10/12/2013

Cortinas


Acordo cedo. Talvez as tarefas do dia de hoje tenham me tirado da cama, ou talvez eu precisasse amanhecer de olhos abertos. Pra não errar o caminho. Como diz Rubem Alves no documentário Eu Maior, vão nos acontecendo as coisas que não programamos, e por isso chegamos onde chegamos.

Preciso abster-me, neste fim de ano, de prestar muita atenção à mente inquieta que indaga quais os sentidos, se é que os há, nos rumos que a vida toma. Vou deixá-la passar, à mente, e vou deixar passar os rumos também. Atrás fique o que deva ficar, o que não acompanha, os passos em desequilíbrio. Na vida, como no resto, dá-se o que se tem. Constatação óbvia com que às vezes nos entretemos: as justificativas genéricas não se aplicam a situações específicas, e por isso é preciso cuidado com o equilíbrio entre o que se dá e o que se recebe. Não é bom deixar os outros vazios.

Ontem mesmo, num dos últimos grupos de Escrita Criativa do ano, falávamos de Rubem Alves. Depois de ler um de seus textos, decidimos escrever por associação de ideias, e o ponto de partida foram cortinas. Como uma gota em meio ao nada, uma lágrima que resiste a cair, nem sei se minhas companheiras perceberam, mas as pernas me faltaram. Qualquer coisa à toa, como essas cortinas esvoaçantes na memória, pode me tirar a sensação de ter pernas, e a vantagem é que vou ficando treinada em subir e descer delas. Todos os companheiros de escrita deste ano foram inestimáveis em oferecer-me substâncias, momentos e processos de manter-me em cima das próprias pernas. Sou-lhes grata, nem sabem quanto.

Dessa associação de ideias surgiu o texto que segue abaixo, e que aqui faz as vezes de um convite a que os textos de todos se façam presentes, assim, livremente, sem necessitar que exista sentido. Por associação de ideias, sem compromisso, a não ser com o fluxo da palavra e dos corações em estado de aberto.


"Quando as cortinas da vida se fecharem para Rubem Alves, uma porção de anjos sorridentes estará à sua espera do outro lado. 
Não foi ele quem disse que morrer é estar do outro lado do caminho, mas bem que poderia ter sido. Estar do outro lado do caminho, de vez em quando, seria uma boa distração para quem está do lado de cá das cortinas.
Do lado de lá poder-se-ia, por exemplo, tingi-las com as cores que as nuvens devem ter do outro lado - cores mais etéreas, penumbra mais palpável, menos vincos, menos dobras. Do outro lado do caminho, as cortinas devem ser todas de tecido levíssimo, para que o céu não caia sobre quem ainda não as abriu.
Os santos conseguem atravessá-las, a essas cortinas, quando ainda estão do lado de cá. Deve ser fruto do profundo desprendimento que desenvolvem com os pores do sol, as árvores e a vida deste mundo. Gosto de pensar em desprender-me, mais do que pensar em desapegar-me. Os santos não dão às coisas do mundo a mesma importância que os mortais comuns damos; ficam mais leves, mais transparentes e levitam e flutuam pra lá, e logo depois de volta pra cá. Quando voltam, são capazes de proezas que nós, que não estamos aptos a passear no umbral com tanta naturalidade e franqueza. Como Santa Teresa de Jesus, com o seu "Nada te turbe, nada te espante, solo Dios basta". A minha memória anda perdida atrás das suas próprias cortinas, não consigo lembrar-me do poema inteiro.
Quando Rubem atravessar a cortina, com certeza levará um susto. Talvez espere uma coisa, desconhecida e aterradora, ou desconhecida e iluminadora, e verá que não há nada que já não tenha visto. A verdade é que Rubem anda, há anos, espreitando o outro lado da cortina e trazendo-nos notícias. Só que não sabe disso, e nós apenas intuímos que assim seja."


Feliz terça feira!


04/12/2013

homens com minúscula

Eu devia ter uns 13 ou 14 anos de idade. Fim de outono em Madrid, saio para uma festa com o filho de um amigo de meu pai. Boa família, esclarecida e culta, diplomacia não lembro mais de que país progressista. Vamos a casa de um outro amigo e depois de outro e ainda de outro. Em todas, a empatia entre nós é escassa, pouquíssimo reconhecimento de gostos ou de interesses. "Minha tribo é outra", devo provavelmente ter pensado, mas agora era ir até o final e impedir novos incentivos de meu pai para alargamento de meu campo social.

