13/11/2012

Falta d'água

Asa Branca por todo lado. 

Na voz de Caetano em "Tropicália" (excelente), na de Chambinho do Acordeon em "Gonzaga, de pai para filho" (excelente também, belíssima fotografia). Alazões morrendo de falta d'água  em todas as telas de cinema do país, e um povo inteiro acompanhando peregrinações. Demais.

Lembrei disso agora de noitinha, porque faltou água aqui em casa. Eu querendo fazer faxina noturna, lavar chão e roupa e louça e paredes e tudo o mais que precisasse de água para luzir apalermado quando o dia raiasse. Nada disso: o que me mandam as outras esferas é ficar quieta e esperar que a água chegue. Quando quiser chegar, porque a causa da falta é desconhecida - tem água na torneira lá de fora, o problema é aqui dentro.

Para dividir a aflição (juro que foi aflição) com outréns, agarro-me às virtualidades da vida: mando uma mensagem ao grupo internáutico que se criou para que a comunicação fluísse aprumada entre nós, vizinhos que moramos todos por perto uns dos outros. Será que às vezes quase nos convencemos de que a comunicação parece fluir melhor quando se é mais distante? Não sei - acho que no fundo estamos todos é em busca do canal de entrada.

Mas eu dizia então que lá fui dividir essa minha aflição, dessa forma assim em que não se ouvem as vozes, com vizinhos, uns menos e outros mais recentes, e a estes últimos não conheço nem me conhecem, ao vivo, como era costume antigamente. Mas lemo-nos uns aos outros, até nos arriscamos a um palpite aqui e ali, de vez em quando. Como se fôssemos velhos conhecidos e nos permitíssemos, tacitamente, essas liberdades de interferir nas palavras uns dos outros.

O fato é que a aflição foi dividida sim, e logo mil ajudas e oferecimentos pularam da tela pros meus olhos. Peço um encanador de estimação, acho que devem ser os canos entupidos com as algas que descem em catadupas da caixa d'água central (não seria a primeira vez). Respondem-me que encanador de estimação não têm, mas água, toda a que eu precisar - "venha!". E isso quando eu sequer fui ainda visitar o bebê recém nascido que mora nessa casa que me oferece sua água... Agradeço, e conto-lhes que já tomei banho, de canequinha - porque há uma torneira, lá fora, que ainda tem água, e o jeito foi lembrar de Asa Branca e lançar mão da canequinha de ágata. Depois releio e me espanto com o que eu mesma escrevo - pra que expor minha canequinha assim, tão sem pudor?!

Mas aqui ninguém se incomoda: não demora e oferecem-me a própria água, na própria mangueira - "eu passo logo ali, pela cerca - quer?". E eu declino, e olha que é tarde e a pessoa deve estar é cansada - e peço-lhe quem sabe a mangueira emprestada para o dia de amanhã. E o vizinho que trabalhou o dia inteiro e não tem nada com a falta d'água minha diz-me que me traz a mangueira agorinha mesmo, se for o caso e se for preciso. Digo que não, deixe disso, amanhã tá bom demais da conta. Aqui sozinha rodeada de vizinhos, sorrio pra tela opaca do computador e - milagre! - ela sorri-me de volta: "Ah, Ana, eu tou adorando, acho que vai sair uma crônica daí!"

E não é que saiu?!


(E pra quem está nessa virada de um dia pro outro ainda de olhos abertos, Caetano cantando Asa Branca em 1972, na França (num dos momentos mais bonitos do documentário), e "Gonzaga", o trailer do filme:

12/11/2012

Exercício: Atlas (1)

Podia ter-lhe chamado Bucéfalo, ou Rocinante. Mas nenhum desses nomes alcançava a generosidade e a nobreza ardente que caracterizava seu temperamento, acrescidas da amplidão em que mergulhavam seus olhos. Sabia que precisava oferecer-lhe mais do que a presença por entre as páginas de um livro. Gostava de olhá-lo de lado, o costado bem desenvolvido, extenso e profundo, onde quase lia inscrito o nome do mundo todo, e ainda uma montanha, e a realeza de um continente perdido, e um castigo que apenas Hércules tivesse a capacidade de aliviar.

Por isso, seu nome foi Atlas.

Se quisesse, Atlas cobriria a galope todos os mares, desertos, lava de vulcões, pedra de desfiladeiros. Veloz e cheio de força, levantava a cabeça delgada e seca, sacudia a fronte levemente abaulada e firmava a cernelha extensa e destacada, parando para olhá-la quando ela se aproximava. Cabeceava assim que a via e deixava-se montar e cavalgar, como seus ancestrais nos últimos 5000 anos. Ela amava-o por isso, tanto quanto amava sentir-se livre sobre seu dorso, confiada à sua vontade, o freio sem uso entre os dentes. Ele oferecia-lhe, nas patas sempre prontas, qualquer mundo que acenasse ao longe: levava-a até lá e, se por acaso ela caía, o que era raro, e ele precisava voltar para resgatá-la, fazia-o sem sacrifício. Ela amava-o ainda mais.

Talvez ajude saber que ela nascera na cidade de Ronda, na andaluzia espanhola. Onde os cavalos olham de cima, e são chamados de altaneiros por alguns dos habitantes da península, e as mulheres amam sem respeitar medidas. Onde as pessoas vivem acima dos limites do mundo, e atravessam uma das três pontes que se levantam a mais de noventa metros de altura, o rio Guadalevín fluindo lá embaixo, tão longe que nem murmura. Em cima dessa meseta rochosa que serve de chão à cidade de Ronda, o vento por vezes sopra forte. A crina de Atlas parece nesses dias uma franja de xale ao vento, mas o toque de seus fios é rude e hirsuto. Ela amava-o por isso também, por dar-lhe duas coisas ao mesmo tempo, e quando a conheci, em Algeciras, parada diante do lugar de onde saem os barcos em direção a África, apertava entre os dedos o que me pareceu um talismã feito de crina. Olhava a costa africana invisível ao longe. Longe demais para olhos que ainda estão na Europa.

Falou-me de Ronda, da antiga praça de touros, dos cavalos dentro da arena. Dos sacrifícios dos homens e dos animais da sua terra. Estava frio, nesse dia, e ela batia os pés no chão. Debaixo estavam as marcas dos pés de Atlas - mas não o cavalo, disse-me (e foi assim que ouvi falar nele pela primeira vez), e sim o filho de Jácome e Climene, primeiro rei da Atlântida, o preparador selvagem e bruto do planeta que seria morada da raça humana centenas de anos depois.

Conversamos durante horas, e por fim ela despediu-se, como se eu fosse um antigo e querido amigo que ela não visse há muito e soubesse não tornaria a ver tão breve. Embarcou em direção a Marrocos e eu fiquei a acenar-lhe, ambos presos desse encontro, ela a bordo e eu de repente sem guarida.

Anos mais tarde, quando a vida me ofereceu o sofrimento necessário para deixar tudo para trás, lembrei-me dela e comprei uma passagem de trem para Ronda. X horas desde Madrid. A praça de touros estava onde me contara, o Guadelvín serpenteando por baixo do Puente Nuevo, mais de 200 anos de idade pétrea. Descobri que não sabia seu nome, mas procurei por Atlas. E encontrei-o na praça, enorme escultura de um cavalo lusitano, a crina como um xale duro em atitude de ondular ao vento. Perguntei em volta da praça, nos cafés debaixo das arcadas brancas de cal, os garçons apoiados nas colunas, suas bandejas como luas em pleno dia. Riram-se e mandaram-me descansar.

- Atlas tem tantos anos - disse-me um deles abrindo-me uns dentes amarelos - que nenhum de nós o conheceu. Está morto desde a Reconquista, homem!

De nada adiantou dizer-lhe da mulher, nem nome tinha a mulher. Apenas a lembrança de seus dedos compridos no aperto da crina escura.

(continua)

06/11/2012

Exercício: "Como anzóis"

Tenho quase certeza de que, nas primeiras horas da manhã, os amantes procuram-se com o reluzir de anzóis dentro dos olhos, numa estonteante linha de leveza e velocidade visível no instante do lançar-se ao rio. Precisam saber se ainda se pertencem, ou se as sombras os transformaram em outra coisa que não seu encontro de amor.

Isaura não saberia dizer. Os olhos de Armindo ainda estavam fechados quando ela abriu os seus, e assim permaneceram por horas. Essa extensão de tempo fez com que as retinas de Isaura se acostumassem com as fímbrias de luz filtrada pela persiana, uma luz de dia ainda não nascido mas já grávido de si mesmo. Por isso, quando os de Armindo se despregaram e ainda a olharam cobertos pela poeira dos seus sonhos, repararam na mulher que o fitava, mas não lhe perceberam o despertencimento; ou, se o perceberam, o que é bem possível também, se formos observar os fatos, guardou-o por dentro das pálpebras, naquele único lugar em que os olhos escolhem não ver.  Não por mal, mas por não poder ver. Talvez não tenha havido nenhuma linha lançada, nessa manhã. E talvez o mundo se tenha quebrado em dois, a linha inexistente cindindo a realidade.

