um ser humano pode superar-se, adentrar-se, florir-se para dentro para renovar-se pra fora.

É preciso que construamos em nós a certeza inabalável de que somos responsáveis por nós mesmos. Que as nossas escolhas têm força no momento em que as assumimos e colocamos em marcha, e que a mantêm quando não esmorecemos e nos conectamos com a sua fonte geradora, que vive em nós, e não fora. Que para além de nascerem nossos filhos, nascemos nós outras, renascidas a cada parto. Cada vez mais generosas, mais afetuosas e mais compreensivas.


Ficha técnica
Filhos da primavera
Organizado por Camila Capacle Paiva, Celso Monari e Luiza Paim
Ilustrado por Itaiana Battoni
Contato https://www.facebook.com/filhosdaprimavera?ref=br_rs

02/03/2015

A morte que não é só tua

Penso em ti, Humberto. Nos teus 23 anos. Nos teus pais que te sonharam engenheiro. E não consigo dormir, Humberto, porque a tua morte, sendo única, carrega a voz silenciada de centenas de outras. 

Vejo o teu sorriso estampado na página do jornal. E me pergunto o porquê. Por que tantos Humbertos em tantas festas universitárias. Por que tanto excesso alcoólico, tanta busca desenfreada de perder-se a si mesmo, de diluir-se, tanta necessidade de dar à vida um a-mais que ela parece não ter, tanto subterfúgio de open bar para cada vez fechar-se mais na falta de sentido. 

Gosto de procurar os porquês das coisas, ainda que não os encontre. Ou ainda que o que encontre seja infinitamente pior do que imaginava. Ainda prefiro o travo amargo de me sentir traída pela vida ao vazio inexplicável da vida que não se mostra. E por isso fico cativa do teu rosto na tela do meu computador, Humberto, e tento ver por trás das lentes dos teus óculos escuros o que foi que te faltou, ou o que foi que te sobrou, ou o que foi que te doeu tanto (a falta, a ausência, o vazio?), que te levou para fora do limite da vida quando parecia que apenas o adentravas.

Não serás tu o único responsável, ainda que o sejas na parte que te cabe. Porque eu mesma o sou, a cada vez que nada digo. A cada vez que baixo os olhos. A cada vez que desisto, porque parece mais fácil (mais cômodo) do que insistir. São responsáveis aqueles que te convidaram à festa, aqueles que contigo foram, aqueles que aplaudiram, um a um, os 25 copos de vodca que tomaste em pouco mais de uma hora. São responsáveis os que organizaram a festa, os que arrendaram a chácara, os que transportaram as garrafas, os que as produziram, os que as anunciaram, os que as guardaram, os que as pagaram, os que as serviram, os que delas se aproveitaram para lucrar umas moedas. Cada um com a sua cota de responsabilidade, somos todos, por ação ou omissão, responsáveis pela tua morte, que apenas anuncia, nesta rede de tv aberta que desligamos com um deslizar de pensamento, a epidemia devastadora que se abate sobre nós todos, e que me faz perguntar a que tipo de humanidade afinal pertencemos. Ainda que só a sintamos quando nos esfola a própria pele, esta é uma morte de nós todos. E é por isso, Humberto, que eu limitadamente choro a tua morte - porque poderias ser eu mesma, ou meu filho, meu aluno, meu vizinho, parente, conhecido, amigo, irmão. E assim, nessa proximidade que nos faz a todos irmãos, dói-me mais a tua partida, ainda que nunca tivesse te sabido aqui.

Apago a luz como se apagasse a vida, e junto-me a ti e aos teus, e não fecho os olhos nem durmo. Peço àqueles que te guiam, nessa passagem que fazes, que nos auxiliem a nós que ficamos a que percebamos dos limites os contornos, e deixemos de ignorar as curvas e as pedras do caminho, pintando-as com cores que não são delas. Por nós e pelos que fiquem de ti entre nós, e para que a tua morte não seja um vão a mais na nossa incapacidade de proteger o que precisa e merece ser protegido.

28/01/2015

Contas

Ora digamos que Paula, nesse dia em que chegou de viagem, encolheu o pensamento entre as duas palavras que encontrou escritas no espelho do banheiro: "renuncia, ou desiste".

Estranhou, ficou atônita mesmo, não fazia a menor ideia do que significavam, ou de quem ali as deixara. Os amigos a quem emprestara o apartamento de um quarto só, talvez. Mas seriam para ela? Essa necessidade imperiosa de escolha, pertencia-lhe?

Bateu-me à porta de casa. Sou a vizinha da frente. Meu trabalho consiste em resgatar palavras do limbo de seu não-significado - sou dicionarista, uma espécie de profissão de quem se rodeia de palavras o dia todo, e lhes descobre vida onde só vivem som e grafia. É uma tarefa de vida solitária, a minha, e gosto que me batam à porta de vez em quando.