Na última casa, de onde se sairia finalmente para a tal festa, encontramos um tanto de garotos se divertindo na sala vendo revistas. Sou a única menina desse grupo que já contava com mais de 10 integrantes, e as revistas são todas as mesmas. Playboy. Os meninos me olham com cara de "essa não tem nada do que estas têm" (o que de certa forma era um fato), mas mesmo assim os olhares enviesam e os corpos ameaçam se aproximar. Algo dentro de mim se movimentou, incomodou e explodiu num segundo. Não sei bem de onde, mas uma onda de raiva (provavelmente amparada por uma outra de medo) me fez arrancar as revistas das mãos que passavam perto e sair rua afora, já noite, bairro desconhecido e isolado, numa sensação de impotência imensa diante de um mundo que começava e terminava na falta de respeito e na tocaia do perigo. Foram horas até conseguir chegar a espaços e pessoas reconhecíveis.

Há anos não lembrava dessa cena. Hoje, ao abrir o noticiário e me deparar com a nova campanha da Playboy, recupero o mesmo gosto amargo na boca. Porque tem coisas que não passam, e coisas que não acabam. A estupidez humana, e especialmente a estupidez masculina, é uma delas.

A matéria intitula-se "Playboy sai em defesa dos homens acuados". Tadinhos. São os homens que assinam embaixo de um documento, a "Constituição do homem livre" (sic), da qual constam artigos bem elucidativos, como "sim, adoramos ver uma bela bunda passar" ou "como casamento dá trabalho, deveríamos receber um mês de férias por ano". Valdir Leite, o gênio idealizador da campanha, preocupa-se com os homens que não sabem mais o que fazer no novo mundo dos relacionamentos, onde perderam o protagonismo. É para eles essa revista, porque, ainda segundo Leite, "a Playboy sempre teve um estilo editorial muito forte por conseguir dialogar com o homem inteligente". Passemos adiante sem comentar o paradoxo entre as coisas.

Poderíamos só rir - de desgosto, mas rir, e deixar a caravana passar. Porque, de fato, podemos olhar em volta e reconhecer uma porção de Homens que se comportam como seres humanos e constatar que essa não é a situação total. Mas, e esse é um Mas muito grande, não há como escapar do reconhecimento dos pequenos detalhes que um a um constroem a vida inteira. Não há como escapar nem de um Vinícius que todos amamos mas que teve a petulância de escrever, entre outras coisas, "as feias que me desculpem, mas beleza é fundamental". Nem dessa enxurrada moderna de homens bacanas que têm tanta vontade e se sentem tão capacitados a nos dizerem (mandarem?) como sermos livres, haja visto o texto do auto-denominado libertário Vinícius Cardoso sobre Francisca que poderia ter nascido arquiteta mas era puta. Apesar do texto bem escrito de Cardoso, talvez tendendo ao choque pelo choque mas ainda assim, não há como não sentir que de boas intenções está aquele lugar cheio. Não há como escapar de tantos indícios que resvalam por dentro da ridicularização da "volubilidade do sentimento feminino" ao longo de um dia. Dos homens que prefeririam, lá no fundo, que suas mulheres falassem menos e não "enchessem tanto o saco" com suas cabeças pensantes. Que não se desequilibrassem por não aceitarem as "prerrogativas" da liberdade masculina. Que soubessem ser mais ativas, quando passivas, ou mais passivas, quanto ativas. E daqui já vejo os narizes que se torcem e os pensamentos que se alinham como se em campo de batalha: "ah pronto: tudo pelo politicamente correto, não dá mais nem pra fazer uma piadinha que já caem em cima".

Pois é. Não dá.

Não que não haja salvação: claro que há, porque estamos vivos. Prova disso é que todos os comentários, sejam femininos sejam masculinos, nos vários sites que publicaram a matéria, são taxativos na condenação e, no caso dos comentários masculinos, nem um sequer se reconhece nessa tal de campanha pela "masculinidade sufocada". O problema é sermos todas e todos engolidas  e engolidos por essa atmosfera geral tão antiga e tão presente. Um breve passeio pelos facebooks da vida nos enche de exemplos disso mesmo que nos indigna na campanha da Playboy - e de repente nos flagramos curtindo o comentário imbecil, a foto degradante, a musiquinha preconceituosa, o videozinho malicioso. E depois, não contentes, saímos em rodinhas pra comentar, bem masculina e estupidamente, o quanto aquele cara ali no balcão do bar é bom de cama. Não muito diferente da mesa do lado, em que um homem se compraz em compartilhar com os amigos detalhes da gostosa que ele anda comendo.