É Isaura quem me conta esse acordar. Transformou-o num símbolo que a persegue uma e outra noite, quando acorda num susto e abre os olhos e a imagem de Armindo de olhos fechados a atinge imensa. Como se ela fosse uma ilha, e ele a rodeasse por todos os lados, menos mansa e amorosamente do que gostaria, claro, mas ainda assim rodeando. Seus olhos encharcam-se enquanto me conta. Espera (seus soluços não me deixam ouvir-lhe todas as palavras) que esta saudade aguda se transforme em crônica, e logo mais em névoa, e logo mais numa substância de nada que a permita respirar sem ansiar pelo que se foi. As suas mãos desenham no espaço entre nós o vazio que quer tanto encontrar.

Mas seus olhos desmentem as suas palavras, coisa que não ouso dizer-lhe, para não afundá-la mais nesse poço que ocupa. Há uma distância que a ajudo a estabelecer desse amanhecer de noite de amor sem olhos; consigo-lhe perspectiva e duração ao longo de horas, mas a sombra aproxima-se com lentidão e arrebata-me Isaura, e eu perco-a novamente. Só consigo, antes de que nos separemos, marcar um novo encontro, para amanhã ao meio dia. Espero que ela não me falte. Espero que eu não lhe falte.

01/11/2012

Fragmento em viagem

As horas que passam sentadas dentro deste avião oferecem-me duas sensações: a de não ter onde ir (um considerável e paradoxal desconforto grau x de ansiedade) e a de ser invadida, obliterada por um turbilhão incessante de ideias, todas elas ligadas às minhas muitas pernas imóveis, apertadas neste espaço que cada vez se torna menor e as condena ao estado implacável de repouso. Essa invasão de motivos desencadeia outro tipo de ansiedade, que suplanta aquela de tipo x, um alicerce estendido de razão e força. Nesse ponto preciso,  sufocada entre ansiedades, posso ser a imagem que reflito no espelho; essa que, quase na hora do pouso, toma a rédea, o pulso, o chão.

Meus companheiros de voo, sentados a um lado e ao outro, devem entender pouco dessa que pareço, tomando e abandonando, consecutivas vezes sem conta, a caneta e o caderno pequeno que não me abandonam. Como um aluno em primeiros dias de escola, que esconde da professora o que escreve no momento em que o faz, preferiria que se ocupassem da própria vida e deixassem seus rabos de olhos presos a si mesmos. Mas a mão tomou posse do olho, e as palavras que soluçam precisam de ambos, e não ouso suspender a escrita por medo a que a ansiedade x volte zombeteira e me atormente nas mesmas perguntas, e a resposta não possa ser outra a não ser o encharcar do mundo com as mais grossas lágrimas que conheço.

Enquanto tudo isso acontece, ao mesmo tempo em tempos sobrepostos que confundem passado e presente, o olho de Ângela, a comissária de bordo, está fixo nos movimentos da pele da minha testa. Pergunto-me se terá ela a capacidade de ler a aflição alheia nas rugas da sua face. Olho-a, e ela retribui-me um sorriso, fecha de leve os olhos e nas suas pálpebras está escrito "stand still".


Imagem: Tai Ribeiro

30/10/2012

Intenções

Como o ninho espremido por entre paredes de madeira.
Como as cordas do navio assim que as desamarram do cais.
Como as fibras de sisal que o tecelão bate e liberta.
Como a areia da praia onde os pés brincam antes de desaparecem dentro d'água.
Como a vida que nasce de dentro com um grito, um suspiro, uma queimação que nos retira da  mão da morte.
Como as cartas viradas sobre a mesa, as paredes limpas, os pratos lavados.
Como as palavras que se colam às coisas, para que mais tarde alguém lembre os nomes delas.
Como os livros amontoados pela casa, sílabas abertas na mesa, no chão, na cadeira, na cama.
Como o lado vazio da cama.
Como o lado vazio da alma.
Um vazio.
Para preencher de ninhos e cordas e fibra e areia e vida e cartas e coisas e palavras e livros.


24/10/2012

Artifícios

Sabe aqueles dias em que não se tem muita vontade de profundidade? Porque às vezes a profundidade é tão lá no fundo que até a superfície parece implacável? Dias assim beneficiam-se enormemente das superfícies ternas, suaves, tranquilas; em dias assim não se pensa muito na necessária correspondência entre o que está por cima e o que vive por baixo. Em dias assim, no fundo, sequer se pensa. Manter-se à superfície, para mais fácil respirar, é um bom artifício para um dia como o de hoje.

Escolho a escrita, parece-me agora o artifício supremo. Um processo engenhoso de compor um discurso, libertando as palavras, seres sem substância carnada, daqueles lugares comuns em que elas se acostumaram a sentar confortavelmente (desautomatização, diziam os poetas formalistas, ressignifcação dizem os neurolinguistas, e por aí vai, nada disto é novidade nem descoberta). "Não", dizemos-lhes, "procurem outros espaços, onde possam ser outras e mais coisas". Um estranhamento. Vejo-o acontecer todo dia. A cada fisgada no fígado daquela palavra que se intromete por entre as linhas da página e de repente solta uma faísca e revela outro caminho e de repente lá está o sentido diferente do que se queria, mas por isso mesmo sentido.

Isto que escrevo, aliás, nada mais é do que um artifício para conseguir dizer uma coisa com as palavras que não a dizem, antes a insinuam; sugerem em vez de mostrar; porque assim querem, é essa a intenção que lhes dou. Mantenho-me à superfície, mas haverá quem perceba por entre as águas feitas palavras a vida que se move por baixo. Porque as palavras, tal como as coisas, estão sedentas por revelar-se em novos significados, que tragam à tona seus outros veios, todos os veios; especialmente aquelas mais comuns, aquelas que dizemos todos os dias sem reparar nos seus contornos cheios de preciosidades intocadas. 

Por isso em dias assim, de superfícies perfeitas porque quase impenetráveis, deito-me à sombra com as minhas palavras preferidas, e deixo-as livres, soltas, fluindo por entre as membranas das minhas células, permitindo que se tinjam de cores invulgares, translucidamente suaves e ao mesmo tempo impregnadas das sensações mais poderosas. É a maneira que encontro de, à superfície que serve de manto, desautomatizar, desconstruir, ressignificar as coisas do mundo. As minhas são feitas de sons e letras, outros hão de preferir outras matérias: à superfície e por baixo dela, a arte do encontro de todos os nossos artifícios.

18/10/2012

Eternidade


Uma professora conta, algumas semanas atrás, olhos quase molhados de tanto brilho, uma das coisas felizes que fez com seus alunos. Leu-lhes "A rainha da neve", de Andersen. Eles se dispuseram a desenhar alguns momentos do conto. Uma das meninas quis desenhar a eternidade, mas parou assustada e correu à professora: 

- Professora, eu não sei desenhar a eternidade! 

E como a professora também não soubesse, disse-lhe que tentasse: quem sabe não descobria? Ao cabo de um tempo a aluna volta, olhar alumbrado:

- Professora, eu vou escrever a palavra eternidade, é o melhor desenho que posso fazer. 

Ouço tudo isso e do fundo das palavras há um sopro de ar puro que me arrebata, e me faz perder a respiração, nessa sala onde nos reunimos para falar de palavras, e nesse alumbramento que nos atinge a todos porque uma criança viu, na palavra eternidade, no desenho da epiderme das suas letras, a própria eternidade.

Há palavras que se fazem da rugosidade da sua escrita; outras, da sua lisura serena. Tanto faz se as escrevemos, se as lemos. A porosidade, o brilho, os veios, permanecem todos lá. Mesmo nas impressas, é possível tocá-las com as gemas dos olhos. 

O verso único da poesia de Anelise Zeidler atingiu-me dentro de um ônibus em Porto Alegre, dia desses. Num acesso súbito de falta do sentido da eternidade, vejo-me sentada ao lado dessas sete palavras que a poeta escolheu, e que alguém depois escolheu para oferecer aos outros na janela de um ônibus. Olho-as com uma atenção só de fora, e as suas características físicas são as que primeiro me atingem, e têm o poder de arrancar-me de dentro de mim mesma. Como se os olhos que leem os olhos que se inundam se inundassem por pura empatia, a mente em estado de repletitude de coisas para transbordar.

Lembro-me da pequena aluna e da sua presença de eternidade,  essa que nesse momento eu sequer saberia escrever, e penso o quanto palavras são pouco afeitas a contatos determinados. Aparecem quando devem, e não quando se quer. Assim que saem, diluem-se. Assumem-se a si mesmas e distanciam-se de quem as escreve ou pronuncia - não se lhes pertence mais. Nem sempre penetram os outros da maneira como se pretendeu - eles, os outros, veem-nas da forma que querem ou podem, percebendo-lhes as peles com um tato único, aquele que lhes é possível.

15/10/2012

De quando se dá nome aos bois

Quando nosso primeiro pai nomeou todas as coisas e animais do mundo, seu próprio Pai, aquele de quem guardou completa semelhança, permitiu-lhe um descanso. "Pouco", avisou-o, "é preciso que voltes ao trabalho, não vás acomodar-te antes do tempo". Os anjos, enquanto isso, feitas as pazes com essa estranha e humana invenção do Senhor, puseram-se a guardar-lhe o sono, quem sabe se com a ideia de tomarem para si a capacidade da nomeação do mundo. Em vão.

