01/04/2015

Mentiras e universidades

Cultura é o que nos resta depois de termos esquecido tudo quanto aprendemos.

Entre os muitos escritores e pensadores que o caminho da história esquece, há alguns que, de repente, voltam com força ao nosso pensamento. Ellen Key, a autora da frase que serve de inspiração a este texto, nasceu e viveu na Suécia, na segunda metade do século XIX. Feminista nos tempos em que era preciso ainda lutar por igualdade de sufrágio, Ellen tem importantes textos sobre educação, a liberdade pessoal e o desenvolvimento independente do indivíduo.

E por que Ellen Key a essa hora do dia? Porque a cada vez que se evidencia a falha colossal e coletiva dos nossos sistemas escolares eu corro a ler alguma coisa que me alivie. Dias como estes, em que lemos estarrecidos as notícias sobre a última festa do curso de Medicina da Unesp de Botucatu. As denúncias de abusos e arbitrariedades na recepção aos calouros viraram rotina, em tudo quanto é universidade. As apurações idem. E a defesa também.  

Desta vez, acusam-se os alunos do 6º ano de escolherem recepcionar seus novos colegas vestidos a la Ku Klux Klan. As fotos circulam, e os alunos defendem-se, dizendo que é um erro de interpretação e que não houve preconceito nem intenção de denegrir ninguém. No fundo, não importa muito o que digam, porque as fotos falam por si, contra fatos não há argumentos. A referência a certos personagens está ali, presente, tenha ela sido explicitada com todas as letras ou não, tenha havido ou não consciência por parte de quem usou as fantasias e segurou as tochas. Além do que, como nos ensina a análise do discurso, o fato de se recepcionarem novos integrantes de um curso com uma festa sob o tema "Carrasco" já devia ser suficiente. Tanto os fatos quanto a sua defesa, como se pudessem ser defensáveis, é de espantar. Um pedido de desculpas, geral e irrestrito, seria mais pertinente. Até porque erros fazem parte e o duro é quando não se reconhecem - e, sobretudo, reparam.

Agora, aqui para nós que nem na festa estávamos. Surpreendente mesmo é pensar que esses jovens passaram no mínimo 18 anos sentados em bancos escolares. Foram alfabetizados. Leram. Tiveram horas e horas de aulas de História. Produziram textos, e muito provavelmente algum sobre racismo, sobre preconceito, sobre violência. Prepararam-se para apresentar as suas ideias e justificá-las. Muitos deles possivelmente estudaram em escolas com a preocupação de formar "cidadãos críticos e atuantes". Passaram numa das mais difíceis seleções universitárias do país. Estudaram por já seis anos para se tornarem médicos, e é capaz que, em assustador pouco tempo, muitos de nós depositemos neles confiança, esperança e a própria vida.

Enquanto isso, a sua percepção de acolhimento e diversão é o reencenar um dos mais macabros momentos da história mundial. Não sabiam disso? Não conseguiram ver a similaridade entre as suas fantasias e aquela dos que perseguiam, queimavam e enforcavam negros americanos até há bem pouco tempo? Como assim?! É essa a capacidade que têm de olhar em volta, ler a realidade e propor movimento e interferência?

O trote repete-se ano a ano. Choram-se ano a ano os que morrem, lamentam-se ano a ano os que são assediados e violentados, repudiam-se ano a ano os estupros. E relativiza-se tudo, porque tudo isso são "excessos apenas". Os movimentos para conter essa onda que se aproxima da barbárie são mínimos. Porque atitudes enérgicas são impopulares, e de três opções, duas são mais fáceis: ou se culpam professores do ensino básico, famílias desestruturadas e esse longo etc. que pertence ao passado, ou se encolhem os ombros e se pensa que "no meu tempo também era assim e eu sobrevivi...". 

Uma universidade não é um lugar qualquer. "A história das universidades", diz Otto Maria Carpeaux em um de seus bonitos ensaios, "é a história espiritual das nações". Parece que nos esquecemos, absortos que estamos em decidir se universidades são lugares onde o conhecimento se transmite ou se pesquisa. Deixamos o barco à deriva, esquecendo-nos da responsabilidade que ultrapassa os nossos pequenos gabinetes. E o resultado, a cada trote, nos atropela.