Além de palavras, gosto também de guardar os tempos precisos. Tenho uma memória privilegiada: é raro esquecer-me de algo que vi, ouvi ou li. Não tenho pressa, na vida, e faço muito do que sou por escrito. Porque os tempos têm a natureza confusa e, se não se anotam as coisas, parecerá que x veio antes de y, quando na realidade quem primeiro chegou foi y. Por isso, para tudo, nestes tempos estranhos em que relógios não têm ponteiros e correm desenfreados e loucos para chegar à hora seguinte, é preciso guardar o tempo preciso.

Dava corda ao relógio da sala quando Paula bateu à porta. De leve, desse jeito envergonhado que ela tem com tudo o que é dela. Pediu-me ajuda. Contou-me do espelho de seu banheiro, e disse-me ter encontrado, entre a linha dos olhos e as comissuras dos lábios, essas palavras que lhe tomaram os olhos. Que diferença existe, perguntou, entre renunciar e desistir?

Ergui a porta do departamento de latim que vive na minha mente. Ambas as palavras guardam o seu início na língua latina. Quer dizer: isso é o que nós achamos. Renúncia, lembrei-me e disse, é a retirada de uma palavra. Renuncio quando nego e repudio o que antes disse. Só renuncia, concluí diante dela, quem alguma vez disse. Renunciar nasce de dentro da palavra nuntiare, que significa informar, declarar, anunciar, todos eles verbos com tendência à objetividade, à ação, à declaração. Quando a nuntiare juntamos o prefixo re, somos levados para trás. Damos marcha a ré. Quem renuncia, dá marcha atrás a sua própria declaração. Isso às vezes é possível, outras é um perigo - há palavras que uma vez ditas, nunca, jamais, podem ser retiradas. Acontece assim às grandes, e incômodas, verdades. Talvez preferíssemos nunca tê-las visto, isto é, dito.

Já desistir parece-se com sua palavra mãe - desistere. De (que é fora) mais sistere (que é o ato de parar, de interromper), em nada repudia o antes dito. Quem desiste, interrompe desde fora um movimento que está. Quem repudia, imobiliza, estagna. Vários motivos podem levar um sujeito a desistir, até mesmo o estado de estupefacção, de sobressalto, de susto, de incompreensão, de estar atônita como vc está, disse-lhe baixinho. É uma interrupção de ação, mais do que uma ação em si, como é o ato de repudiar.

Paula ouviu-me de olhos fechados. Parecia passar, um a um, as pequenas e as grandes renúncias da sua vida. Uma a uma, as desistências. Parecia colocá-las lado a lado, pesando e medindo tudo o que já repudiara e tudo o que deixara estagnar-se. Deixei-a sozinha. Voltei-me para as minhas próprias coisas, e aos poucos os olhos foram-se-me enchendo de água. Renunciar às coisas do mundo e da alma, é das escolhas mais dolorosas e duras de toda uma vida. São elas que nos alteram, às vezes sem que o desejemos, a superfície da pele.

Imagem: Lila Marques


26/01/2015

461

São três anos. Três anos descobrindo uma parte desta cidade que amo há trinta. Aprendi a amar São Paulo nas ruas do seu centro. Morei na Barão de Campinas. Amei, amei mais e mais ainda - meu primeiro filho nasceu na esquina com a Alameda Nothman, ali no lugar mais improvável para trazer em paz um filho ao mundo. 

Depois, Parelheiros - um começo único para o longo período de vida campesina, como diz nosso querido André. Ia e voltava do Butantã, do Pacaembu, de Higienópolis. Meu São Paulo era desse tamanho, e tanto gostava de um lado quanto do outro. Santo Amaro era lugar de passagem, mesmo com a Marina que morava por ali, assim como a Conceição, lá em Guarapiranga. Marina foi-se para São Chico, Conceição que voltas terá dado?, e nós já andávamos pelas terras quentes e pelos bons ares do interior paulista. Outros se foram para outros lados, parece que só o Claret resistiu paulistanamente.

Voltei, pouco e pouco, num processo de reapaixonamento que me ofereceu novas amizades, daquelas que são fortalezas no tempo e no espaço, dimensões que sequer existem - porque São Paulo abre-se em possibilidades que desafiam uma e outra dimensão, e descobrimos que não há tempo para nada, mas a vida é assim mesmo e bom é vivê-la.

De pouco em pouco, foi virando muito. Nesses três anos, aprendi a locomover-me por Santo Amaro. Não sei por que tanta resistência durante tantos anos. Sorrio por dentro quando acerto o nome da rua, e rio despregadamente se ainda por cima acerto o caminho de primeira. Encanto-me com as árvores. Com a sinuosidade das ruas. Com a mistura de casas. Com o tempo que cheira a velho. Com as avenidas que agora, em vez de rios, fluem e refluem carros. Com os lugares pequenos que só a vida de bairro tem. 

