26/08/2013

Convergência Jedi

É a solução. Nada de quebrar, de se dobrar até o chão da própria alma para (imaginar) seguir em frente. A solução é a convergência.

Recebi a tarefa de pensar a palavra. De pensar-lhe as letras. De pensar-lhe o uso. Nesse momento tão raro e único em que pensar e sentir precisam encontrar-se, em paz, é o que de melhor posso fazer: pensar as palavras para poder senti-las.

Decido investigar. Graças a são google, descubro não só a etimologia da palavra-pensamento-de-hoje, mas ainda outras coisas que me intrigam. Não necessariamente por elas mesmas, mas pelo fato de me virem parar às mãos. Descarto umas, porque parecem becos sem saída; insisto em outras, não porque lhes veja a saída, mas pela impressão de que a possuam. Pode ser tudo um engano. Mas...

Convergência, que à primeira vista poderia dizer de duas coisas que se dirigem para o mesmo lugar, até que se encontrem, deriva de convergens. É algo, sim, em conjunto - mas é a ação de inclinar-se junto. Numa associação de ideias a la Rubem Alves, penso nos bambus do sítio. O lugar comum do bambu-que-se-inclina-sem-quebrar. Talvez sejam precisos dois bambus, um inclinando-se sobre o outro, um convergindo para o outro. Ou talvez dois sejam um. Até porque dando dois passos etimológicos para trás chega-se a vergere: inclinar-se. Talvez o con não tenha tanta razão de existir assim, e talvez essa seja a raiz também da palavra vergar? Não. Pura especulação. Vergar deriva de virga, que tanto se aplica a broto, quanto a caule, quanto a galho. O esforço etimológico frequentemente conduz a mal entendidos e enganos.

Vergere responde por mais coisas. Depois de muitas, incompletas e cefaleicas leituras, venho a saber que Vergere foi uma cavaleira Jedi que instruiu Jance Solo (sobrinho de Luke Skywalker e filho da Princesa Leia) no uso da Força. Segundo seus ensinamentos, a Força não tem lados. O "lado negro da força" (aquele do Darth Vader, lembra?) não existe na Força em si, porque a Força é monista. O que existe é a noção de que as suas ações valem mais do que as suas intenções, de que é necessário escolher e agir, e de que é preciso ir ao encontro do universo com amor. "The dark side of the Force" é responsabilidade do cavaleiro Jedi e de quem mais dela se aproximar. Não consegui entender, nesse "universo expandido" em que os anos se contam como ABY e DBY (ou seja, antes e depois da batalha de Yavin), se os ensinamentos chegaram a bom termo ou não, porque afinal de contas o tal do Jance acabou por transformar-se em Darth Caedus, depois de muitas idas e vindas entre os lados de todos os tons de cinza da Força.

O importante, dentro deste (para mim) caos altamente organizado em que qualquer jogador de RPG deve circular com desenvoltura e habilidade, é que Vergere decreta a não existência de lados da Força. Deve ser por isso que um bambu baste, cada um de seus gomos inclinando-se suavemente para permitir que a estrutura não colapse. Convergência, a palavra legado que me cumpre investigar, fala-me agora da necessidade de inclinar-se com a suavidade do bambu e a determinação de um cavaleiro Jedi. Com a atenção e a consciência de que a Força aí está, a serviço daquilo que se determine dentro desta vida nossa de universo tantas vezes encolhido. A serviço daquilo que se perceba como matéria ou como seu reflexo no chão duro da vida - escolher e agir, dentro do propósito maior que, seja aqui, seja na República Galáctica, responde pela mesma palavra: amor.


A foto é da Thyana Hacla, e parte do "meu conhecimento Jedi" devo-o 
ao Robert Coelho e ao Antonio Laverde, em animada conversa facebookiana.


Promessas são precariedades

Eu já conhecia a maioria de seus amigos, senão todos, mas a ele ainda não tinha tido o prazer. Tinham-me falado dele, com uma espécie de respeito que fez surgir dentro de mim uma das palavras que vinha caçando há semanas sem encontrá-la: veneração. Bom sinal, este de alguém que ainda não chegou já me presentear com as palavras que explicam. Especialmente essa, que deriva de nome de deusa e é a palavra do que falta; e assim que a pronuncio, que a faço vibrar dentro de mim, a falta acomoda-se, porque o som cria o mundo em que posso respirar.

E seu Zé do Coco chegou. Bem falante, aparenta a idade que tem (longa) e o conhecimento das coisas que a sua passagem lhe conferiu. As frases que pronuncia atravessam tempo e espaço e algo lhes confere o poder que, um dia bem longínquo, toda frase feita teve. (Frases feitas tornam-se agremiações de palavras que repetimos pasteurizadamente, achando que de fato pensamos. Não pensamos: são palavras que se climatizaram, palavras pre-cozidas.) Acho que veneração chegou antes dele para que eu pudesse estar preparada. Posso nomear o que sinto conforme o ouço, e assim ouvi-lo melhor.