Imagem: Alto-relevo de Hipócrates praticando a sua ciência
O Projeto Gutenberg tem algumas das obras de Ellen Key disponíveis, para quem se interessar. Acesse http://www.gutenberg.org/ebooks/author/502
O ensaio de Otto Maria Carpeaux chama-se "A ideia da universidade" e está disponível em 

27/03/2015

As coisas pequenas

São Paulo, esquina de avenidas, zona sul, pouco passa das seis.

Cansada que estou, dormito a cada farol vermelho. Dou graças que São Paulo seja esse caos de trânsito parado e semáforos de longa espera. Durmo a cada dez minutos, e aos poucos recupero as noites semi dormidas. 

Acordo com um toque leve no braço que esqueci pendurado na janela do carro, e uns olhos de vendedor de bala e chiclete a bordo de uma cadeira de rodas. Olha-me e diz pássaro na gaiola não canta e eu respondo não, lamenta. E nós dois rimos da súbita dramaturgia nascida do adesivo na lateral do meu carro. E ele diz é isso mesmo. E eu respondo verdade, quem está encarcerado não canta. E ele diz só dois cantaram. Eu pergunto quem? e desconfio entre parênteses que a origem seja bíblica e ele sorri e mesmo sem saber o que penso diz Pedro e Tiago. Eu não sei se já estou acordada, mas que fazer a não ser concordar e acrescentar eles cantavam da forma que se deve. E o homem de olhar manso diz sim, isto é, o Altíssimo. Agora tenho certeza de que já estou acordada, e pergunto-lhe você canta? E ele diz claro, ou você pensa que esta cadeira é minha prisão? Não digo nada porque que poderia eu dizer? e deixo que o sorriso desse nosso encontro escorra até o asfalto e ambos esboçemos uma forma específica de adeus. Se não fosse isso, mulher, não tinha lhe conhecido, e só depois a mão empurra a roda e só então ouço as buzinas, o sinal abriu, o fluxo não para, e eu fecho os olhos porque só pode ser São Paulo distribuindo bênçãos sobre esta cidade cheia de milagre ao rés do chão.

24/03/2015

蛋挞

Dan ta: é assim que se chamam, lá em Macau, os pastéis de nata. A capacidade expansionista portuguesa mantém-se firme naquilo que ensina os outros a comerem. Desde 1837, quando os pastéis foram inventados para garantir a subsistência dos clérigos do Mosteiro dos Jerônimos, é a mesma coisa. Talvez a maior diferença seja que, naquela época, o trânsito entre Lisboa e Belém ainda acontecia de barco, e agora vai-se de carro ou comboio. Ou bicicleta, como cada vez mais pessoas escolhem.

É difícil encontrar bons pastéis de nata (erroneamente chamados de Belém, que esses são só os que lá são feitos, em Belém) pelo Brasil. Difícil, mas não impossível: está aí a prova fotográfica, que só não consegue captar-lhes a temperatura (entre morno e quente), a textura (entre firme e desfazendo-se) e o paladar (na medida exata de açúcar). O problema é a capacidade calórica, ouvi ao meu lado. Realmente. Até porque não é possível comer só um.

Os pastéis de Belém, depois copiados por todo o planeta, estão no centro de uma dessas disputas monárquicas que nos servem de alento nestes momentos de estupidez política generalizada. Portugal, nem todos sabem, também teve uma guerra civil. Dentro dela estão os pastéis. Fechada a confeitaria que os inventou, venderam a receita a um brasileiro rico que por lá andava, talvez a festejar a independência do Brasil, talvez a ver em que daria o seu D. Pedro querer ser também, além de imperador do Brasil, rei de Portugal.

Parecendo complicado, é simples. Temos D. João VI e Carlota Joaquina de um lado. Do outro, alguns de seus filhos: Pedro, Miguel e Isabel. Sem saber muito bem o que fazer com esse Pedro que declarara a independência brasileira e com esse Miguel que pouco pulso parecia ter, D. João entrega a regência do trono a Isabel, que, entretanto, decide reger o trono em nome da filha de Pedro, que deveria a qualquer momento casar-se com Miguel. Morto D. João em 1826, D. Pedro (I por aqui, IV por Portugal) decide desconsiderar ter sido deserdado e considerado estrangeiro. Além de imperador do Brasil, teve ter lhe soado bem o título de Rei de Portugal. Isabel é-lhe fiel, mas Miguel decide outras coisas, alinhadas com um certo espírito revolucionário que desponta em terras lusas.