Entre uma coisa e a outra, fico me perguntando sobre os filhos e as filhas da gente, e sobre os filhos e as filhas desses homens minúsculos. O quanto, de dentro desse sentimento machista que gesta o pátrio poder, esses homens se reconhecerão nos "cafajestes" que se aproximam de suas meninas com "más intenções". A menos que, claro, olhem para suas filhas com os mesmos olhos enviesados e reclamem das saias que usam e que "depois não se queixe se forem mexer com você".

29/11/2013

As coisas, à distância


A luz vem daquela casinha... Tão pequena, a casa... Pelo menos assim, à distância. Bem sei que as coisas, à distância, parecem às vezes menores do que são quando chegamos perto.

Li um dia desses que a amizade engrandece o mundo. O contrário, aquilo que diminui, inferioriza e/ou degrada, recebe outros nomes. Mesmo assim, às vezes as coisas confundem-se, porque as aparências enganam e o que vemos do mundo, assim à primeira vista, é aquilo que o mundo, as pessoas, as coisas aparentam. E não o que são, lá pelo bem dentro de si mesmas. Não que se escondam - não se conhecem, e portanto não se reconhecem.

Tenho uma amiga, querida e de muitos anos, que sempre e toda vez me abre portas. Leio de uma sentada o ensaio sobre Lessing que ela citou de passagem, numa conversa à mesa do almoço, um desses momentos à toa que me acostumei a receber de braços bem abertos para não perder uma gota. É dele, do Lessing, essa percepção do engrandecimento do mundo que a amizade propicia. Diz ele (ou digo eu, e com a memória relativa desse ensaio que mais devorei do que li) que quando a amizade permeia uma relação, ela se expande e atinge o mundo, os outros, a vida, os espaços coletivos que nos ligam aos outros e eles a nós. Não há esterilidade, quando a amizade, talvez o sentimento que Lessing mais preze, se oferece não só como matéria de construção entre duas pessoas mas como sentido político expansivo e concretizador de um mundo que se torne mais humano. Quando a amizade é aparente (ou no entendimento de Lessing quando se limita a essa intimidade entre dois), e quando deixamos de prestar atenção aos sinais que nos instruem sobre a matéria do que nos rodeia e penetra, o mundo sofre pela insignificância que o atinge. A vida sofre porque é diminuída naquilo que a faz respirar.

É dessas aparências que enganam que lancei mão para escrever a fala que encabeça este texto. Escolho-a hoje, de dentro da adaptação de "Os três fios de ouro do cabelo do diabo", conto dos irmãos Grimm, que escrevi para os alunos do 8º ano B da Escola Waldorf Rudolf Steiner. Apresentaram-na no fim de semana passado.

O menino Empelicado, protagonista da peça, procura seu caminho em meio às árvores, à escuridão e à luz excessiva. Reflete que aquela luz pequena, que vê ao longe em meio à massa que o mundo por vezes aparenta, pode ser algo maior, porque à distância as coisas parecem menores do que são ao nos aproximarmos dela. O contrário acontece também, neste mundo de aparências. O que ao longe nos parece majestoso e pleno, é na proximidade a pequenez do que nunca se pretendeu relevante.

Se por um lado o que parecia pequeno, e na proximidade é imenso, nos enche o coração de esperança e regozijo (sentimentos que precisamos compartilhar com os amigos, e torná-los fala para que tomem sentido humano), o que parecia grande e se revela pequeno ensombrece o nosso dia. Como se depois de uma longa e difícil caminhada chegássemos a uma parede que nada tem atrás de si. Ainda que possamos sentir que por detrás existam cristais, e fontes, e riquezas incomparáveis, a parede é de fato impermeável e outra vez de fato não nos permite passagem. A parede não é a catedral que se anunciava.

Quando o menino Empelicado descobre a grandeza da luz que ao longe era pequena, essa constatação amalgama-se a seu ser sem alardes. Permite que continue a jornada. É a luz, e não seu tamanho, que cumpre a função devida, e o menino segue em frente.

O ensaio de Lessing é de autoria da sempre-presente-nos-últimos-tempos Hannah Arendt. "Homens em tempos sombrios", volume de que faz parte, é uma coleção de biografias de pensamento de uma série de personalidades. No estilo claro, preciso e vigoroso dessa pensadora sem paralelo, as aparências todas são iluminadas, perseguidas e desmanteladas. É um livro de evidências, com a profundidade que é preciso exercitarmos para escaparmos da superficialidade com que o mundo nos rodeia - o mundo das relações em superfície, das experiências em superfície, das opiniões em superfície, do amor em superfície. Parecerá um mergulho no passado, e numa forma de pensar e de agir que parecemos estar perdendo enquanto humanidade. Será preciso ler estes ensaios mais de uma vez, porque não é aparente a sua profundidade, mas verdade, e as coisas profundas em algum momento demandam empenho, esforço e vontade.

