(500 palavras de um personagem que insiste em fazer-se nascer)
“Sabe o dia que se esgueira, como
uma enguia viva, para dentro das nossas almas? O dia que se infiltra, que se
ateia fogo a si mesmo, que se boicota a felicidade desde a hora em que sol
assoma até a que a lua já está alta no céu? O dia embolorado, rançoso,
entristecido ao olhar-se de frente? Pois esse é o dia de hoje. Um dia enguia,
sinuoso dentro do corpo da minha alma, arrastando-se na lama em que me atolo
sem ajuda, escorregando lento e destilado por entre a cor da manhã. Ninguém
aparece para salvar-me, lembro de ter pensado. Ninguém levanta um braço para
socorrer-me, e eu sequer consigo gritar por socorro. Lembro de ter pensado
horas e horas, diante do nada, só vendo essa enguia esguia engolindo-me mais a
cada hora, engordando satisfeita com o alimento que lhe forneço assim, de
graça, sem galanteios e sem mesuras. Estende-se ao comprido por cima do que
sobra de mim, ossos fracos e amarelados, secos quase como farinha que queimasse
ao sol, e que sequer precisasse ser moída. Sinto-lhes a firmeza perdida, a
solidez desperdiçada, oferecida a essa enguia que reluz sob o sol, mil tons de
cinza brilhando como escamas, embora sua pele seja lisa e densa.
Alguém que me acenasse do outro
lado faria que meus ossos se levantassem, mas há uma solidão nesta terra que
habito, uma solidão feita de caminhos vazios de formigas, só seus traçados e
algumas folhas perdidas pelo caminho. Os buracos dos formigueiros estão ocos,
com seus amontoados de terra digerida formando circunferências de montanhas em
torno do orifício. Releio os sinais da terra através desses caminhos,
solitários e sozinhos como eu próprio.
Pergunto-me se alguém lembrará da
minha presença, ou se todo este silêncio que me rodeia será uma estratégia para
que abandone a mim mesmo por fim. Se todo este silêncio onde leio a palavra
abandono existirá para evidenciar que devo ir, deixar-me cair em algum lugar e
parar de lutar.
Meus braços cansados estão
pendurados ao lado dos meus ossos, como se fossem suas sombras. A enguia já
deixou seu posto de triunfo, deslizando como água para dentro da terra. Não
tenho mais o conforto úmido e gelado de seu corpo sobre a minha parte mais
dura, mas recuperei a minha sombra, e assim posso recuperar a minha forma de
andarilho da vida, mesmo sendo feito só de sombra e ossos. Mesmo que os ossos
fiquem parados, à espera da sombra lhes dê notícia da vida do lado de fora.
Mas há um fosso que se abre a
toda a volta, um fosso que nem a sombra consegue atravessar, porque assim que o
tenta há uma força que a empurra para baixo, em direção às ondas vorazes onde
vive o reino das enguias. A sombra será engolida, e logo a seguir os ossos.
Ainda que me agarre às bordas duras desse fosso à minha volta, sou todo
engolido, e transformo-me naquilo que eu já era antes de ter nascido.”