Adão dormiu por anos, porque a matéria prima do tempo divino é a relatividade. Quando acordou, barbas e cabelos crescidos, foi chamado à presença de seu Senhor, que lhe apresentou, para que lhes desse nome, duas virtudes em forma de barro: a subsistência e a sobrevivência. Adão nem precisou perguntar-se quais eram os nomes de ambas, pois fluiram de sua boca antes mesmo que conseguisse pensá-los. O Senhor olhou-o entre incrédulo e espantado (coisas que são assemelhadas, mas que Adão distinguiu com clareza e sabedoria ao nomeá-las), e pôs-se a observar os dois nomes que entretanto flutuaram da boca de Adão até o barro, entranhando-se nele e guardando-lhe duas formas diferentes. A transformação das coisas inominadas em coisas nominadas acontecera já muitas vezes debaixo de Seus olhos, mas o Senhor não cansava de alegrar-se e aliviar-se - coisas também semelhantes, porém Adão, e os nomes... 

A metamorfose que Adão operava em Seu mundo através da Palavra que lhe nascia, enchia o Senhor de um gozo tal que quase não cabia dentro de si, embora nascesse de dentro d'Ele, o que é no mínimo um contrasenso ou um paradoxo (coisas que sabemos diferentes, porque assim o disse Adão).

Foi assim que, entre espantado, incrédulo, alegre e aliviado, o Senhor viu a subsistência distanciar-se no espaço da sua antes irmã sobrevivência, enquanto os homens por toda a Terra cuidavam ora de uma, ora de outra: a sua ocupação escolhia-as a ambas para firmar seus pés sobre a terra, porém com intentos diferentes, como se verá. 

Os primeiros, reparou o Senhor e fez mostrar a sua primeira criatura, trabalhavam a terra e a semente com os olhos postos no chão; viam brotar os minúsculos prenúncios que antecedem todo fruto, e a sua mente projetava de imediato a refeição dos meses seguintes; e as gavinhas cresciam, o mundo frutificava e alimentava os homens. Então, eles diziam: "Graças a Deus pela nossa subsistência", no que estavam certos, pois era o Senhor que lhes inspirava a existência, que eles ainda percebiam (talvez) como uma sub-sistência. Os segundos, viu o Senhor conforme lhes voltou a serena face, trabalhavam a mesma terra e a mesma semente, mas ambas brilhavam diferentes por entre seus dedos. Embora permanecessem ágeis e ativos, seus olhos alongavam-se no horizonte, alcançando as estrelas, como se soubessem que era de lá que provinham, e que era de lá que, nesse exato momento, seu Senhor os observava. Um deles, então, diria, "Existe muito mais entre o céu e a terra do que as plantas que crescem e nos alimentam"; e outro responderia, "Graças a Deus por sermos quem somos". E tinha razão, pois que todos eram o que eram graças à graça concedida pelo Senhor.

Adão, sentado ao lado de seu Criador, pouco via além da água e da terra de que são formadas todas as criaturas, sejam coisas, animais ou virtudes, entre outras. Os nomes acorriam-lhe sem que ele os chamasse ou procurasse, e afligia-se, às vezes, por não ver mais do que dois elementos na fonte de onde tanta variedade nascia. E o Senhor, nessas alturas, acalmava-o dizendo: "Pois que tudo o que criei e que tu nomeias é feito da nossa mesma matéria, não te aflijas pelo que não podes mudar. Alegra-te, outrossim, pelo poder de transformação que inspiras às coisas do mundo após lhes outorgares seus nomes." E com essas palavras Adão respirava com o coração esvaziado de todo temor e receio (coisas diferentes, já se sabe por quais caminhos) e soube que, nomeado, o mundo estava liberto. E liberdade é tudo o que as coisas do mundo precisam para ser o que devem ser. Depois de, como se depreende, serem nomeadas.


12/10/2012

Vácuo

À entrada da imensa PUC de Porto Alegre há uma também imensa escultura de ferro. Um recorte de figuras humanas, que me fez lembrar aquele André Gide que falava (salvo erro) da estética da espera. 

A observação da escultura associada à lembrança de Gide levou-me ontem diretamente a um estado de alma que, na falta de melhor expressão, vou chamar de craquelado: entre uma epiderme lisa e outra rugosa, uma terceira que se insinua inteiramente infiltrada. Fendas e fissuras por todo lado. 

O dia de hoje chega-me ainda com essa sensação de vácuo, um não-preenchimento que só cresce conforme as horas passam. (Acordo cedo, é um defeito em dias assim. Melhor seria dormir até às 10 horas.) A amiga gaúcha de longe provoca-me: - Bah, guria, vai passear na Redenção! E eu, que já lá tinha estado de manhã cedo, lá volto. Diz-me ela que esse foi o parque da sua infância, que ali estão as suas memórias; neste dia cheio de crianças por todo lado vejo-a pulando à minha volta. E isso consola-me. Ainda que me mantenha perigosamente perto da mesma vacuidade.

Sento-me na confeitaria Maomé para tomar um chocolate quente. Dias como este, solucionam-se às vezes assim: come-se e o sentido retorna. Experimentei a tática várias vezes ao longo do dia, e durante certo tempo pareceu-me resolvido o impasse gidiano - menos vácuo, mais preenchimento. Mas por pouco tempo: mera impressão ou pura digestão. Por isso o chocolate quente a esta altura do passeio na Redenção, que faço acompanhar de um diplomata para ter o que mastigar, já que a matéria interna anda de difícil mastigação. (De manhãzinha a escolha recaiu sobre um pastel integral de ricota e espinafre, achei que seria bom manter-me perto de coisas nutritivas, naturais, saudáveis. Horas depois, dois pedaços de melancia a meio da calçada. E ainda almocei bem: risoto de camarão e uma gigantesca salada, tentativa de chegar ao fim do dia com menos de 3000 calorias ingeridas.)

Numa conversa torpeada de algumas horas, descubro que a Redenção está florida - e fico estarrecida, porque precisou ela avisar-me das flores que estavam logo ali, quase encostadas aos meus olhos. Considerando que ela está a mais de 1000 km de distância, é de pasmar mesmo. Em compensação, posso contar-lhe das datas da Feira do Livro, logo ali em novembro - e ela, que não sabia das mesmas, entusiasma-se em ver passagens pra mesma altura em que eu aqui virei. Enquanto isso, vou ver das flores. É fato: jacarandás em profusão por todos os lados, sibipirunas (creio) idem.

Fico parada, deliciada com a vista, ao lado de um carrinho de churros. Peço um sem recheio, que é doce demais e que ainda me economiza um real. Fico olhando as flores, pensando nessa gaúcha que ainda iria me fazer ter a ideia de ir comer uma coisinha ali na Lancheria do Parque, onde pelo preço de um bife comem quatro pessoas à vontade. Estou sozinha, e a única solução é oferecer de tudo aos dois rapazes na mesa ao lado, que olhavam numa gula de bolso vazio - que nem o meu vácuo, que se fez menor com o passar das horas, mas ainda pode abrigar, como um bolso, a minha mão inteira.



08/10/2012

Servir

Meu amigo,

Quando de repente, a meio desta noite e por entre todas as palavras que disseste, pronunciaste a mais bela de todas - servir -, encantou-se em mim uma flor não desabrochada. Olho-a agora, antes das demais tarefas que ainda me ocuparão as horas, e não posso acudi-las, como não poderei deitar-me e repousar o sono, sem antes escrever-te e dizer-te: tens razão quando dizes que servir é o que verdadeiramente importa.

E digo-te que essa palavra que usas, com uma propriedade que te vem desse tormento aflito em que te vês imerso (e do qual nem foges, nem te esquivas, nem negas, nem condenas), é de fato um verbo, mas conjuga-se de forma diversa e incomum, e principalmente (repara: principalmente) admite tão somente o presente do indicativo. Eu souvir, tu ésvir, ele évir, nós somosvir e eles, todos eles, sãovir. Bastou, por hoje, ser e vir.

Por isso te envio, em forma de palavras voadoras, as pétalas que uma a uma fui desabrochando ao longo do caminho de volta, dessa flor que deixaste junto à porta do universo de palavras que escolho todos os dias ocupar no mundo. Quero com ardência poder estar a teu serviço tanto quanto ou mais te dispões a estar, a qualquer hora e forma necessária, ao meu. 

Despeço-me dessa impressão tão forte que inculcaste na minha alma, e volto-me para os outros trabalhos, esses que me redimem e dão sentido, acalentam e sossegam e que respondem, todos e cada um, pela palavra escrever.

Que a noite te seja leve.

07/10/2012

Trapézios


Especialmente no verão, acontecia assim: andava até o fundo do quintal, empoleirava-se na figueira velha, galho ante galho até chegar aos troncos apoiados no muro. Uma perfeita plataforma de lançamento para o outro lado: um descampado com duas relevantíssimas  funções. De um lado, a cadeia pública, envolta num mistério proibido que fazia fervilhar a imaginação; do outro, o espaço onde todo e qualquer circo que viesse até à cidade montava seu acampamento. Outra forma de formigamento, mais acessível ao pulo furtivo de cima do muro caiado de branco.

Andava ligeira até o círculo de trailers e carros, a lona esticada e firme ao centro. Rodeava, rodeava, aflita sem saber como raios faria para se infiltrar e pertencer. Ir-se embora sacolejando numa casa sobre rodas, com uma tarefa importante que tanto podia ser dar de beber ao elefante como fazer brilhar com afinco os sapatos do palhaço. 