Enfim. Uns e outros, como nós simples e plebeus mortais, fartavam-se de pastéis de nata. E o mundo gira, e a fila anda, e como diria Camões, mudam-se as vontades, os tempos e a própria envergadura da mudança. Entre uma revolução e outra, seja em Macau, em Belém, ou à beira da rodovia Castello Branco, na Quinta do Marquês, a marcar o começo de uma noite recente, as marcas acompanham-nos, assim como a história. E mais não digo, que a vantagem da crônica é justamente poder parecer sem sentido.



14/03/2015

15 de março de 1985

Ano passado, 2014, fiquei com uma estranha sensação durante as preparações para os eventos que marcaram o aniversário dos 50 anos do golpe militar. Causou-me estranheza comemorar (é isso que se faz em aniversários)  a ditadura. Não encontro palavra mais inadequada para juntar a ditadura. Como, comemorar o início de uma ditadura? Fiquei-me com um texto engasgado, que nunca saiu do rascunho.

Abre-se amanhã a possibilidade de comemorar o que realmente vale a pena, que são os 30 anos do fim da ditadura, e não o dia de seu começo. Estranho, no entanto, a falta de festa e de bandeiras preparando-se para invadir a rua nessa celebração da liberdade, numa reflexão coletiva visível que dê relevância ao que tem relevância, relembrando o que vale guardar na memória - entre as muitas coisas, aqueles que deram a sua vida e as suas ideias para estarmos onde estamos. Tomo café da manhã lendo o encarte infantil da Folha de São Paulo, que oferece uma linha do tempo com algumas fotos históricas e uns parcos comentários, vá lá. Incomodaria, talvez, lembrar que a atual presidente ergueu-se dramática e intensamente contra esse regime?

Seria até bem a propósito comemorar esta data nos tempos que correm, e onde vivemos momentos pra lá de obtusos, onde tomamos café lado a lado com aqueles que, por esquecimento ou ignorância histórica, pensam que seriam mais felizes sob ditadura. Talvez pensem que viveriam sobre ela, e estariam a salvo das suas arbitrariedades e atrocidades. Ledo engano. A maioria, em regimes totalitários, vive esmagada sob seus pés.

Aqueles com chances de benesses pessoais num regime ditatorial devem andar num certo silêncio, articulando-se na sombra. Vendo as movimentações nas ruas. Dizendo uma palavra aqui e outra ali. Aproveitando-se das sandices de ex-roqueiros e cia. Esse território sombrio em que agem, velado e vedado, arrepia. É preciso, mesmo, estar alerta. 

Trinta anos é uma porção de anos. Em Portugal, ao tempo das comemorações do trigésimo aniversário da Revolução dos Cravos, que por lá significou o fim de uma longa ditadura, houve também um ressurgimento daqueles que se lembravam, saudosistas e nostálgicos, sem os terem vivido, dos tempos áureos de Salazar. Estão todos lá, até hoje, porque é isso que o processo democrático garante, a voz de todos quando cada um sente necessário. Mas são minoria, porque em algum momento a memória reacende. Em algum momento as trevas voltam a apresentar-se como são. E talvez amanhã alguém retire, da prateleira de uma biblioteca qualquer, um exemplar de "Brasil: nunca mais". Folheando as suas páginas, deparando-se com os registros das torturas do regime, há de virar-se para o colega do lado e dizer: "Cara... isso, nunca mais!". E o amigo, erguendo os olhos do livro que ele mesmo escolheu, há de contar-lhe dessa mulher que um dia, lá longe na Espanha, disse "No pasarán". E eles não passarão.



