28/11/2011

Jornal de domingo no primeiro dia de Advento


Neste primeiro domingo de Advento, abro a Folha sem grandes esperanças. Embora seja jornal de domingo e há anos eu goste dos jornais de domingo, onde seja, na língua que seja. Mesmo que metade da sua massa seja de anúncios classificados, as análises literárias tendem a aparecer nesse dia, assim como as resenhas que muitas vezes orientam onde gasto meu dinheiro, os cronistas e articulistas que se publicam aos domingos e só aos domingos... Entre outras coisas.

Vou direto, normalmente, aos cadernos que prefiro; além da Ilustrada e da Ilustríssima, o Cotidiano.  Provavelmente porque seja aí que encontre, via de regra, o dia a dia das pessoas que se querem comuns, aqueles dramas pequenos cortando vidas simples em pedaços complexos. Abro o caderno de trás pra frente, que é como gosto de ler jornal: passo os olhos pelo percurso inverso de quem o montou, divirto-me lendo primeiro o que o editor quis que se lesse por último. Longe de exercer meu direito a ser do contra, mais perto da vontade de querer nortear-me eu mesma nas minhas escolhas.

Enfim, vou lendo. Descubro, na página 7, que esta é a última semana da coluna impressa do Gilberto Dimenstein. Ouço aqui ao lado, assim que comento o quanto gostei, que é controverso, olha lá... Mas o sujeito escreve realmente bem, num tom de despedida sincera e emocionada num texto da estatura dos seus melhores. Serendipity é o mote da sua gratidão pela Folha e pelo espaço que pôde ocupar dentro dela, o mote para a breve revisitação da própria vida: os prêmios coloca-os a um lado; a outro, o “encanto de transformar o acaso em aprendizado”, e isso é serendipity, a sua “palavra mais bonita”. Demoro a retomar a leitura e a descobrir por onde anda esse sujeito que ajudou a adolescente Esmeralda a colocar em forma de livro a sua vida dentro do crack, leitura que compartilhei com muitos alunos que ainda hoje se lembram dos seus relatos cáusticos e ásperos. Demoro a chegar ao final. E o final é na verdade o princípio, aquilo que gostaria de dizer a quem está, como Gilberto, de partida: “para viver experiências, sempre estamos nos despedindo de alguma coisa de que gostamos”.

E para garantir que eu não me esqueça de levar a mensagem adiante, antes mesmo de agarrar em um dos cadernos que povoam a minha mochila, retrocedo duas ou três páginas e quem me sorri do outro lado na negra tinta de gráfica é o poeta Sergio Vaz, em mais uma surpresa que vem me nutrir este início de Advento que apenas inicia. É com apreço, com encanto, com admiração que gosto desse homem. O seu sorriso largo, que não está na foto mas na minha memória, vai atravessar-me, tenho certeza, o dia inteiro.Um sorriso de Morte e Vida daqui a pouco, um Severino feito tarde de chuva que não veio, uma voz a levantar-se na planura da vida pra gritar tão alto, de cima da laje da sua/nossa/de todos Cooperifa, que quase consigo ouvi-lo daqui, tão longe da agreste periferia paulistana:

No caminho do crer e não crer
Vivo na dúvida do milagre
Entre as brumas da uva e do vinho
Sou eu quem destila o vinagre.

Caminho no chão em busca do céu
Num fogo e água que não tem fim

Porque
Não me esforço para acreditar em Deus
Esforço-me para que Deus acredite em mim.


17/11/2011

"Um pouco de possível, senão sufoco"


8h
“Aos tropeços.” Foi assim que me responderam hoje quando quis saber como ia a vida. Tinha razão o meu interlocutor: há dias que vão assim, aos tropeços, num sobressalto, numa espécie silenciosa de grito, uma inquietação cansativa que só termina quando o sono vence.  Eu tenho uma cada vez menor tolerância a dias assim, e hoje infelizmente é um deles.

9h30
Quando acontece, vou atrás de palavras. Às vezes com uma rede de borboletas, mas isso é quando as minhas mãos são mais leves que as nuvens. Hoje, caço as palavras de forma diferente, uma espécie de guerrilha em que preciso pular-lhes em cima, feito leoa disposta a alimentar os filhotes apesar do que for. Digamos que os filhotes são os meus neurônios, e a carne das palavras o sangue que os refaz.

