25/07/2012

Exercício: uma explicação

Minha cara Júlia

Os móveis do meu consultório parecem ressentir-se da sua falta; quase me perguntam para onde você foi, que não volta.

Tenho recebido notícias de quem agora a acompanha, e gosto do que ouço. Talvez seja isso o que me faz sentir mais a sua falta: o sentimento de incapacidade de não tê-la ajudado quando pude. E perceber o quanto outros o podem fazer, e fazem. Agora, parece, nossos caminhos se bifurcaram e avançam cada qual em retângulos de traçados divergentes.

Sim, leio todas as cartas que me envia. Se não as respondo, é por um impulso imediato de não interferir no seu processo, de não saber de que forma guardaria as minhas palavras dentro de si, e do que elas poderiam fazer-lhe, se se aninhassem em algum lugar sem serem convidadas. Por isso, o silêncio. Como vê, nada mais distante do que a falta de interesse.

Pus a fotografia que me enviou diante de mim, à minha mesa. Gosto de olhar a serenidade de seu perfil e o mar ao longe. Quase ouço seu sussurrar e sinto a brisa marítima agitar meus cabelos como imagino aconteça com o seus, conforme os vejo agora, capturados por essa imagem estática a duas cores. Ao lado de seu retrato, nada além de uma cornucópia, de onde escorrem os meus dias, um a um, atravessando calabouços de brilho de pérola. Como se a sua imagem pertencesse também a esse mundo que escorre, serena e absorta dentro de si mesma. Tão diferente dos dias em que batia à minha porta com o desespero da insatisfação angustiada estampado em seus olhos difíceis.

Assim são os meus dias, quando penso em você: uma espécie de alegria tênue pelo encontro que vejo realizado nesse seu olhar tão distante a preto e branco; uma espécie de alegria entristecida, pela distância que se interpôs entre nós. Distância benfazeja, bem vejo. Necessária. Mas distância, assim mesmo.

Com amor e saudade,

P.

07/07/2012

A cidade nova XIV - Do telhado

Dizem-me que tome cuidado. Rio por dentro. Gosto dessa palavra, cuidado, parente tão próxima do verbo cuidar. É daquelas que não se sabe muito bem de onde vêm. Pode ser que seja de cogitare - quando pensamos, refletimos, consideramos. E pode ser que venha de agitare - quando conduzimos, dirigimos, instamos. Prefiro achar que seja uma mistura das duas, como se todo pensar levasse a uma direção precisa.  Cuidar  e tomar cuidado como formas de pensamento em estado de ação.

Em dias como os de hoje, que escorrem leves por cima das pedras que forram a vida, é fácil cuidar de quem está em volta. Pensa-se um pouco, a ação vem fácil. As horas passam como brisas de fim de tarde à beira do mar, diluem-se no que está em volta, as tarefas cumpridas sem sacrifício e, súbito, o dia acaba.

A meio da manhã, um estranhamento por dentro. Faço o que manda um dos mestres, Rubem Braga: subi aos céus. Quando tudo parece parado e os homens não se entendem, diz ele naquela crônica deliciosa que intitulou de "Torre Eiffel", o melhor é subir aos céus. Lá fui. Não porque os homens não se entendam, mas justamente porque parece que tudo pára. E eu subo aos céus antes que os homens se desentendam.

Meu céu é o telhado. Acesso fácil, graças à população de andaimes e escadas que nos rodeia por aqui. Logo me acompanham -  em pouco tempo somos 5 em cima da laje recém nascida. Dou mais uns passos, e passo ao telhado desta casa antiga, as telhas quebradas atestando os maus tratos dos seus últimos anos, os líquens desenhando os contornos do passar do tempo.

Nada como mudar de perspectiva. Não fosse a crônica do Rubem, e as aulas que o terão no centro na semana que vem, talvez não tivesse aliviado o coração desse dia tão leve que quase pesa. Talvez esquecesse que, de cima, afinal, tudo se parece bem mais com aquilo que o coração deseja. E de repente me acenam, para que tome cuidado. O sol nas minhas costas diz-me que é exatamente isso que faço: cuido para que a vida possa continuar leve assim, pelo menos de vez em quando. Por isso penso, e  me movimento. Com todo o cuidado que sei e posso.