13/03/2015

Ideias para reformar o Brasil

Tenho alguns amigos, bem intencionados e vivendo propostas de vida bem bacanas, que me dizem que gostariam de importar os políticos da Suécia (ou seus congêneres), porque lá tem tudo o que eles gostariam que tivesse aqui: um povo educado, políticos honestos, vidas civilizadas. Lixeiros com salários equivalentes a R$11.000, casados com veterinárias que ganham apenas um pouco mais do que isso. Mulheres parindo como deve ser, uma minúscula porcentagem de cesáreas. Motoristas que param para pedestres passarem. Ciclovias cheias de ciclistas, inclusive prefeitos e vereadores. Leis obedecidas. Ruas limpas. Enfim.

Logo penso na altíssima taxa de suicídio juvenil de lá, noticiada há anos atrás. Mas me informam que aqui as estatísticas não são confiáveis e que, aliás, há centenas de jovens negros que morrem diariamente nas favelas. Penso em desistir da conversa, e desisto mesmo, porque o rumo da prosa sei lá.

Não sei se esquecemos ou achamos melhor esquecer de onde veio e de onde ainda vem a riqueza do hemisfério norte. Que preço pagamos nós para que lá se viva como se vive. Penso nisso, além daquele óbvio ululante de não conseguirmos nunca limpar a nossa pele desse cheiro de colonizado que se impregnou até os fundilhos da alma.

Mas para isso um outro amigo tem a resposta. Para a minha incapacidade de perceber as coisas. Ele diz-me, quase todos os dias, que eu não posso perceber o que é isso, porque eu não sou brasileira. Eu não sou colonizada. Sou europeia. Agradeço-lhe a deferença, nem sempre atribuída a quem vem desse país limítrofe que é Portugal. Mesmo que me doa, leve e sutilmente, esse ser posta pra fora de. Essa situação de repente estranha de ter sorte e azar de não ser igual a. Essas ambiguidades me confundem os nervos. Mas vá lá. Ainda bem que são todos amigos.

E se for pensar bem, eu posso sentir bem o que é isso, isso de "não ser daqui". Como posso também perceber o outro lado, porque também "não sou de lá". Na verdade, não tenho nem pátria, nem mátria. Talvez culpa da falta de enraizamento que aqueles que se transferiram de país em país e em país reconhecerão quando digo. Nem sou daqui, nem sou de lá, e ao mesmo sou de ambos os lugares. 

Niangoran Bouah é um pensador da Costa do Marfim que deixou como legado, entre muitas outras coisas, um documentário-desabafo chamado "Abbandonez-Nous". Com extremas coerência, clareza, combatividade e coragem, de emocionar mesmo, ele advoga para o continente africano o espaço de trilhar seu próprio caminho. De encontrar as próprias respostas. De ser realmente deixado em paz, como única forma de reverter o estrago causado pelo colonialismo, pelo saque de séculos. O seu grito é um pedido em tom de ordem suprema: "abandone-nos", diz ele ao mundo europeu, a essa colonização que a todo custo quer se reproduzir, porque é da sua natureza, numa manobra perversa onde, a certo momento, o colonizado se sente duplamente inferior: pela colonização em si, e por invejar a situação do colonizador, que apenas está onde está porque ele mesmo, o colonizado, existe nesse posto de alter e auto-desvalorização. Essa "vida perfeita" é às nossas custas, e sequer seria a "nossa vida perfeita". A menos que nosso valores sejam os mesmos. E sinceramente, não podem ser. 

Todas as maravilhas desse outro que saqueou, roubou, adulterou, manipulou e transformou em um simulacro o mundo que encontrou, para Bouah, não têm valor. Para Bouah, o caminho é claro - chegar ao Paraíso, só através da Liberdade.




Foto de Isabela Morales 


09/03/2015

Filhos da primavera

Assim como nós, livros também nascem. São sonhados, curtidos, imaginados. Crescem resguardados dentro de um útero de palavras, como seres que se anunciam a si mesmos. E, um dia, saem de dentro. Ganham as prateleiras das livrarias, as mãos das pessoas, os olhos dos leitores. Este livro, que de forma muito especial nos fala de nascimentos, nasce com a boa estrela das almas generosas.

O gesto de cada mulher e de cada homem que aqui em "Filhos da Primavera" registram momentos tão íntimos e transformadores de suas vidas é uma oferta desprendida e amorosa, a todos nós que os lemos. É possível que eles mesmos não tenham ainda a percepção do quanto é importante esse seu gesto. De quanto a humanidade se nutre de coisas assim, que apenas desejam dizer ao outro que novas formas de nascer, de viver, de pensar são possíveis – e eles dizem: “Veja, se comigo foi possível, e hoje eu sou tão feliz por isso, porque não seria assim com você?”.