Mas o que ela mais queria era ser trapezista. Sentada num dos lugares mais baratos do circo, porque dava razão à avó, "de qualquer lugar se pode ver o mundo", a única coisa que a interessava (além de espreitar os garotos do circo, de quem queria com urgência ser irmã, prima, amiga, qualquer coisa) era o momento em que os trapézios se iluminavam. Antes mesmo de que os trapezistas avançassem pelo picadeiro, a falta de ar subia-lhe da base da coluna e penetrava em seu cérebro como se alguém das profundezas dela mesma a avisasse de que aquilo era ela fora de si, e era bom que parasse até de respirar para prestar muita atenção.

Passou anos com essa vontade de trapézio. O que não lhe garantiu estar sempre atenta aos que foram se apresentando. Alguns passaram sem aviso nem notícia. Quase não lhes guardou memória, esquece-se dos nomes, não sabe bem em que cidade. Os que apareceram sem redes de segurança foram com certeza o seu maior desafio e desacomodação, e talvez seja desses que ela mais goste. Outros, compoem-se com leveza e tranquilidade, um balançar dos tons da espera suave, como se o tempo passasse por cima da tenda e não alterasse o momento interno. Há por vezes os que, de súbito, se misturam e multiplicam - nesses, há vários trapezistas nos mirantes, observadores que esperam que algo lhes chegue às mãos. Quando acontece de um trapézio se aproximar vazio, puxam-no com habilidade com as mãos e formam linhas oblíquas em seus olhares. Ela está atenta do outro lado da estrutura de ferro, mas raramente se mexe.

No fundo, teme os trapézios furta-cor. Atraem-na, são-lhe irresistíveis, uma espécie camaleônica de natureza, um tempero orientalmente agridoce, uma vagem de tamarindo que se chupa até o fim para aliviar o travo amargo que provoca, e que as pessoas nem sabem o quanto gostam - mas querem. Furtam-lhe as cores tanto quanto lhe furtam o sossego; mas o pior de tudo é quando lhe furtam aquilo que ela chama de confiança, e que responde ao impulso que a faz largar o trapézio sem sequer pensar se haverá quem a alcance do outro lado. A meio do voo, descobre atônita que é bem possível que não haja braços que agarrem e segurem e protejam e se façam atentos, e que apenas a aguarde um vazio cor de tarde triste sem chuva. Que pode ela fazer, sem a rede de segurança que nunca guardou na bagagem, com a confiança que se esfuma e o salto que já deu?

Os trapézios furta-cor divertem-se com a confusão que provocam. São alegres e bem-aventurados, mas escapa-lhes um dom: o de se fazerem eternos nos gestos pequenos de um dia após o outro, porque quando nunca nada se espera, é muito pouco o que se oferece.


Imagem: Mariana Gouveia/2009

30/09/2012

Cabelos de sereia

Hoje de manhã decidi arrumar papeis. Colocar em pastas o que pertence a projetos acabados - tão  mas tão recém acabados que me olham espantados de que os queira guardar. Mas é preciso, inclusive para abrir espaço na minha mesa para os que já batem à porta, insistência mansa de algumas semanas. Descubro, a meio dessa lenta arrumação, atentamente lenta em tudo o que me ocupa inteira, que tenho um trânsito poderoso no meu céu: um marte em  conjunção com mercúrio natal, coisa que, aprendo, só acontece de dois em dois anos, e que me trará a sensação de ter bebido dez xícaras de café. Céus! Já devo estar já na quinta, penso. E canso, só de imaginar o que trarão esses próximos vinte dias, tempo que dura o tal trânsito.

Por isso decido andar pelos campos, para quem sabe diminuir toda essa cafeína astral dentro de mim. Não é fuga, repito pra mim mesma, é vontade de procurar. Volto ao mesmo lugar de ontem, na expectativa de recuperar a impressão já passada, mas acontece como tantas vezes: o passado está lá, consigo quase senti-lo com as pontas dos dedos, de mãos dadas com o presente, mas eu não estou. Olho em volta, deito-me ao comprido na relva, como me recomendaria Caeiro, fecho e abro os olhos, mas nada: o mundo em mim mudou. Ouço a minha filha gritar, num entusiasmo que lhe é bem característico: "Caramba, um campo de cabelos de sereia!", mas é o seu grito de ontem, a sua reedição em meus ouvidos treinados em reeditarem os sons. Rio-me quase como me ri ontem ao ouvi-la, nesse êxtase que vê à sua volta, e vejo-a correr para cima e para baixo, flutuando leve por cima dessas hastes que lhe sorriem tentadoras. Mas ela está em casa, desenhando cabelos de sereia, e quem está aqui sou, mais a minha memória feita de tato e ouvido e gosto.

Volto para casa horas depois, fotografias a tiracolo, um atraso já presente do que é preciso fazer hoje. Olho a minha mesa, a pasta que deixei entreaberta para que o passado terminado respire seu último oxigênio. E de repente penso que o passado são conchas que se escondem dentro de si, estrelas do destino em forma côncava. Ele, o passado, sai por uma porta, trazendo atrás de si o futuro; eu permaneço de pé, mãos estendidas querendo esse presente impalpável que insiste em se tornar mais matéria quando já se foi. Como um corpo que crescesse de repente, num trapézio de rugas que aprendo a interpretar quando se faz noite, um corpo feito de hastes maleáveis de silêncio impenetrável, a que a minha filha deu o nome de sereias.


24/09/2012

Luzes e sombra


É de Jaú, a meio caminho entre Araraquara e Botucatu, que me chegam as palavras mais sentidas que tenho lido ultimamente. Abro uma pausa para relê-las e relê-las e relê-las outra vez. Aproximo-me delas por todos os quadrantes, deslizando nesse trapézio oscilante em que se oferecem, sem chão sob seus pés. Quase posso tocá-las, de tão tênues, pequenos fios na direção de um outro que pôs um fim a si mesmo. Para não dizer de quem são, uso-lhe a inicial: R. Personagem de si mesmo, dizendo-se despreparado num tão absoluto preparo, daquele tipo de que apenas as crianças sabem os caminhos. R. estende-me a mão desde o seu vazio, triplicando a força de um ponto final, transformando-o em reticências - reticências que se abram numa maiúscula que lhe inaugure um tempo novo. Mais pleno. Menos doído.

R. escreveu-me de manhãzinha: o que faço com isso tudo que sinto, pergunta. Resposta padrão, a que dou a mim mesma quando me sinto assim (e quando não também): escreve, R., escreve. Em primeira pessoa, jogando-se nas palavras como se seu mais caloroso leito, jogando-as sobre si como se tivessem (e têm) o poder de lavar-lhe a alma, mergulhando na sua densidade, deixando-se permear absorver resolver. Depois vemos, digo-lhe. Lemos juntos. Em pouco tempo, recebo de volta as suas palavras de limpeza e desabafo. Um texto lindo - pena que não posso publicá-lo, penso.

Desculpa-se de há muito não escrever, e ainda e sobretudo da sua "gramática terrível". E eu fico matutando nesse "terrível" que usa com um peso que pressinto; imagino que pense na pontuação atribulada, na concordância invertida, em todos aqueles sintomas que advertem (e curam) uma alma em conflito. Digo-lhe que não há nada de terrível; terrível é ver-se a si mesmo refletido numa tela de palavras que não sejam suas, e que nada digam a ninguém; terrível é ver-se entalado e afogado em pontos e vírgulas e reticências quantas reticências, que não pertencem ao momento da sua alma, e que mais a anestesiam que a inebriam, e mais a afastam do outro do que potencializam o seu juntar-se. Terrível é sentir-se terrível no campo aberto da linguagem, sem conseguir libertar-se de tanta limitação e interdito. E R. não se sente nada disso - portanto, digo-lhe, não use terrível. Deixe-se ressoar.

Gosto da subversão com que as palavras e as pausas seduzem e instigam, aliciando rebeldias desde o miolo do papel. Gosto do gosto que lhes sinto quando se oferecem assim, tão nuas e virgens, e se deliciam entre nossos dedos pelo simples prazer de estarem entre eles, espremidas e molhadas e inteiras e aos pedaços. Nada há de terrível na vírgula que tão bem se coloca entre duas frases que saem entrelaçadas como morte e vida, agarradas a qualquer trapézio, sublinhando toda reticência para que se abra e seja mais e melhor e sempre.


Foto de Álvaro Guedes. 
Exposição "Lágrimas de São Pedro", no Sesc Araraquara, em agosto.

21/09/2012

Urgências e premências

Era uma padaria, hoje de tarde, e ambos pareciam estátuas. Ângela e Mauro sequer se mexiam. Precisei dar-lhes nome, explico a minha interlocutora, sentada ao meu lado: para não afundar nessa tensa presença do esgarçar de um pano, lançada desde onde se sentam, à minha esquerda. Ocupam uma mesa redonda que, em vez de congregar, distancia. (Minha interlocutora alterna um olhar espantado entre o casal sentado à mesa e eu, que não consigo explicar-lhe mais nada e tenho dificuldade em entender o que me diz daqui em diante.)

O pé de Mauro dobra-se, escondido por baixo da cadeira numa vergonha surda, e é imperceptível o movimento que faz, muito de vez em quando. Ângela, olhos verdes que se enchem de água ao de leve, fixa seu olhar na janela, no trânsito da avenida lá fora, nas pessoas que passam através do vidro. Não vê nada, mas ainda assim fixa-se, procurando um ponto de apoio na solidão que a inunda. A sua blusa branca não transpira paz, só uma espécie de substrato do medo que se sente diante do precipício que ela batizou, hoje de manhã, de futuro.

