Uma das maiores diversões que tenho quando planejo uma viagem, mesmo que seja curta como será a do próximo domingo, pensando em termos de quilometragem (o que não quer dizer rigorosamente nada, mas tudo bem), é pensar-lhe a trilha sonora. Sentei-me agora mesmo aqui diante do computador, pensando em pensar em algo que me afaste um pouco do dia de hoje, dos movimentos internos todos que precisei acomodar dentro de mim, alguns tendendo ao doloroso. Decidi preparar, assim, a tal da trilha da viagem do próximo domingo.
13/08/2009
Do preparo das viagens
12/08/2009
Da luz, por vias travessas
Há muitos anos atrás, eu era pequena e os campos de trigo do norte do meu país eram mais altos do que eu. Isso encantava-me. Entrava por aquelas imensidões e a impressão era de ser teletransportada, acedendo a outras dimensões do mesmo lugar de forma instantânea. Nunca tive grandes dificuldades para imaginar coisas assim, mas alguns cenários (os trigais, no caso) propiciaram-me essa vivência repetidamente. Dependendo da hora, tinha a luz do sol como minha aliada, incidindo nas hastes flexíveis de um jeito dourado que as impregnava e quase as fazia cantar.
Saint-Exupéry vem-me à baila no meio de tudo isso, mas agora eu sei o motivo - aquela raposa que se dedica à responsabilidade por aquilo que cativa. Essa raposa às vezes nos acossa, e seus olhos são feitos de luz e brilham. Olhamo-la de lado, fazemos de conta que não é da nossa conta, mas não podemos nada a não ser a fidelidade e os dedos cruzados para conseguir cada tarefa encomendada por nós mesmos. Muitas vezes dependemos da luz com que iluminamos as coisas e da luz com que os outros nos iluminam. Ou da luz com que as coisas estão iluminadas, e à qual talvez devamos prestar mais atenção do que às coisas exatas precisas travadas em si. Talvez eu deva permitir que a minha memória se liberte dos trigais e se remodele sob a sua luz, para que também agora, com os passados próximos, eu possa deslocar-me das coisas e parar-me apenas na luz que as fazem brilhar.
11/08/2009
Do primário
Os métodos da Sôdona Esp'rança incluíam algumas coisas já abolidas na altura em outras partes do mundo, como a palmatória. Evoluída, no caso dela, que já tinha assumido um ar de régua de madeira. Mas doía do mesmo jeito. E eu era a sua escolha preferida, semana sim e semana também.
Qualquer coisa era motivo para ser chamada ao estrado – o pódio onde Sôdona se instalava em sua mesa, ao lado do quadro negro. Ora era não saber alguma coisa que devia, ora saber algo que não devia, ora a incapacidade de fechar a boca quando ela entendia que a (minha!) conversa tinha acabado. Esse era o maior dos meus pecados, a conversa, e acho que atualmente pago por ele, talvez perdoada dos juros, várias vezes por semana.
Eu fazia de tudo para escapar ao castigo, que realmente doía e deixava minha mão vermelha, às vezes arroxeada, dependendo da ira de Sôdona Esp'rança. Porém, também me elevava em importância, porque eu aguentava e nunca me viram chorar ao ser palmatoada. Minha mãe não sabia de metade – da vez em que percebeu a minha mão quase roxa, ia lhe dando uma coisa e invadiu a escola tão irritada, mas tão irritada, que eu decidi nunca mais lhe revelar o dia da palmatória, pelo escândalo que ela não precisava e nem eu.
Acho que, no fundo, eu julgava merecer tudo aquilo. No dia em que me pegaram saindo da janela do quarto das hóstias, por exemplo. Explico: anexo à escola, ou algo assim, funcionava algo ligado à igreja. (Nunca saber muito bem a origem de nada e andar um pouco acima das nuvens de segunda a segunda era também motivo de palmatória.) Uma das atividades desse anexo, de qualquer forma, era a feitura de hóstias, que gerava uma série de folhas todas furadas, redondinhas, como o que sobra quando se cunham moedas. Sobravam aquelas folhas e, acredite, eu acho que eram jogadas fora. Talvez tivessem outro fim, vai ver, mas eu jurava que eram jogadas fora. O que não tem a menor importância, porque a questão não eram as folhas, mas o apetite de todos por hóstias.
