As férias de julho de dona S. começaram bem. Uma sequência de bingos na paróquia perto da casa da sua amiga D., lá longe, outro bairro, distante do dia a dia. Abre um sorriso assim que me vê, espantada com as ausências maiores que as presenças. Viajo muito, reclama, como é que vou virar sua amiga... Vai bonita, arrumada, atrasada porque precisou fazer a unha. Se vai aproveitar pra namorar? Ora, minha filha, pra que isso? Tou melhor sozinha do que com outro igual meu marido. Gritava, irritava-se com qualquer coisa, queria tudo a seu tempo - seu tempo, e não o tempo do tempo. Muito menos o tempo alheio. Vejo-a andar apressada pela calçada sombreada, enérgica sob a ilusão dos cabelos todos brancos, até virar e desaparecer na esquina.
Queria que eu fosse com ela. Mas eu prefiro ir até o cemitério. Além de não morrer de amor por bingos, prefiro olhar para o tempo que escorre devagar por entre os túmulos, como se água calma que não espere nenhum meandro mais, sequer o desaguar no oceano.
Qualquer dia é dia de visitar cemitério, mas aos domingos há mais gente que se lembra de quem se foi. Aparecem todos armados de mangueiras e baldes, despejando carradas de água, como diria seriamente minha avó, nas lajes enegrecidas pelas queimadas fora da lei que persistem apesar das multas. Esfregam, trocam a areia dos pratinhos dos vasos, benzem-se entre uma e outra coisa. Causam-me ternura duas velhinhas de preto, parecem um luto gêmeo, assim ao longe. Visitam seus maridos idos, conversam saudosas com as pedras como se elas tivessem os ouvidos deles, e ainda lhes sorrissem de volta, confirmando a saudade imensa que sentem nas planícies do Senhor. Arqueiam as costas de vez em quando, difícil viver assim agachadas, uma fé de coluna esmagada que dói só de olhar.
Vou armada de máquina, para registrar esse Cristo que se levanta acima do horizonte e contempla o infinito, onde o tempo nem passa, nem entra, nem escorre. Onde as coisas são. Plenas, limpas e simples. Imutáveis. Demoro-me, porque me faz bem. Quero o mesmo.
Dona S. volta do bingo agitada - conto-lhe da minha ida ao cemitério e os olhos enchem-se-lhe de lágrimas. Afinal, diz-me, foi como ir ao cemitério. Com todos os defeitos, era melhor ir com meu marido e voltar para casa rindo das bobagens que dizia... do que assim, a casa vazia e ninguém pra conversar. E seu olhar é o mesmo das velhinhas de preto, apesar das unhas vermelhas. Talvez porque seja dentro de nós que as coisas sejam, em permanente sobrevivência. É mais fácil atravessar a noite dessa forma.
Qualquer dia é dia de visitar cemitério, mas aos domingos há mais gente que se lembra de quem se foi. Aparecem todos armados de mangueiras e baldes, despejando carradas de água, como diria seriamente minha avó, nas lajes enegrecidas pelas queimadas fora da lei que persistem apesar das multas. Esfregam, trocam a areia dos pratinhos dos vasos, benzem-se entre uma e outra coisa. Causam-me ternura duas velhinhas de preto, parecem um luto gêmeo, assim ao longe. Visitam seus maridos idos, conversam saudosas com as pedras como se elas tivessem os ouvidos deles, e ainda lhes sorrissem de volta, confirmando a saudade imensa que sentem nas planícies do Senhor. Arqueiam as costas de vez em quando, difícil viver assim agachadas, uma fé de coluna esmagada que dói só de olhar.
Vou armada de máquina, para registrar esse Cristo que se levanta acima do horizonte e contempla o infinito, onde o tempo nem passa, nem entra, nem escorre. Onde as coisas são. Plenas, limpas e simples. Imutáveis. Demoro-me, porque me faz bem. Quero o mesmo.
Dona S. volta do bingo agitada - conto-lhe da minha ida ao cemitério e os olhos enchem-se-lhe de lágrimas. Afinal, diz-me, foi como ir ao cemitério. Com todos os defeitos, era melhor ir com meu marido e voltar para casa rindo das bobagens que dizia... do que assim, a casa vazia e ninguém pra conversar. E seu olhar é o mesmo das velhinhas de preto, apesar das unhas vermelhas. Talvez porque seja dentro de nós que as coisas sejam, em permanente sobrevivência. É mais fácil atravessar a noite dessa forma.