Conversamos um tempo comprido. Nessa troca atenta e presente, seu Zé deixou comigo o legado de uma série de palavras, e eu ocupo-me delas como há tempos não me ocupava de nenhumas. Pensar nas palavras é a minha forma de meditação. Os dias em que recorto uma delas e a coloco à minha frente, observando-a de todos os lados e formas que posso, ora distante, ora alcançando-a com os dedos do sentimento, são os dias mais felizes e concretos, os dias em que o céu azul ou a chuva ou o vento fazem sentido.

Disse-me seu Zé que promessas são precariedades.

Veja bem.

Promessas são precariedades.

Com o passar dos dias, e a repetição das palavras dentro de mim, vou avançando para dentro do que dizem. Separo-as umas das outras. Promessas. Precariedades.

Promessas fluem e pendem. Prometem-se. Recorro à etimologia, nesse movimento que me aproxima do nascer mais profundo das palavras. Promissus, a raiz de promessas, é uma derivação do verbo promittere. Palavra composta por duas: omittere (deixar de lado, omitir, deixar de ir) e o prefixo grego pro (antes). Prometer é tudo aquilo que existe antes de deixar de dizer, antes de deixar de sentir, antes de deixar de lado. Pura precariedade, penso. 

É possível recuar um pouco mais, porque omittere é filha de mittere, que significava para os latinos antigos jogar, arremessar. Promete-se quando, por antecipação, se arremessa algo do passado (o antes) na direção do futuro. Como uma flecha que se cogita enviar para o depois, mas o arco está pousado ao nosso lado. Pode ser que a flecha vá; pode ser que não: o arco não está nas nossas mãos, talvez sequer o olhemos de fato. Uma ideia de mover-se que não pensa como sair do lugar.

Esse mover-se, instrui-me Zé do Coco, é feito de precariedade.

Precariedade nasceu da palavra precário. E precário é algo que, muito corretamente, nos faz duvidar. Coisas precárias inspiram insegurança. Não se sabe onde se pisa. Pede-se (reza-se, até) para que as precariedades se consumem. Se estabeleçam. Se concretizem. Porque a palavra precário é filha legítima de precari, que nada mais é que pedir e rezar. Olhando para trás, nossos olhos caem na sua raiz prex: orar. Precariedades fazem-nos implorar, pedir, suplicar - é isso que prex sinaliza. Pede-se sentido, concretude, realização.

Promessas vivem fora do tempo. Lançam-se do passado ao futuro sem sequer encostar no presente. São precariedades, porque não se ancoram nem no estar que está nem no ser que é. A insegurança e a dúvida geram-se no ar imaterializado, na célula não nascida, na semente inanimada, como se esperássemos que o broto já fosse fruto sem nunca ter sido gérmen. Não é, e nem será. O que é, é o que chamamos de "momento presente", essa frase feita que tão facilmente escorrega das mãos e se torna nada. O passado é uma nuvem que já choveu e o futuro o céu que ainda não clareou. A noite impera, suave e silenciosa, escura e úmida de orvalho. É bom que assim seja, e que assim se perceba. Tudo o mais é precário. Especialmente as promessas.


(A raiz primeira da palavra veneração, para quem se perguntou, o é Vênus, a deusa romana do amor e da fecundidade.)


Foto: Dani Lenton

19/08/2013

Sem

Ao soluço enterrado
no fundo das minhas entranhas,
procuro-lhe o caminho.

Não se move, não sai, não se altera.
Resiste indócil
estoico
heroico
às águas sem leito.

Observo-o de longe e atenta.
Entendo-lhe os limites fluidos.
Não foge.
Não se esconde.
Não se manifesta.
Parte insolúvel
terrosa
do fundo mais fundo das
minhas entranhas
internas,
existe apenas, como
espinho encravado.

07/08/2013

Diário

(side writing)

No dia em que Ofélia, órfã aos 12 anos de idade, conheceu Robélia, moradora da última rua do Morro do Tatu, o mundo quase desaba. A chuva engrossou o rio do Zinco desde manhã cedo, escorreu pela encosta do morro, até chegar à cidade baixa. Os carros foram entupindo ruas e avenidas, desgovernados diante de tanta água, os vidros embaçados, os limpadores inúteis. Ofélia e Robélia lembram-se vagamente desse caos, mais pelas notícias dos jornais do dia seguinte do que propriamente pela vida em si. 

No mesmo dia, a quilômetros dali, Délia abria as portas cotidianas da loja. O dia cinza, o carregamento das obrigações. Sem nuvens nem sol escaldante. A vida como um soltar de cadeado, portas pesadas sob trancas, chumbo erguido dentro das mãos de Délia, mantendo abertas entradas e saídas alheias. Sentada atrás do balcão, rodeada das autopeças que lhe sobraram de herança do marido que saíra e nunca mais voltara, vidrava os olhos nas lajotas desencontradas da calçada.