Com dois amigos, descobrimos um dia que a janelinha do topo da parede do quarto onde se faziam as tais das hóstias, ficava presa só no trinco, sem trancar. A janela era bem estreita, eu o era também, a menor e mais magra de todos, e lá fui a escolhida para a tarefa de escalar a parede. Entrei sem dificuldade, agarrei numa porção de folhas e dobrei-as bem dobradas para caberem no bolso do casaco. Escalei a janela de volta. Posso imaginar-me o sorriso de felicidade e triunfo, transmutado em pânico e apreensão quando vi que quem me esperava do outro lado, em vez de meus amigos, era o padre Viegas - e a Sôdona Espr'ança. Meus amigos? Evaporados, covardes que foram de me deixarem sozinha com a autoria, gestação e execução da ideia das hóstias. Esse foi um dos dias das minhas mãos arroxeadas, porque a aventura me rendeu palmatória dupla, esquerda e direita. E ainda por cima perdi as folhas furadinhas das hóstias.
É estranho, por histórias como essa que de tantas dariam um livro, que eu guarde boas lembranças de Sôdona Esp'rança. Já morreu, por isso sinto-me desobrigada de muita coisa, mas no fundo eu gostava dela. Desconfio que tenha a ver com a correção que fazia às redações semanais – sinceras , atentas e transparentes de um respeito que me alimentava. Ela orgulhava-se (disse-me a minha avó já eu estava longe desses dias) de ter sido ela a me alfabetizar, vivia contando casos da nossa vida
Demorei a perceber a importância do brilho que iluminava os olhos da Sôdona Espr'ança quando me devolvia o caderno de redação, corrigido. Era uma mulher austera, de cabelo imenso e arredondado, alourado escuro, parecendo duplicar-lhe o diâmetro da cabeça, e nunca me dizia nada que eu pudesse entender como elogio. Mas seus olhos brilhavam, e por eles eu me alegro de ter guardado dois ou três desses cadernos, para poder agora olhar pra eles com outros olhos, que são hoje mais meus do que eram antes.
De um dia após o outro
Por outro lado, é muito nítido ser desses dias que me nascem as ideias que depois se tornam meu alimento durante meses. Mas é um processo cansativo, e frustrante, e hoje eu não estou disposta a passar por todo ele com a sensação de que, por mais que ande, que dirija, que pense, que faça, que procure - não chego lá.
Por isso, cá me vou à escrita, veia de alívio, quem sabe as ideias me escorrem pela ponta dos dedos e retornam com a serenidade com que me proponho a, de vez em quando, viver. O primeiro problema que se apresenta é decidir se quem me galopa são os cavalos do verso, se os da prosa. Todo ano alguém precisa ouvir-me falar sobre a diferença entre prosa e poesia. Gosto desse assunto, que é daqueles aparentemente banais e essencialmente fundamentais. Daqueles que parecem resolver-se em dois minutos, mas não o fazem. É como aquelas pessoas que, de repente, se iluminam sob diferentes luzes: nem as notávamos e, num segundo, porque lhes vimos o que não lhes tínhamos visto, invadem-nos pelos sentidos e encantam-nos longo tempo. Pensávamos que eram simples, diretas, rasas até, e um dia revolvem-nos por dentro e dizem-nos com todas as letras que o mundo não é, mesmo, tal qual o imaginamos. Antes algo como aquilo que dizem existir entre o céu e a terra.