O menino Empelicado, na sua saga em busca dos três fios do cabelo do diabo, prova definitiva de que necessita para fazer jus ao seu próprio destino (e do qual não se foge ainda que se tente), atravessa os umbrais das aparências. Um a um, em cores e panos e luzes e sombras, os umbrais revelam-se e são atravessados. As figuras em cena, protagonistas da própria história, enchem-me os olhos de lágrimas, porque também elas atravessam as aparências. Talvez nem o saibam, mas estão ali à nossa frente, inteiras e reais, e em nenhum outro lugar ao mesmo tempo. São, em vez de esperar. Avançam por dentro do texto e do espaço, em direção à profundidade que só o tempo e o trabalho árduo em si mesmos são capazes de realizar. É admirável, penso.

Estes seres em cena, chamam-se a si mesmos não só "colegas", mas também "amigos". Estão lado a lado nessa jornada de descoberta dos seus destinos. Não é só entre si que compartilham a alegria de estarem vivos muito mais do que as mazelas das suas superfícies - é com todos nós, que os ouvimos e vemos, às suas verdades aliviadas do corpo aparente. Além da esmagadora superficialidade da vida que vivemos fora de nossos corpos, o mundo caminha, através da ação que empreendemos e é assim, creio, que a humanidade se reconstrói.

28/11/2013

Merecimento


Coisa simples, merecer. Há milênios atende pelo mesmo: ser digno de. A dignidade de decere, sua palavra mãe, que corresponde em nossos dias a "caber no lugar certo". De onde se depreende que merecer algo, ser digno de algo, está relacionado a que esse algo caiba em si mesmo.

Pois bem. Há coisas que não cabem. Umas, porque são grandes demais. Outras, porque são pequenas demais. É destas, as pequenas demais, que falo. Nestas, sobram espaços vazios; são vácuo assustador. Tornam-se escuros e sombrios, com o passar do tempo, esses espaços que o mundo da sombra se ocupa em procurar pelo mundo, e em rechear assim que os encontra.

Desses espaços vazios, há aqueles que se observam e percebem ao longe. São provavelmente os piores. Porque se sabem vazios, e não se ocupam. Por determinação. Ou medo. Ou cegueira. Fincam-se os pés no chão enquanto se diz "meu", e a vida segue em frente. Difícil saber ao certo - esses espaços não são os meus, nem são meus os olhos que observam e nada fazem. 

Mas tenho em mim a construção destes espaços vazios. Como os espaços vazios de um amante que nada desse e tudo tomasse, do presente não pensado ao tempo todo roubado. Como os espaços vazios da escavação a peito aberto diante de olhos fechados, olhos sem umidade a interditar os encontros líquidos. Olho as mãos que tenho diante de mim, e às vezes, como agora, vejo o quanto querem salvar do espaço vazio uma gota que seja de luz. Desaparecem dentro dele, porque para tudo isso que é pequeno não há espaço onde se caiba, mas aí estão, e não posso negá-las, porque é diante dos meus olhos que não acreditam que as minhas mãos dançam a sua agonia convulsiva. E é de lá que as arranco, com a força do vento que me guia, antes que percam a pele, antes que percam o tato, antes que percam a mim mesma.

Estes são os espaços vazios da ausência de humanidade. Nem sempre são questão de merecimento. Às vezes, são pura provação.


A meio da Marginal

a propósito da apresentação de "Os três fios de ouro do cabelo do diabo" pelo 8º B da Escola Rudolf Steiner

Paro a meio da Marginal porque preciso escrever. 

Desci a Rebouças torcendo para que os sinais fechassem e se mantivessem fechados, para poder agarrar-me a estes remos que são a caneta e o papel num dia como hoje, de naufrágio. Quero que as palavras se condensem à minha volta, e que ainda nem pensamento fluam no instante em que são sopradas e eu as ouço. Este meu naufrágio não é de chuva, mas de lágrimas. Do tipo que rega e frutifica, não do que resseca e esteriliza. Nem sempre as lágrimas lavam a alma. Às vezes tornam-na mais porosa, em outras são muros impermeáveis. Estas, de hoje, são do tipo que abre os espaços da alma para que ela seja mais.