A mão de Mauro está entre as suas, por entre as unhas vermelhas cuidadas. Como o cabelo pintado, destacando o tom marítimo dos olhos. Sim:  olhos verde-marítimo. Como as águas que não rolam do seu peito, depois da descoberta. Sei que os olhos de Mauro estão presos aos dela, ainda que ele esteja quase de costas para mim. Vejo-lhe as hastes dos óculos, e pouco mais. O cabelo ralo, o corpo inclinado num desejo aparência de reconciliação, a jaqueta azul escuro combinando com os tênis em seus pés cansados.

Não há palavras, e a minha aflição cresce. Digo para mim mesma (e descubro que foi em voz alta, porque a minha interlocutora olha-me surpresa) que não irei embora antes deles se movimentarem e resolverem as suas pendências.

Como se me ouvisse, Ângela move-se. Afasta-se do encosto da cadeira, abandona as coisas vidradas lá de fora e embala a fixidez das suas retinas nas de Mauro. Não há nada, em seu olhar, a não ser mágoa. E talvez uma palavra entalada na garganta, aquela que a sua boa educação, contida, calada, não permite tornar-se audível. E talvez algo que poderia soar parecido a "como você quer que eu consiga respirar debaixo da pedra que você colocou em cima de mim?". Mauro é um pequeno animal apanhado em flagrante, a  respiração alterada por baixo da jaqueta. Não tem pedras em suas mãos, seus pulsos são fracos, frágeis, débeis. Quase desprezíveis, ouço-me pensar. E preciso escrever, ouço-me dizer.

Passa-se muito tempo, o suficiente para meu cappuccino esfriar. (A minha interlocutora ri-se. Também ela, creio, escreverá ao chegar a casa. A escrita é uma entidade contaminadora.) Vou-me embora antes que a situação afinal se resolva - tenho horário, o trânsito paulistano não perdoa, os alunos estão à espera, há coelhos frenéticos de relógio ao pulso por todos os lados. Mas não posso deixar de carregar esses dois seres, que mais que provavelmente nunca conhecerei, dentro dos meus dedos. Preciso desembrulhá-los, descarregá-los, desembarcá-los assim que chego ao meu destino, numa brevidade urgente de escrita. A eles e à sua tensão sofrida, ao fim que seus olhares prenunciam e que as mãos querem a todo custo retardar retardar retardar.

É assim, às vezes: como se um risco fugaz de ideia pulasse do que está em volta e se acoplasse aos nós dos dedos, e de lá precisasse sofregamente pular novamente, em busca da caneta, do lápis, do teclado. Mais forte do que a própria vontade, os nomes ficcionais  agarram-se aos  neurônios,  criam vida, independentes de repente dos seres de carne e osso que os fizeram emergir das sombras; colocam-se em contato por mil sinapses desenfreadas. A mim, são capazes de me atormentar por horas a fio, a um canto escondido do cérebro que vive dentro do meu coração, até que capitule. Aí, então, sento-me e escrevo até que algo em mim diga "estou satisfeito". E me deixe descansar, todas as Ângelas e os Mauros em silêncio por algumas horas.


19/09/2012

Flores de ontem


Meus amigos acharam estranho o nome: alstroeméria. Fui conferir e, de fato, o nome da flor que levei de presente é esse mesmo. A culpa é de Claus von Alstromer, um sueco barão que em 1753 recolheu suas sementes e as levou para a Espanha - lá, ficaram conhecidas como Lírio dos Incas. Ainda assim, o barão deve ter gostado de lhes dar o seu nome, tanto quanto eu gostei de tê-las oferecido.

Flores são presentes que gosto de dar. Especialmente de corte, porque demandam o cuidado e a atenção de buscar-lhes um recipiente. Entre todas, gosto especialmente delas, as alstroemérias - além de lindas, duram uma eternidade (ou quase). Associam-nas, aqueles que gostam da linguagem das flores, à felicidade que pode unir as pessoas. As suas folhas crescem ao contrário: a folha torce-se ao sair do talo e ao final elas ficam todas viradas ao contrário, suaves contorcionistas. Como as amizades e outros sentimentos assim, que precisam torcer-se vezes sem conta sobre si mesmos para sobreviverem. Não precisam de tanto contorcionismo, estes amigos: a amizade entre nós não se interrompe, apesar da distância e do tempo que escasseia e impede que nos encontremos como gostaríamos.

Gosto de pensar que as alstroemérias que lhes levei permanecem no jarro da sala, seu recipiente físico, e aí ficarão durante muitos dias, viçosas, coloridas e sobretudo resistentes. O recipiente maior, no entanto, está dentro dos meus amigos, naquele lugar que abrem para o nosso encontro. É aí que esse símbolo que escolho com cuidado, as alstroemérias, encontra seu lugar de verdadeiro acolhimento. Quando há espaços internos para receber e ser recebido.

Como elas, resistimos, alicerçados uns nos outros. Para não sucumbir, para não permitir que o cansaço, a falta de tempo, as voltas que a vida dá impeçam que se veja diante dos olhos, luminoso e altivo, o entrelaçado da vida. À distância, os olhos dos meus amigos abrem-se para a permanência que as alstroemérias conferem ao lugar em que estão, e sei que sentem, por entre as suas flores, a presença concreta da nossa amizade. Tão concreta quanto as alstroemérias da foto: ontem, tentei reeditar essa forma de sentir. E as flores repousam dóceis  e resistentes na janela da sala.

13/09/2012

Suspiros

Dia desses, numa das aulas de Escrita Criativa, uma escritora querida contou-nos a seguinte história.

Seu neto encontrava bastante dificuldade na leitura em voz alta (e em voz baixa, consequentemente): desconsiderava todo sinal de pontuação (especialmente as vírgulas) e, coitado, perdia o fôlego frequentemente. Zelosa, a avó disse-lhe que, sempre que encontrasse uma vírgula, respirasse - que parasse para respirar. Ele retomou a leitura, fazendo da sua respiração, a cada encontro de vírgula, um profundo suspiro. Ela achou graça, claro, mas resolveu não dizer nada. Era um sábado, esse dia, e a leitura prosseguiu entre suspiros virgulados.

No dia seguinte, foram ambos lanchar a uma padaria perto de casa. A avó perguntou-lhe o que queria e ele  respondeu sem titubear: - Ali, aquele doce de vírgulas! Os olhos da avó brilham ao nos contar, e faz um silêncio profundo. Olhamos todos para ela esperando a explicação. - Não entenderam? Ele queria um suspiro!

Uns dias depois, em outra aula de um outro grupo, conto a história. Porque o tema em mãos era, justamente, pontuação. Coisa que as pessoas acham que não sabem - embora ninguém se atrapalhe com ela ao conversar... Chegamos à conclusão de que as vírgulas são silêncios, espaços de tempo em que os sons dão um tempo dentro da gente para se ouvirem melhor. Logo me vem o silencioso instante antes do nascimento, o segundo anterior ao primeiro respirar, ao primeiro suspiro que integra um novo ser à vida terrestre. Quem viveu na Idade Média falava em spirare, e tanto podia querer dizer respirar, quanto soprar, quanto viver. Esse intervalo de silêncio, o sopro, o respirar, mantém-nos vivos e à tona.

Cada aula poderia, tranquilamente, render um texto. De tanto que todos se ensinam, sobretudo quando o olhar atento à palavra se desencontra da lógica da regra, quando a intuição assume a liderança e as palavras se soltam de dentro de cada um, falando elas mesmas do que tratam, do que fazem, do que são, do que querem - quando de repente a escrita se resume a um espaço em aberto, livre, solto, disposto a se doar à nossa mão imaginativa. O diálogo transforma-se, nessas horas, e emerge a impressão de que sabemos muito mais do que achamos que sabemos. Sobre pontuação, e sobre muitas outras coisas - sobretudo quando conseguimos deixar que as regras repousem tranquilamente a alguns metros de distância da vida, essa matéria oxigenada que compartilhamos enquanto respiramos.

10/09/2012

Escanteio

Futebol não é coisa que me entusiasme. Gosto das finais, mas mais da festa das arquibancadas, seu colorido exagerado, do que dos movimentos do campo em si. Divirto-me observando torcedores empolgados, mas nada que além disso realmente me tome por dentro. O que me toma por dentro é essa reunião de pessoas que se reconhecem em coisas simples.

De tudo o que acontece, porém, gosto dos escanteios. Porque se parecem com a vida, naqueles momentos em que é preciso reiniciar uma partida, depois que a bola saiu completamente de campo pela linha do fundo - sem ter, obviamente, marcado gol. Respirar, perceber quem tocou na bola pela última vez e decidir quem, da equipe contrária, baterá o escanteio. São bons momentos para marcar um gol, que uns defendem e outros tentam conseguir. Não sei de estatísticas, mas parece-me que na maioria das vezes (feliz ou) infelizmente não há gol e a partida continua. 

Às vezes, na vida, a partida parece parar indefinidamente. Ninguém se mexe, como se campo e arquibancada decidissem suspender a ação e esperar que os deuses descessem do Olimpo para decidir a vida. Eles não vêm, há séculos. Entregaram-nos a batuta e não se imiscuem mais. Cabe-nos decidir pra onde a bola, pelo pé de quem, e se sairá de uma intersecção de linhas que parece uma encruzilhada, ou da tranquilizadora reta sem desafios.