Nada melhor, para perceber o quanto a diferença entre prosa e poesia não se resolve num instante e pode ser tudo menos banal, do que ter algo a dizer que tanto num quanto noutro enquadramento se desencaixa. Talvez porque existam horas que demandem espaços abertos para o ser verdadeiro, nada de quadros ou caixas que prendam ou limitem, absurdo técnico costurado com as agulhas e as linhas da razão. O que precisa ser dito não cabe perfeito nem numa, nem noutra forma. Como os sentimentos que não se sabe por onde extravasar, e que se ficam nessa consumação que dura o dia todo, semanas até, se quisermos ser honestos conosco mesmos, à espreita por trás de cada árvore, por entre as folhas que decidimos tirar do gramado para clarear a própria superfície. Mas o vento que sopra em volta das casas é indomável, e as folhas voltam para onde estavam mal lhes viramos as costas, nós próprios nos virando e descobrindo que o vento nos trocou o lugar das coisas, e de nós mesmos, sem nem percebermos.
O verso!, penso comigo mesma enquanto olho o papel cheio de traços - é nele que encontrarei socorro... Mas não: também ele revolve ainda mais tudo o que sinto, ainda por cima permite que me ausente de mim mesma e divague pelos ares, e definitivamente esse não é o caminho, porque o que se quer é uma âncora, sei-o bem. As palavras não se permitem tranquilas, o objeto faz-se presente em demasia, obriga a dizer adeus à essência do que realmente se sente, que nada tem a ver, claro, com ele objeto. São contornos a mais em partes tão líquidas do próprio ser.
E tento a prosa. (Esta, aliás, é a sua tentativa.) Mas as arestas das linhas não interrompidas pelas cesuras dos silêncios poéticos tornam-me os sentimentos mais duros do que consigo aguentar. Doem-me como facas que me atravessassem aos poucos e devagar, como personagens bestas de Drummond, e logo volto ao verso, em desabalada e entristecida corrida. Por ele, ao menos, esvazia-se o leito deste rio em que se não estiver atenta me afogo. Mas quando me volto e olho para trás, não reconheço o por onde andei, e assim também me perco, também não consigo refazer o percurso.
Escrever demanda retomar caminhos e procurar a forma exata. Quanto mais se escreve, vivo eu dizendo por aí, melhor se escreve – e é um fato. Mas as coisas estagnadas assim ficam mais evidentes, as nossas estagnações internas com elas, e tudo isso dói.
A substância da língua divide-me em dois braços, um construído de versos, o outro de prosa. Lembro-me dos graus da poesia tal como os queria Pessoa, e tento projetar-me num dos mais elevados, deixando a modéstia de lado, pra ver se é ali que me libero. Mas soa falso, sou eu pensando em vez de sentindo.
Insisto em querer libertar-me sozinha, resisto às prateleiras à minha volta, escavo com vontade só o lado de dentro, relembro a memória e limo as suas falhas e os seus vazios. É uma sorte que o dia se acabe, e que com a sua luz mortiça se presentifiquem as necessidades da manhã, que se aproxima e promete. Amanhã, imagino talvez, saberei lo que me pasa, sem que precise por favor nem abrir o meu Neruda e nem apagar o sol.
09/08/2009
São Paulo, ontem
Ontem, por exemplo, precisei ir a São Paulo para algo que tinha que fazer apenas às 18h. Ainda assim, decidi sair cedo, de manhãzinha, porque pensando na ida e oferecendo carona, logo me apareceram duas, que precisavam ir cedo, e cheguei à conclusão de que seria interessante sermos companhia uns dos outros. E lá fomos – meus planos, de um vácuo vazio, apenas possibilidades que deliberadamente deixei por conta da carta com que o tarot me perseguiu nas últimas semanas: a roda da fortuna. Portanto: nada de planos, porque não me pertencem. Quando essa demanda se amalgama à própria percepção e acompanha o ritmo natural do dia, é ótimo; quando não, é um pesadelo.
Dias como esse, de tão intensos e completos, parecem vários, e tanta foi a explosão de sensações e tantas as impressões que se acotovelaram à minha superfície, forçando a entrada avassaladora e descontroladamente, que até dirigindo eu precisei dar um jeito de rascunhar algumas coisas, porque iam escapar-se de mim com certeza, com tal velocidade me chegavam, de todos os lados. (Sim, é claro que é perigoso, não aconselho ninguém a seguir-me a ideia de rascunhar coisas em plena marginal, imagino que seja proibido e comporte até uma multa, mas exemplifica bem, e a rigor, o estilo de urgência que me ataca de vez em quando, e ontem em especial.)