Ofélia era esguia, alta e otimista. Robélia apreciara especialmente essa última qualidade, sem desconfiar de que não era construção, mas condição. Sintoma de quem nascera para enfrentar o lado duro das coisas sem dar por isso. Parecia a Ofélia, filha única de pais idosos, que a vida de qualquer um fosse mais difícil e sofrida que a sua, o que facilitava relevar e diminuir os obstáculos do caminho. Enganava, por isso. Tudo apenas parecia lhe ser fácil. Até mesmo as conquistas, num efeito dominó, pareciam menores, como que envergonhadas da própria existência diante da miséria que enxergavam pelos becos.

Robélia gostara desse otimismo, porque a sua vida fora privada dele. A dificuldade e a dureza de cada centímetro conquistado à morte eram seu dia a dia, seu conhecimento, o pano com que a sua vida se costurara. Robélia era a quinta filha de oito; perdida em meio a toda a descendência de seus pais, não tinha lembrança que fosse só sua, que não precisasse dividir com nenhum irmão ou irmã. As memórias eram sempre de outro, calejadas pelas vozes que as repetiam sem a incluir. A vida esfumava-se diante das conquistas alheias, e seus olhos sôfregos demoraram a encontrar outros que se fixassem em seu centro sem se desviar. Robélia contaria a Ofélia, meses ou anos depois, dessa infância que só descobrira infeliz depois de conhecê-la. Ao que Ofélia responderia espantada “quem foi que te disse que a infância pode ser feliz?”. 

E Robélia pensou que talvez Ofélia fosse outras além da que via. Mas não deu importância e continuou a vida como se estivesse resolvida e encaminhada. Por coisas assim, dizia-se de Robélia que era prática e simples; àqueles que traziam problemas, Robélia aconselhava com justiça, ponderação, equilíbrio e lucidez. Resolvia contendas, equilibrava opostos e resolvia discussões como se tivesse nascido para conciliar os contrários do mundo. Sua escola foram anos separando brigas de irmãos e resolvendo picuinhas de irmãs, mas ninguém se lembra dessa sua atividade de árbitro e juiz da infância. Ela mesma só se lembrou disso quando Ofélia lhe perguntou, com aquele olhar de quem vê tudo pela primeira vez.

Délia não tinha a quem contar da sua infância. Isolara-se dentro da loja, como se tudo na vida se compusesse de bronzinas, tuchos, bielas e válvulas. Seu mundo seguro. Sem eventos que lhe alterassem a ordem das prateleiras. Interessava-lhe pouco perscrutar o próprio passado, porque se ocupara com afinco em apagar as partes de que não gostava. Apagara tudo. Délia fechava-se como uma ostra que não tem a menor intenção de dividir a construção da sua pérola com ninguém. Orgulhava-se de seu sofrimento contido, das suas lágrimas engolidas, dessa maneira distante e estéril que construíra para ganhar da vida. Não sabia como andava o placar, mas cada vez percebia menos as vitórias do time oposto. Não tinha amigos que se pudessem chamar de íntimos, mas todos que a conheciam pensavam que certamente era convidada para festas e jantares. Porque era basicamente simpática e sabia ser afável sem se doar. Délia saía de casa sozinha e sozinha regressava. Mesmo quando acompanhada.

Naquele dia de chuva torrencial, Ofélia perdera-se. Antes de perceber a presença concreta e palpável de Robélia, encontrou seus olhos e estes os dela. Esqueceu-se de que estava perdida e parara para pedir informação. Saiu do carro, trancou-o e convenceu-se de que tinha fome. O pequeno restaurante em frente pareceu obra da providência, e providencial foi encontrar as mãos de Robélia e poder observar-lhes os nós dos dedos enquanto serviam seu prato. O sorriso de Ofélia desarmou as reservas da cozinheira. Se houvesse um cheiro para esse momento, seria o da hortelã recém-colhida. Ofélia perdeu a entrevista desse dia, e quase perdeu o emprego também. Demorou uma semana para reaparecer, com uma história vaga e mal contada de um carro quebrado e a reincidência de uma gripe mal curada.

Ainda hoje o barulho da chuva tamborilando no batente da janela traz aquele dia para dentro da vida de ambas. Ainda trocam olhares ou mensagens sentindo a falta mútua que a chuva desenha. O limpador do para-brisas do carro de Ofélia parece-lhe um adeus entristecido, assim como as gotas que escorrem pela janela da frente do restaurante lembram a Robélia as lágrimas de um enterro.