12h 
Poucas pessoas conseguem acalmar-me. O melhor a fazer (aqui em casa sabem-no bem) é deixaram-me onde estou, sem grandes perguntas, muito menos cobranças, deixemos as dúvidas e os questionamentos para amanhã. Porque, também, assim como vem, vai. E não: não é menopausa, porque são anos e anos de tropeçadas irregulares. Algumas coisas ativam-me a inquietude, e nada têm a ver com hormônios. Não: um de meus problemas é estar cansada de esperar.

14h30
Primeiras presas do dia: palavras que derivam de pathe/sentimento, transformado pelos romanos em pati/suportar. Derivadas: paciência; paixão; empatia; padecer. Pausa e silêncio. Assuntos para outro dia. As palavras olham-me como eu a elas: “guardo-vos numa gaveta para ter-vos em outro momento”.

19h00 
Últimas presas do dia: palavras de Gilles Deleuze, que ainda é gentil o suficiente para me oferecer de bandeja as que dão título a esta crônica. Passo o dia à procura e eis que me encontro: da sua cadeira estofada, com apenas 1/3 de seus pulmões funcionando, esse homem de corpo-sem-órgãos diz-me, assim como se fosse óbvio, que “se não se pode captar a pequena marca de loucura de alguém, não se pode gostar desse alguém... [porque] é este lado que interessa (...) o ponto de demência de alguém ”. Inversão do lugar comum em que se acotovelam almas gêmeas; essas que compartilham, irmanadas; que se aproximam na obviedade do que é sempre o mesmo dia sem surpresas. Hoje, pelo menos, prefiro a outra imagem, a desconstruída, desconexa, ilógica, assustadora, impossível de ser manipulada por sua qualidade única e irrepetível. Gosto disso. Um pouco do possível, para que não sufoque. Agora que termina, o dia  melhora.

15/11/2011

De pé, com a dor na mão

(a propósito da exposição de Alberto Pinheiro no MAC de Botucatu)

Aprendi hoje que resistência à dor é a diferença entre dois valores: o limiar de dor e o limiar de tolerância. O primeiro é aquele ponto ou momento em que se reconhece como doloroso um estímulo (por exemplo, água a 44°C para a maioria dos mamíferos). O segundo, o momento em que esse estímulo alcança tal intensidade que deixa de ser aceitavelmente tolerado (no mesmo exemplo, água a 48°C). A resistência à dor é a diferença entre os dois limiares. A dor a que podemos aceitavelmente resistir. Dores de parto podem estar muito próximas a esse limiar de tolerância, e portanto ir além do que entendemos como resistência à dor. Cheguei à conclusão, depois de sete dessas experiências que Santo Agostinho dizia livrarem-nos a nós, mulheres, da impureza que está na origem do ser gerado, de que o limiar de tolerância obedece também à nossa capacidade de controle, acomodação, aceitação. Assim como obedece aos decretos silenciosos da sociedade em que nascemos e daquela que escolhemos ter como nossa, e por isso assumimos os riscos de a querer transformar. 

A exposição em cartaz no MAC de Botucatu, de Alberto Pinheiro, fala-me dessa resistência; sem palavras e sintomaticamente com muito ferro. Em cada peça, os dois limiares nus e crus: a dor que se aguenta e a que se torna insuportável. O resultado da exposição é a esperança: a resistência à dor; o tomar a transformação nas próprias mãos mesmo quando por entre elas parece escapar-se tudo.

Fiquei presa, muito tempo, diante da figura de uma arqueira, logo à entrada. Voltei mais tarde outra vez, porque a figura diz-me algo. Sim, o pássaro do pré sal também me diz, assim como o namoro sob a lua e a família da dependência química sob um chão de ilusão transparente. Mas a arqueira, a sua leveza, a sua precisão, a sua procura do alvo necessário, prendem-me o olhar. Estaco diante dela e diante da dor que a põe de pé e a faz levantar o arco: é a sua resistência que me fez voltar.

Impressionam-me, aqui e ali, as possibilidades infinitas de transformação da realidade em arte com que o Alberto vislumbra o oculto. Como desoculta e transfigura a verdade dura do ferro e encontra um mundo novo ao seu redor. Na matéria que é, pelas suas mãos, retornada ao seu caráter de espírito.

Conviver com o Alberto, seja aqui por meio das suas peças, seja ao vivo quando o encontro, provoca-me a mesma sensação: a da premência do olhar direto e em frente, solene e compassivo diante da quebra alheia, da desistência, da dor e de todos os seus limiares. Um olhar que apreende do outro mais a coragem da falta do que a falta da coragem. Porque é possível agrupar as palavras conforme queiramos, assim como é possível agrupar as nossas dores e colocá-las a serviço do outro. Ou não. O Alberto escolhe o sim. E eu escrevo para agradecer-lhe por isso.




