Sabemos, todos nós, que a verdade
é um bem a ser preservado e garantido. Que, em qualquer circunstância, e mesmo
que doa, sempre a dor da verdade é melhor que a da mentira. Sabemos, mas nem
sempre praticamos; raramente nos damos conta de que um tanto daquilo que
fazemos, não só mas também em nosso papel de educadores, mais mente sobre a
realidade do que a apresenta e encara tal qual ela é.
Lembrei-me disso hoje ao ler um
parágrafo de The bad seed, um romance
da década 50, de autoria de William March: “um botão de rosa de cera ou um
pêssego de plástico parecem mais perfeitos, aproximam-se mais daquilo que a
mente imagina ser um botão de rosa ou um pêssego, do que o imperfeito original
a partir do qual foram modelados”.
A nossa tendência a querer
transformar o mundo em um mar de rosas para as crianças, para que elas não se
machuquem, onde as coisas não são o que realmente são, cresce a olhos vistos.
Impacta-nos de maneiras para as quais ainda não estamos conscientes. Andamos
sobre plásticos que imitam madeira, comemos sanduíches que imitam comida,
ouvimos músicas eletrônicas que imitam instrumentos de verdade, vemos
reproduções de obras de arte como se estivéssemos diante de originais, temos
amigos virtuais como se fossem reais, e fazemos um esforço tremendo em parecermos
fortes onde somos frágeis.
Um mundo “de verdade” é
indispensável à criação de seres humanos sadios. Se são crianças que estão sob o
nosso cuidado, o grau de responsabilidade aumenta. As nossas escolhas são as
escolhas delas, porque nós somos a referência, e é a partir das janelas que
abrimos que elas reconhecerão o mundo habitável. Ou não. Se o que oferecemos
não é “verdade”, a vida terá grandes chances de ser uma mentira. E esses
futuros adultos terão grandes chances de não reconhecer e distinguir a verdade
da mentira. Terão grandes chances de não reconhecer perigos e armadilhas em
pessoas, em situações, nas prateleiras dos supermercados, no boteco da esquina.
Crianças que não vivenciaram a verdade poderão não reconhecer a mentira mais
adiante. Sim, eu sei: você está pensando que essa coisa de verdade é muito
relativo. Não é. Uma rosa de verdade não é uma rosa de cera. Um pêssego de
plástico não é um pêssego de verdade. Não se faz com ele o que se faz com um
pêssego real. Assim como não se faz com pessoas reais o que se faz com simulacros
de pessoas num jogo qualquer de computador.
As crianças precisam de verdade.
Precisam senti-la, quando pequenas, correndo por entre os seus dedos. Precisam
reconhecer a madeira, o algodão, esses elementos que estão à nossa volta de
forma natural, e que encontramos e reconhecemos facilmente, em suas várias
manifestações. Essas são as coisas verdadeiras na primeira infância – aquelas
que existem ao redor, e que podemos reconhecer no seu próprio processo. Um
carrinho de madeira, uma boneca de pano.
Crianças pequenas não precisam de
andadores que imitem o seu esforço em erguer-se, assumir a humana posição ereta
e caminhar pela vida. Precisam da verdade de suas próprias pernas no movimento
de profundo equilíbrio que é o andar. Elas vão cair, e vão se levantar, e vão
voltar a cair, e joelho esfolado é aprendizado saudável. Crianças não precisam
de uma alimentação artificial e cheia de produtos químicos, que além de
maltratarem o seu ser físico em formação, lhe alteram a capacidade de perceberem
o que é uma cenoura, uma batata, arroz, as beterrabas de verdade.
Parece bobagem? Mas não é. Já
sabemos que é de pequenino que se torce o pepino. O aprendizado das escolhas de
uma criança começa com aquilo que escolhemos para ela. Quanto mais consciência
do que fazemos, e por que fazemos, melhor. O nosso conforto, a nossa
“necessidade” não pode tranquilamente sobrepor-se àquilo que é fundamental à
criança. A nossa “necessidade” de, recém-paridas, nos reintegrarmos à vida
social não pode impactar a criança que acabou de chegar. O show de rock pode
esperar para mais tarde, o sambão também, a saída à noite pra festa dos amigos
idem. Às vezes, não paramos pra pensar. E às vezes as escolhas têm
desdobramentos tristes.
Crianças que se habituam ao mundo
virtual desde cedo vão perder a noção do que é relacionar-se com o mundo real. Aliás,
com adultos é a mesma coisa. Aprenderão a deslizar seus dedinhos pelas telas
dos tablets e dos smartphones antes de terem percebido a textura da areia da
praia. É bom ter diversidade? As várias experiências? Certamente um pai ou uma
mãe de um dependente químico lhe dirá que não: há experiências que é melhor não
ter. E agora, se já teve, é preciso cuidar. É preciso refazer o caminho, passo
a passo, redescobrindo o que é mesmo “de verdade” neste mundo. Rodear-se de
coisas de verdade. De pessoas de verdade. De sentimentos de verdade. Tirar da
frente e dos lados e de dentro tudo o que é mentira, como é mentira o caminho
que as drogas oferecem de encontro de si mesmo. Como é mentira decidirmos que
nosso filho de 16 ou 17 anos pode sair com o carro porque “ele dirige melhor do
que eu!”, ou com ele tomar uma cerveja, e iniciá-lo nesse mundo em que se
ganham forças, autonomia, coragem e graça com a ajuda de um ou dois copos.
“De verdade” é o mundo cheio de
imperfeições. São amores que não reluzem como ouro, e é assim que nos fazem
bem. São situações em que estamos frágeis e nos sentimos à deriva, e firmamos
os pés dentro delas lidando com o medo que nos sobrevém. São empregos que
desanimam um dia e outro, e nos satisfazem dessa forma. São escolhas erradas
que precisam ser refeitas, e dói, e é bom, porque é na dor também que
crescemos. São refeições salgadas, a carne que cozinhou demais... e quando nos
levantamos da mesa estamos preenchidos. Porque houve mãos de verdade que
cortaram as cebolas, houve olhares de verdade que se cruzaram risonhos ao perceber
o desastre, houve o riso sincero que todo mal desarma, e que é de verdade, e
por isso é bom, e nos faz crescer e ser pessoas melhores no encontro conosco
mesmos e com o outro.