Retomo a marcha e perco o caminho. Preciso do retorno. Encontro-o, e perco-me de novo. Vim parar, sem saber bem como, na Raposo. O que afinal é uma sorte, porque o trânsito está de tal forma lento que posso escrever à vontade. Tudo vale a pena. 

E tudo de qualquer forma valeria, porque as almas que se esboçam aqui à minha volta não são pequenas. Estão ainda presentes, esses seres flutuantes, ao meu lado. Vestiram-se de outras, há poucas horas, em cima de um palco. Vestiram-se com as palavras que eu mesma lhes escolhi, e que subitamente ganharam o espaço e o tempo, e se construíram dentro de mim mais sonoridades do que antes. Um alumbramento.

Carro parado outra vez. Agora sob a chuva miúda que se infiltra pelos poros da cidade. Fecho os olhos e repasso a névoa das cortinas que se abriram e fecharam às vezes árvores, às vezes colunas, às vezes fundo, às vezes frente. Sinto o toque das luzes e seus portais. Atravessam-me os ouvidos as cores, as texturas, o toque na pele das minhas mãos, por dentro dela, como se a minha própria forma fosse tornada possível na ação dos outros à minha frente. Um remo lento que passa ao fundo. A consistência do tempo dosada com sabedoria. Um rio que corre para ambos os lados. A mente inquieta esmagando o solo. Quantos anos têm, estes seres, que avançam pelos caminhos do tempo sem se atropelarem nem tropeçarem? Quantos anos têm, estes seres, que num olhar dizem o que está por trás das palavras que escrevi? Quantos anos têm, estes seres, que conheci outro dia e agora fazem parte de mim?

A tudo isso que me ofertam, nestas horas em que estivemos uns diante dos outros, uns virados para os outros, uns por dentro dos outros, eu dou o nome de felicidade. Nenhuma das sombras do mundo tem o poder de escurecer a luz por eles criada. O que mais, além de ser grata?

15/11/2013

Preciso de uma palavra II


(À guisa de explicação: as palavras em itálico, no texto abaixo, são palavras que me foram doadas, ontem, numa postagem de facebook. 
O exercício de recolher palavras e transformá-las em tecido é um exercício fantástico. Recomendo-o como estopim de qualquer escrita. Qualquer meio serve para pedir palavras como oferta.
Peça a quem está perto de você duas palavras. Ou três. Tenha pelo menos oito à sua disposição. Saia pedindo, que ninguém se importa de dar a primeira palavra que vier à mente. 
Depois, sem se preocupar com nada, muito menos com o que pensará esse ser que vive em você e que gosta tanto TANTO de lhe dizer o quanto você é lastimável, escreva escreva escreva. 
Não releia, não pare, não se preocupe se escreve com z ou com s. Seja feliz escrevendo, que é pra isso que escrever existe. E, se quiser compartilhar, compartilhe - eu vou explodir de felicidade se isso acontecer! E obrigada a todos os que doaram as suas palavras generosas.)


Para escavar entranhas - para isso precisava de uma palavra ontem cedo. Pedi-a ao mundo facebookiano, e  o mundo respondeu-me, pródigo. Pus a alma pra fora e fui à vida.

Assim que volto, olho no olho deste mundo virtual; descubro tantas e tantas palavras - mais de 25, o que, na minha conta, é mais que muito. Vinte e cinco presentes aos quais sorrio com admiração, respeito e ternura. Sorrio-lhes com tempo. Demoradamente. Como se lhes dissesse "tou aqui".

São como gigantes; erguem-se lentos, ainda disformes diante de mim. Desentranham-se dos fundos do alfabeto, como essas vigas que se desencavam da terra. Tantas pessoas (penso) querem dar-me o que digo aqui precisar. Por que resistir-lhes? Vou a elas, com a força que lhes sinto. E o respeito a quem as escreveu. Porque, meu amigo, as palavras que chegam são pássaros que esperam resposta.

Olho para as palavras como olho para esses blocos antigos de concreto diante de mim. Arrancados à força, mas sem colapso. Palavra saborosa, essa tal de colapso, esse p seguido de s, um constrangimento dentro da boca, duas consoantes brigando para chegarem uma antes da outra ao desfiladeiro dos dentes. E depois ganharem o espaço aéreo, onde as palavras vivem em orgasmos. Mas colapso é colapso. E quando é da, essa outra forma-palavra que me oferecem, é um sério colapso. Danifica cada parafuso da alma. Perder a fé é perder a vida. Tanto faz a fé em que.