A vida quis que passassem mais tempo do que gostariam afastadas uma da outra. Em junho daquele mesmo ano, Ofélia estourou o escapamento do carro a meio de uma viagem. Parou numa loja de autopeças e foi catapultada para dentro da imensa e mansa loucura de Délia. A seu lado, a vida de todos os dias repentinamente desbotava. Mesmo parecendo disforme, não levantou a mão em recusa. Ofélia desfez-se da própria vida para abraçar a de Délia, e apenas a lembrança de Robélia existir em algum lugar enchia seu coração de esperança. O olhar otimista diante do adverso tornou-se escasso, porque o próprio adverso assumiu esporádicos contornos, como se tudo estivesse sendo o que estava previsto que devia ser. A inevitabilidade que Délia transpirava colou nos poros de Ofélia como piche.

Quando Robélia a encontrou, anos depois, Ofélia era um pálido esgarçamento do que fora. Os olhos da quinta de oito irmãos encheram-se de lágrimas que porém não transbordaram, porque também a sua cota de dor fora entregue conforme o tempo passara. Agarrou-a por uma mão e arrancou-a do mundo de graxa em que se enfiara até o topo do pescoço. Ofélia, que nunca antes permitira que a agarrasse pelas mãos, tinha os pulsos marcados e os ombros cheios de pesos que não eram seus. Robélia usou de toda a paciência que aprendera para retirá-los, um a um, enquanto alisava os pulsos de Ofélia e os ungia com o óleo que os santos usam e as igrejas vendem dizendo ser benzido.

Délia retomou o mesmo olhar sobre as lajotas das calçadas, ruminando a vida conforme ela se apresentava. Não se moveu nem mesmo pensou fazê-lo, nenhum quilômetro galgado para conferir se esse afinal não era mesmo seu destino. Porque o destino, e disso ela estava certa, era aquilo que lhe batia à porta e não se fazia força para encontrar ou abraçar ou possuir. Délia era uma mulher sem esperança e sem anseios. Viver ao seu redor era respirar o som do veneno. Sugara o otimismo de Ofélia como quem retira a substância vital de uma planta até fazê-la desabar no solo. Sem esforço, porque Ofélia o oferecera, enorme e belo como era, sem medidas e sem limites.

Engana-se quem achar que os anos de Ofélia junto a Délia foram difíceis, tristes, sombrios. Havia uma bem-aventurança legítima, um senso de compleição necessária, e a sua entrega nunca fora e nunca voltaria a ser a mesma. Não porque tivesse sido esgotada, mas porque era assim que devia ser. Ofélia e Délia arrastavam-se uma para dentro da outra, pela força do destino que era a força maior do universo. Ofélia, que nunca na vida pensara não ser responsável pelo próprio andar, parara de pensar por si própria para absorver por inteiro esse pensamento novo, e enquanto se desocupava para entender a memória da outra, esqueceu o quanto é importante ser previdente e adiantar-se às desgraças. Esqueceu os acidentes, os anos de orfandade e abandono, as cicatrizes da sua alma. Porque a alma de Délia pedia-lhe tanto, pensava ela, que seria triste não lhe oferecer tudo.

Não sei quem, das três, sofreu mais. Ofélia desiludiu-se de si mesma, Robélia deixou de acreditar no poder absoluto do amor, Délia não tinha mais com o que se desiludir. Quando as olho, nas fotografias que guardo dentro desta gaveta que já quase não abro, estremeço como se uma aragem gelada me chegasse pelas costas e me encontrasse desprevenida. Quero tocar-lhes os rostos, abraçar-lhes os braços e dizer-lhes que a vida sempre vale o preço que se paga.

05/08/2013

Las huellas

  1. Sabe aquelas palavras, as de difícil tradução? Como huellas, por exemplo.
Encontrar-lhes similares em português é tarefa ingrata. Às huellas, eu prefiro-as assim, na língua de Antonio Machado, e é dele que me lembro no momento em que me aparecem. Porque Machado é o poeta do caminho, e eu penso no caminho que segue adiante, no caminho que se solta no vento ao passar, nos caminhos aos lados que às vezes se trilham, às vezes se sonham, às vezes enganam. E tudo porque lembrei de que "Caminante, no hay camino/se hace camino al andar".

A quem caminha, o alerta do poeta: "son tus huellas el camino y nada más". Aí estão as huellas. Volta-se a vista atrás, sob o olhar do poeta sevilhano, e lá está, claro e nítido como o amanhecer da areia, o caminho desenhado a cada passo. "Golpe a golpe, verso a verso", porque é de golpes e versos que se constroem os homens.

Mas as huellas. Como traduzi-las? Pegadas? Impressões? Rastros? Marcas? É tudo muito pouco, nada diz diante das huellas: mais fundas que as pegadas, mais marcadas que as marcas, mais sutis que os rastros, mais sensíveis que as impressões.