03/07/2012

Do Carmo


Encontro a Maria do Carmo agorinha de tarde, ao virar uma esquina. Reconheço-a pelo andar oscilante, o mesmo que usava ao perambular por casa sem saber exatamente por onde começar o que. Seus métodos de limpeza primavam pelo radical; tudo a água limpava, ainda que fossem coisas nascidas para viver longe dela, como livros, essas entidades que ela insistia em guardar nas prateleiras com as lombadas viradas pra dentro, “para que se vejam as folhas todas”, dizia a sua lógica. Não foi um entendimento fácil o nosso, mas durou muitos anos. E deixou marcas em ambas.

Maria do Carmo sempre me pareceu bonita. Seus olhos, um deles abalroado pelo punho do marido num dia de desatino, eram bonitos justamente por causa dessa imperfeição. Conheci-a num ponto de ônibus, já se vão mais de vinte anos, sentada com os dois filhos e uma mala perdida entre eles. Jurava que aquele tinha sido o último soco. O olho esquerdo sobressaía-lhe da pele negra, um roxo azulado que tremia cada vez que falava. Senti-a tão próxima da minha humanidade que a levei para casa, a ela e aos filhos. Trabalhou comigo anos a fio, viu filhos meus nascerem, sempre com aquele olho desconjuntado arregalado diante da inconformidade de eu não querer visitar hospital. Falava pouco, quase nada; qualquer conversa que eu tentasse puxar, recebia uma gargalhada histérica em resposta, as paredes tremiam. Até que eu desisti e decidi comunicar-me só com os olhos e o sorriso. Deu certo.

Maria do Carmo parece igual, como se todos os anos se evaporassem no espaço pequeno que ocupamos na rua. Abraça-me com a força de sempre, seus braços longos em torno da minha alma à flor da pele. Estamos tão felizes de nos vermos que nossos olhos todos enchem-se de lágrimas, uma água rasa que não rola nem cai, tantas lembranças de tudo o que nos juntou em duas realidades tão diferentes. Quero contar-lhe, mas contar-lhe o que?

Esta cidade nova tão velha faz-me encontrar fantasmas todos os dias, tempos extintos, pessoas passado. Postam-se de repente à minha frente, lembram-se do meu nome, como se tivesse sido ontem e não outra vida. A umas, não consigo localizar-lhes nem tempo nem espaço. Mas a outras, como a Do Carmo, localizo-as dentro da alma, retrocedo anos, provo-lhes o travo de simpatia e calor que as fizeram criar raízes em mim.

Nunca mais fugi na vida, diz-me ela. Aprendi a fincar os pés no chão, mesmo que tenha de baixar a cabeça pra isso. O brilho de seu olho bom é o mesmo, e o outro é triste como sempre. Leva a mão ao rosto, sorri um sorriso desdentado e diz que é bom que continue assim, senão arriscava esquecer. O mesmo desamparo a acompanha, a mesma tenacidade desajustada que a faz atravessar a rua descuidada. Não sei como ainda não morreu atropelada. As crianças estão bem, cresceram, cada qual a sua vida. Eu estou a mesma, garante. Mas não é bem a verdade. Agora que a vejo de costas, descendo a calçada do outro lado da rua, há curvas a mais em seus passos, cicatrizes que marcam as suas costas encobertas, novos fardos densos que carrega sem que os outros precisem perceber. Quero correr ao seu encontro outra vez, mas é o passado que me acena lá de baixo, quando ela se vira tão lenta para me dizer adeus. E, de repente, acho que não a verei outra vez.


Imagem: "Canavial", Sérgio Torretta

29/06/2012

Dicotomia e incongruência

Gosto quando me perguntam sobre palavras. Às vezes, a resposta vem, lépida e faceira, simples, convincente. Outras, as palavras perguntadas ficam perambulando dentro de mim, abrindo espaços, forçando-me em direções que preciso, ainda que não queira. Reviro-as e reviro-me de todos os lados. Essas palavras perguntadas são coisas sérias, coisas que chegam sem motivo para nos darem motivo.