Como a fé na palavra sempre. Como a sua conterrânea nunca, não se sabe bem o que quer dizer. E daí o colapso - daí ou de uma questão básica de teoria da linguagem: o pressuposto de que "emissor e receptor devem ter o mesmo repertório para que a mensagem fazendo-se uso do meio conveniente seja expressa por um e entendida da mesma forma pelo outro". Não gosto de teorias, a não ser quando as vejo florescer na prática. Porque a prática, a prática, a prática - é a prática, é ação, é atitude. E de nada adianta emissor e receptor, não tendo o mesmo repertório, encolherem os ombros porque a incomunicabilidade é a fonte dos seus desentendimentos. Até porque, sinceramente: não é. A fonte dos desentendimentos entre emissor e receptor é, na maior parte das vezes, a desistência na possibilidade da comunicação. Desistir - que bom que ninguém me deu essa palavra de presente. Não gosto de coisas que desistem. Sobretudo seres que desistem.

Sobretudo no amor. Desistir é como uma falha no circuito elétrico: a luz apaga-se, e de nada adianta ficarmos olhando para o espaço escuro, como se a culpa pela falta de iluminação fosse dele, e não do interruptor que ainda guarda o calor do nosso dedo. Tanto faz que o tempo passe, que o outro nos diga "você é tao querida". Aquele bordado de meses, aquela renda delicada e fina que uns cuidaram e outros observaram dizendo-se prudentes, não substitui a firmeza, não torna possível a serenidade, não oferece perspectiva de que a vida seja plena e ampla e livre. E as coisas desandam, mesmo que banhadas em chocolate: frutas ácida recoberta de açúcar. Nem autonomia, nem coragem, nem dinheiro (ainda que tudo isso em abundância): de nada adiantarão os caminhos de sempre quando são mundos novos que se abrem. Bom mesmo é deixar de ser ambíguo, essa coisa que se enrosca em nossas pernas e nos fala em rimas estranhas que unem totoro oroboro como se houvesse sentido. Ambiguidade é uma forma de perder a trilha. Ambiguidade é ficar parado no centro da encruzilhada.

E a verdade, como um apêndice, é o alicerce do silêncio.

Como um chinês que nos olha de dentro de hieróglifos que não compreendemos, como um tutu sem passo de dançarina, como um amor sem ser que ama, como um astronauta no instante em que a gravidade se ausenta do centro de leveza de seu corpo - não há o que possa criar movimento onde reina o imobilismo. A vida, então, são farpas espetadas no âmago da carne do outro.

14/11/2013

Preciso de uma palavra

E ninguém sabe ao certo qual seja. Eu sei, mas espero que chegue através dos outros. Pode ser que seja alma esvaziada. Pode ser a busca de silêncio interno. Pode ser uma porção de coisas. Mas é, apenas e tão somente, desejo de ouvir a palavra de que os outros pensam que eu precise. E fazer alguma coisa com ela.

E respondem-me. Com um "oi!", antes de qualquer outra coisa. E é bom que seja essa a primeira, a palavra sem parentescos, sem ligações, sem história. Nascida do encontro de dois sons que caem no gosto de quem os ouve, e decide repeti-los e assim se instaura (também) uma palavra. Pelo prazer de ouvi-la por entre os lábios e pelo prazer de senti-la deslizando pelo canal do ouvido. Oi, portanto, eis a primeira palavra que me ofertam.

E mal acabo de escrever o que escrevi, ganho a segunda palavra: aberto. Como as águas do rio à inundação da chuva, logo penso. Ou meu coração aberto sujeito às tempestades que nada têm a ver com ele. Ou têm. Tanto faz, porque ele insiste nesse estado de aberto, teimosamente aberto. Aberto que rima com aperto, uma rima torta de som aberto com som fechado. O aperto fechado em torno do aberto do peito. A prensa das flores do meu peito. A prensa das flores do meu coração aberto.

Demora-se no caminho de chegada, a terceira palavra. Dá-me tempo de fazer o chá que me falta. E entre a mesa e o fogão preencho o espaço do silêncio, percebo à minha volta o vazio que ficou com a ausência. Olho-a calmamente, à ausência, à espera de que o mundo me chame de volta com outra palavra.