São elas, as huellas, isto que permanece em mim nessa amálgama que não sei se chamo de caminho, se de tempo. Huellas construídas no compasso dos dias, espaço a espaço, galgando terreno por dentro de mim. São e ficam, espécies fossilizadas no chão do próprio caminho. "Todo pasa y todo queda", e de tudo o que os meus olhos veem, são as huellas o que fica, são as huellas o que resta.

Huellas, descubro, deriva do verbo hollar. Pouco usado, tanto significa pôr os pés sobre algo quanto abater e humilhar. Talvez romântico, esse Machado para quem o caminho seja o andar, e as huellas sejam o que resta desse ofício de andador que é o nosso. Estas marcas de pés sobre nós: abatem-nos? Humilham-nos? São essência? Ou existência?

Ouço Machado em vários destes passos que ando no continente da memória. Ouço-o na voz do aluno a meio do filme "La lengua de las mariposas", à porta da Guerra Civil espanhola que dilapidou a vida (também) de Machado. Ouço-o num quarto de hospital, último registro da voz de Miguel, a quem levei o único livro que tinha de Machado, porque Miguel estava indo, às portas do outro mundo, e achei ser-lhe boa companhia, eu que o conhecia tão pouco. Ouço-o dentro de mim nos versos que na minha boca têm gosto de espuma de mar: "Yo amo los mundos sutiles/ingrávidos e gentiles/como pompas de jabón".

Entre o primeiro livro publicado, Soledades, em 1903, e o último poema encontrado no bolso de seu casaco, em 1939 ("Estos días azules y este sol de infancia"), vive um poeta que vale a pena ler, na sua própria língua, saboreando esses encontros de letras que a nossa língua não tem. Porque permite que nos carregue ao domínio da linguagem antes dela ter sentido, como a vida às vezes não tem sentido, e é bom que a linguagem lhe faça companhia. Especialmente quando não se vê nem ouve o caminho, e os pés decidem aquecer-se na areia para desgastar suas dores caminhantes. Depois, então, dá-se outra vez a razão a Machado: "se hace camino al andar". Porque é preciso andar para tecer os caminhos.

29/07/2013

Localização: Mikladalur, Kalsoy, Ilhas Feroés

Para quem costuma olhar para as línguas latinas com mais familiaridade do que para quaisquer outras, encontrar uma língua a meio caminho entre o norte da Escócia e a Islândia, falada por 47000 pessoas, espalhadas por povoados que podem ter entre 20 e 150 pessoas, é um evento que marca o dia. A culpa, se é que uma coisa dessas é fruto de alguma culpa, foi a peça de Robert Wilson que o SESC tem feito o favor de colocar à nossa mão. "A dama do mar", na adaptação de Susan Sontag para a peça do norueguês Ibsen, provocou-me, entre anteontem que a assisti e hoje, que tenho tempo de pensar nela, o desejo de saber mais. Provavelmente porque a encenação impactante ficou alojada dentro do meu cérebro e precisava de expansão.

Por isso, fui à procura da lenda da mulher-foca que teve a sua pele roubada e ficou aprisionada em terra. Para os três, Wilson, Sontag e Ibsen, esse é o ponto nevrálgico, que os faz aos três incursionar pelos labirintos metafísicos e simbólicos dos elementos. Seria o mundo humano imperfeito porque se afeiçoou à terra em vez de ter ficado no mar, lugar de onde veio e talvez devesse nunca ter saído?

A lenda nasce (e vive) em Mikladalur, um povoado minúsculo de uma ilha que já se tornou o meu desejo de viagem-assim-que-der: Kalsoy. É a ilha mais povoada das dezoito ilhas Faroés, as tais entre a Escócia e a Islândia: 147 habitantes; Mikladalur é um dos seus quatro povoados, e em 2006 contava com 42 pessoas. Do seu percurso histórico e linguístico, sobre o qual acabei de ler sem pretensões de guardar nada a não ser o que soasse interessante, apreendi o norueguês antigo e a Dinamarca, de quem as ilhas são região autônoma de há algumas décadas para cá. Seu nome, que na língua feroesa (língua feroesa: vou repetir isso até anoitecer!) significa "ilhas das ovelhas", parece dizer quase tudo sobre a sua vegetação e serventia: pastagem para ovelhas. A riqueza, dizem, está no mar, nos peixes. E é do mar que as focas saem, na décima segunda noite, que vem a ser o dia 6 de janeiro, após o por do sol. Com as consequências que se verão.