Essas inspirações, que não marcam hora e são como aquelas visitas que chegam quando você está de saída e atrasado, atingem-me no centro do peito e alteram-me a respiração de uma maneira caótica. Escrever resolve o que poderia ser esse primeiro problema – mas é na verdade a absoluta solução, e eu sei disso mesmo que de fora pareça outra coisa. Ontem não teve mesmo nada de problema, antes uma agitação de caráter sublime, que fiquei observando em mim mesma, encantada com o que me acontece de vez em quando, graças a vai-saber-o-que.
E cá estou, São Paulo luminosa e ensolarada. Deixo minhas caronas simpáticas e confiantes na minha capacidade de direção, e vou em busca da amizade que há tempos não encontro. Entrego-me absoluta em suas mãos: que me leve onde queira, faça comigo o que deseje, alimente-me ou alimente-se de mim, que pra mim tanto faz, a felicidade do encontro já é tudo e não preciso de mais nada. Graças a essa possibilidade aberta com que acordei, e que consigo examinar agora, tudo é um todo completo, que chega para me dizer tantas coisas que eu quase me perco, atônita com a sintonia à minha volta.
Pra começar (e terminar, senão isto fica longo demais), entre várias opções, decidem-me pela da exposição de Sophie Calle. Sim, lembro-me de ver seu nome em meio aos tantos da FLIP deste ano, mas não sei nada dela, estou afastada de tantas coisas. Descubro que essa criatura francesa, ícone da arte contemporânea (“arte de amplo espectro”, leio na introdução ao folheto que me entregam), tem por caminho a exposição da sua própria vida, nua, crua e de dentes e ossos abertos; custa-me fechar a boca, de tanto que me percebo. Desta vez, nesta exposição/instalação que aliás fica no SESC Pompéia até o dia 7 de setembro e vale a pena ser visitada, o objeto do seu trabalho parte de um email de rompimento amoroso que recebeu de um homem, o seu próprio amor. De cara, antes mesmo de entrar, mal ponho os pés no Sesc e vejo lá embaixo (a exposição é num dos galpões inferiores) o título da exposição (“Cuide de você”), sei que algo de significativo se abriga ali, ainda que não saiba do que se trata. Não são exatamente as palavras, nem me dizem tanto, mas talvez o cuidado gráfico, a disposição de banners ao vento que chama a minha atenção, que se desatina e nem realiza o recital de cítara no salão principal deste Sesc com recordações de tantos anos. Ou talvez não seja nada disso, e apenas a intuição antecipando-me a vida.
O tal email, que a destinatária deixa sem resposta, foi enviado a mais de 100 mulheres, cada uma de um quadrante da vida, para que a analisem a partir da sua própria percepção e ocupação profissional. Nada de pedir ajudas, ou de compartilhar a dor; o intuito é perceber como os outros perceberiam (creio eu que ainda assim isso é um compartilhar, mas vamos lá...). A exposição destacou algumas destas contribuições à dor de Sophie, numa estranha e complexa espécie de terapia auto-coletiva mediática: uma jurista, uma encarcerada, uma papagaia, algumas atrizes, dançarinas, uma especialista em direitos da mulher, outra em boas maneiras, uma tradutora de linguagem sms, uma etnometodologista (?), uma intérprete do talmude, uma headhunter, uma mestre em ikebana...
Cada uma, uma percepção e recepção; cada uma, espaços possíveis de uma resposta que nunca acontecerá, num processo em que não se vislumbram as linhas divisórias da ficção e da realidade, provavelmente (penso eu) porque toda realidade seja uma ficção de cada um à sua maneira. Sei que não gosto de me pensar realidade, e realizo-me na ficcionalização cotidiana de mim mesma como manobra de pura e banal sobrevivência - e deve ser por isso que a minha boca não quer fechar-se. Não tanto pelo que leio, pelo que vejo, pelo que ouço – mas antes por causa do próprio conceito, pela descoberta de que inventaram nomes para as coisas que faço cada vez que acordo (e compreenda-se que eu acordo várias vezes ao longo do mesmo dia).