Ontem perguntaram-me o que é dicotomia. Tentei a explicação etimológica: tomia significa cortar, portanto dicotomia é cortar em dois, algo que era um subdivide-se etc. Mas não: o que a pessoa quer saber é o que é uma falsa dicotomia. Como saber quando algo se insinua dividido, mas não há divisão? As coisas, quando se dividem em duas diante da janela mais danosa, a da incongruência. E essa é a segunda palavra que me perguntam - incongruência - e assim são duas a que preciso dedicar-me. Não consigo respostas, eu própria a dicotomia em estado bruto.

A prateleira dos livros logo ali. Lanço mão dos poetas. Lembro-me de dois, assim já, de repente, como chegam as coisas que precisamos ler. Luiza Neto Jorge e Eucanaã Ferraz, que uma amiga ressuscitou da minha memória há poucos dias. A cair e a estar de pé: tudo isso o poema ensina. O que é preciso é aprender a ler - as letras e os livros, tal qual as pessoas, as coisas, o ar rarefeito em volta. Por isso, como resposta tardia a quem perguntava, aí estão os poetas, seus poemas, suas verdades, o diálogo instaurado entre dois seres. Talvez seja aí, no diálogo, que as dicotomias se resolvam, as falsas e as outras, as talvez incongruentes.


O poema ensina a cair
sobre os vários solos
desde perder o chão repentino sob os pés
como se perde os sentidos numa
queda de amor, ao encontro
do cabo onde a terra abate e
a fecunda ausência excede
até à queda vinda
da lenta volúpia de cair,
quando a face atinge o solo
numa curva delgada sutil
uma vênia a ninguém de especial
ou especialmente a nós uma homenagem
póstuma.
Luiza Neto Jorge



O poema ensina a estar de pé. Fincado
no chão, na rua, o verso não voa,
não paira, não levita.

Mão que escreve não sonha. Em verdade,
mal pode dormir à luz das coisas
de que se ocupa.
Eucanaã Ferraz


Imagem: escultura de Raquel Zocco

28/06/2012

Exercício: As razões de Armindo

Armindo desce do ônibus com as pálpebras coladas de sono. Isaura espera-o na plataforma, batendo os pés no chão como se quisesse espantar a ansiedade junto com o frio. Seus olhos sorriem quando o vê; adianta-se para envolvê-lo. Armindo retribui, tenso e a contragosto, num esticar de longas costas como abraço que não se quer entregar.

‒ Não tinha certeza de que você viria. ‒ Isaura encolhe os ombros e não lhe diz nada. O que faço deste homem que duvida tanto?

A cidade está cheia; gente que sobe, desce, avança, caminha com os olhos voltados para dentro sem realizar para onde a levam os passos. As duas figuras andam vários quarteirões até chegar à sala de concertos. A caixa do instrumento pesa, Isaura insiste em levar-lhe a mochila. Está leve, não tem quase nada dentro. Percebe que Armindo ficará pouco. Guardam os volumes no saguão e saem para sentar-se em algum qualquer lugar.

A carta de Isaura no bolso do sobretudo de Armindo é uma brasa que arde. Saiu de casa decidido a explicar-lhe. A dizer-lhe. Aceitou essa aula aberta só para poder terminar o que sequer começou. Uma desculpa conveniente para viajar. Quer arrancar-lhe toda sombra de esperança. Mas cada minuto caminhando ao seu lado esvai-lhe a vontade. A proximidade tépida. O som dos seus passos na calçada. O braço que esbarra. As palavras que ensaiou ficaram dentro do ônibus, grudadas e impassíveis nas paredes azuis. Palavras sem recheio, mera formalidade de quem tem medo. Para onde foram todas as razões que viviam tão claras dentro de mim?

Isaura já almoçou, Armindo não tem fome. Pedem dois cafés e qualquer coisa que mastigar. Para ocuparem as bocas quando faltem as palavras. Jamais falam sobre amenidades. Armindo não sabe o que é isso, Isaura prefere os silêncios expressivos às palavras vazias.

