porque pessoa
é coisa que entrelaça
é coisa que entrelaça
Aprendi que, às pessoas, é preciso deixar-lhes a mesa posta, a casa aberta, para encontrarem o espaço como precisam, quando chegam e nos tomam inteiros, num instante que não se retém nem repete. A minha mesa aprendeu a estar posta para a aflição alheia, seu destempero, o olhar em busca, a partilha, a precisão de fala, o silêncio cúmplice. Com o passar dos anos, aprendi a estar à espera e a levantar-me quando a vida chama, sem medir o quanto, sem perguntar o como, sem me atormentar de porquês, sem levitar acima do que me é estendido, sem perder tempo em querer agora saber o depois. E não me
arrependo: levo comigo, como num baú de herança, uma coleção de olhares entrelaçados, o outro impresso em mim de tal maneira que só por ele sou mais eu mesma do que seria sem ele. Escolho deixar os desencontros para trás, todas as pequenas traições, os desgostos, as mazelas tão pequenas vistas assim de longe - prefiro o outro assim, entrelaçado em mim, e para ele a mesa posta e a porta aberta. Porque o outro é coisa séria.
Com os anos, a minha mesa aprendeu a pôr-se com chá amigo, sopa terna, pessoas inteiras em vez de pedaços, migalhas. Enfeito-a com flores e acendo-lhe velas, quando escurece. Cuido do fogo da lenha, às vezes fogueira ao seu lado, para que aqueça
em volta quando o sol deixou de fazer morada. E mantenho-a posta e atenta, a toalha limpa, a cadeira pronta, para que ninguém me procure e desista porque a fome dure. Aqui estão todas as mesas postas nesta casa; a alma em calma, encho-me de lágrimas por todos os olhos que me ensinaram a ver, todos os olhos da minha memória que agradecem por existir. As pessoas entrelaçadas dentro de cada um deles.
As dores transformam os músculos em força e o sangue em espírito. Transformam-se em capacidade renovada de manter o passo, de erguer-se e ser maior para o outro. Em vez de olhar para trás depois de puxar a porta, fecho os olhos e olho para dentro; em mim, entrelaçados e coesos, estão todos os que pertencem a este pedaço de passado, na luz de seus melhores dias, seus lugares mais nítidos e precisos, ao longo destes anos e anos de amor. Dentro de mim, os que já se foram e os que ainda estão, os que se tornaram antigos nas minhas fibras e os que de repente se fizeram frequentes. O quanto avance, estarão a meu lado, porque de todas as proezas com que os deuses nos contemplaram, a memória é a mais fiel e perdurável, e me fará reeditar cada um, entrelaçado às mesas que porei e às portas que se abrirão nesse futuro que nesta manhã já se anuncia presente.