Descubro depois que a passagem dessa Sophie por Paraty aconteceu pela mesa redonda da qual participou, e na qual estava também o autor do tal email, também escritor. Terá a exposição despudorada da dor tornado mais fácil o seu filtrar e a sua despoluição? Terá a exposição permitido a dor das pequenas torturas que nos impomos, e que nos são vitais, sem que as rechacemos e nos abstenhamos dos seus ensinamentos?
Às vezes, penso comigo mesma, sinto-me realmente intoxicada. Como esse Tietê aqui ao meu lado, passando por essa cidade cheia de surpresas rápidas, instantâneas, tão dessa modernidade em que não importam mais os quinze minutos de fama, mas cada cinco da própria vida. E nós perdendo tantos deles, brincando de kart pelas ruas sem pneus de proteção, expostos sob a ilusão do capacete em nossas cabeças, achando que tudo é sério, muito sério, e demanda os meses de espera que o passado mais tarde condena.
07/08/2009
Chuva, avós e amor
Foi graças a uma das consultas noturnas de meu avô, num inverno molhado como todos os da minha infância. Uma espécie de tempo como este que não nos largou durante o mês de julho, em que chove, chove e chove, e o único alento é que certamente um dia deixará de chover. Lá, na minha infância, todos os invernos eram assim, com o agravante de que o frio era maior.
Nesse dia, o frio estava cortante e a chuva alfinetante. Lá tocou o telefone, não deveria ser cedo porque já tínhamos jantado. Minha avó anotou o endereço na caderneta, e meu avô bem tentou fingir-se de dormido, que eu percebi pelo canto do olho, abandonando a leitura de um dos livros do Enid Blyton que me acompanharam a infância tanto quanto a chuva.
Mas o dever chama, e encolhendo os ombros, talvez pensando que ainda bem que era longe, daria tempo do mau humor se dissipar, arrastou-se em direção à porta de entrada. Minha avó estava curiosamente animada naquela noite, e lançou um “Ó João... e se nós também fôssemos?”. Eu achei a melhor das ideias, aquele frio, aquela chuva, aquela escuridão, e nós no 2 cavalos do meu avô, chacoalhando como natas a caminho da manteiga. Contente com a indicação aceite, pus casaco, botas e luvas e lá fomos.
As horas de espera na salinha da casa do doente foram a parte menos divertida, porque a luz era pouca e não havia nada para fazer; às vezes os doentes do meu avô tinham crianças em casa, o que era animado, mas não neste caso.
Na volta, a chuva piorara bastante e os relâmpagos assustavam. Meu avô detestava dirigir com chuva forte. Aliás, dirigir não era o maior dos atributos do meu avô, embora o tenha feito até o dia em que morreu, aos 86 anos de idade. A cidade inteira (e não se trata de uma cidade pequena, para os padrões portugueses ao menos) conhecia o citroen vermelho do meu avô, basicamente porque já era o único daquele tipo a existir na cidade. Assim que o viam virando a esquina, os demais motoristas abandonavam a corrente noção de que um “pare” signifique que o sujeito vá de fato parar, ou que uma via preferencial seja entendida como tal por todos os mortais. Aparecia meu avô sacolejando na rotatória da Praça da Rainha, obviamente tendo de parar antes de entrar: quem parava eram todos os demais, dentro da rotatória inclusive, para o deixarem passar, livremente e sem dar por isso, em direção ao cemitério e à visita diária a minha avó. Na Praça da Fruta, a mesma coisa: “Lá vem o Dr. João!”, e logo paravam todos, prontamente. Eu, quando pequena, achava aquilo a maior consideração, embora sumisse quase que para debaixo do banco de vergonha. Já mãe de dois filhos, e acompanhando-o nessas visitas à minha avó já morta, admirava-me com aquela compreensão que fazia com que a cidade inteira, novos e velhos, nascidos lá e enraizados também, entendesse que as leis de trânsito não se faziam para aquele senhor de olhos cinza.