Eis que chega: saudade. Rio. Lago. Oceano. É preciso lavar as saudades, de vez em quando. Entrar com a mangueira nos quartos onde ela se esconde, tirar tudo pra fora, caixas, gavetas, pequenos pacotes sem abrir, fitas e laços e cartas e peças de roupa e xícaras e copos e temperos e receitas completas e sabonetes perfumados e sobretudo (ah sobretudo) as intrincadas filigranas feitas de lembranças de prata. É preciso tudo arrastar para fora, tirar da sombra melancólica dessa música sem letra e lavar as paredes e o chão da casa da memória. Até deixá-la brilhando, com cheiro de limpa. Tirar o pó não é o bastante, assim como fazemos todos os dias. Há um dia em que é preciso extremar os cuidados, e lavá-la inteira, à saudade, para deixá-la como nova e mais simples. Sem arabescos. Só com as coisas essenciais que se devem guardar. Não há morada para indelicadezas na casa da memória, o lugar do não esquecer-se.

E bastou entrar nessa dobra trilhada para encherem-me de palavras. Aqueles que sabem do que se trata, dizem "precisas de uma palavra? dou-te a única que te nutre: palavra". Os que lá de longe sabem que o que preciso é rir, piscam o olho e sussurram "cachimbinho da serra". O passado retorna nesse que diz "epíteto". E a minha boca repete, como criança que aprende a falar epítetoepítetepíteto. O passado não nos larga nunca.

E o branco. O todo branco. Fecho os olhos e o que tenho é o branco. Enquanto não penso. E enquanto deixo para depois o resto das palavras, porque é hora de olhar pra fora e ir buscar o que nos cabe. Até porque alguém me convida para um café com prosa. Bom dia! E obrigada! :)


11/11/2013

Curto e grosso

Botucatu, 11.11.13. Guarda Civil Municipal atende um chamado de emergência no centro da cidade. Questão de "desinteligência entre um casal", diz a crônica policial. Ele, 26 anos, partiu para a agressão. Desconhece-se o motivo; talvez se aproxime daquele "não sei porque bato, mas ela sabe por que apanha"... Pelas fotos, percebe-se não a falta de inteligência, mas o excesso olímpico de estupidez. Ela, 27 anos, não tem dúvidas: devolve na mesma moeda, só que à facada. As fotos mostram o resultado nas costas do sujeito. Dizer que "houve uma desinteligência entre o casal" chega a dar vontade de rir.

Adoro eufemismos. Essas formas sinuosas de se escapar do que deve ser dito. Para não ferir suscetibilidades alheias. Não ferir corações. Machucar sem necessidade. Ah, quanta bondade. Dizem-se as coisas pela metade e fica a consciência com a aparência de limpa. E melhor, sem quase peso. Aham. 

A atitude eufemística costuma responder por dizer de forma suave algo que de outra forma poderia magoar, incomodar ou agredir o outro. Ou seja: buscam-se palavras mais amenas para dizer algo que se quer dizer, mas não se sabe muito bem como, e ainda correndo o risco de ser chamado de bruto ou estúpido ou tosco.

As palavras prestam-se a isso. A serem manipuladas. Por isso é que há que prestar-lhes o devido respeito, e tratá-las com cuidado. Melhor nada dizer do que dizer pela metade, ou lançar mão do pó-de-arroz das avós pra cobrir o brilho que não se quer mostrar.

É um processo cognitivo da nossa evolução, diz um psicólogo e linguista canadense que vale a pena ler, Steven Pinker. Historicamente, trocam-se os nomes das coisas para que (espera-se) elas mudem. Ou mude a relação que temos com elas. Mas elas de fato só mudam quando de fato mudam as nossas atitudes (coisa mais óbvia...). Aquilo que fazemos. A nossa ação. Acho que ele tem razão, ao menos em parte. A mudança de palavras pode auxiliar a mudança de atitudes, pode ser até um sinal de alerta para a necessidade de mudança - mas só quando a mudança de atitude (portanto, de nós mesmos) está de fato no nosso horizonte. E não é assim apenas uma imagem tão linda, aquele ideal que não temos grandes pretensões de alcançar. Sobretudo quando pode custar-nos muito.

Por exemplo - roubo-o de Schwartzman, que o usou dia desses num de seus artigos. No começo do século XX, a palavra "alcoólatra" substituiu a usual, "bêbado". Para retirar a carga negativa e preconceituosa, etc e tal. Depois, mudou-se para "alcoólico". E agora a nossa opção é "dependente químico". As pessoas continuam bebendo, e mais. Outro exemplo é a expressão "de cor", que virou "crioulo", que virou "negro", que virou "afro-descendente". 