E, em meio a tudo isso, ali enorme tantos anos, observo esse Borba Gato da Avenida Santo Amaro, que me parece o antepassado do playmobil, quem sabe a sua inspiração? Intriga-me tanto: repare nas pernas, na saia... é ou não é o homenzinho do brinquedo?! Agradeço quando o sinal fecha e eu posso olhá-lo sem ser de passagem. Júlio Guerra, que o projetou e executou no começo da década de 60, quis usar materiais diferentes daqueles que se usavam em cemitérios. Nada de bronze. Quis coisa que o povo reconhecesse. Usou trilhos de trem como sustentação para o barro, o gesso e o concreto. Revestiu esse gigante de pedras quebradas no quintal de sua casa da avenida João Dias, logo ali na frente. O resultado é essa descomunalidade de 13 metros de altura e 20 toneladas, marco absoluto (ainda que não unânime) de Santo Amaro. Nesse surto de amor por esse bairro que me acolheu tanto nos últimos tempos, só posso mesmo sorrir para o velho bandeirante ao passar. Não tanto por ele, homem bruto de história pouco clara como a de todos os brutos. Mas pela cidade que agreste e suja e confusa e superpovoada e injusta e congestionada abre os braços em todas as direções, e seja pela Bandeirantes, pela Castelo, pela Fernão Dias ou pela Imigrantes, a todos recebe com a mesma possibilidade caótica de riquezas sem par. Antes que seu dia acabe, parabéns, São Paulo!


18/01/2015

A Indonésia em nós


Leio estarrecida os comentários às notícias sobre o fuzilamento de Marco Archer ontem, na Indonésia, tão perto do atentado ao jornal do país que nos legou as palavras egalité, fraternité e liberté. Há uma quarta palavra que parece ter desaparecido do íntimo das pessoas, e que nasceu no mesmo lugar: solidarité.



Solidariedade é um algo inteiro, completo e interdependente. Ser solidário é reconhecer-se no outro, porque o outro é um ser humano igualzinho a você, cada um com as suas alegrias, as suas falhas, as suas fraquezas, as suas conquistas, as suas inconsistências. É saber que aquilo que o outro é, é também o que você mesmo é. Inteira, completa e interdependentemente. Não naquilo que me agrada e que eu mesmo faria, mas até mesmo naquilo que não compreendo. Ser solidário não é concordar, mas é no mínimo ter certeza, absoluta, de que o outro (todos os outros) tem tanto direito à vida quanto eu. Ponto.


Solidariedade demanda compaixão, que por sua vez demanda empatia, que por sua vez demanda pathos, que é basicamente o estado vivo de emoção... Tudo artigo escasso nestes dias em que nos vangloriamos de sermos racionais e objetivos, deixando de perceber o quanto somos manipulados da forma mais vil e estúpida. E não pense apenas nos grandes temas, porque o grande está no pequeno assim como o pequeno está no grande, já o Oriente e a física quântica nos ensinaram.


Não sei se a palavra solidariedade consta da Declaração dos Direitos Humanos, esse documento de uma civilização inteira desesperada por escapar à barbárie exposta com a abertura dos portões de Auschwitz. Se não consta, deveria - porque me parece ser uma boa parte do iceberg invisível das nossas relações. Muito embora a Declaração em si pareça ter sido soterrada pela entropia dominante. Entre em qualquer site de notícias, procure por aquelas que falam do fuzilamento, e mantenha a cabeça no lugar ao ler os comentários.

A bem da verdade, não chega a espantar, nesse nosso Mundo Novo de selfies. O mundo não se reduz mais àquilo que os meus olhos veem (o que já era um senhor problema): o mundo agora reduz-se a mim mesmo sob meu próprio olhar. Nada de "penso, logo existo". Agora é "Me vejo, logo existo". E nem preciso de ninguém, eu mesmo aperto o botão da minha foto, se quiser distância uso até um "pau de selfie" e me legitimo feliz da vida olhando para a imagem que eu mesmo crio e espalho. Os outros... que outros?!

Agora, me espanta. Espanta que a nossa capacidade de irreflexão e de ação automatizada cresça como cresce. Que se torne tão fácil acreditar nas próprias mentiras, e que nada em nós se abale ao repassá-las aos outros (ops... que outros?!). Espanta que a tragédia alheia, que jamais diminuiu a tragédia de ninguém, não se perceba como própria. Que o coração não se aperte ao pensar nesse homem fuzilado. Que nos tenhamos esquecido das atrocidades que essa mesma Indonésia perpetrou contra Timor Leste há tão, mas tão pouco tempo - e justifiquemos a sua ação abjeta apoiados em que "cada país tem as suas leis". Se cada país tem as suas leis, e se estamos à sua mercê, não há o porquê de Je suis charlie, não há o porquê de assinarmos abaixo-assinados com um click da nossa confortável poltrona, para que a violência de hoje na Nigéria tenha um fim. Batendo palmas para a pena de morte na Indonésia, batemos palmas para o fim civilizatório. Em vez de sentirmos, pensarmos e agirmos após refletir sobre ambos movimentos, mandamos um recado claro: sinta, pense e aja. Os outros?! Que outros?!