Mas enfim. Nessa noite da chuva, meu avô decidiu passar o volante à minha avó. Decisão sábia, que ela dirigia muito mais cautelosamente do que ele. Parece que a chuva a atrapalhou, e meu avô nervoso, dando indicações que pouco ajudavam, devia obter o mesmo efeito. Eu, no banco de trás, mais calada que um rato, não fossem as sobras serem minhas.
A visão quase nula, e muitos carros em direção contrária. Uma guinada transportou-nos a todos para a berma (adoro essa palavra, sinônimo de acostamento, que não uso há séculos!) e o carro resvalou, quase virando.
Minha avó tinha um problema cardíaco sério, que lhe rendia cuidados constantes por parte de todos; cuidados curiosos, como o de manter uma jarrinha de água com uísque ao lado da cama, para tomar um copinho todas as noites antes de dormir, medida que dizia meu avô ser boa para o coração. (Decidindo cuidar do meu por conta própria, fazia o mesmo de vez em quando, mas acho que nunca ninguém deu por isso.) O susto do meu avô, que poderia ter se transformado em cólera, eu já tinha visto disso e fiquei preocupada, colérico que era, metamorfoseou-se repentinamente num gesto que lhe abriu os braços protetores, fazendo-o lançar-se sobre a minha avó para a afastar do perigo que viesse. Foi tão rápido, e ficaram tão perto um do outro, que os olhos tiveram que fazer um beijo acontecer, tendo-me como única testemunha.
Há pessoas que se sentem desconfortáveis em manifestar (publicamente, pelo menos) o seu carinho e o seu amor, e meus avós estavam dentro desse rol de pessoas. Nesse dia, de um sutil e meigo que quase se perde no meio de toda a chuva, o amor dos dois tornou-se muito palpável, e porque não o era no dia a dia, gravou-se na minha memória, e tornou-me fácil compreender anos depois as saudades absurdas do meu avô, depois que a minha avó morreu.
Lembrei-me de tudo isto hoje, quando fui acordada no meio da madrugada por um telefonema de longe, que me trouxe de volta a voz do amor da minha vida. Agora que o dia amanhece, e eu percebo o quanto os dias se arrastam sem ele a meu lado, percebo-lhe a qualidade simples, inteira e sólida daquele instante de uma noite de chuva e acidente. Com todas as alegrias, dificuldades e promessas que trazem consigo as coisas simples, inteiras e sólidas, porque nunca são, é claro, apenas isso.
04/08/2009
Do latim
Descobrir que “confraternizar” tinha uma ligação tão íntima com o perceber no outro um nosso irmão, e por isso é que meros encontros são momentos de alegria e regozijo nos braços da fraternidade, acompanhou-me assim que o latim entrou na minha vida. “Frater meus, alter ego” (meu irmão, outro eu) foi um bom tempo a missiva que circulava entre eu e meus fraternos amigos da altura.
Na verdade, um pouco depois. O latim apareceu-me antes, com uma das minhas tias, a que gostava das línguas mortas e até se parecia já naquele tempo com alguma delas. Aconteceu na voz de um belga morto em 1978, Jacques Brel. Tinha ele musicado a primeira declinação latina (Rosa rosa rosam/Rosae rosae rosa/Rosae rosae rosas/Rosarum rosis rosis
, numa letra da música sem coincidência exata com a declinação clássica), chamando-lhe, por entre isso que era o refrão, de “tango dos que farão a França de amanhã”.
Queria a minha tia introduzir-me dessa forma a todos os casos declinados da língua de Roma, mas eu fiquei-me durante anos na música de Brel, e ela acabou por se frustrar e, segundo disse, “ficas abandonada à própria sorte”. É bom saber que nessa altura nem estava eu ainda alfabetizada, como é que ia me interessar por decorar obscuras declinações latinas sem melodia anexa?