Curioso que, se a bola sai por uma das laterais, deva ser relançada ao jogo do lugar por onde saiu. Uma saída rápida, um retorno rápido também, sem maiores consequências - essa a tranquilidade da reta. Mas quando sai pela linha de fundo, quando alguém tentou (eu sei, nem sempre, mas muitas vezes) marcar um gol, arriscar-se à vitória, ao sublime, precisa obrigatoriamente voltar ao jogo pelo canto. Deve ser mais fácil, à equipe adversária, tentar um gol nessa posição de lançamento, e por isso qualquer saída pela linha de fundo representa um risco - e se não se acerta o gol, e quem o faz é o adversário, na cobrança do escanteio? Está-se mais perto da baliza, como diriam meus conterrâneos, numa inclinação que a um leigo parece bem interessante.

Como na vida, penso de novo. Dependendo de por qual linha a bola saiu, dependendo do ímpeto, do nível de risco, da avaliação das chances, o retorno acontecerá. O gol que tentou ser marcado pode ser como os burros n'água, pode ser que de repente tudo se volte contra, dentes arreganhados num sorriso quem sabe se de escárnio, ameaça pairando no ar. Nessas horas, não há solução, não adianta olhar em volta à procura de ajuda: parte-se para a defesa, cotovelos com cotovelos, esperando que o salto no ar, cabeça em direção à bola, seja o suficiente para desviá-la do caminho da rede. Quando não é inevitável, costuma dar certo.

06/09/2012

Palavras perigosas


Avanço noite adentro olhando de soslaio para as tarefas que preciso cumprir – seja terminar o romance em mãos até o dia previsto, seja dar andamento à tradução com prazo. O olhar que tudo me devolve é esse: tarefas sem cor a serem cumpridas no tiquetaque do relógio. Por isso, faço uma pausa para inventar outra coisa, para que as horas que se aproximam me sejam produtivas. Palavras em forma de crônica às vezes servem para isso – para desempoeirar a noite, para temperar as horas de qualquer sabor que se invente mais colorido e transforme tarefas em alvos a serem atingidos alegremente.

Passei o dia com uma ideia em movimento dentro de mim: dos vários perigos que rondam as palavras, o maior deve ser o que ronda as que agregam no seu começo o prefixo sub. Tudo o que vem depois dele, antes mesmo que comece a ser, apresenta-se logo diminuído. Como uma maldição, uma sentença, um aviso em letras garrafais. Casas subavaliadas, por exemplo: moradias às quais não se presta a atenção devida. Palavras subentendidas: correm o risco de nunca serem realmente percebidas tal qual se queria, e tornam-se menores em importância. Atitudes subreptícias: esgueiram-se por onde não devem, e tornam-nos menores do que esperamos tornar-nos. Propagandas subliminares: atingem-nos sem que possamos nos defender, e esmagam-nos até sermos menos do que somos.

Estimar é gostar de alguma coisa, ou pessoa, e cuidar dela. Da maneira como ela precisa, que às vezes não é muito exatamente a nossa própria maneira. Uma arte, desapegar-se de si mesmo para agregar o outro, dar-lhe o valor que tem, partes diferentes confundindo-se num todo maior, sem subs de permeio. Quando se gosta menos do que o outro merece, e quando se cuida menos do que o outro precisa, subestima-se o que ele é. E ele diminui. 

As palavras podem fazer-nos definhar. Por isso o perigo.

Em momentos assim, é como se mergulhássemos o ouro que temos nas mãos em águas turvas. Perdem-se as mãos e perde-se o brilho. Desperdiça-se tempo, dedicação, atenção, pensamento. É preciso, a todo custo, equilibrar opostos, desviar de contradições, aproximar o que é diferente através da aceitação – e talvez a mais difícil seja aquela que nos diz respeito, a nós mesmos, as nossas pequenas diferenças, agulhas espetadas em nossos pontos mais sensíveis. Não somos iguais o tempo todo, mas não precisamos ser subnada: como vários eus que se encontrassem e transformassem o espaço entre si numa festividade alegre.

Às vezes antíteses, às vezes paradoxos, nossos sentimentos tendem ao inteiro, mesmo quando os tentamos converter em subprodutos da nossa matéria. Não se pode viver em subtração, em subdivisão, num subtempo que tenta a qualquer preço converter-nos em subpessoas, vivendo às metades cada parte do dia, deixando para logo mais o que deveria estar e ser, estendido em nossas mãos, a todo momento.

É preciso guardar o ouro no lugar em que brilha, e não nas profundezas do que subjaz. É preciso sobreviver. E as tais tarefas, que de longe pareciam submeter-me a uma prisão sem grades, reluzem diante de mim como a própria sobrevivência. Deixo tudo em mim em aberto, e avanço para cada uma delas como se de ouro puro se tratasse. Limpando os sub que se interpõem entre a vida e eu. Arejando os quartos onde a vontade mais profunda se detém, à espera.

05/09/2012

Exercício: a personagem, ao acordar

Como se a pele descamasse para dentro, lembra-se Isaura ao acordar. Como se todos os toques do mundo, os sutis e os mais densos, fossem absorvidos por uma camada de derme invisível, interna, que os microscópios insistem em não detectar. Deve ser assim, pensa, que as pessoas se compõem. Das marcas por baixo da pele evidente.

Isaura demora-se na cama. Procura dentro de si os toques mais antigos, aqueles que a fizeram nascer e brotar para a vida, os primeiros dedos que imprimiram as suas dobras infantis. Estão lá, pressente, como condições que outros impuseram ao tato que construiria durante a vida inteira. Lembra-se da mãe, dos irmãos, da vida de pequena, tão fácil de ser vivida enquanto sequer era pensada. Uma maciez que acoberta os bruscos redemoinhos da vida, todos eles prensados nessa pele de dentro, escamada, transparente.

O cheiro que cada tamanho de amor plantou por entre os seus poros está lá, nessa fina película de memória táctil. Encostam-se uns aos outros, esses cheiros feitos de poros alheios, filtrados e perenes. Descansam imóveis, numa forma quase intacta de memória. Isaura só pode vê-los de fora; perderam o aroma, são só formas estelares de escamas de pele que entraram dentro de si em vez de se espalharem no cosmos.

Não podem ser trazidos à tona, e é essa percepção que faz com que a presença morna do cobertor contraste com o frio de fora. Isaura deveria levantar-se, de um pulo, concretizar-se no dia de hoje. Mas demora-se, como raramente faz. A sua pele de fora ainda se ajeita no dia de hoje, incapaz de relacionar-se com a teia de vibrações antigas que a faz ser quem é. E sem querer, muito sem querer, Isaura incomoda-se. E sofre. Sofro de mim mesma?, pergunta-se de olhos fechados, resistindo à tentação de abri-los e perceber o quanto a sua pele de fora está dentro do presente.

Talvez se soubesse o que fazer com o seu tato de hoje. Talvez se as rugas que colecionou vida afora não a lembrassem da passagem inabalável do tempo, seus começos e fins anunciados. Talvez se houvesse viço nessa pele seca pela falta de chuva. Talvez se seus olhos tivessem a capacidade de ver através de todas as camadas. Talvez se conseguisse reter dentro do espaço que formam os seus dedos a presença etérea de Armindo, Armindo longe, Armindo não sabe onde, Armindo que a deixa de rastros, Armindo que se ausenta e lhe oferece com mãos quentes um vazio feito de luz e solidão. Mas a vida acorda toda sins e nãos, os talvez não têm espaço e Armindo, Armindo escapa por entre os dedos, desliza pela palma da mão e escorrega para o silêncio.

E Isaura levanta-se. Toma banho. Arruma as suas coisas, quase maquinalmente, preparando-se para vestir a pele com que o mundo a reconhece. E pergunta-se, enquanto fecha a porta à chave, se conseguirá suportar-se ainda muito tempo.

28/08/2012

Por causa do plâncton


Nos encontros de escrita criativa há exercícios que surgem, assim de repente, e que constituem surpresas linguísticas. Muitas vezes as palavras que os outros me aportam ficam na minha memória mais profunda – transformo-me em porto para dar-lhes guarida, esperando que se sintam em segurança e não me abandonem. Eclodem depois, também de repente, como se aguardassem numa paciência de gestação que eu as alinhavasse às impressões do cotidiano mais prosaico. Nessa troca de roupagem, o dia a dia esgueira-se para dentro da magia que as palavras contêm em si mesmas. Ilumina-se e ilumina-nos. Quase que à maneira de uma Orides Fontela: “A luz está/em nós: iluminamos”. Porque o que vem do outro ilumina-nos. E porque num passe de mágica, a realidade plástica das palavras torna-se movimento livre diante dos olhos. Foi assim, dia desses, com a palavra plâncton.

Graças a M., que estudava afincadamente para a sua prova de biologia, descubro (os demais já sabiam, a única biologicamente inculta era eu mesma) que plânctons não nadam contra a corrente. Permanecem em suspensão, algas e organismos minúsculos, deixando que o movimento das águas que habitam os conduzam, plenos de fertilidade. São seres errantes (plágchian, contam os gregos), e ainda por cima sintetizadores de luz. Iluminam-se. Aos nectons, peixes que acompanham o fluir aquático, acontece o mesmo: acompanham a corrente das águas, tão à vontade nessa entrega que lhes é destino.