Claro que eu sei, e o Pinker deve saber também, que é tudo parte de uma mesma coisa. E que não é preciso escolher sempre uma coisa em detrimento de outra. Podemos transformar nosso "crioulo" em "afro-descendente" e transformar a nossa atitude na mesma medida. O problema é que é muito, mas muito mais fácil mudarmos o vocabulário e mantermos os vieses, do que mudarmos tudo ao mesmo tempo. Com o agravante de que algo dentro de nós parte do princípio de que, por usarmos outra palavra, temos outra maneira de ver as coisas. Não temos, a não ser que de fato tenhamos tratado a palavra como deve ser, e tenhamos aberto espaços novos dentro de nós, onde caiba o que é novo. Palavras novas inclusive, com seu novo brilho e a sua capacidade de transformarem o mundo em que nos transformamos.

Sabe aquelas situações em que usamos palavras doces para entregarmos verdades amargas? Sobre nós mesmos? Sobre as nossas escolhas? Sobre os movimentos que fazemos em nossas vidas? As palavras doces não adoçam o que as coisas são. As palavras doces traem a confiança de quem não espera o sabor amargo à entrada da garganta. Porque "palavras doces" não são palavras doces - são palavras falsas. Melhor as palavras agrestes, verdadeiras e inteiras. Sem desinteligências.



09/11/2013

O chão que renasce

Faça como eu fiz: olhe rapidamente para essa foto, e feche os olhos. Não se preocupe em entender do que se trata, apenas abra-se para olhar. Não é preciso ver. Deixe essa ocupação para mais tarde, quando puder construir o tempo e o espaço do olhar atento, dedicado e amoroso. Quando quiser construir esse espaço de encontro. E se quiser, claro.

Eu quis. Vi a foto pela primeira vez ontem à noite. Por entre conversas, música, mil e um estímulos querendo arrancar-me a alma de dentro. Ela até parece que vai, mas não vai: a minha alma anda avessa à exposição das suas dobras. Deve ser para que não se transformem em vincos, essas espécies sutis de mortalhas.

Assim, à primeira vista, foi só luz o que vi na imagem. Sem saber por que, pedi-a a meu amigo, mais intuindo do que vendo de fato alguma coisa. A foto veio, rápida e ligeira nesse pé de vento que é a tecnologia. Ali mesmo, na mesa do bar, a imagem pula de um celular ao outro. Deixo-a em paz, quieta.

Horas depois, sem conseguir dormir, tenho vagar para dedicar-me a ela. Olho-a com tempo, senhor de todos os processos, e surpreende-me que essa luz que vi esteja dentro dos espaços das folhas mortas. Parecem luminosas, as folhas, mas estão mortas. O vivo do verde à sua volta é quase ofuscado por essa luz que não é da matéria, mas do espaço ao seu redor, e atinge a superfície para fazê-la rebrilhar. É só superfície. Assim que o sol mudar seu ângulo, a luz desaparecerá. Não há existência dentro da folha, a não ser aquela de que se nutrirão outros, aqueles que se alimentam da putrefação do que morre. O que está vivo é o tapete verde que as folhas querem esconder. A vida das folhas mortas é uma vida em reflexo.

O dono da foto ofereceu-me, além da foto, a sua legenda: "o chão que renasce". E eu aqui, horas depois de ter visto a luz não só na foto, mas também nas retinas alheias, confirmo uma sequência inteira de impressões noturnas. Poderia ter dado o título de "gratidão" a este texto.

Esse chão que renasce, e que ganho de presente em imagem e palavra, nutre-se de momentos muito particulares. Momentos que surgem por detrás das paredes do tempo, espaços no avesso do espaço. É preciso inventá-los, a esses momentos. E é preciso inventá-los a várias mãos. Duas não conseguem. Podem acontecer em qualquer lugar, mas ontem foi aqui, nesta cidade que me acolhe assim que a vejo e me diz "afaste-se" no momento em que tento aproximar-me.

Chamou-se dançar, este chão renascido de ontem. Foi simples, até. Inventou-se um tempo e um espaço para o encontro. Não foi preciso inventar a vontade, mas inventou-se o movimento de ir na direção da música. E o resto inventou-se sozinho. Inventou-se o que era preciso para que a alma alcançasse os lugares que a fazem sentir-se viva, e dançasse em toda a sua extensão, e recebesse sem pedir o amparo que precisava. Uma brecha na insanidade. Um mergulho dentro da delicadeza da entrega pura. Tudo o que a minha alma, o meu coração e o meu corpo necessitam. Ainda que seja leve e breve como a passagem da brisa. Ainda que seja inventado. Ainda que seja de noite. Ainda que as folhas estejam mortas.