Anos depois, tive a sorte (jamais diria isso naquele tempo, mas enfim...) de ter aulas de latim por algumas das escolas por onde passei do 5º ao 8º ano. Foram vários professores, todos eles homens, creio eu, mas um deles, que aliás era padre, é o que guardei na memória, provavelmente por ser o mais bem humorado e por, ainda por cima, saber “de fato” latim: falava latim. Imagino que por causa dele eu tenha passado por todas essas experiências, frustrantes na sua maioria porque aprender que foi bom, nada - e até hoje goste de latim. Na faculdade nem cheguei a me sentir perseguida pelo querido professor Alceu, que literalmente caçava os alunos pelos corredores e por várias vezes me (nos!) deixou em imensas e quilométricas recuperações de traduções, que eu fazia livremente pelo que me parecia soar, sem grande paciência para descobrir-lhes o caso (e, coincidentemente, o significado) exato. Chegava perto, mas Alceu queria as coisas exatas, e explicadas.
Numa dessas recuperações (isto não vem nada ao caso, foge ao plano inicial desta crônica, que é outro, mas lá vai), decidimos marcar a tal da recuperação na casa dele, talvez já ele estivesse farto das tais das recuperações no campus da faculdade. E lá fui eu, e mais alguém de quem agora não me lembro, porque a figura até que terminou rápido e logo se foi, puro alívio. Eu rabisquei algumas coisas e levantei-me. Fui ficando, que a biblioteca do professor Alceu era respeitável. Encontrei tudo o que devia traduzir no original, em edições antigas; nada que me ajudasse na tarefa em mãos, mas eram livros com aquele tipo de cheiro que traz tudo menos livrarias: traz mãos e toques antigos, horas noturnas sob mesas pouco iluminadas, cigarros acesos e mentes pensando, sussurros ao pensar numa possibilidade, saboreada do único jeito possível - em voz alta. Quando dei por mim, o Alceu estava sentado na sua poltrona, muito feliz de que alguém mexesse naquelas prateleiras. Conversamos tempos e tempos, e quando fui embora já estava de noite, e eu preocupada com as crianças, o jantar, a casa... Quando lá cheguei, descobri que a prova tinha vindo comigo, e esqueci-me dela. Alceu nunca me perguntou por ela, e aquele foi afinal meu último semestre de latim.
A digressão vale-me agora a sensação de que é disso que a vida é feita e é por isso que vale a pena, independente, o Pessoa que me perdoe, do tamanho passível das almas.
Tudo isto para chegar ao que me prendeu hoje, e que na verdade até (reparo agora) tem a ver com esta história do Alceu. A diferença imensa entre as palavras “partilhar” e “compartilhar”. Debato-me com elas há meses, tentando perceber-lhes no meu dia a dia onde mesmo é que se encontram e onde é que enfrentam caminhos distintos.
Senão, vejam.
Não são forças opostas, parece-me a mim, antes energias manifestas de coisas bem distintas. Uma envolve o outro, objeto do partilhamento, na sua dimensão ausente, sem dele nada requerer, um pouco como se ele apenas existisse como as estrelas do céu que não imaginamos nos estejam atentas, apenas nós a elas; é um impulso de dentro pra fora, e o dentro é auto-suficiente; não há nada no fora que se queira ter de volta.
As três ínfimas letras que se juntam ao “partilhar” acomodam esse outro ao nosso lado, confortavelmente (ou não) instalado na poltrona defronte da janela aberta, ouvindo o eco dos silêncios da vida. Incorporam uma outra explicação do mundo, uma outra porta aberta, por onde esse outro se expressa e por isso nos transforma, por isso nos deixa passíveis de sermos um eu melhorado e mais inteiro, por conter aquele outro que até então expectava (se é que tal palavra existe; meu corretor ortográfico aqui diz que não mas eu não vou ao dicionário porque a palavra me agrada quer ele diga que exista, quer não).
Compartilhar implica movimento, disponibilidade, entrega, admiração, encantamento, liberdade, aceitação. Uma forma especial de fluir que se parece com o movimento da água. Invisível, sutil, permeada pelo silêncio do que se move no subsolo, quase sem forma. Compartilhar expande o que se quer na direção do que se descobre.