Já os benctons (M. com certeza terá uma nota fantástica na prova!) são diferentes: associam-se ao que não se mexe para (talvez) não se deixarem levar pela correnteza. Agarram-se às rochas que encontram, e lá ficam, observando imóveis e previdentes o fluir da água. É bom que haja faróis atentos ao movimento em volta, como guardiões. Talvez os benctons o sejam, e assim plânctons e nectons fluam com mais tranquilidade por entre a espuma e as ondas. 

Todos vivem na água, seu elemento de base. E é pela água que eles me interessam: vejo-a por todas as partes, até nas mais sólidas do corpo dos outros. Enquanto escrevem, estes meus alunos tão aplicados e plenos de entusiasmo, nem percebem que os observo, procurando por entre seus gestos, por entre as pausas que fazem enquanto procuram no ar a palavra que lhes falta, a presença da água que trouxeram para dentro da sala, com seus plânctons, seus nectons, seus benctons, todos esses seres dóceis e sensíveis ao toque do elemento líquido na sua constituição. As mãos fluem pelo papel, vejo-as tornarem-se menos densas, brincando com as palavras que escorregam dos dedos para dentro da folha em branco. Uma ri, sozinha, naquele alheamento de quando as palavras nos fazem cócegas; outra, escreve e apaga, num meneio de cabeça que indica que não, ainda não é assim que quero dizer o que quero dizer; um outro está absorto, e é ele quem mais parece procurar as palavras que ainda lhe faltam. Porque os tempos são diferentes e este, que precisa do seu próprio tempo para desentocar as palavras das cavernas em que brincam de esconder-se, sorri finalmente e começa a escrever com um brilho aquático por entre os olhos. Eu mesma estou mais líquida, da cor das lágrimas que escorrem por dentro, como sempre fazem as minhas águas internas quando as palavras assumem seu lugar ao leme desta sala em que se escreve.

27/08/2012

Benvinda


Num certo momento da sua vida, meu pai tomou a decisão de, em vez de comprar uma casa, abrir uma loja de material esportivo. Revendedor exclusivo da Tretorn, marca que patrocinava a sua carreira de tenista, em poucos meses confirmou-se o vaticínio do meu avô: encordoamentos de graça para o amigo querido que nunca lhe negara o ombro, bolas distribuídas pela rapaziada que amava tênis mas não tinha dinheiro para comprá-las, demonstrações de produtos que pouco rendiam – o tino comercial do meu pai abria um rombo incompreensível nas finanças familiares. 

Meu pai viajava, e eu muitas vezes com ele, para torneios e campeonatos. Não conseguia decidir-se: o que era ele afinal? Um jogador em competição ou um vendedor em busca de negócios? O jogador invariavelmente ganhava. E o vendedor esquecia-se de vender, e preferia distribuir faixas de cabeça para divulgar a marca e deixar os outros felizes com o presente. Não sei quanto tempo a loja durou, mas tivemos bolas e raquetes e bolsas Tretorn espalhadas pela casa durante décadas.

Numa dessas viagens a campeonatos, creio que ao Algarve, lembro-me de uma senhora, rosto emoldurado por uma espécie de capacete de cabelo louro, olhos azul cobalto e imenso entusiasmo com o tênis. Chamava-se Benvinda. Eu era pequena, e fiquei encantada com esse nome. Aprendi, com ela, a diferença entre substantivos próprios e comuns: próprio era o nome dela, Benvinda, invulgar e cheio de esperança, ela mesma uma pessoa invulgar, de hábitos diferentes da maioria das mulheres que me rodeavam. Andava sozinha, fumava uma longa piteira de prata e tratava todos os homens por “tu”, numa desenvoltura e alegria que insuflava vida a qualquer ambiente a que chegasse. Sentava-se nas arquibancadas com um chapéu branco imenso, e chamava-me para sentar-me ao seu lado. Ria, apertava-me a mão e comentava cada lance a um lado e ao outro da rede. Não tinha favoritos: eram todos seus favoritos.

Comum, especialmente para ela, era sentir-se bem-vinda. Contagiava-me, o espírito de Benvinda, e era também bem-vinda que eu me sentia por entre raquetes e redes, divertindo-me mais com a observação do público do que com o jogo em si, em liberdade quase absoluta enquanto meu pai jogava e torcia pelos amigos que também jogavam. 

A sensação de ser bem-vindo é poderosa. Uma espécie de sentimento de adequação, de certo no certo, um aquecimento interno que desenha um sorriso leve nos lábios. São horas preciosas, quando nos sentimos assim. Podem ser as cores de três vasos de flores simples que pousam anonimamente em cima da mesa da sala. Ou o pão de mandioca deixado à porta, embrulhado num paninho bordado, com dois galhinhos de flores lilases e o bilhete sem assinatura: “Bem vindas”. Ou o bem-vinda que se ouve, num sussurro quase em silêncio, a meio da noite, como a morada de um reconhecimento, um aquecer que adormece de sorriso interno. Desconfio que andei sonhando com o chapéu esvoaçante de Benvinda pairando por cima dos campos de saibro. Sorria-me, ainda de longe, e acenava-me com a mão, num movimento aéreo de “vem sentar-te comigo, sê bem-vinda!”.

23/08/2012

Hiatos e ditongos



Hiatos, diz-me Aurélio (Buarque de Holanda) são encontros – de duas vogais, uma no fim de uma sílaba, outra no começo da próxima. Criam-se, penso, a partir de um vazio, de um vácuo, uma falha no tempo comum – uma questão de tonicidade, dir-me-ão alguns, mas é muito mais do que isso. É um pulo no desconhecido, breve e rápido, quase imperceptível. As sílabas sentem-no, mas o nosso falar apressado quase que consegue suprimir a falta. E pensa-se que há som sempre, e o silêncio tênue dos hiatos não se escuta.

Usa-se falar de hiato também na anatomia dos corpos: aqui, o hiato é uma fenda ou abertura no corpo humano, um espaço entre duas realidades da carnadura concreta. E é ainda aplicável a qualquer campo semântico: uma lacuna, um intervalo. De onde vejo, um espaço de tempo dentro do tempo, onde quem sabe se respira melhor, onde quem sabe se vê melhor, onde quem sabe se sente com um sentir mais sentido. Isso, se há espaço para o silêncio, porque seja de som ou forma, um hiato é sempre sempre intervalo, fenda, abertura, vácuo. Quanto mais penso neles, mais eu gosto dos hiatos, espaços vazios imperfeitamente perfeitos. Como se uma perfeição feita de mil pequenas imperfeições – as nossas lacunas e falhas e intervalos e silêncios reunidos e em encontro uns com os outros.

Às vogais que se juntam numa mesma sílaba, unidas visceralmente, dá-se o nome de ditongos. Por vezes crescem, por vezes diminuem. Uma questão de entonação, de sonoridade, de ordem das coisas dentro do mundo próprio da palavra. Cresce-se ao dizer o ditongo que contém a palavra “quando”; e diminui-se (paradoxalmente) ao vocalizar o ditongo presente em “mais”. 

A poesia lida de forma livre com os ditongos: cria hiatos para conseguir o tempo e o ritmo certos. Camões assim fez - expandiu ditongos em hiatos, num processo a que tecnicamente se dá o nome de diérese. O poeta clássico, num de seus muitos sonetos, expande a palavra saudade para nos tornar mais palpável a distância que existe entre os olhos de quem ama e o seu objeto de amor. No terceiro verso (veja logo aí embaixo), expande o ditongo da palavra saudade para nos preencher  justamente de mais saudade, para que ela seja mais e maior do que parece à primeira e ditongal vista: primeiro, sau-da-de, depois, sa-u-da-de. Uma percepção sutil e fina do tamanho da falta que sente aquele que ama e está apartado do seu amor, em sílabas que só são 10, como deve ser um soneto, porque a saudade recebeu ar dentro dela.
                   
                     Têm feito os olhos neste apartamento
                     um mar de saudosa tempestade,
                     que pode dar saudade à saudade,
                     sentimentos ao próprio sentimento.


A vida embrenha-se numa sucessão de hiatos e ditongos. Às vezes, espaços que se abrem no vazio, e nos separam em sílabas que se juntam apenas pelo silêncio que se faz entre elas, a supressão do que é comum abrindo espaço ao divino. Outras, espaços que caminham juntos, alicerçados, amalgamados como vogais que não queiram largar-se jamais, mas onde a mão de poeta em cada um de nós escolhe inserir um tempo, um breve segundo de respiração suspensa, um hiato que se esgueira para dentro da cômoda vida dos ditongos, abrindo-a e fazendo-a respirar em liberdade. Porque o mais provável é que a perfeição resida mesmo no que é (ou parece) imperfeito.



O soneto de Camões, na íntegra:

Têm feito os olhos neste apartamento
um mar de saudosa tempestade,
que pode dar saudade à saudade,
sentimentos ao próprio sentimento.

Em dor vai convertido o sofrimento,
em pena convertida a piedade;
a razão tão vencida da vontade
que escravo faz do mal o entendimento.

A língua não alcança o que a alma sente.
E assi, se alguém quiser em algüa hora
saber que cousa é dor não compreendida,

parta-se do seu bem por que experimente
que, antes de se partir, melhor me fora
partir-se do viver para ter vida.

13/08/2012

Ainda a cidade nova...