‒ Não consegui responder sua carta ‒ diz Armindo finalmente, abrindo uma fresta na neblina que os mantém invisíveis.

‒ Armindo ‒ seu nome em sua voz é uma nota grave e frutada evaporando-se no ar em volta ‒ Armindo, eu não esperava resposta sua. Eu precisava dizer-lhe, precisava que você soubesse. Quem sabe entendesse. Mas não esperava que me respondesse.

Seus olhos estão úmidos, Armindo não sabe se neblina ou lágrima. Isaura sente a falta da frequência, das aulas, dos momentos em que dividiram harmonias, dos dedos que se encostaram e não conseguem desprender-se da sua pele. Pensou que uma cidade desconhecida e longínqua a manteria à tona, mas a vida desmorona à sua volta, traçando o fio da fuga. 

‒ Você leu. A minha carta diz-lhe tudo o que queria dizer-lhe.

Armindo procura dentro de si todas as razões que o mantiveram firme na recusa do que Isaura oferece. Precisa fechar os olhos, apagar a imagem dessa mulher plena, pronta a dedicar-lhe todo o amor. Se ele a deixasse. Mas eu não posso, Isaura. Não posso. Não quero magoá-la, mas não posso dizer-lhe esse sim que você me pede de olhos enevoados. Ele sabe: esse é o lugar comum fácil e batido. Para escapar de si mesmo.

Mas Isaura está disposta a ir até o fim. E confronta-o. Estende a sua mão e encosta-a aos dedos longos, as unhas cortadas rente à ponta dos dedos, a pele curtida e suave, a temperatura quase a mesma. Armindo perde as últimas palavras que tentavam organizar-se em sua mente, e só sente. Só sente. E sabe que o sim é a única palavra que ela aceitará e a única que ele, bem no seu fundo, tem para lhe dar. Ainda que ponha a perder tudo o que construiu em sua vida, essa estabilidade serena que lhe acorda as manhãs sempre no mesmo tom cinza. Fecha os olhos e escolhe a entrega.



24/06/2012

Bom Retiro 01122-040

À Karla

Neste domingo, começa tudo dentro do Museu da Língua Portuguesa. Disposta a ver a exposição de Jorge Amado, e já preparada para as mirabolantes instalações do Museu, lá fui. Fomos. Que com companhia tudo é melhor porque divisível. Bahia pura por todas as paredes, um deslumbre de capacidade imaginativa de quem projeta essas exposições temporárias do Museu. As palavras dos  quase 5000 personagens criados por Amado por todo lado, datiloscritos animados mostrando a forma e a ordem das correções a cada revisão, um luxo só. Não se esgota nada: são caminhos, pistas, material que instiga e cria vontade de voltar a Pedro Arcanjo, a Santa Bárbara, a Antonio Balbuíno. Até 22 de julho, quem puder que venha.



Mas na verdade verdade, só há um motivo que de fato me faça ir até lá. E é o terceiro andar. Ainda por cima quando posso compartilhar com outra pessoa esses momentos cheios de palavras, quem dera pudesse mais e muito. É começar a projeção e os olhos comicharem. E é a voz do Nachtergale instaurar o convite "penetra surdamente no reino das palavras" e lá me desaguo inteira até o fim da projeção. Toda vez. E olha que esta, salvo erro, é a quinta. Fico com a sensação de que é ali onde mais me pertenço, no meio de um mundo feito palavra, imenso, semântico, sintático, mastigável, onde a vida faz sentido e é maior que si própria e as minhas entranhas todas vibram. Vale a pena o Jorge Amado, é claro que vale - mas o museu inteiro vale, tanto faz o resto, pelo terceiro andar. Salve Nestrovski e Wisnik pela idealização deste presente.

Atravessamos o Parque da Luz, o mais antigo de São Paulo, em direção ao Bom Retiro. Gosto desse bairro multicultural, cheio de cheiros e pessoas tão obviamente distintas umas das outras - judeus, italianos, gregos, coreanos. O Parque está cheio de esculturas, o dia está cheio de sol e as pessoas estão cheias de luz. Atravessamos a rua e chegamos à esquina da Samuel Brenner, bem em frente ao bar onde sentamos pra tomar uma cerveja - torresmo na vitrine, sarapatel com feijão de corda no cardápio do dia pro almoço. Mesas pequenas, todas ocupadas por homens sozinhos.