Meu filho mais velho, dos sete que tenho a honra de ter trazido à luz na minha própria casa, tem hoje 29 anos. Há quase três décadas, nascer de forma diferente, buscando maneiras que nos libertassem de um sistema em nada humanizador, não era moda entre nós. Não era assunto. Não era matéria de revista, ou jornal. Não se falava de técnicas de massagem, não havia videos, nem doulas, nem bolas, nem panos, nem banheiras facilmente adaptáveis a qualquer lugar. Justamente por isso, talvez no fundo fosse mais simples. Havia a casa, havia a confiança, havia a penumbra e o silêncio, e havia a certeza de receber um ser espiritual na terra de uma forma respeitosa e honesta.

Não ter muitas possibilidades de troca, não ter relatos como estes que aqui se oferecem, não ter exemplos ao lado para referenciar as escolhas, fez com que precisássemos encontrar alicerces internos para seguir adiante e dar à luz não só filhos, mas também ideias, posicionamentos, escolhas viscerais.

É essa visceralidade que assoma aqui e ali nas páginas que você está prestes a ler. A visceralidade transformada em vontade férrea e determinada, em encarar a própria verdade de frente. É lindo de ver o quanto um ser humano pode superar-se, adentrar-se, florir-se para dentro para renovar-se pra fora.

É preciso que construamos em nós a certeza inabalável de que somos responsáveis por nós mesmos. Que as nossas escolhas têm força no momento em que as assumimos e colocamos em marcha, e que a mantêm quando não esmorecemos e nos conectamos com a sua fonte geradora, que vive em nós, e não fora. Que para além de nascerem nossos filhos, nascemos nós outras, renascidas a cada parto. Cada vez mais generosas, mais afetuosas e mais compreensivas.


Ficha técnica
Filhos da primavera
Organizado por Camila Capacle Paiva, Celso Monari e Luiza Paim
Ilustrado por Itaiana Battoni
Contato https://www.facebook.com/filhosdaprimavera?ref=br_rs

02/03/2015

A morte que não é só tua

Penso em ti, Humberto. Nos teus 23 anos. Nos teus pais que te sonharam engenheiro. E não consigo dormir, Humberto, porque a tua morte, sendo única, carrega a voz silenciada de centenas de outras. 

Vejo o teu sorriso estampado na página do jornal. E me pergunto o porquê. Por que tantos Humbertos em tantas festas universitárias. Por que tanto excesso alcoólico, tanta busca desenfreada de perder-se a si mesmo, de diluir-se, tanta necessidade de dar à vida um a-mais que ela parece não ter, tanto subterfúgio de open bar para cada vez fechar-se mais na falta de sentido. 

Gosto de procurar os porquês das coisas, ainda que não os encontre. Ou ainda que o que encontre seja infinitamente pior do que imaginava. Ainda prefiro o travo amargo de me sentir traída pela vida ao vazio inexplicável da vida que não se mostra. E por isso fico cativa do teu rosto na tela do meu computador, Humberto, e tento ver por trás das lentes dos teus óculos escuros o que foi que te faltou, ou o que foi que te sobrou, ou o que foi que te doeu tanto (a falta, a ausência, o vazio?), que te levou para fora do limite da vida quando parecia que apenas o adentravas.

Não serás tu o único responsável, ainda que o sejas na parte que te cabe. Porque eu mesma o sou, a cada vez que nada digo. A cada vez que baixo os olhos. A cada vez que desisto, porque parece mais fácil (mais cômodo) do que insistir. São responsáveis aqueles que te convidaram à festa, aqueles que contigo foram, aqueles que aplaudiram, um a um, os 25 copos de vodca que tomaste em pouco mais de uma hora. São responsáveis os que organizaram a festa, os que arrendaram a chácara, os que transportaram as garrafas, os que as produziram, os que as anunciaram, os que as guardaram, os que as pagaram, os que as serviram, os que delas se aproveitaram para lucrar umas moedas. Cada um com a sua cota de responsabilidade, somos todos, por ação ou omissão, responsáveis pela tua morte, que apenas anuncia, nesta rede de tv aberta que desligamos com um deslizar de pensamento, a epidemia devastadora que se abate sobre nós todos, e que me faz perguntar a que tipo de humanidade afinal pertencemos. Ainda que só a sintamos quando nos esfola a própria pele, esta é uma morte de nós todos. E é por isso, Humberto, que eu limitadamente choro a tua morte - porque poderias ser eu mesma, ou meu filho, meu aluno, meu vizinho, parente, conhecido, amigo, irmão. E assim, nessa proximidade que nos faz a todos irmãos, dói-me mais a tua partida, ainda que nunca tivesse te sabido aqui.