Mesmo com tão poucas pessoas, a ilha Kalsoy conta com dialetos. Percebe-se, leio, as diferenças entre um povoado e outro, embora todos se entendam quando se encontram e contam as novidades uns aos outros. Os povoados estão ligados por túneis, para os quais um site turístico alerta serem imprescindíveis lanternas. O túnel mais a norte, que liga Mikladalur a Trøllanes, é estreito, frio, úmido e escuro, e tem 2 km de extensão. Atravessa a região de Trøllanes e raramento se vêm veículos no túnel, porque lá só vivem 20 pessoas. Como para essas coisas tudo depende de quem fala, diz o site que as temperaturas são "amenas": para essas latitudes, "ameno" é algo entre 0 e 11 graus centígrados, o ano todo. A média, 6,7.  Segundo o site: verões frescos, inverno suaves.

Nesse anoitecer em que as focas saem do mar, despem as suas peles de foca e divertem-se como humanos (uma orgia, dirá uma das personagens no palco). E quando amanhecem voltam ao mar, e aguardam o próximo ano. Mas, um dia, um dos Mikladalurianos, escondido em uma caverna para ver as focas-gente, encanta-se com uma bela foca-mulher e corre a roubar-lhe a pele. Quando amanhece, a pobre procura sua pele de foca, e desespera-se e pede ao jovem que aparece que lha devolva. Mas ele recusa-se, obstinado como está de que ela seja sua, e ela segue-o até a sua casa (lá, antes, ele já havia escondido, sob chave, a pele roubada). Casaram-se e tiveram filhos, e viveram juntos por muitos e muitos anos. Até que, um dia, o homem esqueceu-se de levar a chave que sempre carregava em seu cinto, e sua mulher pôde abrir o baú onde jazia guardada sua pele de foca. Sem hesitar, vestiu-a e retornou à sua vida e à sua família marítimas. Antes, porém, apagou a lareira e trancou todas as chaves, para que suas crianças terrenas não se machucassem - o fogo e o corte, a lâmpada e a faca. Haja simbologia. Desisto da lenda, quero mantê-la no ponto em que ficou dentro de mim, que não prestei atenção ao seu desenlace (algo terrível, uma maldição de morte que se abate sobre a ilha).

Fico-me com a imagem do mastro a meio do palco, a dividir o mundo em quadrantes, assim como a história de Élida, a personagem principal ("uma potência anfíbia", diz um dos críticos da peça), se divide entre lenda e realidade, nos quadrantes que a vida lhe oferece. A oferta que ressurge do passado, e coloca em cheque o presente, o mar e a terra, a declaração de liberdade que aprisiona, a neurose para onde todos (aparentemente) caminhamos: a minha vida está agora povoada por mais uma ilha deste planeta, que meus dedos desejam percorrer, onde imagino se escondam as histórias que precisam ser contadas ainda que a primeira vista pareçam não ser nada, e só estejam à espera de quem as invente para que ganhem vida. Um pouco à maneira de Allende, quando se aproxima do arquipélago chileno de Chiloé em "O caderno de Maya", que acabei de ler estas férias: "donde el océano se come la tierra a mordiscos y el continente se desgrana en islas".

À esquerda, na fotografia, a ilha Kalsoy.

24/07/2013

A louça

Para as pessoas de quem aqui se fala

Sertão de Alagoas, meados da década de 50. A louça acaba de chegar. Um conjunto completo de café, almoço e jantar, acondicionado em grandes caixas de madeira e envolto em folhas de papel de seda. As empregadas que desembrulham as xícaras não sabem o que fazer com tanto papel, tão fino. As folhas acumulam-se, dobradas com precisão, ao lado das caixas. E a louça equilibra-se em cima de todas as mesas da sala.

D. Maria corre de um lado para o outro, enlouquecida com tanta fineza. A da louça, a do papel e a do presente que lhe convinha a filha não visse ainda. Não antes do casamento. Quando encomendara, imaginara algo grandioso, mas agora estava aflita porque seria necessário comprar mais armários onde exibir tanto belezura. Nem tirem tudo das caixas, vai dizendo às empregadas que se ajoelham no chão. E elas param, atordoadas.

Agora, D. Maria examina cada pires, um legítimo Wedgwood, e o delicado desenho a prata e ouro e traços de vermelho. Pensa ter escolhido um outro, faz tantos meses que enviou o pedido para Staffordshire, na Inglaterra. Pensa na longuíssima viagem de navio, imagina o desembarque de todas essas caixas de madeira no porto de Maceió, e o seu translado em lombo de burro até à fazenda. Melhor que considere o enxoval finalmente completo. As arcas com as toalhas de linho, as colchas adasmacadas, o faqueiro de prata, e agora as travessas e as sopeiras e as saladeiras. D. Maria senta-se em sua poltrona forrada de flores de chintz e suspira entre um inspirar e um expirar.

O casamento passa, as festas acomodam-se na memória, as fotografias nos álbuns. Francine já está na casa nova. As paredes caiadas de branco, os sofás estampados com as grandes flores de que os ingleses tantos gostam, as janelas abertas de par em par - está quente demais, esse verão alagoano. Nem uma chuva no horizonte que abaixe a poeira e levante o ânimo. Esses são os pensamentos de Francine enquanto não se atreve a olhar para o futuro.