Samuel está em uma delas. Nacib (sem Gabriela, que ficou no Museu) em outra. Ninguém fala com ninguém, é um prato cheio pra observar a vida alheia ensimesmada. Samuel é baixo, magro, tem dedos longos e finos; usa óculos de armação estreita arredondada e, mesmo à distância, desconfio que seja de ouro. Já passa dos 60. O casaco azul grosso e as costas curvadas denunciam-lhe a ocupação de sentar-se horas a fio, provavelmente atrás de um monóculo de ver diamantes; perdeu tudo para o sócio há uns anos, foi-se para outras bandas e deixou-o só com as contas a pagar. Hoje almoça sozinho, entristecido, pensando que gostaria de estar acompanhado. Suspira na direção da porta entre uma garfada e outra.

Nacib, na mesa ao seu lado, enfarta-se com o sarapatel e a segunda garrafa de cerveja. Olha em volta e sustenta-se sozinho. Rosto vincado, olhos azuis afundados, tem os dedos grossos, as mãos grandes, agarram o garfo como se o fossem engolir. Está sozinho, mas é porque quer. Mandou a mulher embora porque não permitia que fizesse com ela o que quisesse, e Nacib quer da vida tudo. Não quer lhe dar? Vá passear. Estou melhor sozinho do que acompanhado com quem não quer me servir como quero.

Marquinhos chega depois, afobado porque tem compromisso logo a seguir. Engole o prato feito, toma o suco pronto servido no copo, palita o dente a caminho do caixa e desaparece atrás dos braços compridos que usa para equilibrar o corpo. Nem dá tempo de que se lhe observem as mãos.


Suse, a dona do estabelecimento, é mineira da capital, mas já tem 32 anos de São Paulo. De Bom Retiro, pontua com orgulho encostada ao fogão aberto. Seis filhos. Um deles vive em Londres, e ela conta em altos brados que achava que esporte de macho era futebol, e precisou ir lá fora pra descobrir que macho mesmo é outra coisa. Foi ver uma partida de rugby, na fronteira com a Escócia. Entusiasmou-se tanto, mas tanto, que ainda hoje aumenta a voz quando grita "Brandford Bulls!!! ". Aquilo que é jogo de macho, o resto é conversa. Deve ter sido a mais animada da torcida, num jogo a menos de 5 graus negativos. Grita com o marido, o Fernando que fica no caixa, o tempo todo, e quer saber quem que vai levá-la ao jogo do Corinthians. Estamos no bairro da Fiel, é bom lembrar. 

São tantas palavras em volta, que saltam dos lábios e dos gestos, que me perco, não quero ir embora, ficaria ali horas observando o entre e sai de clientes. Como essa moça que entra agora, de rosto recém acordado, sozinha, e se senta atrás de mim, pernas de fora de uma saia curta e azul e justa, e pede um prato que eu não conseguiria comer o fim de semana inteiro.

Mas é preciso ir, e deixar para uma outra vez. Volto com a humanidade toda à tona, humanidade feita palavra, feita desenho de sons num papel etéreo que não se deixa prender entre os meus dedos. As pequenas misérias da vida insinuam-se, mas perdem força. Os outros são sempre mais do que nós.





21/06/2012

A cidade outra - o sonho

Quem me fez voltar a sonhar foi o manguezal. O seu silêncio expectante, a frieza úmida, a superfície mutante. o fundo desconhecido. Mais do que ser engolida, a sensação de ser deglutida pela lama fria. Voltei algumas vezes, sozinha para que o silêncio fosse mais potente. Um santuário rodeado de árvores cheias de surpresas. Os troncos vermelhos por dentro, as raízes suspirando à tona da lama. A vida a todo o custo. E tudo cheio de vida, tudo prestes a dar à luz. Na noite desse primeiro dia, perco um anel num sonho; o anel afunda-se na lama e quando acordo estou no chão, à procura dele por entre os mangues do meu sonho, traves da cama onde durmo. Devo tê-lo encontrado - os dias que se seguem preenchem-se todos de sonhos.