Apago a luz como se apagasse a vida, e junto-me a ti e aos teus, e não fecho os olhos nem durmo. Peço àqueles que te guiam, nessa passagem que fazes, que nos auxiliem a nós que ficamos a que percebamos dos limites os contornos, e deixemos de ignorar as curvas e as pedras do caminho, pintando-as com cores que não são delas. Por nós e pelos que fiquem de ti entre nós, e para que a tua morte não seja um vão a mais na nossa incapacidade de proteger o que precisa e merece ser protegido.

28/01/2015

Contas

Ora digamos que Paula, nesse dia em que chegou de viagem, encolheu o pensamento entre as duas palavras que encontrou escritas no espelho do banheiro: "renuncia, ou desiste".

Estranhou, ficou atônita mesmo, não fazia a menor ideia do que significavam, ou de quem ali as deixara. Os amigos a quem emprestara o apartamento de um quarto só, talvez. Mas seriam para ela? Essa necessidade imperiosa de escolha, pertencia-lhe?

Bateu-me à porta de casa. Sou a vizinha da frente. Meu trabalho consiste em resgatar palavras do limbo de seu não-significado - sou dicionarista, uma espécie de profissão de quem se rodeia de palavras o dia todo, e lhes descobre vida onde só vivem som e grafia. É uma tarefa de vida solitária, a minha, e gosto que me batam à porta de vez em quando.

Além de palavras, gosto também de guardar os tempos precisos. Tenho uma memória privilegiada: é raro esquecer-me de algo que vi, ouvi ou li. Não tenho pressa, na vida, e faço muito do que sou por escrito. Porque os tempos têm a natureza confusa e, se não se anotam as coisas, parecerá que x veio antes de y, quando na realidade quem primeiro chegou foi y. Por isso, para tudo, nestes tempos estranhos em que relógios não têm ponteiros e correm desenfreados e loucos para chegar à hora seguinte, é preciso guardar o tempo preciso.

Dava corda ao relógio da sala quando Paula bateu à porta. De leve, desse jeito envergonhado que ela tem com tudo o que é dela. Pediu-me ajuda. Contou-me do espelho de seu banheiro, e disse-me ter encontrado, entre a linha dos olhos e as comissuras dos lábios, essas palavras que lhe tomaram os olhos. Que diferença existe, perguntou, entre renunciar e desistir?

Ergui a porta do departamento de latim que vive na minha mente. Ambas as palavras guardam o seu início na língua latina. Quer dizer: isso é o que nós achamos. Renúncia, lembrei-me e disse, é a retirada de uma palavra. Renuncio quando nego e repudio o que antes disse. Só renuncia, concluí diante dela, quem alguma vez disse. Renunciar nasce de dentro da palavra nuntiare, que significa informar, declarar, anunciar, todos eles verbos com tendência à objetividade, à ação, à declaração. Quando a nuntiare juntamos o prefixo re, somos levados para trás. Damos marcha a ré. Quem renuncia, dá marcha atrás a sua própria declaração. Isso às vezes é possível, outras é um perigo - há palavras que uma vez ditas, nunca, jamais, podem ser retiradas. Acontece assim às grandes, e incômodas, verdades. Talvez preferíssemos nunca tê-las visto, isto é, dito.

Já desistir parece-se com sua palavra mãe - desistere. De (que é fora) mais sistere (que é o ato de parar, de interromper), em nada repudia o antes dito. Quem desiste, interrompe desde fora um movimento que está. Quem repudia, imobiliza, estagna. Vários motivos podem levar um sujeito a desistir, até mesmo o estado de estupefacção, de sobressalto, de susto, de incompreensão, de estar atônita como vc está, disse-lhe baixinho. É uma interrupção de ação, mais do que uma ação em si, como é o ato de repudiar.