A recém-casada organiza a arrumação das coisas, atenta ao relógio e ao horário do chá. O marido prefere a limonada, mas sua mãe fez-lhe ver o quanto os hábitos que não são os nossos nos engrandecem. As caixas ainda sem desempacotar assombram as paredes, e Francine decide guardá-las no quartinho à entrada do porão. Usa a louça branca para o serviço de todos os dias, e quem sabe, quando precisar, virá buscar esta tão fina. Quando vierem os convidados, pensa enquanto alisa a manga de cetim da blusa. Francine sente o prazer que lhe darão os jantares e festas que organizará ao longo da sua vida de casada.

As filhas nascem, e o sertão fica para trás. Na mudança para São Paulo, as caixas são desenterradas daquele quartinho de onde nunca saíram. A louça ainda dorme dentro delas. A casa grande acolhe tudo, com espaço e conforto. Até o dia em que é grande demais para o vazio que se incorporou à vida. Francine olha para as paredes que forram a sua vida e vê o passo diante de si: é preciso mudar e arejar. Ainda não é hora de voltar pras Alagoas, mas é hora de sair desta casa. Diminuir os espaços conforme a vida diminui a importância das coisas que pareciam preciosas e, afinal, eram só enfeites.

As caixas espreitam do armário da garagem. É a filha de Francine que se encarrega de abrir cada grampo que prende as madeiras. Mergulha dentro do oceano de seda que envolve cada peça e volta à superfície com tigelas e pequenos pratinhos que vão abrindo um sorriso em seu rosto. Seus gestos são ternos e macios como os gestos que embalam e recolhem recém nascidos. É preciso prestar atenção a cada dobra e a cada recanto em seu primeiro encontro com o ar. Cecília precisa separar os conjuntos que as netas de Francine herdarão - é muito louça para uma pessoa só, decidiram em conselho familiar na noite anterior.

Cecília escolhe um dia de sol e prepara um café da manhã para seus companheiros de jornada. Escolhe as tigelas e os pires e as xícaras que usará; as pequenas travessas para os pães variados; os potes para a manteiga e as geleias que encomendou; as leiteiras e os bules para o chá e o café; as jarras para os sucos e a água aromatizada com hortelã. Só por último escolhe a toalha, cenário para tanta beleza e história. A louça sorri para o ar à sua volta, o tilintar dos talheres faz com que ganhe a vida que nunca teve. Que tristeza seria, pensa Cecília, esse serviço ser separado ainda virgem. E seus olhos brilham conforme os companheiros chegam, um a um, e olham assombrados para tanta delicadeza, tanto amor que se deitou nessa toalha. E a louça - ah, a louça... A louça canta, enfeitiçada pelos sons e cheiros e tatos que são a novidade da sua vida.


23/07/2013

Basta um verso

De todos os poetas que me encantaram quando primeiro me deparei com as literaturas africanas em língua portuguesa, Jorge Barbosa foi o que, de longe, mais me comoveu. E por causa de uns versos simples, quase inócuos; desses que se colam aos nossos ouvidos e que, entra ano, sai ano, ali permanecem, música suave a embalar a passagem do tempo.

Jorge Barbosa nasceu no arquipélago de Cabo Verde no começo do século XX, e pertence ao grupo da Claridade, que, como pode bem imaginar-se, significou um farolete aceso na literatura chamada então de "ultramarina" pelo regime português. O movimento, aglutinado ao redor da revista que lhe deu nome (ou vice-versa), antecipou tendências e modernidades com uma espantosa clareza. Talvez daí a Claridade, mesmo sem que ela própria soubesse disso.

O poeta teve uma vida circunscrita às suas ilhas; a fronteira marítima serviu-lhe de moldura ao longo dos seus anos, mas a sua poesia elevou-se acima das ondas e fez com que navegasse longe. O mundo caboverdiano vive espremido entre o desejo de ir e a vontade de voltar; o caboverdiano há décadas é expulso da sua terra pelas condições difíceis da vida, que ali se ganha palmo a palmo. Há mais caboverdianos emigrados que caboverdianos em seu próprio solo, mas o que se diz é que o sonho de todos os que estão fora é voltar à sua ilha natal. Tanto quanto o dos que não partiram é ter um navio que os carregue. Jorge Barbosa inventou-se um navio costurado com palavras.

Tanto na sua obra quanto, de resto, na de todos os escritores africanos que criam literatura com o suporte da língua portuguesa, o Brasil tem uma presença iluminada. O Brasil-colônia liberta, o Brasil-Regionalista, daqueles que conseguiam diferenciara sua escrita da matriz portuguesa, inventando-se e reconhecendo-se longe dessa espécie de patriarcado feroz. Imagino uma espécie de ante-visão de si próprios nos trópicos, para esses africanos todos que só deixaram de ser colônia em 1975. A política fazendo vibrar a alma de tantos guerrilheiros-poetas.