A energia desse “partilhar-com” abriu-se na minha vida através destas crônicas, atingindo-me em cheio dentro de um movimento que pretendia apenas e tão somente partilhar. Partilho deste lado, um tanto a medo confesso, porque a exposição acontece. E quando menos espero, e no momento exato em que preciso, ouço ou leio alguém que me retorna, que me norteia, que me traz o parâmetro que sozinha não posso ser, e o meu ser inteiro se abre em asas que me transcendem e me movem na direção que não é minha apenas. Recebo esse compartilhar como recebo outros tesouros: com os dedos trêmulos e com os olhos em brilhos de satisfação de ler e reler, e sempre me deixar surpreender pelos milagres que não podemos nunca deixar escapar por entre os dedos.
Acabei de ler aqui num blog a palavra com a qual me vou deitar: “vigiai” – está tudo aqui, diante de nós, e somos nós quem dizemos sim ou não. Sermos solitariamente partilhados ou em graça dividida com-partilhados.
Da origem da escrita
Meu avô, além de ser médico, escrevia. Entre uma consulta e outra, entre um e outro receituário, riscava no caderno que guardava no bolso esquerdo umas quantas linhas, sobre as quais se debruçava nos longos serões perto da lareira, pleno inverno.
02/08/2009
Sonhos
Acordei no meio da noite passada, acho que graças a um sonho que há muito tempo eu não tinha: acordo de repente e não sei onde estou. Literalmente – acordo do sonho e olho em volta e não reconheço nada do que me rodeia. Ou de repente até sei, variante da versão dominante deste sonho, mas tenho certeza de que não é o lugar onde devia estar. Se alguém desse lado leitor puder ajudar-me a interpretar estes sonhos, eu agradeço, porque (já faz tempo, mas) cheguei ao limite de acordar e não saber, durante bastante tempo, em que casa estava e com quem dormia.
Já me disseram que pode ser uma crise de sonambulismo, mas eu sei distinguir uma da outra, e percebo claramente que estou acordada, só não faço ideia de onde esteja. Num passado típico de adolescente, tive vários episódios de sonambulismo, daqueles que rendem boas anedotas para entreter tios e tias à mesa do jantar. As do meu pai, entretanto, sempre superaram as minhas, porque ele, já longe da adolescência, continuava sonâmbulo, atividade pouco adequada à sua vida diplomata. Num de seus acessos, que eram cíclicos e quando chegavam duravam alguns dias, estava ele em algum hotel de algum país. Acordou de manhãzinha, enroscado em si mesmo diante das portas dos elevadores do saguão do hotel, com o time de recepção de plantão à sua roda, pasmo, olhando aquele senhor de pijama xadrez roncando suavemente no tapete do hotel. O episódio garantiu-lhe uma popularidade invejável durante a conferência de turismo da qual participava, e foi notícia nos jornais da cidade. Bem humorado como era, divertiu-se às pampas com o fato.
Este sonho que me acorda hoje é daquele gênero que já me preocupa – nunca vem sozinho, prolonga-se por várias noites, e tende a um crescendo de intensidade que com certeza me garantirá horas e horas de insônia, metade delas à cata de explicação. Há dois tipos de insônia na minha vida: um, produtivo, em que me levanto e decido o almoço, a arrumação da gaveta, a solução para o problema poético que não se resolvia há semanas, a lista de compras que esquecerei ao entrar no carro, a organização das aulas da semana; outro, desgastante, que me faz rolar na cama com receio de adormecer de novo e certeza de devê-lo fazer, uma idiota sensação embutida de que a noite obedece às minhas vontades, e assim por ali fico horas de olhos fechados à força, sem conseguir dormir.
Este é o sonho que, por excelência, faz com que eu me vista com o segundo tipo. Imagino que seja porque parece que vivo em vez de sonhar; para sair do sonho, preciso levantar-me, ir até à cozinha, dar tempo à minha consciência de se refazer do lugar de onde vem. Aliás, não vem: cai, de tão abrupta que é a chegada. E logo decido voltar para a cama, rio sem jeito para mim mesma no espelho do corredor, balanço a cabeça num querer me convencer da grande bobagem de tudo isso. Mas é só me deitar, e me desconvenço, e a solução é tentar compartilhar a insônia com quem dorme a meu lado, e tem a santa índole de dizer que sim, que é verdade, ou não, como você quiser, agora deita aqui e dorme que ainda é cedo.