Exposição “Metamorfose”, de Alberto Pinheiro
MAC - Museu de Arte Contemporânea Itajahy Martins - Av. D. Lúcio, 755
Terça a sexta das 9h às 17h; sábado, domingo e feriado das 12h às 17h
Até 4 de dezembro

12/11/2011

20 maneiras de responder a um email

Dia desses, uma amiga querida enfrentou um terrível problema. Enviou um email plenamente embaraçoso de tão honesto e ficou esperando resposta. Esperou. Esperou. Esperou. Seis dias, pelo que entendi, sem chance de descanso no sétimo, pelo que me parece.

Sabe um daqueles emails que doem se não são respondidos? Fiquei triste de vê-la nesse estado e pensei: "caramba, é nessas horas que se exerce a empatia".


E lá fui eu ser empática.


Tentei colocar-me no lugar dela: escrever um email que, considerando as circunstâncias, mais parecesse um quadro de Dali em forma de letras.  Mas quem nunca escreveu emails assim? Como aqueles que Pessoa, se encarnasse aqui ao meu lado, escreveria hoje achando ridículos, mesmo que perfeitamente consciente que ridículo mesmo é quem nunca os escreve...?


Coloquei-me também no lugar do destinatário, que na verdade mal conheço, e não resultou. 
Voltei à minha amiga; e decidi ajudá-la, enviando, a esse tal seu amigo, ideias de como responder, caso o problema fosse esse. Se puderem ser aproveitadas por outras pessoas enfrentando problemas semelhantes... 


Caro X (porque eu não vou entregar nem amiga nem sujeito, é claro): respostas possíveis ao email que você recebeu:


1. Querida fulana: estou sem palavras. (o mais votado do júri popular)
2. Cara fulana, por favor exclua-me dos seus contatos, por favor. (considerada a mais sincera)
3. Fulana, minha filha, vc é muito é sem noção... (enfim...)
4. Fulana, PQP, vai amarrar sua égua noutro lugar. (eu, no caso, riria...)
5. Literária, dos vizinhos ao lado:
         Lo que me gusta de tu cuerpo es el sexo
         Lo que me gusta de tu sexo es la boca
         Lo que me gusta de tu boca es la lengua
         Lo que me gusta de tu lengua es la palabra
(fala sério... pensou que ia ser só bobagem, né? Nada disso: Julio Cortázar!)
6. Fulana, eu gostaria muuuuuuuito de poder responder, mas não posso. (claro como a água turva)
7. Você não quer tomar um café um dia desses? eu não tou fazendo nada, e nem vc também, faz mal bater um papo assim gostoso com alguém? (pq a minha amiga é dos anos 80 e isso seria o êxtase!)
8. Fulana, meu anjo: vc já pensou em fazer terapia? Não terá errado o tanto de gotinhas do remedinho?
9. tum tum tum tum... o número para onde vc discou está temporariamente fora de serviço...(evasivo, mas bem compreensível...)
10. Eu te conheço? (estilo sacana...)
11. Tá precisando de serviço, é? (grosso)
12. Viu as manchetes da Folha hoje? (mudança de assunto)
13. Minha religião não permite respostas a perguntas desse tipo, desculpe...
14. Olha... vou te ensinar como não dançar bolero, tá?: dois pra lá... nenhum pra cá... (bem metafórico)
15. ééé... então... sabe... hmmm (aquela que não compromete)
16. Eu não entendi, vc pode refazer duas colocações? (acadêmico)
17. Ó... perdi meu óculos! (providencial)
18. Mensagem padrão: o destinatário encontra-se em férias em local desconhecido e inacessível entre o brasil e o chile. mensagem automática. por favor NÃO RESPONDA (entendeu, né?)
19.Ó xente, fiquei até vexado, bichinha...
20. Veja bem: há questões esotéricas panteosocráticas da rebimbela do segundo corpo da alma transversal que precisam ser melhor exploradas nesse âmbito complexo. 


21. Agora: boa mesmo, ainda mais chegando a esse número 21 que expressa a maioridade de um sujeito, é a pessoa responder com aquilo que está dentro de seu coração, e que pode agora ocupar o espaço em branco de uma página de email.

 
Com certeza essa seria a que a minha amiga mais gostaria de receber.