O verso que ressoa em meus ouvidos está dentro do poema "Carta a Manuel Bandeira". É de tal forma preenchido e embrulhado e tangido por ternura, que (outra vez) faz com que o meu dia ganhe distância desse cinza frio tenebroso para onde a minha alma tinha escorregado nas últimas horas. Ouço-o e a minha alma respira, liberta. E é só isto, coisa mais simples!, que quando dito em voz alta ganha espaço e corpo e tempo.

Aqui onde estou, do outro lado do mesmo mar,
Tu me preocupas, Manuel Bandeira,
Meu irmão atlântico.

Deve ter sido para escapar do intangível da vida, das coisas e das pessoas que os deuses inventaram a palavra poesia.

21/07/2013

Moustaki


Há muitos anos, aprendi algumas canções francesas. Aprendi a tocá-las ao violão, e cantava-as, a duas vozes, com meu inesquecível amigo Stéphane. Estávamos em Zinal, nas montanhas suíças, rodeados por pessoas que se procuravam a si mesmas e pouco mais - era muito. Numa noite, Stéphane chegou com seu violão e sentou-se como quem vai bater um papo. O papo durou muitos dias, entremeado por cifras e letras e descobertas de um país musical que eu desconhecia e ele me apresentou.

Entre essas descobertas, muitas delas tinham a assinatura de Georges Moustaki. Descubro hoje que Moustaki morreu há poucos meses, e não consigo deixar de imaginar um Stéphane ansioso à porta do céu, suando frio por poder receber o amigo antes de qualquer outra pessoa. E Moustaki deve haver chegado, com certeza de cabelos despenteados pela viagem e o mesmo olhar sonhador de sempre, e deve haver encontrado entre os braços de Stéphane o mesmo forte abraço que levou consigo.

Talvez tenham se sentado para ver o pôr do sol, se é que do céu pode ver-se o sol quando se despede da terra: um grego nascido em Alexandria, no Egito, entrelaçado às culturas judias, gregas, italianas, árabes, turcas e francesas, e um francês de Marseille, quase russo e cigano. Talvez Stéphane tenha começado a dedilhar "Portugal", versão em francês do "Fado tropical" de Chico Buarque. Talvez tenha começado a cantar os primeiros versos como se sem intenção, com a voz cristalina cheia dos veios escuros e densos que a Rússia lhe legou, e que lhe permitia dançar por entre culturas como o próprio Moustaki fazia. Talvez tenha se emocionado em algum momento, talvez haja nesse instante portugueses à porta do céu, e talvez eles se sentem por ali, porque as lembranças da sua encarnação ainda persistem em seus órgãos, e precisem de mais uns instantes antes de irem à fase seguinte.

Moustaki deve ter-lhe pedido o violão emprestado, para apresentar-se a si mesmo a São Pedro. Imagino que escolha a mesma música que levantava qualquer plateia em qualquer lugar - qualquer, de fato, porque Moustaki era um errante por natureza, e pouco tempo viveu em cada país por onde passou. Ainda que tenha se ligado tão fortemente à França, a Georges Brassens e a Edith Piáf. Cantaria Le Métèque antes de atravessar o umbral. https://www.youtube.com/watch?v=TbhN8tYKjoA

Apaixonaram-se ambos, no fim da vida, que de um foi longa e do outro nem tanto, pelo Brasil, pela bossa nova, pela Bahia, por Jorge Amado. Talvez o bahiano afinal esteja também à porta do céu. Se é para lá que os comunistas peregrinam quando esta vida termina.

Esse Brasil que depois se tornaria a minha vida, a minha escolha de chão, o lugar de privilégio da minha alma, chegou-me de várias formas, vários sentidos. Passados anos dessas semanas em Zinal, Stéphane  foi um dos primeiros a me trazer os trópicos do meu futuro -  Moustaki fez-lhe companhia, na capa do LP que Stéphane me mandou já não sei bem onde morava eu na época. 

E a porta do céu deve estar neste instante cheia, cheinha de gente, que chega de todos os quadrantes por onde ambos andaram, nessa aventura contagiante de descobrir o que mais gostavam de descobrir: pessoas. Só posso ser grata por ter sido uma delas, e porque cada um deles, à sua maneira particular, ter feito a sua aparição na minha vida, e me legado essa possibilidade de dor tão particular que é a saudade. Devem ser eles, e os coros dos anjos, que ouço cantar. https://www.youtube.com/watch?v=B_JXfpBRe5o


Ainda mais umas, para quem gostou:


La carte du tendre, Joseph e L'homme au coeur blessé


Águas de março

C'es Là



Ma liberté (um de seus últimos shows, em fevereiro deste ano)