A pergunta veio insuspeita, assim
como quem não quer saber nada mas pergunta; recebeu um silêncio espesso como
resposta, um ”aguarda” que logo se resolveu numa só palavra, saída repentina da
minha boca, como se minhas gengivas decidissem sentir enquanto o coração espera.
Uma resposta em forma de parto, um expulsar tântrico de palavra resumo.
Perguntam-me o que me faz escrever hoje, e eu só consigo ver diante de mim essa
palavra: perturbação.
Uma perturbação provocada pelo exercício
das palavras, do diálogo entre elas, de uma espécie de movimento longínquo que não se afasta nem no espaço nem no tempo: passadas horas, está aqui sem que se veja, sentada ao
meu lado, palpitante nos veios da memória recente. É o estado de perturbação que me provoca a
escrita, respondo.
Decido investigar, para
entender-me melhor e aprender a dar respostas que se comportem. Ir ao dicionário, aqui, pouco ajuda: perturbação é
coisa ruim, parece, à primeira vista. Coisa de tumulto, distúrbio, mal estar
passageiro, desordem, confusão. A minha perturbação não se alinha nesse verbete.
E lá na última linha, quando acho que nada faz sentido, um sinônimo acomoda-se
ao que sinto - ali escondido quase no fim da página, como se talvez pensasse
pertencer a outro lugar. Perturbação sinônimo de comoção, emoção profunda que
acorda, provoca, move e faz mover. Perturbação sinônima de motim, revolta do
tempo, de um ser que se altera sem que o faça a sua estrutura. Um tempo de
costas viradas aos relógios concretos, endurecidos, ponteiros amarrados ao aço
frio dos mecanismos exatos.
Esta minha perturbação é filha do
inesperado, um espanto que dispensa explicações. As palavras que faz nascer
escapam por entre os espaços dos meus dedos - seja verso, seja prosa, um tropel
incontido que eu só observo deste meu posto de escrevente. Não, não as psicografo. Sinto-as nascer e tomarem forma, buscarem seu espaço preciso no papel. Não sei se nascem dentro, ou se sou eu que nasço dentro delas. É mais provável que seja a segunda opção. Permito-lhes a ida e a vinda, o retorno, a variação, a dúvida, o
olho fechado, a espera, a mão que se apoia para aconselhar ao coração que vibre mais
baixo. Sou toda sua, numa entrega que se diz destino, que se esgueira e me
desarma as indecisões, as manias, os pensamentos fossilizados, as
inconvenientes esquinas em que estacionamos a alma de vez em quando. Vou-me ao
papel e à tinta e retorno fortalecida, alma e coração e corpo em calma, em
alívio, à espera da próxima perturbação feita palavra. Enquanto isso, volto ao domínio da ficção, palavra que chega com mais vagar e trabalho, de onde saio ultimamente só e apenas para pensar na gênese que a torna fartura à minha porta. Ou para responder aos bons amigos, que inspiram e perturbam os meus caminhos.