As férias de julho de dona S. começaram bem. Uma sequência de bingos na paróquia perto da casa da sua amiga D., lá longe, outro bairro, distante do dia a dia. Abre um sorriso assim que me vê, espantada com as ausências maiores que as presenças. Viajo muito, reclama, como é que vou virar sua amiga... Vai bonita, arrumada, atrasada porque precisou fazer a unha. Se vai aproveitar pra namorar? Ora, minha filha, pra que isso? Tou melhor sozinha do que com outro igual meu marido. Gritava, irritava-se com qualquer coisa, queria tudo a seu tempo - seu tempo, e não o tempo do tempo. Muito menos o tempo alheio. Vejo-a andar apressada pela calçada sombreada, enérgica sob a ilusão dos cabelos todos brancos, até virar e desaparecer na esquina.

Queria que eu fosse com ela. Mas eu prefiro ir até o cemitério. Além de não morrer de amor por bingos, prefiro olhar para o tempo que escorre devagar por entre os túmulos, como se água calma que não espere nenhum meandro mais, sequer o desaguar no oceano.

Qualquer dia é dia de visitar cemitério, mas aos domingos há mais gente que se lembra de quem se foi. Aparecem todos armados de mangueiras e baldes, despejando carradas de água, como diria  seriamente minha avó, nas lajes enegrecidas pelas queimadas fora da lei que persistem apesar das multas. Esfregam, trocam a areia dos pratinhos dos vasos, benzem-se entre uma e outra coisa. Causam-me ternura duas velhinhas de preto, parecem um luto gêmeo, assim ao longe. Visitam seus maridos idos, conversam saudosas com as pedras como se elas tivessem os ouvidos deles, e ainda lhes sorrissem de volta, confirmando a saudade imensa que sentem nas planícies do Senhor. Arqueiam as costas de vez em quando, difícil viver assim agachadas, uma fé de coluna esmagada que dói só de olhar.

Vou armada de máquina, para registrar esse Cristo que se levanta acima do horizonte e contempla o infinito, onde o tempo nem passa, nem entra, nem escorre. Onde as coisas são. Plenas, limpas e simples. Imutáveis. Demoro-me, porque me faz bem. Quero o mesmo.

Dona S. volta do bingo agitada - conto-lhe da minha ida ao cemitério e os olhos enchem-se-lhe de lágrimas. Afinal, diz-me, foi como ir ao cemitério. Com todos os defeitos, era melhor ir com meu marido e voltar para casa rindo das bobagens que dizia... do que assim, a casa vazia e ninguém pra conversar. E seu olhar é o mesmo das velhinhas de preto, apesar das unhas vermelhas. Talvez porque seja dentro de nós que as coisas sejam, em permanente sobrevivência. É mais fácil atravessar a noite dessa forma.



Mãos abertas


Tenho dois amigos queridos que decidiram abrir cada um as suas mãos para permitir que a vida se cumpra no espaço que formam. A meio de uma crise, encaram-na como oportunidade, como se fossem chineses acabados de desembarcar, e apesar das dores e das lágrimas, das dúvidas e dos tropeços, erguem-se em uníssono e caminham pela praia com leveza. Quase não deixam marcas na areia macia. Devem combinar percursos, só pode ser, porque parecem alinhavar os caminhos que percorrem lado a lado, e é bonito de ver o movimento de ambos, titubeante mas permeado de amor, escapando das ondas pequenas que querem refrescar-lhes os pés, como se voltassem a ser crianças dentro do espaço do seu sentimento. Estamos na praia, já se vê, esse lugar em que a atmosfera é mais clara e fresca, e onde os sentimentos e os sonhos são embalados pelo som das ondas ao longe. Eu me vejo melhor e vejo melhor os outros na praia, talvez por ter nascido quase dentro de uma, talvez porque o som das ondas ressoe na mata e não pare nunca.

Amor, há que explicá-lo. Este que se descobre diante de mim não é o amor que tolera e entende, mas o que se desdobra e respira o ar em volta a plenos pulmões. Amor que se constrói a quatro mãos, amor que se perpetua em outros que lhes servem de âncora e abrigo, amor que se espalha e ecoa nas árvores em volta, e é bom, e simples, e simplesmente é. Não há que dizer muito, e há mais de um tanto a calar, porque momentos assim são delicados e frágeis, qualquer palavra mal colocada assume um tamanho que não lhe corresponde, e desfazer os nós atados é uma tarefa cansativa e inglória. Melhor não os dar, os nós, já basta os que temos à nascença. Não há que inventar-se tristezas que não estavam no cardápio.

De tudo, neles, gosto especialmente da impressão de mãos abertas. Eles nem percebem, mas eu os observo, de dentro da minha própria solitária crise, e ao movimento das suas mãos, em vários momentos. Quando se esbarram num repente, quando se encontram sem terem combinado – e se abrem, em vontade de continência do que quer fazer-se seu. Fazem-me pensar no quanto é preciso abrir as mãos para receber o que a vida dá, o quanto fazem falta mãos que se estendam assim como as deles aqui sobre a mesa, abertas, para que as nossas individuais dádivas possam alcançar o seu porto. Triste, quando as ofertas são feitas e como chuva de verão escorregam para dentro dos bueiros das circunstâncias, mãos fechadas agarradas às próprias certezas e necessidades, todos os fantasmas encolhidos dentro delas, suplicando que não nos soltem, não nos soltem, deixem-nos no escuro onde nosso domínio é maior. Nada se guarda de mãos fechadas, e não tem a perder quem não as abre para ter.

Lavo as minhas mãos com cuidado, antes do jantar, limpando-as dos restos do que supus serem presentes – porque há presentes também que se recebem e não são nossos, e esses precisam deslizar pelo ralo da pia, lenta e decididamente. No fim de tudo há uma superfície de louça branca e limpa, recém lavada e ainda molhada. Por um instante, as minhas mãos estão tão limpas quanto a louça, dispostas a se abrirem virgens outra vez ao virar da esquina. Assim que as enxugo, porém, perdem um tanto da sua limpidez. Desço as escadas com elas à minha frente, para que meus amigos, e os amigos dos meus amigos, e deles seus amigos também, possam encontrar espaço para suas ofertas e conforto nas suas mazelas. E digo a meus amigos, mas sem usar as palavras de que tanto gosto e preciso, que nos demos as mãos, e que contem com as minhas, abertas, incondicionalmente. Para dar e para receber.

04/08/2012

Exercício: as aranhas de Isaura


De todos os suspiros que a vida tem-me arrancado, pensa Isaura, este foi o último. O derradeiro. Sentada no banco do ponto de ônibus, deixa o dia arrefecer as cores, indiferente aos demais que esperam, irmanados nessa intermitência entre estar em um lugar e dentro de pouco em outro. Não repara que de repente se senta ao seu lado um homem alto, de olhos grandes e negros, que a olha como se a reconhecesse. Isaura está perdida dentro do próprio pensar, equilibrando-se entre o coração intranquilo e a razão que lhe alfineta a alma. Diante de si não há rua, ao seu lado não há homem de desmesurados olhos negros, no seu passado não há mais ninguém. Tudo ao seu redor tem o sentido da voz de Armindo. E dentro dela, aflito e vazio como um barco que perdeu os remos em alto mar, um braço que luta por estrangular-lhe a voz que cria corpo na garganta. É aí que Isaura pousa a mão, da mesma forma que Armindo a envolveu com seus dedos longos e suas veias de cobre. Querendo mostrar-lhe o domínio que é preciso ter sobre o próprio fluxo de ar. Jamais perca o ar, dissera-lhe. E Isaura olhara-o atônita, o ar todo tomado pelo coração em chamas. Isaura só sabe viver de pequenas parcelas de ar; senão, vagas de fogo invadirão o seu ventre e a consumirão sem piedade.

É seu ônibus que pára diante de si e lhe abre a porta, num sibilar suave de engrenagem bem azeitada. E o motorista chama-a, e mesmo sem vontade Isaura embarca. Senta-se no último banco. Costume. Porque gosta de ver ao longe o caminho que as rodas percorrerão, a alternância de cores dos semáforos; sobretudo quando, como hoje, o dia morre nas ladeiras da cidade plana. Em casa, espera-a o silêncio. As coisas todas onde as deixou ao sair, as lentas aranhas do tempo desfiando um tempo enxuto de memória esquecida. Corre a espaná-las, esse será seu último suspiro, e nem a memória das coisas tecidas ela quer. Que os outros que venham sejam de outro tipo diferente deste, que me corrói o cotidiano até o último fio de osso, diz em voz baixa como se rezasse, enquanto se embrulha na pele quente das aranhas.

Não a espera nenhuma carta, nenhuma flor entreabrindo a maçaneta da porta, forçando um mundo que é só dela. Há muito que Armindo não faz nascer gestos onde se gestam universos – nunca os fez nascer, concorda Isaura consigo mesma em solidão. Os gestos são o meu universo particular.

Mas há uma janela aberta, e seu coração se encolhe, e depois se abre, e depois acena, e depois acende a faísca. E logo depois esmaga-se a si próprio na lembrança da própria mão abrindo a pequena tranca de metal, numa decisão de que o ar entrasse em casa na sua ausência. O ar que lhe falta e que a sufoca dentro da vida construída aos poucos. Não há ninguém nessa casa aberta, nessa morada atenta, nesse reino de sombras. O dia termina, flutua e despede-se. E Isaura deita-se ao comprido na cama, boca entreaberta de quem se quer de volta. Não suspira. O último suspiro já foi suspirado. Só as mãos, que se estendem abertas, teimosas, fazem crescer dentro de si esse peso, essa especiaria, essa forma desconhecida e lenta, a saudade suspirada.