Esta noite, a meio do frio deste sul que me acolhe todos os meses, também sonho. Sou acordada de tempos em tempos por um dos meus colegas de quarto, que ronca tanto, mas tanto e tão profundamente, que faz estremecer o beliche que dividimos. Dormir na cama de cima seria o suficiente para me fazer acordar algumas vezes. Com a ajuda da sua (só pode ser) grave apneia, tenho tudo para ter o sono interrompido sem que esteja satisfeito. Talvez por isso me lembre dos sonhos. E talvez por causa deles me levante tão leve, e cedo. 

Sonho com dedos e água. Deslizam entre si. Dedos longos e vagos, uma textura imprecisa que não impede que saiba que são meus. Submergem e flutuam ao mesmo tempo. Tudo o mais está parado, quieto, e é um silêncio de catedral abandonada. O barco em que estou sulca as águas rasas e esverdeadas do lago. A vegetação parece muita, mas não é. São só grandes plátanos, e a sua sombra - desenha luzes entre os meus dedos e a água, matéria luminosa embrenhando-se no estado líquido do tempo. Pequenos peixes atravessam as águas por baixo do barco e meus dedos querem alcançá-los. Lentos e terrenos, esguios e alaranjados, escondem-se nas margens verdes.

Um remo invade o leito do lago com suavidade, enterra-se na água sem lhe quebrar o estado de espelho. Inclina-se para não destruir a superfície, reafirma a sua postura e adquire a força que me faz avançar. O movimento do remo no espaço desenha o silêncio da minha alma. Minha tia sorri à minha frente. Seus dentes brilham como pétalas sob as águas.

Tomo banho assim que acordo, e penso que é a água do lago que me lava. Estou pronta para começar o dia. Aguardam-me personagens sem voz que precisam explicar as suas razões.

19/06/2012

A cidade nova XIII - o cemitério

Cemitérios são lugares calmos e sossegados, silenciosos; ninguém incomoda ninguém, ninguém pergunta nada, não tem lágrima que se estranhe. Tenho um cemitério a duas quadras de casa - centro da cidade, cemitério que nem é bonito de se dar nota. Mas tem aqueles ingredientes: sossego, calma, silêncio e solidão. Que é coisa de que se precisa, e por isso passeio por lá com frequência.

Chego hoje e seu Isidro me cumprimenta. Acho que se acostumou  com a minha presença. Descubro que trabalha há anos por lá, tantos que perdeu a conta, limpando e lavando o que precisa ser lavado, pondo e tirando terra de covas. É de poucas, quase nenhuma, palavras, mas veio me perguntar hoje o que é que eu tinha perdido por lá, que tanto aparecia. Disse-lhe que não tinha perdido, mas achado: o sossego, a calma, a solidão e a sombra fresca. Olhou-me nos olhos, abanou a cabeça, retomou a enxada que deixara a um canto e desejou-me um bom dia. Seu Isidro tem um par de olhos cor de mel claro, com um vidrado que os faz brilhar. Olhos estranhos, que se fecham assim que encontram outros. Decidi não ir atrás dele. Fui atrás da estátua que há semanas quero fotografar.


As alamedas são cheias de murtas antigas. Troncos retorcidos, folhas miúdas, a um lado e ao outro. As mais antigas estão na alameda central, fazendo companhia às famílias mais tradicionais da cidade, quando ainda existia espaço para jazigos. Espremem-se os mortos uns ao lado dos outros, sem queixas, sem lamúrias, quietos e parados debaixo da terra. Tudo ladrilhado à flor da terra, num puzzle que se esqueceu de olhar o todo e parece uma colcha de retalhos mal projetada. Ninguém olha o morto alheio quando enterra o próprio. 


Num desses jazigos, todo dia me chama a atenção uma escultura, de longe a mais bonita de todo o cemitério. Já tinha decidido pesquisar-lhe a origem. Valeu a pena o tempo investido hoje.