Paula ouviu-me de olhos fechados. Parecia passar, um a um, as pequenas e as grandes renúncias da sua vida. Uma a uma, as desistências. Parecia colocá-las lado a lado, pesando e medindo tudo o que já repudiara e tudo o que deixara estagnar-se. Deixei-a sozinha. Voltei-me para as minhas próprias coisas, e aos poucos os olhos foram-se-me enchendo de água. Renunciar às coisas do mundo e da alma, é das escolhas mais dolorosas e duras de toda uma vida. São elas que nos alteram, às vezes sem que o desejemos, a superfície da pele.

Imagem: Lila Marques


26/01/2015

461

São três anos. Três anos descobrindo uma parte desta cidade que amo há trinta. Aprendi a amar São Paulo nas ruas do seu centro. Morei na Barão de Campinas. Amei, amei mais e mais ainda - meu primeiro filho nasceu na esquina com a Alameda Nothman, ali no lugar mais improvável para trazer em paz um filho ao mundo. 

Depois, Parelheiros - um começo único para o longo período de vida campesina, como diz nosso querido André. Ia e voltava do Butantã, do Pacaembu, de Higienópolis. Meu São Paulo era desse tamanho, e tanto gostava de um lado quanto do outro. Santo Amaro era lugar de passagem, mesmo com a Marina que morava por ali, assim como a Conceição, lá em Guarapiranga. Marina foi-se para São Chico, Conceição que voltas terá dado?, e nós já andávamos pelas terras quentes e pelos bons ares do interior paulista. Outros se foram para outros lados, parece que só o Claret resistiu paulistanamente.

Voltei, pouco e pouco, num processo de reapaixonamento que me ofereceu novas amizades, daquelas que são fortalezas no tempo e no espaço, dimensões que sequer existem - porque São Paulo abre-se em possibilidades que desafiam uma e outra dimensão, e descobrimos que não há tempo para nada, mas a vida é assim mesmo e bom é vivê-la.

De pouco em pouco, foi virando muito. Nesses três anos, aprendi a locomover-me por Santo Amaro. Não sei por que tanta resistência durante tantos anos. Sorrio por dentro quando acerto o nome da rua, e rio despregadamente se ainda por cima acerto o caminho de primeira. Encanto-me com as árvores. Com a sinuosidade das ruas. Com a mistura de casas. Com o tempo que cheira a velho. Com as avenidas que agora, em vez de rios, fluem e refluem carros. Com os lugares pequenos que só a vida de bairro tem. 

E, em meio a tudo isso, ali enorme tantos anos, observo esse Borba Gato da Avenida Santo Amaro, que me parece o antepassado do playmobil, quem sabe a sua inspiração? Intriga-me tanto: repare nas pernas, na saia... é ou não é o homenzinho do brinquedo?! Agradeço quando o sinal fecha e eu posso olhá-lo sem ser de passagem. Júlio Guerra, que o projetou e executou no começo da década de 60, quis usar materiais diferentes daqueles que se usavam em cemitérios. Nada de bronze. Quis coisa que o povo reconhecesse. Usou trilhos de trem como sustentação para o barro, o gesso e o concreto. Revestiu esse gigante de pedras quebradas no quintal de sua casa da avenida João Dias, logo ali na frente. O resultado é essa descomunalidade de 13 metros de altura e 20 toneladas, marco absoluto (ainda que não unânime) de Santo Amaro. Nesse surto de amor por esse bairro que me acolheu tanto nos últimos tempos, só posso mesmo sorrir para o velho bandeirante ao passar. Não tanto por ele, homem bruto de história pouco clara como a de todos os brutos. Mas pela cidade que agreste e suja e confusa e superpovoada e injusta e congestionada abre os braços em todas as direções, e seja pela Bandeirantes, pela Castelo, pela Fernão Dias ou pela Imigrantes, a todos recebe com a mesma possibilidade caótica de riquezas sem par. Antes que seu dia acabe, parabéns, São Paulo!