O
tempo tem andado bom, aqui na praia. Desde criança gosto de andar na
areia, vou e volto vezes sem conta, tanto faz o sol, o vento ou o
frio. Quando pequena, diziam-me que era hiperatividade, agora posso
dizer que preciso de exercício, e ninguém parece incomodado. Às
vezes, vou falando sozinha, dando-me conselhos que na maioria das ocasiões não sigo, ou conversando com quem está longe, fato que dificilmente
me impede de ouvir respostas. Com tempo bom como este, a praia não está
deserta, e convém que olhe na direção do mundo concreto,
muito mais plausível. Deve ser por isso que reparo nesse casal que
já ontem percebi pescando aqui na ponta da praia, um sentado ao lado
do outro nas suas cadeirinhas baixas, as duas varas bem em frente,
enterradas na areia, as linhas esticadas a perder de vista. Quando
passamos, na ida, estão sentados, mas na volta a senhora de chapéu
está sozinha. Sorrio daqui, sorri de lá, e enlaçamos conversa.
Dona
Maria chegou há três dias, não pescou nada até então, mas isso é
só um detalhe para essa senhora que faz amanhã 60 anos. Moradora de
Santos, costuma pescar na Boraceia, ou na Barra do Una, mas tanto ela
quanto o marido enjoaram de pegar peixe no rio e vieram pra cá, pra
praia. É o que ela prefere, diz, com os olhos piscando pela luz
refletida na areia. No rio não entra na água, aqui leva a linhada
lá pra longe e volta nadando, devagar, só rindo do tanto de coisa
que a vida ainda lhe reserva. Três dias de pesca e não pegar nada
só pode ser coisa da lua – é lua nova, bom mesmo é lua cheia ou
crescente. Digo-lhe que a lua ontem estava tão linda e sorridente
que achei já estivesse crescendo, mas ela garante que não. Se não
tem peixe, é porque não tem lua. E encolhe os ombros e nem se
aflige, porque a lua continua seu caminho e ponto. Logo mais haverá
peixe.
No
dia das mães convidou filhos e netos (já são quatro) para uma
moqueca, e todo o peixe que usou foi ela mesma quem pescou. “Feliz?”,
pergunto-lhe eu, só pra que continue falando, que feliz é óbvio
que ela está. “De todos os jeitos”, diz ela: “já plantei uma
árvore, já tive filhos e netos, já comi o peixe que pesquei – só
me falta o livro”. Tento ajudar, prometo-lhe a crônica. Os
olhinhos piscam por detrás das lentes e da armação vermelha e
pergunta: “É? Você escreve? Mas que beleza! E pescar, pesca?”.
Decepcionada com a minha resposta, diz-me que é preciso paciência,
mais nada. Tanto faz se vem peixe como se não vem, bom mesmo é
ficar aqui, eu e o homem, fumando um cigarro sossegados e olhando as
ondas que não vão pra lugar nenhum.
Na
próxima folga vão até Paraty. “Só fico pensando na
distância... o que é que os filhos vão fazer se precisarem de
mim?”, diz ela batendo a cinza do cigarro enquanto acaricia a
carretilha da vara de pesca. Diz que não gosta de ir muito longe,
por medo de ser necessária e não estar lá pra acudir. Como da vez
em que a netinha caiu da escada e só ela conseguiu acalmá-la pra
costurar o corte. Ou como quando Mateus precisou arrancar um dente e
declarou que só ia com a avó. Não pode mesmo ir pra muito longe,
esta avó que enquanto fala comigo espia o marido dentro do mar,
parece que só vai voltar quando nos formos embora, “é que ele não
gosta muito de gente, sabe?”, num convite delicado para que nos
retiremos.
Fica-me
o sorriso de dona Maria dentro dos olhos, e essas ondas que vêm e
vão – ou eu achava que viessem e se fossem, mas dona Maria tem
razão: estão sempre aí, não tem idas e nem vindas. Não sei o que
mais haverá na vida que tão inocente e absoluto se declare
presente. Nem sei se, existindo, eu teria olhos para ver. Talvez eu
tendesse a perceber as diferenças entre as gotas, mesmo sendo todas
quase iguais umas às outras, e não conseguisse sucumbir à beleza
que dona Maria vê nas coisas que não mudam nunca, e jamais o farão.
Talvez seja preciso treinar o olhar para ver as semelhanças, e
encantar-se com elas, tal qual fazemos com tudo o que é tão
diferente de nós mesmos.