A escultura foi capa do catálogo da exposição individual do artista que a idealizou, em 1936. Ottone Zorlini. O sexto de sete filhos nascidos em Treviso. Ottone nasceu no fim do século XIX e mudou-se pra Gênova na década de vinte. Menos de 10 anos depois, já estava em São Paulo, com seus instrumentos de escultor a tiracolo. Tornou-se amigo de Volpi, de Mário Zanini. E de uma porção de outros nomes que a mim, leiga por completo, não me dizem nada.

É a sua obra, a escultura que tem me seduzido. Fico sentada à sua frente durante horas, ora de um lado, ora de outro. Como cemitério não é museu (acho), posso encostar a mão em qualquer lugar que me apeteça. Assim os detalhes entram em mim pelos poros sem olhos. As mãos, os pés, as superfícies envelhecidas e duras. Riem-se, aqui em casa, quando tento sair de fininho, não consigo, e acabo confessando que vou ao cemitério. Vou em busca dessa frieza dolorida fustigada pelo tempo.


Mas no fundo são os sonhos enterrados que me chamam para esse lugar, a sensação da vida que chega ao fim, as fotos sépia envelhecidas nas pequenas molduras pregadas às lápides, o parto ao contrário, a viagem de volta. Como as flores de plástico, que não morrem, também permanecem as saudades, coladas às pedras e aos azulejos.


É triste ver os cortejos saindo do velório ao lado, avançando em medidos passos lentíssimos pelas alamedas sombreadas, um ritual tão antigo que esquecemos porque não passa ao nosso lado. Mas o tempo, aqui, tem outro ritmo. O de seu Isidro, que passa e acena com a cabeça, ocupadas ambas as mãos  com o carrinho cheio de terra de cova. O cemitério se enche de pessoas que atravessam a alameda central para chegar à rua de cima - entram dum lado, saem do outro, pura conveniência ditada pela pressa. Nem reparam no que está. Cemitério é lugar de onde se foge, ou por onde se passa de sentidos fechados.


















































18/06/2012

Segunda feira

Há dias como os de hoje, plena segunda feira, em que se fica zanzando à procura de sentido. As horas não passam, encalacradas umas nas outras. Não é falta de trabalho: estou rodeada de textos, uns que precisam ser escritos, outros reescritos, revisões que precisam chegar ao fim, traduções que esperam pacientemente que volte a elas. Não é falta de trabalho: é falta de sentido.

"Como se houvessem fantasmas de nós mesmos em lugares que não mais habitamos", diz-me uma amiga de longe, agora mesmo, respondendo a um email que conscientemente buscava sentido no alheio, e que com estas palavras sei que me entende. Ou como se tivesse "saudades do futuro", responde-me outra, no bate-papo, fazendo parecer que está aqui ao meu lado. É tudo isso, e mais um pouco, ao mesmo tempo.

Dona S., ontem, contava-me o quanto detesta os domingos - dias em que a cidade pára (e pára mesmo, esta), em que nada acontece, em que as filhas vêm para almoçar e parece que esquecem de ir embora, e ela querendo logo que sumam para poder ir tomar sorvete sossegada lá em baixo, na sorveteria do São Geraldo. E seus olhos estão tristes, quando me diz isso, de repente seu rosto sem brilho num domingo atormentado. Tenho vontade de lhe dar um abraço, mas não me mexo.

Fui visitá-la, agora cedo. E o brilho voltou-lhe, as segundas feiras não a incomodam em nada, tem um ritual todo próprio para dar conta da semana.

- O duro, Ana, são os domingos. Quase que podia viver sem eles - E eu arrisco-me a dizer-lhe que institua um ritual também para os domingos. E ela responde-me sem saber o quanto me responde: - Mas como é que eu podia viver a vida inteira achando que vale a pena, se não tiver um dia que parece que não vale?


Volto a sentar-me diante do papel para reencontrar um qualquer sentido, daqueles que só alcanço quando as palavras me desabitam. Dona S. nem desconfia o quanto me ajuda, do lado de lá do muro que divide as nossas vidas em duas metades, a árvore de canela que nasce no quintal de lá abrindo-se prodigiosamente em galhos e folhas para o lado de cá. Até meus fantasmas desabitados têm saudades do futuro.